Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx Direitos dos Migrantes, dos Refugiados e dos Apátridas 2 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx DESENVOLVIMENTO DO MATERIAL: Alexandre Norberto Canuto Franco Graduado em Administração Pública, pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro (FJP), especialista em Cidadania e Direitos Humanos no Contexto das Políticas Públicas, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), com créditos concluídos do curso de Mestrado em Ciência Política, do Departamento de Ciência Política (DCP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Servidor público do Poder Executivo de Minas Gerais, na carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, atua como técnico de referência para políticas de apoio ao migrante e de enfrentamento ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas, na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (Sedese/MG), representando a Sedese no Comitê Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo de Minas Gerais (Comitrate/MG). 3 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx Sumário CONCEITOS BÁSICOS ......................................................................................................................................... 4 MIGRAÇÃO E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ................................................................................... 13 O DIREITO A SERVIÇOS BÁSICOS ..................................................................................................................... 16 VIOLAÇÕES DE DIREITOS ................................................................................................................................. 24 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................................. 30 4 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx Direitos dos Migrantes, dos Refugiados e dos Apátridas Alexandre Norberto Canuto Franco1 CONCEITOS BÁSICOS Migração Migração é um processo de atravessamento de uma fronteira internacional ou de um Estado. É um movimento populacional que compreende qualquer deslocação de pessoas, independentemente da extensão, da composição ou das causas; inclui a migração de refugiados, pessoas deslocadas, pessoas desenraizadas e migrantes económicos. (OIM, 2009). Podemos tratar as pessoas que passam por tal processo como migrantes, ou alterar para emigrante ou imigrante, dependendo se estamos tratando de sua partida ou de sua chegada. Por exemplo, se falamos dos brasileiros que se mudam para Portugal ou qualquer outro país, podemos falar deles como emigrantes brasileiros, ou seja dos brasileiros que saem de seu país de origem. Mas, se falamos daqueles migrantes que vieram da Venezuela ou do Haiti para o Brasil, podemos chamá-los de imigrantes, ou seja, daqueles estrangeiros internacionais que entram em nosso País. Nesse sentido, a escolha do termo será em função da perspectiva em que estamos falando. Destaque-se que: A palavra “migrante” costuma ser utilizada para designar aquele que se desloca dentro de seu próprio país e também pode ser usada para falar dos deslocamentos internacionais. Alguns especialistas, inclusive, aconselham o uso do termo migrante quando se fala de migrações entre países, por ser abrangente e não simplista. (ACNUR, 2019, p. 10). 1 Graduado em Administração Pública, pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro (FJP), especialista em Cidadania e Direitos Humanos no Contexto das Políticas Públicas, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), com créditos concluídos do curso de Mestrado em Ciência Política, do Departamento de Ciência Política (DCP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Servidor público do Poder Executivo de Minas Gerais, na carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, atua como técnico de referência para políticas de apoio ao migrante e de enfrentamento ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas, na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (Sedese/MG), representando a Sedese no Comitê Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo de Minas Gerais (Comitrate/MG). 5 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx As causas de migrações podem ser diversas e, da mesma forma, são diversas teorias que procuram trazer luz a este fenômeno, podendo, inclusive, serem utilizadas de modo conjugado. De acordo com Carolina Nunan (2012), as principais são: • Teorias neoclássicas: analisam as migrações como um somatório de movimentos autônomos dos indivíduos, que se deslocam em função de suas respectivas demandas, dentro de um cenário de livre-mercado internacional. Nessa perspectiva, as pessoas migram em busca de melhores oportunidades econômicas, seja em termos de empregos, ou em termos de salários. • Teoria histórico-estrutural: é uma perspectiva que analisa o fenômeno migratório como uma questão coletiva e social, em função de desigualdades socioespaciais. Ou seja, as desigualdades fazem com que grupos saiam de lugares mais pobres e com menores condições para ascensão social, para outros territórios em que possam ter melhores condições. • Teoria do mercado dual de trabalho: nessa abordagem não importam as condições dos países de origem, mas somente os fatores de atração de países de destino. Desse modo, pessoas migram porque determinados países ou regiões atraem pessoas que percebem vantagens em se mudar, como oportunidades de ganhos melhores do que em seus países de origem, mesmo em trabalhos menos qualificados, ou até mesmo os benefícios sociais oferecidos nos países de destino. • Teoria de sistemas mundiais: nessa abordagem, a liberdade de escolha não importa tanto, pois o fenômeno migratório é causado pelo próprio sistema capitalista, constituído em “metrópoles” e “colônias”, sendo as primeiras responsáveis pela manutenção dessas últimas, mantendo uma relação de subalternidade e, assim, mantendo as diferenças entre as forças de trabalho nos dois polos. • Teoria das redes sociais: consideram as migrações como fenômenos subjetivos, associados aos desejos dos indivíduos e às visões e comportamento de grupos que, inclusive podem motivar ou inibir as migrações de outros membros dos respectivos grupos. Percebe-se, assim, que as motivações e explicações para as migrações internacionais são diversas, formando uma temática complexa e que exige conhecimentos, dados e reflexões para uma melhor compreensão de seus mecanismos. Mas somente estrangeiros internacionais são migrantes? E quando falamos de migrantes entre regiões do Brasil? Não! Não há somente migrantes internacionais, 6 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx podendo haver migrantes internos dentro de um mesmo país. Nesse sentido, a migração interna é a Circulação de pessoas de uma região do país para outra, com a finalidade ou o efeito de fixar nova residência. Este tipo de migração pode ser temporária ou permanente. O migrante interno desloca-se, mas permanece dentro do seu país de origem (por ex., migração de zonas rurais para zonas urbanas). (OIM, 2009). No Brasil, os desequilíbrios econômicos regionais, independente da perspectiva teórica que se utilize, formam o principal fator das trajetórias migratórias (GHUZI, 2012).Apesar das maiores teorias sobre as migrações brasileiras terem sido construídas nos anos 1960 e 1970, pode-se considerar três grandes movimentos migratórios no País. O primeiro, entre 1888 e 1920, em função da substituição da mão de obra escrava por mão de obra de trabalhadores livres, inclusive com a finalidade de ocupação de povoamento do território, e com grande participação de migrantes vindos de outros países, principalmente da Alemanha e da Itália (GHUZI, 2012). O segundo, entre 1930 e 1980, principalmente com migrações internas no País, em função da substituição da economia agrária pela economia industrializada, com grandes fluxos migratórios do meio rural para as cidades, principalmente com pessoas indo da região Nordeste para as regiões Norte e Sudeste e, também, desta última para as regiões Centro-Oeste e Sul (GHUZI, 2012). O terceiro, a partir dos anos 1980, diminui os fluxos interestaduais, mas mantem fluxos internos, sendo que o principal consenso sobre suas causas é a ocorrência de crises sociais e econômicas (GHUZI, 2012). Como exemplo, o estado de São Paulo perde a atratividade que tinha para os nordestinos, que tenderam a retornar a seus territórios de origem, e isso relaciona-se com o aumento da violência urbana, do desemprego, do acesso a serviços básicos e à habitação, entre outros (GHUZI, 2012). Outros autores dividem os movimentos migratórios brasileiros em dois períodos, sendo um anterior à década de 1980, relacionado às mudanças de modelo social e econômico até a industrialização, e outra após os anos 198, em razão das disfunções sociais ocasionadas pela urbanização e “metropolização” (BRITO, 2009). PORTANTO, NUM CENÁRIO AMPLO, MIGRAÇÃO REFERE-SE À MIGRAÇÃO INTERNACIONAL OU EXTERNA, AO PASSO QUE AS MIGRAÇÕES QUE OCORREM DENTRO DE UM PAÍS PODEM SER DENOMINADAS MIGRAÇÃO NACIONAL OU INTERNA, HAVENDO OUTROS TIPOS (QUADRO 1). 7 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx QUADRO 1. TIPOS DE MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS. Tipos Descerição Migração internacional ou externa Aquela que se realiza de um país para outro. Migração nacional ou interna Aquela que se realiza dentro do mesmo país. Migração inter-regional Realiza-se de uma região para outra. Migração intrarregional Aquela que se realiza dentro da mesma região. Migração definitiva Ocorre quando o migrante não retorna mais para o local de origem, permanecendo definitivamente no local de destino, ou seja, para onde migrou. Migração temporária Quando a migração se dá por um tempo que pode ser determinado ou indeterminado. Migração espontânea Dá-se por vontade própria do migrante. Migração forçada Quando ela se dá por vontade externa ao interesse do migrante. Fonte: KLEIN et al, 2009, p. 607. Refúgio Após o fim da II Guerra Mundial, a partir da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), também foi criada, na sequência, uma agência internacional, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) para auxiliar os europeus que perderam suas casas durante a guerra e, em 1951, foi assinada a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto do Refugiado, também denominada de Convenção de Genebra. A Convenção de Genebra, de 1951, foi um marco importante, pois trouxe definições sobre refúgio e estabeleceu direitos específicos para aqueles, bem como obrigações para os Estados signatários da Convenção, tendo o Brasil ratificado a Convenção no ano de 1960. De acordo com a Convenção de Genebra, considera-se refugiada qualquer pessoa Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (ACNUR, 1951). 8 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx Percebe-se que o termo refugiado tem limites geográficos e temporais, e atendia principalmente às pessoas que sofreram, na Europa, em função da II Guerra Mundial. Ou seja, só poderia ser considerado refugiada a pessoa perseguida até a data citada – 1º de janeiro de 1951. Mas a edição do Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados, de 1967, extinguiu tais limitações (ONU, 1967). Atualmente, refugiados São pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. (ACNUR, 2020b) Refugiados, portanto, são fugitivos que tiveram de deixar seu país por ameaças a seus direitos e à sua vida ou por perseguições, sejam políticas, sejam por opiniões, ou por escolhas pessoais. Não devemos confundi-los com criminosos pelo fato de nem sempre estarem com sua documentação em situação irregular, o que será tratado na próxima sessão. Apesar da violência e da perseguição infligida a pessoas e que as motiva a buscar sua segurança e melhores condições de vida em outros países, atualmente há um debate sobre outras condições que levam ao refúgio, discutindo-se a formação de novas categorias de refúgio que ainda precisam ser reconhecidas pela comunidade internacional, como (ACNUR, 2019): • Refugiados econômicos: grupos de indivíduos forçados a abandonar seu país na busca de melhores condições de vida. • Refugiados ambientais: grupos populacionais forçados a deixarem seus territórios devido a calamidades ambientais, como poluição, contaminação do ambiente, secas, enchentes ou outras grandes variações climáticas que afetem as condições de sobrevivência em seus respectivos países de origem. No Brasil, a Lei Federal nº 9.474/1997 traz definições para a implementação do Estatuto dos Refugiados, também passa a ser considerado refugado qualquer vítima de violação grave generalizada dos direitos humanos, numa alusão aos Direitos Fundamentais, ampliando o conceito no País. Outro ponto de destaque é quanto à diferenciação entre migrantes e refugiados. Da mesma forma que nem todo mineiro é belorizontino, mas todo belorizontino é mineiro, todo refugiado é um migrante, mas tem todo migrante é um refugiado. 9 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx Apatridia Mudanças nas relações internacionais estão fortemente relacionadas à ocorrência de apatridia, que normalmente ocorre devido à disputa entre Estados, da marginalização de grupos específicos dentro de um país, ou de sucessão de Estados (ACNUR, 2009), e leva à exclusão de indivíduos ou grupos de indivíduos dentro de seu próprio país, inclusive de seus direitos, enquanto cidadãos e seres humanos. Apátridas São pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. A apatridia ocorre por várias razões, como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente (secessão de Estados) e conflitos de leis entre países. (ACNUR, 2020a). A nacionalidade é um dos determinantes da soberania de um país, e a sua perda, ou denegação, – que pode levar à apatridia – é uma decisão interna, mas o Direito Internacional também determina que os Estados “têm que cumprir as suas obrigações para com outros Estados em conformidade com as normas do direito internacional” (ACNUR, 2009, p. 8). A Convenção de Haia sobre Determinadas Questões Relativas aos Conflitos de Leis sobre a Nacionalidade, de 1930, afirma que a forma que cada Estado define quem são seus cidadãos deve respeitar as normas de direito internacional. E a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, de 1948 determina que todo indivíduo tem direito a uma nacionalidade, mas não define a qual nacionalidade a pessoa tem direito, o que levou a comunidade internacional a desenvolver alguns instrumentos que auxiliam nessa questão: a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954. A primeira determina que um refugiado apátrida seja portador de direitos e que deve ser reconhecido como refugiado, por considerar a negação de seu direito à cidadania – lembrando que a nacionalidade é um elemento importante para a cidadania – um indicativo do motivo de seu refúgio. O segundo normativo internacional, por sua vez, traz uma definição jurídica de apátrida, ou apátrida de jure, que é “toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo sua legislação, como seu nacional” (ACNUR, 2009). Assim, Supõe-se que um indivíduo tem uma nacionalidade a menos que haja prova em contrário. Todavia, às vezes, os Estados com os quais um indivíduo pode ter um vínculo genuíno não chegam a um acordo com respeito a qual deles serão Estado que tem que reconhecer a cidadania a essa pessoa. Portanto, 10 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx o indivíduo não pode demonstrar que é um apátrida de jure, não tendo, ainda assim, uma nacionalidade efetiva, nem gozando da proteção de um Estado. Essas pessoas são definidas apátridas de facto. (ACNUR, 2009, p. 11). Entretanto, apesar das convenções considerarem que um apátrida pode ser refugiado, deixam margem para que certos apátridas de facto não sejam qualificados como refugiados, por não haver necessariamente uma perseguição (ACNUR, 2009). Assim, dada complexidade da questão, é importante o conhecimento sobre outros normativos internacionais, a fim de garantir que as pessoas sem nacionalidade sejam respeitadas e tenham seus direitos individuais garantidos. Convenções sobre a mulher, a criança e o adolescente, a eliminação de discriminações, direitos civis e políticos, além de tratados regionais (da Organização dos Estados Americanos, da Organização da Unidade Africana, etc.). Para se reconhecer um apátrida, primeiramente deve-se provar a negação de seu vínculo legal com qualquer país. Entretanto, isso deixa margem para que o país de origem ou de residência do indivíduo seja omisso na emissão de algum documento que informe que aquela pessoa não é nacional do referido país. Mas, “pode deduzir- se então que quando um Estado se recusar a confirmar que uma pessoa é um dos seus cidadãos, a mesma negação constitui uma forma de prova, pois geralmente os Estados oferecem proteção diplomática aos seus cidadãos.” (ACNUR, 2009, p. 19). O reconhecimento da apatridia não possui um procedimento homogêneo e único, variando de país a país, conforme a regulação normativa de cada um, e o requerimento, bem como a busca de comprovante de sua “não nacionalidade” depende do indivíduo requerente, o que nem sempre é possível. Causas da apatridia (ACNUR, 2009): • Conflito entre legislações de diferentes Estados. Ex.: a nacionalidade de um indivíduo que vive em determinado país é dada pela descendência (jus sanguinis), mas seus pais são naturais de outro país, que define a nacionalidade pelo local de nascimento (jus soli). • Conflite de leis relacionadas à renúncia da nacionalidade. Ex.: um país obriga o indivíduo a renunciar à sua nacionalidade de origem para adquirir a do país em que se encontra, mas o seu país original só permite a renúncia à nacionalidade após ele adquirir outra. • Ausência de prova de nascimento oficial que permita a uma criança adquirir alguma nacionalidade. • Custos administrativos e prazos inexequíveis para apresentação de documentos a uma requisição de nacionalidade. 11 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx • Discriminação de gênero. Ex: mulher é obrigada a adquirir a nacionalidade do marido estrangeiro, podendo perder a nacionalidade com a dissolução do casamento, antes mesmo de adquirir outra nacionalidade. • Perda automática da nacionalidade quando a pessoa deixa o país ou reside no exterior. • Transferência de território ou de soberania, de um Estado para outro. Ex: quando um Estado for dissolvido e for sucedido por outro Estado, alterando as normas e procedimentos sobre nacionalidade. • Discriminação. Ex.: um indivíduo nascido em determinado Estado pode não ter sua nacionalidade garantida por pertencer a determinada etnia, descendência ou religião, apesar de ser motivo totalmente contrário às convenções de direitos humanos, inclusive à Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. • Privação ou denegação da nacionalidade, quando determinado Estado priva um indivíduo de sua nacionalidade e, normalmente, logo o expulsa. No Brasil, que reconheceu em 2002 a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (BRASIL, 2002), a apatridia é regulamentada pela Lei de Migração, na qual apátrida é definido como “pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002 , ou assim reconhecida pelo Estado brasileiro.” (BRASIL, 2002). E a identificação civil será “(...) realizada com a apresentação dos documentos de que o imigrante dispuser. (Idem). O governo nacional, por meio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, é o responsável pelo reconhecimento da condição de apatridia, podendo considerar os documentos apresentados pelo solicitado e por órgãos e organismos internacionais, no processo, podendo o requerente preencher uma declaração própria na qual assume a responsabilidade pela informação. Ao solicitar, o requerente tem direito a residência provisória no Brasil até a resposta do seu pedido. Além de direito a residência, o requerente também goza de direito a emissão de carteira de trabalho provisória, a ter seu Cadastro de Pessoa Física (CPF) e a abrir conta bancária no País. Quando reconhecido como apátrida, o que deve ser decidido pelo órgão competente em até 30 dias, a pessoa pode optar pela naturalização brasileira imediata e, mesmo não optando, pode solicitar residência definitiva no Brasil. Se não for reconhecido, ainda assim, é garantido que não será devolvido ao país de origem ou de residência, caso sua vida ou integridade sejam ameaçados. 12 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx Quanto aos seus direitos e deveres, o ACNUR coloca que (ACNUR, 2009): • Sua detenção deve ser tratada como excepcionalidade, mesmo que não esteja em situação de permanência legal dentro de um país. • Todo apátrida deve obedecer à legislação do país em que se encontra, onde deve gozar dos mesmos direitos e benefícios que qualquer outro estrangeiro, não podendo ser discriminado, inclusive, por questões de raça, religião ou país de origem. • Ao apátrida deve ser emitido algum documento de viagem no país em que se encontra, mesmo que não seja residente. • Devem ser disponibilizadas garantias processuais para o apátrida ter a oportunidade de responder e apresentar provas contra acusações que possam culminar em sua expulsão. • Os Estados devem se esforçar para garantir a naturalização e integração dos apátridas em seu território, inclusive quanto à diminuição de custos e minimização de prazos para tal. • Uma pessoa que renuncia à proteção do Estado do qual é cidadã, mas que não lhe provê todos os benefícios relacionados à nacionalidade, deve ter seus direitos garantidos como apátrida de fato. 13 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx MIGRAÇÃO E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Estatuto do Estrangeiro Em 1980 foi editada uma lei que definia a situação dos estrangeiros em solo brasileiro, denominada Estatuto do Estrangeiro (BRASIL, 1980).Criada durante a Ditadura Militar, seu viés era de tratar o migrante sob uma ótica de segurança nacional, condicionando a concessão de visto ao “interesse nacional”. O Estatuto, inclusive, condicionava a saída de asilado no Brasil à autorização governamental, além de proibir a legalização do estado de clandestino, de irregular e a conversão de vistos temporários em permanentes. O controle sobre estrangeiros, por meio do Estatuto, era tão grande que determinava que diversas instituições (inclusive privadas) mantivessem atualizados os registros de estrangeiros no País: Art. 45. A Junta Comercial, ao registrar firma de que participe estrangeiro, remeterá ao Ministério da Justiça os dados de identificação do estrangeiro e os do seu documento de identidade emitido no Brasil. Parágrafo único. Tratando-se de sociedade anônima, a providência é obrigatória em relação ao estrangeiro que figure na condição de administrador, gerente, diretor ou acionista controlador. Art. 46. Os Cartórios de Registro Civil remeterão, mensalmente, ao Ministério da Justiça cópia dos registros de casamento e de óbito de estrangeiro. Art 46. O estabelecimento hoteleiro, a empresa imobiliária, o proprietário, locador, sublocador ou locatário de imóvel e o síndico de edifício remeterão ao Ministério da Justiça os dados de identificação do estrangeiro admitido na condição de hóspede, locatário, sublocatário ou morador. Art. 47. O estabelecimento hoteleiro, a empresa imobiliária, o proprietário, locador, sublocador ou locatário de imóvel e o síndico de edifício remeterão ao Ministério da Justiça, quando requisitados, os dados de identificação do estrangeiro admitido na condição de hóspede, locatário, sublocatário ou morador. Art. 48. Salvo o disposto no § 1° do artigo 21, a admissão de estrangeiro a serviço de entidade pública ou privada, ou a matrícula em estabelecimento de ensino de qualquer grau, só se efetivará se o mesmo estiver devidamente registrado (art. 30). Parágrafo único. As entidades, a que se refere este artigo remeterão ao Ministério da Justiça, que dará conhecimento ao Ministério do Trabalho, quando for o caso, os dados de identificação do estrangeiro admitido ou matriculado e comunicarão, à medida que ocorrer, o término do contrato de trabalho, sua rescisão ou prorrogação, bem como a suspensão ou cancelamento da matrícula e a conclusão do curso. (BRASIL, 1980, grifo nosso). 14 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx Outro aspecto controlador é a possibilidade de exigência de visto de saída do estrangeiro, pelo interesse da segurança nacional. E o estrangeiro em situação irregular poderia ser deportado por “interesse nacional”, ou seria legal a expulsão de qualquer estrangeiro que atentasse contra a “segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais” (BRASIL, 1981, Art. 65), inclusive se incorresse em vadiagem ou mendicância, num posicionamento claramente higienista. Além disso, o Estatuto estabelecia diversas vedações aos estrangeiros, como ser proprietário, orientador intelectual ou administrativo de empresas jornalísticas, participar de atividades sindicais, exercer determinadas profissões relacionadas à segurança nacional, como algumas atividades portuárias, capelania militares. Também era vedado ao estrangeiro o exercício de atividade política e ilegal a sua associação em clubes ou organizações beneficentes, de assistência ou a clubes desportivos e sociais. O Estatuto previa, entretanto, algumas exceções ao estrangeiro português. Outro elemento restritivo no Estatuto é a possibilidade de tornar a naturalização sem efeito, caso o prazo de solicitação de certificado espirar, além de poder ser impugnada ou a falta de garantia de ser concedida, pois “a satisfação das condições previstas nesta Lei não assegura ao estrangeiro direito à naturalização.” (BRASIL, 1980, art. 121). Além disso o próprio Estatuto criminalizava e impunha penalidades a brasileiros que auxiliassem ou transportassem estrangeiros sem documentação, bem como ocultar estrangeiro clandestino ou empregar estrangeiro com documentação irregular. Lei de Migração Considerando o conflito do Estatuto do Estrangeiro com os tratados da ONU, e a participação do Brasil na Cúpula de Líderes sobre Refugiados, após 30 anos de sua promulgação, o Brasil assumiu o compromisso humanitário e a responsabilidade de inclusão de refugiados na sociedade brasileira, revogando aquele Estatuto e o substituindo pela Lei de Migração (BRASIL, 2017), que dispõe também sobre direitos e deveres dos migrantes ou visitantes, além de estabelecer princípios e diretrizes para políticas para o emigrante. Interessante destacar alguns dos princípios, como a “universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos”, o repúdio a qualquer forma de discriminação, a descriminalização da migração, a promoção da regularização de documentos, a acolhida humanitária, a promoção do desenvolvimento brasileiro 15 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx pela migração, a igualdade de tratamento e de oportunidades (inclusive de acesso à Assistência Social e a outras políticas e serviços), a previsão de políticas públicas para inclusão do migrante e de sua participação na formulação daquelas, a livre circulação, e o repúdio à expulsão ou deportação coletiva. Como princípio, também consta a “proteção ao brasileiro no exterior”. (BRASIL, 2017). Com algumas diferenças centrais (Quadro 2), pode-se perceber que os migrantes internacionais passam a ter garantias, inclusive de transitar, conviver, incluir-se socialmente e acessar políticas públicas, em igualdade com os brasileiros, além da falta de documentação passar a ser considerada apenas uma situação irregular, e não mais ilegal, como foi durante a vigência do Estatuto. A transparência e as premissas de Direitos Humanos passam, portanto, a proteger tanto os migrantes internacionais que se encontram no Brasil, quanto os brasileiros que se encontram no exterior. O grande desafio é a concretização desses direitos inscritos na norma, tanto pela ação do Estado quanto das instituições públicas e societais que, também, amparam, auxiliam e oferecem suporte aos migrantes. QUADRO 2. DIFERENÇAS PRINCIPAIS ENTRE O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO E A LEI DE MIGRAÇÃO. Item Estatuto do Estrangeiro Lei de Migração Concepção do Indivíduo Prioriza a segurança nacional em detrimento da liberdade dos imigrantes Migrante é um cidadão do mundo, detentor de direitos universais, inclusive da igualdade de tratamento e de oportunidades, que devem ser promovidos pelo Estado Extradição / Expulsão Expulsão em diversas situações, inclusive pela prática de mendicância ou de vadiagem Extradição omente em 2 casos: (a) quando o imigrante comete crime no território do estado que pede a extradição; e (b) quando o imigrante estiver respondendo processo investigatório ou for condenado no seu país de origem Sindicalizaç ão Vetada a participação em atividades sindicais e em associações profissionais Assegurado o direito à livre associação para fins lícitos, inclusive a sindical Fonte: Adaptado de SIQUEIRA, 2017. Portanto, atualmente, os migrantes e refugiados não são considerados ilegais ou criminosos, mesmo que não estejam com seus documentos totalmente regularizados. Eles são pessoas que precisam de compreensão e acolhimento, por estarem apenas em situação irregular quanto aos documentos. 16 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx O DIREITO A SERVIÇOS BÁSICOS O art. 6º da Carta Magna, num caráter universalista, afirma que são direitos sociais a educação, a saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidadee à infância, e à assistência aos desamparados (BRASIL, 1988). E, como são direitos sociais universais, devem ser garantidos tanto aos brasileiros como, também, aos migrantes que estiverem em território brasileiro. Serão brevemente tratados, aqui, três direitos sociais básicos de grande relevância: (a) à assistência social, que envolve proteção e assistência; (b) e à educação; e (c) à saúde. Entretanto, a garantia de direitos aos migrantes, aos refugiados e aos apátridas, não é feita somente com a informação e a capacitação destes. Agentes do Estado e a sociedade em geral também são responsáveis pela inserção social daqueles migrantes, e nada melhor do que conhecer um pouco sobre eles, sua situação e vulnerabilidaes, seus desafios e suas histórias, além dos direitos que lhes são garantidos em território brasileiro, para uma melhor interação, reforçando o multiculturalismo em nossa sociedade. Assistência Social A Assistência Social, no Brasil, é um direito universal, extensível aos migrantes, aos refugiados e aos apátridas, conforme previsto na Carta Magna, da seguinte forma: Art. 203 – A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. 2. A Assistência Social, juntamente com a Previdência Social e a Saúde, compõe a Seguridade Social, segundo a Constituição: Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. (BRASIL, 1988). 17 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx Deve-se considerar que as pessoas em situação migratória e, principalmente de refúgio e apatridia, normalmente encontram-se em condição de vulnerabilidade, que deve ser encarada pelas políticas públicas e pelo apoio das instituições parceiras, principalmente no que tange a (a) fragilidade de vínculos afetivos, (b) identidade etno-cultural estigmatizada, (c) submetida a situação de pobreza e à exclusão associada, e (d) dificuldades de inserção no mercado de trabalho (ENAP, 2020). Sejam necessidades de proteção básica – via Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) – ou de proteção especial – via Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CRAS) ou de outros equipamentos de maior complexidade – eles têm total direito a estes atendimentos, quando necessários. A proteção social básica, oferecida nos CRAS, compreende nos serviços e benefícios de: • Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), com a disponibilização de atividades de convívio, de socialização, bem como de informações sobre e o respectivo acesso a direitos promovidos pela assistência social. • Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), orientado para a formação de grupos para que os indivíduos vocalizem suas dificuldades e para que se busque uma solução conjunta, no respectivo grupo, para as vulnerabilidades apresentadas, tornando-se um importante serviço preventivo da Assistência Social. • Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio para Pessoas com Deficiência e Idosas, associado ao PAIF, proporciona a inclusão social de seu público, fortalecendo sua participação na comunidade e sua autonomia, além de prevenir situações de riscos, isolamento ou exclusão. • Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é a concessão de um salário mínimo aos idosos maiores de 65 anos e ás pessoas com alguma doença incapacitante. A partir da discussão do Grupo de Trabalho sobre Migrações e Refúgio, da Defensoria Pública da União (DPU), foi elaborado o Recurso Extraordinário RE 587.970, julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em favor do acesso de migrantes e refugiados ao benefício (STF, 2017). 18 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx • Benefícios eventuais, como Bolsa Família e outros benefícios que visam suprir necessidades básicas em caso de nascimento e morte (pagamento das custas de registros), em casos de vulnerabilidade temporária que afetem a integridade da família (concessão de cestas básicas, i.e.), e em situações de calamidade pública. A proteção social especial, por sua vez, relaciona-se à proteção em situações de violações de direitos, dividindo-se em serviços de média e alta complexidade. São serviços de média complexidade, oferecidos pelos CREAS: • Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), com a disponibilização de atividades de convívio, de socialização, bem como de informações sobre e o respectivo acesso a direitos promovidos pela assistência social, com o objetivo de restaurar direitos e fortalecer vínculos familiares e comunitários, quando há ameaça ou a violação de direitos, prevenindo sua incidência. • Serviço Especial em Abordagem Social, constituindo-se em uma busca ativa, pelos agentes locais da Assistência Social, de situações de violação de direitos, como o trabalho infantil, exploração sexual de crianças e adolescentes, atendimento á população de rua, etc. • Serviço de Proteção Social a Adolescente em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), constituindo-se no acompanhamento de jovens em cumprimento de medida judicial. • Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosos e Suas Famílias, voltado para situações em que este público se encontra em situação de dependência e com seus direitos violados, fortalecendo seus direitos e prevenindo seu abrigamento. • Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, procura desenvolver a autonomia, a sociabilização e a construção de projetos de vida junto às 19 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx pessoas que vivem nas ruas, oferecendo atendimento, assistência e acesso a outros serviços socioassistenciais. São serviços de alta complexidade, oferecidos por equipamentos especializados que buscam garantir a segurança e o acolhimento, ou o afastamento do indivíduo de seu meio familiar ou comunitário, quando este oferece risco a seus direitos: • Serviço de Acolhimento Institucional. • Serviço de Acolhimento em República. • Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora. • Serviço de Proteção em Situações de Calamidade Pública e de Emergência. Para facilitar o acesso de migrantes e refugiados à Assistência Social é importante que se observe a situação documental dos mesmos, inclusive atentando às peculiaridades dos documentos para estrangeiros, sejam eles imigrantes ou refugiados, de modo a melhor prover seus documentos complementares – Carteira Nacional de Trabalho e Previdência (CTPS), Cadastro de Pessoa Física (CPF), certidões de nascimento e de óbito, registro bancário etc –, bem como capacitar agentes locais e promover campanhas informativas e a respectiva afixação de cartazes, em idiomas diferentes do Português. Atenção especial deve ser dada a crianças e adolescentes, dada a sua maior vulnerabilidade. Educação O art. 205 da Carta Magna garante a todos o direito à educação, não fazendo nenhuma distinção entre brasileiros e estrangeiros, sejam eles migrantes, refugiados ou apátridas, estabelecendo, conforme segue no art. 206, como princípios para o direito à educação, além da valorizaçãodos professores, da gestão democrática da educação e de sua qualidade, a garantia, para todos, à I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; (...). (BRASIL, 1988). E, como é dever do Estado, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), assegurar a educação de crianças e adolescentes, bem como o respeito a valores culturais, artísticos e históricos de seu meio, garante-se ao migrante internacional o acesso e o respeito a sua cultura e a seus valores. Além disso, a própria Lei de Migração repete os princípios inscritos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, colocando, novamente, os migrantes em 20 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx grau de igualdade de acesso com brasileiros, reforçando o caráter universalista da política educacional. Um dos maiores desafios que os migrantes internacionais enfrentam (ENAP, 2020), ao buscarem o acesso à educação é a exigência documental. Entretanto, a impossibilidade de apresentarem a Carteira de Registro Nacional Migratório não deve impedir seu acesso à escola, principalmente à educação básica. Além disso, sabe-se que, a exigência de tradução juramentada de seus documentos, normalmente solicitada para adequação de sua inserção no ano mais adequado, é cara e muitos migrantes internacionais encontram-se em situação de vulnerabilidade, principalmente aqueles na condição de refugiados. Dessa forma, torna-se necessária a flexibilização da exigência da tradução juramentada, ou até mesmo da tradução simples. Apresentação de histórico escolar ou avaliação de competências para uma melhor alocação escolar podem ser alternativas válidas, a fim de garantir seu acesso à educação. Outro desafio que os migrantes internacionais enfrentam é a dificuldade com nosso idioma, o português (ENAP, 2020). E, para que eles não fiquem fora do sistema educacional, podem ser construídas alternativas na própria comunidade escolar, ou pode-se buscar a oferta de cursos de português para estrangeiros em instituições parceiras, como OSCs, universidades e outros atores que já tem empreendido esforços de auxiliar neste importante item para acolhida humanitária. As próprias escolas podem empreender junto à comunidade, algum apoio voluntário para aulas de português e para que seja apresentado a estes migrantes algumas características da cultura brasileira e local, de modo que se sintam realmente inseridos na comunidade. Alguns temas para capacitação, de migrantes e de seus apoiadores, podem ser: 1 - O ensino do português como língua estrangeira. 2 - O direito dos migrantes à educação. 3 - Conhecimento e valorização da diversidade cultural. 4 - História das migrações. 5 - Desconstrução de estereótipos e preconceitos. 6 - Identificação de situações de violação, como violência de gênero e tráfico de pessoas. (ENAP, 2020). A permanência escolar dos migrantes internacionais também deve ser incentivada, sendo fundamental o envolvimento da gestão escolar, a fim de evitar a evasão escolar e de promover as trocas e o combate à xenofobia, além de facilitar a já mencionada adaptação ao idioma português. Outro importante desafio que os migrantes internacionais enfrentam é a revalidação de seus diplomas, ou seja, o reconhecimento de seus títulos obtidos em seus respectivos países de origem para que possam exercer a profissão, seja ela de caráter técnico ou superior, em território nacional. 21 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx A revalidação de diplomas de ensino superior, muitas vezes importante para garantir o exercício profissional do migrante internacional em sua área de formação técnica ou superior, é de competência do Governo Federal, e realizada por universidades federais, mas podendo ser delegada a outras instituições de ensino. O processo pode ser feito pelo próprio migrante, mas pode ser apoiado por pessoas ou instituições que estejam ajudando no acolhimento. O processo é feito virtualmente, pelo Portal Carolina Bori, pelo link http://carolinabori.mec.gov.br/. Entretanto, os custos de tradução juramentada também dificultam a revalidação, podendo ser exploradas outras alternativas, como a busca de OSCs ou instituições acadêmicas que atuam com trabalho voluntário – em alguns casos, como no estado de São Paulo, até mesmo com a participação de tradutores juramentados – para auxiliar na tradução dos títulos dos migrantes. Uma alternativa é o próprio empregador, quando exige a titulação técnica ou superior, realizar uma prova prática como o candidato a emprego a fim de dar mais tempo para que o migrante possa obter recurso suficiente para pagar as custas e aguardar o fim do processo de revalidação. Outra alternativa é o próprio empregador dispor-se a arcar com os custos da revalidação do diploma do empregado migrante. Saúde No Brasil, o acesso à saúde também é uma política social universalista, instituído pela Constituição, conforme indicado em seu artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (BRASIL, 1988). Entretanto, o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) é precedido pelo cadastramento do indivíduo no sistema, que lhe dá direito ao Cartão Nacional de Saúde, e as condições para tal foram instituídas pela Lei Federal nº 8080/1990. Uma das condições para o cadastro, que pode dificultar o acesso ao migrante e, assim, a realização do universalismo do SUS, é a localização do indivíduo, que normalmente pode ser verificado pelo comprovante de residência – que foi instituído como documento visando facilitar o planejamento das ações de saúde. Mas não há nenhum impedimento legal para a aceitação de outro tipo de comprovante. A flexibilização do comprovante de residência, com a aceitação, por exemplo, do fornecimento do endereço do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), é uma forma de garantir a universalidade do serviço, que tem como objetivo principal o atendimento à saúde, e não a mera conferência de documentos. Quanto à identificação do indivíduo, para além da carteira de identidade ou da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), a facilitação do cadastramento do migrante pode se dar pela apresentação da Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), 22 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx que substitui o antigo Registro Nacional de Estrangeiro (RNE), ou a apresentação do Protocolo de solicitação de refúgio acompanhado do Cadastro de Pessoa Física (CPF), este último já autorizado e facilitado para o migrante, conforme a legislação vigente prevê. Seguindo os princípios da universalidade, da equidade (diminuição das desigualdades), e da integralidade (atendimento da pessoa, como um todo, no sentido da promoção, da prevenção, do tratamento e da reabilitação em sua saúde, de forma intersetorial), o SUS atua em diferentes níveis (ENAP, 2020): Atenção Primária: responsável por orientações de prevenção de doenças e pelo encaminhamento de casos mais graves às unidades dos demais níveis de atenção. A atenção primária é realizada nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e conta com diversos Agentes Comunitários de Saúde, que são as pessoas mais próximas da realidade do indivíduo e da sua comunidade em que está inserido ou referenciado. Atenção Secundária: este nível é o responsável pelo atendimento ambulatorial e hospitalar de média complexidade, realizado em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e em hospitais referenciados pelo sistema desaúde. Também é o nível em que ocorrem os atendimentos especializados, ou de alta complexidade, como os de saúde mental e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) Destaque-se que a RAPS, que tem como porta de entrada os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), que incluem: (a) Serviço Residencial Terapêutico (SRT); (b) Unidades de Acolhimento para adultos e para crianças e adolescentes; (c) Enfermarias Especializadas em Hospital Geral; (d) Hospital Psiquiátrico; (e) Hospital- Dia; (f) Atenção Básica; (g) Urgência e Emergência; (h) Comunidades Terapêuticas; e (i) Ambulatório Multiprofissional de Saúde Mental (ENAP, 2020). Na rede de atenção à saúde, outro desafio para migrantes e profissionais é a compreensão do idioma e, sempre que necessário, pode contar com contribuição de outras unidades de referência de outras políticas, como os CRAS, as escolas, caso tenham capacidade para ajudar, bem como redes de apoio, que envolvem agentes públicos e Organizações da Sociedade Civil (OSCs) para apoio ao migrante. Um terceiro desafio está relacionado à cultura de cada migrante que busca o SUS. Diferenças culturais, principalmente de tratamento de gênero, de crianças e adolescentes, de hábitos alimentares, de ritos religiosos, são aspectos importantes para que os profissionais do SUS e para as redes de apoio conhecerem, de modo a auxiliar no processo de compreensão da visão de mundo do migrante e de orientação da melhor forma possível quanto à segurança e aos princípios que norteiam o atendimento ofertado. Traduções de conteúdos em cartazes afixados em equipamentos públicos ou em sites que possam ser acessados pelos migrantes, assim como a capacitação de 23 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx migrantes, de servidores da rede de saúde e de voluntários de redes de apoio, são fundamentais para que se gere uma melhor comunicação, maior empatia e compreensão dos desafios enfrentados pelos migrantes, e para que as abordagens sejam mais conscientes, humanizadas e esclarecedoras sobre os procedimentos e serviços ofertados, bem como sobre aspectos de nossa cultura para migrantes. Nas capacitações, destacam-se, em importância, temas como: (a) questões culturais; (b) violência de gênero; (c) tráfico de pessoas; (d) e idiomas (ENAP, 2020). 24 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx VIOLAÇÕES DE DIREITOS Os migrantes, principalmente refugiados e apátridas, podem ser considerados um grupo que, devido à distância de seu território de nascimento ou de residência – muitas vezes longe de familiares – e à dificuldade de adaptação ao idioma e à cultura do país em que se encontra, além do desconhecimento de normas, já pode ser um considerado vulnerável. E essa vulnerabilidade aumenta, no caso de refugiados e apátridas, por terem se deslocado em virtude de ameaças ou violações a seus direitos, que impactam em suas condições de vida, inclusive em sua estabilidade emocional. E aumentam, também as chances de serem revitimizados ou de sofrerem discriminações e novas ameaças, pela sua condição de migrante. Por mais que tenham garantidos, no Brasil, os seus direitos e o acesso a políticas universalistas básicas, é importante que os seus apoiadores conheçam algumas violações de direitos que podem impactar mais ainda sobre migrantes do que sobre outros públicos. Xenofobia De acordo com a Organização Internacional para Migrações (OIM): No plano internacional não existe uma definição universalmente aceite de xenofobia, muito embora possa ser descrita como atitude, preconceito ou comportamento que rejeita, exclui e, frequentemente, diminui pessoas com base na percepção de que são estranhas ou estrangeiras relativamente à comunidade, à sociedade ou à identidade nacional. Existe uma relação estreita entre racismo e xenofobia, termos que são difíceis de distinguir. (OIM, 2009). Percebe-se que a xenofobia está relacionada ao olhar que temos em relação ao outro, com cargas valorativas muitas vezes baseadas em preconceitos – tanto no sentido de termos conceitos pretéritos quanto no sentido de conceitos negativos a respeito do outro. A ignorância e as suposições a respeito do outro é que levam a este tipo de preconceito e, além disso, somos bombardeados cotidianamente com estereótipos exibidos em filmes e novelas. Para combater a xenofobia, precisamos enxergar o outro sem nossa grade de preconceitos, o que se inicia com o reconhecimento de que o outro não é nem melhor ou pior, e que ele carrega apenas modos de pensar e agir diferentes dos nossos. Afinal, não temos o mesmo lugar de fala dos migrantes internacionais em nosso País, pois portamos valores advindos de nossa cultura e nossa experiência de vida. Portanto, para entender o outro, precisamos tentar nos colocar em seu lugar, reconhecendo o nosso lugar de fala e o dele. Por fim, devemos abandonar a visão de que é suficiente construir uma postura de tolerância em relação ao outro, para substituir por uma abordagem de respeito ao outro e aos seus valores. O respeito às diferenças, por sua vez, é essencial ao 25 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx desenvolvimento do multiculturalismo de nossa nação, e para o cumprimento dos princípios internacionais de Direitos Humanos. A xenofobia é considerada um dos “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, conforme previsto na Lei nº 7.716/1989, e deve ser denunciada, independente da ofensa ter sido verbal, gestual ou discriminatória. A denúncia pode ser feita pelo registro de Boletim de Ocorrência (BO) em uma delegacia da Polícia Civil e, em Minas Gerais, foi criada a Delegacia Especializada de Investigação de Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTFobia e Intolerâncias Correlatas (Decrin), que fica na Capital Mineira. A denúncia pode ser feita também pelo telefone de chamada gratuita Disque 100, que é o número nacional para qualquer denúncia de violação de Direitos Humanos. Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrante O tráfico de pessoas é uma grave situação de violação de direitos humanos e constitui prática criminosa ainda presente no mundo inteiro, inclusive fazendo parte da trajetória de vida de muitos brasileiros e brasileiras. No contexto internacional, a Assembleia-Geral da ONU aprovou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, vigente desde 2003, sendo posteriormente complementada por outros três protocolos mais específicos quanto ao tipo de crime organizado, tendo entrado em vigor, ainda em 2003, o Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, que foi promulgado no Brasil no ano seguinte (BRASIL, 2004). Este protocolo, também conhecido como Protocolo de Palermo, define o tráfico de pessoas como O recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração (BRASIL, 2004). O tráfico de pessoas, por ser lucrativo, dada a sua própria natureza, modifica-se a cada instante e, por isso, são necessárias atualizações frequentes para que se entendam detalhes e características da prática criminosa. Para isso, periodicamente governos, sociedade civil, instituições públicas e agências internacionais reúnem-se para revisar as estratégias de combate ao tráfico de pessoas. Políticas de prevenção (campanhas educativas e informativas), de proteção (garantia de proteger as vítimas de seus algozes ou de quaisquer outra violência), bem como a criminalização de autores de tráfico de pessoas (sejam pessoas ou organizações), são os três eixos principais para sua erradicação.A caracterização do tráfico de pessoas possui três elementos fundamentais: 26 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx 1. O ato, que pode ser o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas. 2. O meio, que pode ser ameaça de uso de força, coerção, abdução, fraude, engano, abuso de poder, abuso de vulnerabilidade, ou o pagamento e/ou fornecimento de benefício à vítima em troca do controle sobre sua vida. 3. O objetivo, que pode ser para exploração (sexual, laboral, escravidão, remoção de órgãos). O contrabando de migrante é tipificado de modo diferente do tráfico de pessoas, pois tem o conhecimento e o consentimento da vítima sobre o ato criminoso, enquanto a caracterização do tráfico ou da exploração de pessoas, não depende desse consentimento. Outra característica do contrabando de migrantes é sua ocorrência entre países, ou seja, é um crime transnacional, enquanto o tráfico de pessoas pode ser entre países ou dentro de um mesmo país. Algumas questões podem auxiliar na básicas caracterização e identificação de uma possível situação de tráfico de pessoas, inclusive junto a migrantes (ENAP, 2020): • O migrante acredita que tem que trabalhar contra sua vontade? • O migrante está sujeito a ameaças de violência contra ele, familiares ou pessoas próximas? • O migrante desconfia das autoridades? • O migrante é de um território que está sofrendo alguma calamidade ou conflito? • Os documentos do migrante estão sob a posse de outra pessoa? • O migrante está portando documento falso? • O migrante possui conhecimento limitado do idioma do território em que se encontra? • O migrante fica desconfortável ou com medo em comentar de sua situação migratória? • O migrante desconhece o endereço de sua casa ou de seu trabalho? • O migrante deixa que outra pessoa fale por ele, quando a pergunta é dirigida diretamente a ele? • O migrante age como se estivesse cumprindo orientações de outra pessoa? • O migrante não tem acesso a cuidados de saúde? • O migrante interage pouco socialmente ou se comunica pouco com terceiros? • O migrante não tem contato ou pouquíssimo contato com seus familiares e com pessoas fora de seu meio? • O migrante trabalha para traficantes no país de destino, a fim de retribuir o pagamento de seu transporte? 27 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx • O migrante foi enganado sobre os planos de viagem, os meios de transporte ou as condições desta? • O migrante age com base em falsas promessas feitas a ele? Trabalho Escravo A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, já em seus artigos 4º e 5º proibia a escravidão e a sujeição de pessoas à tortura, a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. E, ainda no âmbito internacional, a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão do Sistema ONU, elaborou a Convenção nº 105, de 1956, continuou reiterando a proibição ao trabalho escravo. Apesar de tal compromisso, a escravidão moderna ou o trabalho análogo à escravidão passou a ter outras formas de manifestação. Em 2003, foi alterado o art. 149 do Código Penal, de 1940, tipificando como crime: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (...) § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (BRASIL, 1940). Portanto, pode ser tipificado como crime de trabalho análogo à escravidão, qualquer trabalho que se enquadre numa das quatro situações, isoladamente ou em conjunto, a seguir: • Infrinja condições degradantes, que violem a dignidade da pessoa humana, colocando em risco a saúde ou a vida do indivíduo; ou • Caracterize-se por jornadas exaustivas, em que a carga de trabalho gere riscos ou danos à saúde do trabalhador; ou • Caracterize-se como trabalho forçado, no qual a pessoa fica mantida por fraude, por isolamento, ou por qualquer ameaça física ou psicológica; ou • Caracterize-se como servidão por dívida, em que o trabalhador contrai um débito ilegal pelo qual é forçado a ficar naquele trabalho até pagar a suposta dívida. O aliciamento para o está associado ao contexto socioeconômico de vulnerabilidade de parte da população. Em Minas Gerais, destaca-se a região do Vale do Jequitinhonha, no norte mineiro. Diante da necessidade e de poucas oportunidades de emprego e geração de renda no local de origem, somado à falta de informação sobre direitos, o trabalhador se torna suscetível a ofertas enganosas de serviço por 28 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx parte dos aliciadores. Minas Gerais abriga não só casos no meio rural, onde trabalhadores são explorados em atividades relacionadas à colheita de café, no sul do estado, ou à pecuária bovina, por todo seu território. Há também uma tendência ao emprego de vítimas desse tipo de exploração em empreendimentos da construção civil. Ainda sobre o aliciamento, este é feito pelos “gatos”, que são pessoas terceirizadas para buscar pessoas de regiões que apresentam fortes vulnerabilidades sociais e pessoais. Os “gatos”, então, fazem promessa de trabalho em outra região, mediante deslocamento oferecido pelo próprio contratante. As vítimas são, na sequência, transportadas para o local do prometido trabalho, normalmente em locais isolados, ermos e/ou vigiados por pessoas ostensivamente armadas. Além disso, os documentos dessas pessoas são retidos e tudo o que precisam comprar para sobrevivência costuma ser vendido por algum ponto de vendas controlado pelos criminosos, a preços altos, justamente para fazer com que a vítima fique sempre devendo, o que a força a precisar trabalhar mais para pagar as dívidas. O isolamento das vítimas é feito também para evitar o contato desses trabalhadores com a comunidade, dificultando sua saída da situação de trabalho análogo à escravidão. Outra condição frequente é o trabalho temporário (colheita, obra específica), no qual, muitas vezes ao seu término, não são pagos todos os valores a que os trabalhadores têm direito. O perfil das vítimas, que os exploradores sabem e tiram proveito, pode ser caracterizado com a seguinte predominância: • Homens. • Idade entre 18 e 44 anos. • Oriundo de regiões de pobreza ou de grave crise social e econômica. • Baixa escolarização e baixo acesso a informações. • Migrantes de outras regiões. Um grave problema é a reincidência do trabalho escravo, ou seja, de determinada vítima voltar a ser vítima do mesmo ciclo de trabalho escravo, por desconhecimento das condições dignas de trabalho. Normalmente, as vítimas não percebem que estão sendo exploradas. Por isso, a importância de ações educativas junto aos públicos mais vulneráveis. O enfrentamento ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas prescinde de articulação entre todos os entes federativos, e entre estes e instituições da sociedade civil, seja em ações de prevenção, seja na proteção das vítimas, embora as ações de combate sejam realizadas por órgãos de competências específicas, que possuem Poder de Política do Estado, como a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, as superintendências regionais de trabalho do Ministério da Economia – 29 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx que assumiu as funções do extinto Ministério do Trabalho –, o Ministério Público do Trabalho (MPT), com o apoio das polícias estaduais. As superintendências regionais de trabalho possuem equipes de auditores fiscaisdo trabalho, que são os responsáveis pela fiscalização de empresas e de atuarem em casos de denúncia. Denúncias podem ser feitas pelo Disque 100, em unidades policiais, ou em equipamentos públicos de atendimento, que podem auxiliar no encaminhamento aos órgãos competentes para registro de denúncia, fiscalização e repressão aos criminosos. Os equipamentos públicos de assistência social e de saúde podem, ainda, auxiliar no encaminhamento das vítimas para um local seguro, ou para ajudar no contato e no retorno das vítimas a suas respectivas regiões de origem ou para auxiliar no estabelecimento de contato com parentes. Voluntários e OSCs também podem auxiliar na identificação e em denúncias de situações de trabalho escravo. A proteção envolve a retirada das vítimas de trabalho escravo do local em que têm sido exploradas, o apoio social e psicológico por meio dos equipamentos de Assistência Social e de Saúde, bem como o cálculo e a abertura de processo para que possam receber indenizações trabalhistas. Por outro lado, a responsabilização dos autores deste tipo de crime é difícil, dadas dificuldades do processo legal e do grande poder econômico dos criminosos, que pagam advogados caros que conseguem protelar processos ou minimizar as penalidades. 30 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx REFERÊNCIAS ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Genebra: ONU, 1951. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto _dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020. ____. Migrações, Refúgio e Apatridia: guia para comunicadores. Brasília: ACNUR, 2019. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Migracoes- FICAS-color_FINAL.pdf. Acesso em 31 jul. 2020. ____. Nacionalidade e Apatridia: manual para parlamentares. Genebra: ACNUR, União Interparlamentar, 2009. Disponível em: http://archive.ipu.org/PDF/publications/nationality_p.pdf. Acesso em 02 ago. 2020. ____. Quem Ajudamos: Apátridas. São Paulo: ACNUR, 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/apatridas/. Acesso em 28 jul. 2020. ____. Quem Ajudamos: Refugiados. São Paulo: ACNUR, 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/refugiados/. Acesso em 28 jul. 2020. ____. Quem Ajudamos: Retornados. São Paulo: ACNUR, 2020. Disponível em: hhttps://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/retornados/. Acesso em 28 jul. 2020. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Constituição. Brasília: Presidência da República, 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 28 jul. 2020. ____. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília: Presidência, 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 18 ago. 2020. ____. Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002. Promulga a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas. Brasília: Presidência, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4246.htm. Acesso em 02 ago. 2020. ____. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Brasília: Presidência, 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm. Acesso em: 14 ago. 2020. ____. Decreto nº 9.277, de 5 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre a identificação do solicitante de refúgio e sobre o Documento Provisório de Registro Nacional Migratório. Brasília: Presidência, 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2018/Decreto/D9277.htm#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20identifica%C3%A7%C3 %A3o%20do,Provis%C3%B3rio%20de%20Registro%20Nacional%20Migrat%C3%B3rio.&text=%C3 %82mbito%20de%20aplica%C3%A7%C3%A3o- ,Art.,Provis%C3%B3rio%20de%20Registro%20Nacional%20Migrat%C3%B3rio.. Acesso em: 31 jul. 2020. 31 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx ____. Lei nº 3.445, de 24 de maio de 2017. Institui a lei de Migração. Brasília: Presidência, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em 29 jul. 2020. ____. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 (Estatuto do Estrangeiro). Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Brasília: Presidência, 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.htm. Acesso em 29 jul. 2020. ____. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Presidência, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm, Acesso em: 28 jul. 2020. ____. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasil: Presidência, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em: 28 jul. 2020. ____. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951. Brasil: Presidência, 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm. Acesso em 31 jul. 2020. ____. MEC. Portal Carolina Bori: revalidação/reconhecimento de diplomas estrangeiros. Disponível em: http://carolinabori.mec.gov.br/. Acesso em: 28 jul. 2020. BRITO, Fausto. As Migrações Internas no Brasil: um ensaio sobre os desafios teóricos recentes. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2009, 20p. (Texto para Discussão; 336). CASTRO, Flávia Rodrigues de; SILVA, Ester; REIS, Gabriela; ESTEVAM, Ana Flávia. Violação de Direitos Humanos para Fins de Refúgio: discutindo a redefinição ampliada de refugiado. Lex Humana, Petrópolis, 10(1), 2018, pp. 81-98. Disponível em: file:///C:/Users/AlexandreNorberto/Documents/VIVO/1605-6280-1-PB.pdf. Acesso em 31 jul. 2020. ENAP. Fundação Escola Nacional de Administração Pública. Migracidades: aprimorando a governança migratória local. Brasília: Enap; 2020. (Material do Curso Migracidades). GESUAS. O que é ofertado na Proteção Social Básica e na Proteção Social Especial? Viçosa: GSUAS, 2017. Disponível em: https://www.gesuas.com.br/blog/protecao-social-basica-especial/. Acesso em: 28 jul. 2020. GAIRE. Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados. Migração e refúgio, quais as diferenças? Porto Alegre: GAIRE, 2017. Disponível em: https://www.ufrgs.br/gaire/2017/07/04/migracao-e- refugio-quais-as-diferencas/. Acesso em: 31 jul. 2020. GHUZI, Juliana. Migração Interna: o estudo do fenômeno no município de Jacuzinho (RS). Florianópolis: UFSC, 2012. Monografia apresentada à Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Economia. KLEIN, Maria Regina; MASSUQUETTI, Angélica; SPRICIGO, Gisele. Migrações Internas: um estudo do Município de Novo Hamburgo (RS). Ensaios FEE, Porto Alegre, 33(2), 2012, pp. 603-632. MINAS GERAIS. Decreto nº 46.849, de 29 de setembro de 2015. Institui o Comitê Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento do Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo – COMITRATE-MG. Belo Horizonte: ALMG, 2015. Disponível em: 32 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=DEC&num=46849& ano=2015. Acesso em: 10 jul. 2020. ____. Lei nº 23.304, de 30 de maio de 2019. Estabelece a estrutura orgânica do Poder Executivo do Estado e dá outras providências. Belo Horizonte: ALMG, 2019. Disponível em: https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa-nova- min.html?tipo=LEI&num=23304&ano=2019. Acesso em 10 jul. 2020. OIM. Organização Internacional para Migrações. Glossário sobre Migrações.Genebra: OIM, 2009, 87p. (Direito Internacional da Migração, 22). Disponível em: https://publications.iom.int/system/files/pdf/iml22.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020. ____. Resolutions and Reports Related to Migration. Geneva: IOM, 2020. Disponível em: https://www.iom.int/un-documents. Acesso em: 28 jul. 2020. ONU. Organização das Nações Unidas. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Genebra: ONU, 1951. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto _dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 31 jul. 2020. ____. Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos Refugiados. Genebra: ONU, 1967. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internaciona is/Protocolo_de_1967.pdf. Acesso em 31 jul. 2020. NUNAN, Carolina dos Santos. Reflexões Teóricas sobre Migração Internacional. In: __. As vagas atlânticas e a onda de retorno: movimentos migratórios de Portugal para o Brasil no início do Século XXI. Belo Horizonte, 2012, p. 28-47. (Tese). Disponível em: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/TratInfEspacial_NunanCS_1r.pdf. Acesso em: 28 nov. 2019. SIQUEIRA, Fernanda. Entenda as diferenças entre o Estatuto do Estrangeiro e Lei de Migração. Jusbrasil, Caderno Notícias, 2017. Disponível em: https://fernandasial.jusbrasil.com.br/noticias/469957698/entenda-as-diferencas-entre-o- estatuto-do-estrangeiro-e-lei-de-migracao. Acesso em 28 jul. 2020. STF. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 587.970 São Paulo. Brasília: STF, 2017. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13649377. Acesso em 28 jul. 2020. 33 Relatorio - Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas 2020.docx
Compartilhar