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SANT'ANNA, Denise Corpo e história (1)

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SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpo e história. Cadernos de subjetividade. Núcleo de estudo e 
pesquisa da subetividade – Programa de estudo de pós-graduação em psicologia clínica – PUC/SP, 1995 
(2), p. 243-266.
CORPO E HISTÓRIA*
Denise Bernuzzi de Sant'Anna** 
História das mulheres, história das sensibilidades, história do corpo... no decorrer deste século, 
sobretudo a partir da década de 1970, história passou a ser um campo propício para o desenvolvimento de 
abordagens, problemas e objetos considerados até então de pouca importância ou inadequados à pesquisa 
científica1. Em vez de se limitar à narrativa das conquistas dos “grandes homens”, tratou-se de investigar a 
vida cotidiana de homens e mulheres comuns, examinar seus modos de amar, trabalhar, se divertir, suas 
práticas e representações corporais. Menos do que reconstituir o passado, seguindo uma narrativa linear 
dos fatos, como se fosse possível revelá-los tais quais eles ocorreram, tratou-se de colocar em questão as 
indagações e verdades do presente tanto quanto aquelas de outrora. A própria subjetividade ganhou uma 
espessura histórica, antes pouco evidente ao historiador. Desde então, a história não diz respeito somente 
às questões políticas. E estas deixaram de se referir exclusivamente ao funcionamento do Estado e às 
ações governamentais. A história tornou-se assim um dos campos privilegiados para o estudo da 
constituição do homem enquanto sujeito de si, da produção da subjetividade enquanto processo ao mesmo 
tempo cultural e político, que se transforma no curso do tempo e varia de acordo com as sociedades. 
Os trabalhos históricos da terceira geração da escola dos Annales, somados ao impacto dos 
estudos de Michel Foucault e à divulgação tardia das análises de Norbert Elias, contribuíram, cada qual a 
sua maneira, para dar legitimidade à idéia de que nossas atitudes, as mais banais, nossos valores, os mais 
caros, nossas intolerâncias e nossa sensibilidade são produzidos historicamente. Assim, se a antropologia 
já havia ensinado que as verdades de uma sociedade podem não fazer o menor sentido para uma outra, a 
história passou a analisar tais diferenças no tempo. Tarefa que não poderia ser realizada sem a 
comprovação de que mesmo a busca da verdade é um fato histórico, comprometido com o espírito de uma 
época.
Talvez tenhamos uma idéia vaga sobre aquilo que somos e sobre aquilo que representamos no 
mundo em que vivemos. Mas o que move essa tendência da história, aqui rapidamente mencionada, é 
menos a ambição de responder à questão “quem somos nós” e muito mais a saber como foi possível tornar 
habitual, normal e adequado a nós certas práticas outrora inadequadas ou sem sentido. Trata-e, portanto, 
de fazer a história de nossos receios e de nossos desejos, daquilo que nos é familiar ou perigoso. Neste 
sentido, talvez fosse interessante começar por aquilo que possuímos de mais concreto e banal e que, ao 
mesmo tempo, não cessa de ser reconstruído e modificado ao longo dos anos. Ou seja, começar pelo 
corpo, tomando-o como fio condutor para o estudo da subjetividade, segundo uma perspectiva histórica. O 
que significa não apenas descobrir o quão diferentes são os corpos do passado, seus modelos de conduta e 
os valores a eles atribuídos, mas, principalmente, ter o privilégio de tornar estranho, nem que seja por 
* Este artigo resume algumas das idéias contidas em um trabalho mais amplo sobre a história do corpo, cuja publicação 
está prevista para o segundo semestre de 1996.
** Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP.
alguns instantes, os gestos, as verdades, os hábitos que hoje nos são familiares e indispensáveis.
1. Um corpo aberto num universo finito
Ter um corpo parece ser hoje um fato normal e indispensável à vida. Entretanto, a relação entre o 
indivíduo e seu corpo nem sempre supôs a consciência da posse. Para ter um corpo é preciso, 
primeiramente que ele se apresente enquanto objeto, como algo definido, com contornos próprios. É preciso 
também que o homem se torne sujeito do seu corpo, seu proprietário. O que pressupõe uma autonomia, do 
corpo e do homem, uma cisão que parece estranha a uma época em que a medicina, por exemplo, 
privilegiava uma série de correspondências entre a saúde corporal e o equilíbrio do universo. Alguns 
exemplos poderão nos ser úteis.
Uma das características da medicina medieval é a sua desconfiança em relação aos cirurgiões, ou 
seja, “aqueles que agem com as próprias mãos” (Sournia, 1992). Numa época em que a verdade do mundo 
é encontrada nos livros, aqueles que enfrentam os limites dos corpos, cortando carnes e ossos, infringem o 
equilíbrio entre o homem e o cosmo, necessário à organização social. Por isso, exceto na Itália, e em alguns 
casos na Alemanha, a profissão do cirurgião é identificada com a do carrasco. Em 1350, na Faculdade de 
Medicina de Paris, o médico, por ocasião de sua formatura, prestava sermão de que jamais procederia à 
cirurgia.
Desde o final do século XIII, uma hierarquia separa os saberes relativos à cura: primeiro os 
médicos, em geral, clérigos. Considerados os intérpretes da verdade, eles não devem praticar a cirurgia. 
Esta é exercida pelos cirurgiões, que vêm em segundo lugar, cuja profissão é assimilada às artes 
mecânicas, aos trabalhos manuais. Os cirurgiões praticam a sangria, religam as fraturas e operam. Em 
último lugar nessa hierarquia estão os barbeiros, que realizam pequenas cirurgias além do corte do cabelo e 
da barba.
Para os médicos desse período, a teoria dos humores, já utilizada pela medicina hipocrática, 
permanece uma referência habitual ao diagnóstico e às práticas de cura das doenças. Implicando 
correspondências diferentes entre o corpo e o mundo, essa teoria supõe uma série de grupos de quatro 
elementos e de quatro qualidades: quatro estações do ano, quatro humores do corpo, quatro idades da vida, 
quatro temperamentos, quatro grupos de planetas, quatro grupos do zodíaco. A velhice, por exemplo, é 
considerada uma das quatro idades da vida que tende a ser fria, tal como o inverno e tal como Saturno. As 
qualidades do temperamento e daquilo que mais tarde será chamado de subjetividade deveriam ser 
constantemente reguladas a partir das quatro qualidades de cada elemento presentes em cada instante da 
vida de cada indivíduo. Sem dúvida, trata-se de uma lógica complexa, que exige um exame constante das 
condições exteriores e uma combinação entre elas e as qualidades corporais. E por isso mesmo ela é difícil 
e arriscada: qualquer desequilíbrio na ordem do cosmo resulta num desregramento do corpo humano. 
Entretanto, num mundo considerado finito, resuItado da criação divina, corpo e natureza ainda mantêm uma 
relação de dependência e de semelhança, mais tarde tornada obsoleta à medicina.
O desequilíbrio dos humores demanda, então, mudanças na relação entre o homem e a natureza, 
entre aquele, e os alimentos ingeridos. Considera-se, por exemplo, que um excesso de humores exalado 
pelo corpo pode provocar o surgimento daquilo que se chamou de “vermes”, tais como os piolhos. Para 
combatê-los, em vez de prescrever a higiene, os médicos medievais receitam em geral uma nova 
alimentação (Mikaïloff, 1990). Pois os vermes não são ainda considerados estrangeiros ao corpo, nem um 
resultado da falta de higiene. Talvez, por isso mesmo, eles tendem a ser melhor tolerados nessa época do 
que o serão alguns séculos mais tarde.
Ora, este corpo permeável, comunicando com o exterior e exalando humores, não tardará a se 
fechar e a se separar do cosmo, ganhando tanto em autonomia quanto em solidão. Ele passa a ser 
compreendido a partir de seu funcionamento específico, diferente daquele da ordem do universo. Um 
funcionamentosingular que, como veremos a seguir, contará com o desenvolvimento das regras de 
civilidade, convidará o cirurgião a ocupar um novo lugar na sociedade européia e fará do corpo algo 
semelhante a uma máquina, contribuindo para a produção da subjetividade do homem moderno.
2. A autonomia do corpo perante o cosmo
A peste que assolou a Europa no século XIV suscitou preocupações particulares em relação ao 
corpo. Acentuando a idéia de que o envelope corporal é poroso, permeável ao contágio, a peste contribuiu 
para desencadear o receio perante a dilatação dos poros, os ares pestilentos e as águas estagnadas. Ela 
serviu de justificativa a diversas “separações” entre o corpo e o mundo. E ao pretexto terapêutico se 
associaram interesses morais e políticos. Assim, o banho não tardará a se tornar uma atividade perigosa. 
No século XVI, diversas casas de banho foram fechadas. Na verdade, proibiu-se muito mais uma 
experiência sensual - diversos banhos públicos serviam a encontros amorosos - do que a higiene tal qual 
ela será concebida no século XX.
Vale notar que o ideal de limpeza corporal não exigia ainda um banho diário. Para Santo Agostinho, 
um banho mensal já era suficiente. Para os nobres do século XVI, a água servia, principalmente, para 
mostrar a glória do rei. Possuindo uma função simbólica, a água era um espetáculo à visão, demandando a 
contemplação de todos. “Tudo para os olhos, nada para a epiderme” (Perrot, 1991).
São os gestos e a roupa muito mais do que a limpeza do corpo que durante séculos constituíram 
uma prova de savoir-vivre de boa conduta2. A preocupaçao em torno de regras de civilidade, assim como o 
receio do corpo poroso, indicam a emergência de uma nova sensibilidade que desponta, em particular, entre 
os nobres do Antigo Regime. Na vida da corte, uma certa autonomia do corpo em relação ao cosmo é 
sugerida pelo andar ereto daqueles corpos rigidamente contidos por coletes de ferro e de couro3. Aqui, a 
aparência corporal não precisa ser necessariamente aquela prevista pelo Criador. Ela deve ser fabricada, 
desde a mais tenra idade, segundo as prerrogativas de um mundo no qual as regras da corte são 
modelares. Com a voga dos coletes, o busto, as costas e o ventre começam a dar uma impressão de 
rigidez. A região abdominal, em particular a das mulheres, ganha a forma de um cone, até então inusitada. 
Doravante, a roupa não serve apenas para seguir os contornos do próprio corpo. Ela, incluindo o espartilho, 
impõe uma forma às aparências, adelgaçando-as e modelando-as segundo os ideais estéticos em voga. O 
tratado de civilidade de Erasmo, publicado em 1530 (ver Erasme, 1530), se tornou um exemplo conhecido 
para ilustrar essa ambição de “civilizar as condutas e as aparências” (Elias, 1994), tendência que se 
intensifica durante o Antigo Regime. Governar o próprio corpo é condição para governar a sociedade. O 
controle sobre o corpo é, portanto, indissociável da esfera política. Não apenas uma gestão eficaz e 
elegante da aparência, mas por meio dela, o que se pretende é demonstrar uma administração refinada dos 
afetos, um domínio irrepreensível das emoções em nome da distinção social. Desse modo, o espetáculo 
corporal não poderia deixar nada ao acaso: sob o reinado de Luís XIV, por exemplo, um trabalho minucioso 
em torno da aparência se verifica. O andar, o gesticular, o falar, o olhar merecem uma atenção e uma 
educação cotidianas (Caroly, 1990). O corpo toma a forma de um objeto destinado a ser “ostensório” do 
poder real. E para o rei tudo deve ser digno da imagem do duplo corpo que ele encarnou: corpo eterno e 
divino, corpo mortal e individual. O que implicou um processo gradual de interiorização das regras de boa 
conduta, a partir das quais o que era considerado normal e costumeiro tende a se tornar deselegante e um 
signo de selvageria. Como se a subjetividade moderna emergente não pudesse se afirmar sem o 
desenvolvimento de uma objetividade cotidiana: aquela do cálculo matemático que fornece a medida e o 
significado de cada gesto e de cada palavra.
Desde então, a preocupação em modelar o corpo ambição de civilizar as aparências não se limitam 
à esfera dos aduItos. Elas não tardam a buscar a criança, contribuindo para fazer dela um ser que merece 
uma atenção médica e uma pedagogia específicas. Os tratados de civilidade vão, cada vez mais, separar as 
regras infantis daquelas dirigidas aos adultos, marcando assim uma diferença entre criança e adulto que 
durante toda a Idade Média era rara, até mesmo inexistente. A criança começa a ganhar uma identidade 
própria (Ariès, 1986) e a modelagem do corpo infantil tem início desde as primeiras horas de vida: o recém-
nascido é freqüentemente enfaixado com o intuito de moldar, enrijecer e fechar a carne e os ossos. Seu 
corpo é, neste caso, pensado como sendo uma massa argilosa, suscetível de ser moldada por meio de uma 
pressão constante, exercida durante meses, pelo conjunto de faixas. Sua coluna vertebral é, tal como o 
tronco de uma árvore, destinada a ser “endireitada”.
Na verdade, nos séculos XV e XVI, a anatomia humana ganha o centro das atenções, tanto da 
pedagogia - aqui entendida em termos de regras de civilidade - quanto da medicina e da arte. Leonardo da 
Vinci, arquiteto, engenheiro, pintor, escultor, geólogo etc., procede a inúmeros estudos anatômicos graças 
às dissecações de cadáveres que ele mesmo realiza; Miguel Angelo também pratica dissecações com o 
objetivo de identificar as articulações, os ossos, os ligamentos etc. Em Florença, no tempo de Pollaiolo, 
Verrocchio, Donatello, Raphael, entre outros artistas, a Academia das Artes de Desenho foi a primeira a 
instituir o ensino obrigatório da anatomia (Jean Clair, 1994). Durante o século XVI, no domínio da medicina, 
o estudo da anatomia progride graças às dissecações que se multiplicam pela Europa. Vesálio, para 
escrever sua imensa obra De humani corporis fabrica, publicada em 1543, procedeu a inúmeras 
dissecações, e muitas delas eram transformadas num espetáculo aberto ao público, que durava dias.
A aparição da obra de Vesálio marca uma verdadeira ruptura em relação às concepções médicas 
existentes até então. Sublinhando sua independência em relação à tradição escolástica e à medicina de 
Galeno, Vesálio é contrário à separação entre a medicina e a cirurgia. Estamos numa época em que as 
dissecações se generalizam pela Europa, contribuindo para modificar o imaginário do homem ocidental: o 
cadáver torna-se menos misterioso e mais banal, um objeto laicizado e a serviço da ciência. Nascia a 
curiosidade para além do domínio científico de ver a conquista dos segredos da carne humana, indiferente 
às tradições religiosas e à identidade do cadáver exposto. O corpo humano depois de morto, aberto e 
desmembrado pelas mãos daqueles que o dissecam em nome da ciência, tende a se transformar num 
“livro” rico de explicações que, segundo Vesálio, não mente jamais.
Nos séculos que antecedem a época de Vesálio, a dissecação de cadáveres era, em geral, uma 
prática malvista. Inúmeras vezes, religiosos e pensadores medievais manifestaram-se contra a redução do 
cadáver ao estado de esqueleto, contra o desmembramento do corpo morto. Pois, para eles, o cadáver era 
ainda o signo do homem. Como afirma Le Breton (1990; p. 49), nessa época, o corpo era considerado o 
“registro do ser”: o homem era o seu corpo. Diferente será a concepção emergente a partir do 
Renascimento, quando, entre as classes sociais superiores, o corpo distingue-se do “eu”, tornando-se algo 
que se tem e não aquilo que se é. Enquanto que para a maior parte da população pobre o corpo permanece 
ligado à natureza e subordinado aos costumes comunitários, para a elite, participando dos códigos de 
civilidade impostos pela vida da corte e submetidaao modelo anatomista em voga, o corpo torna-se um 
ente independente do cosmo, voltado para si mesmo, distinto do corpo da terra. Quando o corpo é 
transformado em objeto de dissecação pela medicina, seu significado não se compara a mais nada que 
existe no universo: o corpo não será nada além do que um corpo. Seu funcionamento deixa de ser 
comparável ao movimento dos astros. Na verdade, a laicização progressiva do cadáver é paralela à 
separação paulatina entre o corpo e a natureza e á dessacralização de ambos.
Enquanto o corpo se fecha sobre si mesmo, ganhando uma identidade própria, que pouco ou nada 
tem a ver com aquela do cosmo, este por sua vez torna-se mais amplo. A Terra ganha novas dimensões 
com a invenção da bússola e com as grandes descobertas marítimas, enquanto que o céu deixa de ser 
considerado algo fixo e imóvel. Homens como Giordano Bruno falam da infinitude do universo e este passa 
a ser pensado em termos geométricos. No mesmo ano em que foi publicada a obra de Vesálio acima 
referida, foi lançado o Tratado sobre a revolução dos mundos celestes de Nicolau Copérnico. Enquanto a 
astronomia de Ptolomeu e a fisica de Aristóteles afirmavam a imobilidade da Terra no centro do universo, 
para Copérnico é o Sol que ocupará este lugar central4.
Certamente a astrologia permanece uma das exigências para se obter a formação médica. Todavia, 
a influência dos astros sobre o corpo humano começa a ganhar limites mais precisos, e o regime alimentar, 
por exemplo, em vez de se submeter às forças cósmicas, passa a ser um modo de lutar contra as suas 
influências. O corpo deve funcionar, doravante, como uma máquina, cuja metáfora exemplar é o relógio. Em 
plena era do mercantilismo triunfante, em que o tempo se torna dinheiro, o corpo é assimilado a um 
mecanismo cujas partes trabalham em comum acordo, respeitando uma hierarquia de funções, 
independente do funcionamento dos astros, da mudança das estações e do clima. Em suma, o corpo - tanto 
orgânico quanto psíquico - conquista uma independência em relação às leis naturais outrora impossível.
Mas, se por um lado o homem ganhou em liberdade em relação ao cosmo, por outro, uma 
dificuldade antes inexistente começará a persegui-lo: esse corpo-relógio não dispõe de regulação interna e 
nem compensa de modo autônomo os seus desequilíbrios. Além disso, uma vez assimilado ao relógio, o 
corpo será compreendido como sendo uma máquina que não pode parar. O imaginário da organização da 
máquina serve, assim, como modelo de pensamento quando se reflete não apenas sobre o corpo mas, 
também, sobre a cidade. A saúde do corpo começa a ser assimilada ao governo das cidades e vice-versa. 
As constantes analogias entre as coletividades cidade e corpo sugerem a imagem de uma ordem 
dessacralizada, hierarquizada e mecânica, nas quais o trabalho das partes é essencial para o 
funcionamento do todo. Encontra-se assim uma justificativa laica e funcional para o trabalho dos homens.
Além disso, durante os séculos XVI e XVII, enquanto o homem ganha uma independência 
significativa em relação à natureza, assim como uma liberdade antes impensada para conquistar novas 
terras, novas culturas e para conquistar o próprio corpo, por outro, ele tende a perder a sua alma. Num 
universo em que tudo se move, torna-se impossível encontrar, por exemplo, o lugar da Revelação. As 
causalidades religiosas serão progressivamente substituídas pelas causalidades físicas. O mundo não é 
mais um universo de valores, mas sim de fatos (Le Breton, 1990, p. 66). O céu não é mais limitado pela 
esfera das estrelas e a extensão da Terra atrai e amedronta. Imaginário de um universo incerto que se 
produz ao mesmo tempo em que se aprofunda o saber sobre o organismo vivo. No corpo humano, uma 
série de movimentos antes desconhecidos ou mal assimilados serão descobertos em meio ou no interior 
dos órgãos: William Harvey (1578-1657) descobre a circulação sangüínea e Jean Pecquet (1622-1674) 
descobre um segundo sistema circulatório, o linfático. Com o emprego do microscópio, muito do que era 
invisível se torna observável, como, por exemplo, os glóbulos vermelhos. Corpo e universo ganham em 
instabilidade tanto quanto se expandem e se diferenciam.
Com Galileu, a fórmula do mundo será dada pela matemática e os engenheiros vão se transformar 
nos novos mestres do mundo, para os quais todo mistério pode ser desvendado. Em 1632, com a 
publicação de sua obra - Diálogos sobre os dois sistemas do mundo -, Galileu concede à engenhosidade 
humana um valor novo: conhecer não significa mais descobrir as intenções de Deus e as finalidades da 
natureza, mas sim se colocar no lugar de Deus e construir o mundo. As reflexões sobre o corpo e a 
natureza vão se situar à altura do homem que, doravante, deverá se submeter ao pensamento racional. 
Como disse Lenoble (1990), com Galileu, mas também com Descartes, Gassenti e com todos os seus 
discípulos menores: “conhecer é fabricar”. O homem torna-se capaz de fazer a obra da Natureza graças a 
sua engenhosidade de técnico. Por conseguinte, o antigo sonho de criar a vida não tardará a ser atualizado 
com a fabricação dos autômatos, em particular aqueles de Vaucanson no Século das Luzes, inventor, entre 
outros, de um andróide tocador de flauta e de um pato que come, bebe e faz digestão tal qual um pato vivo.
Mas a transformação do homem em possuidor e mestre, tanto da natureza como do próprio corpo, 
não poderia ocorrer sem aprofundar e atualizar o secular dualismo corpo e alma. Sob a égide da filosofia 
cartesiana, por exemplo, o corpo ganha em distância em relação à superioridade da substância pensante: 
enquanto esta é fundada em Deus, o corpo é considerado a parte menos humana do homem. A exaltação 
do homem conquistador, daquele que submete a natureza aos seus desígnios, está, portanto, estreitamente 
relacionada à transformação do corpo num “estrangeiro” do homem.
A transformação do homem em mestre e possuidor da natureza também não poderia ocorrer sem 
estabelecer um reducionismo baseado no modelo da matemática. Segundo esse reducionismo, “toda a 
natureza é máquina e toda a máquina é natureza” (Jaboc, 1970). Leis orgânicas e leis do pensamento 
tornam-se, assim, leis matemáticas, e estas dominam tanto o mundo do vivo quanto o mundo da matéria 
inerte. Como afirma Tibon-Cornillot (1992, p.32) “a teoria dos animais-máquinas supõe um princípio inicial, 
segundo o qual nada permite localizar nos seres vivos 'alguma coisa' que seja diferente da matéria inerte”17. 
Dessacralização da natureza e, com ela, do corpo humano. Astros, pedras, homens e animais, embora 
separados e votados à individualização5, são investigados segundo leis matemáticas e em função das 
possibilidades e dos limites da ciência.
Na medida em que o corpo é considerado algo não apenas destituído de Deus mas também inferior 
ao pensamento, e na medida em que todos os seres da natureza são concebidos segundo leis 
matemáticas, o adestramento dos corpos nas escolas, nas usinas, nos hospitais e nas diversas instituições 
sociais se torna possível e necessário. Depois de conquistar as terras distantes, a natureza e outras 
culturas, o homem é impelido a conquistar o próprio corpo, e, dentro dele, um novo universo que não cessa 
de ser descoberto. Pois, paradoxalmente, quanto mais elaboram soluções destinadas ao controle da 
“máquina corporal”, maior se torna o território dos riscos que a ameaçam.
3. Do corpo energético ao corpo informatizado
Enquanto no século XVII o movimento circular dos astros, assimilado ao movimento da alma, deixa 
de ser considerado perfeito, no século XVIII, o calor deixa de ser simplesmente constituído pela agitação de 
partículas minúsculas para se tomar um elemento central na teoria que compreendea respiração em termos 
de combustão. Nesse sentido, os trabalhos de Antoine-Laurent Lavoisier foram de grande importância. Ele 
conclui que a respiração elimina o oxigênio do ar exalando gás carbônico. Este processo, que Lavoisier 
assimila à combustão do carvão, se realiza, segundo ele, a partir da queima de material fornecido pelo 
sangue. Assim, a produção do calor vital deve-se a uma operação química.
Os trabalhos de Lavoisier contribuíram para provocar a emergência de um modelo corporal baseado 
na termodinâmica, segundo o qual o corpo é, antes de tudo, produtor de energia. Em 1824, as leis da 
termodinâmica teorizadas por Carnot demonstram como a conversão do calor resulta em possibilidades 
efetivas de trabalho (Vigarello, 1993). Desde então, a prática de endireitar a postura dos nobres e de suas 
crianças por meio de faixas e de espartilhos tende a ser substituída pela prática da ginástica, e, por 
intermédio dela, do culto à respiração. O corpo protegido pelo espartilho será considerado um erro 
pedagógico e médico, muito embora ele continue em voga até o início do século XX. De todo modo, o uso 
do espartilho deverá, doravante, ser acompanhado pela educação fisica.
Por meio da educação fisica, o corpo, que antes era moldado pela couraça de ferro ou de pano, 
ganha em autonomia: ele será chamado a fazer a obra da modelagem a partir de suas forças internas. 
Endurecer o corpo e suas fibras por meio da ginástica e também dos banhos frios de mar, que não tardam a 
entrar na moda, exprime a vontade de produzir um organismo resistente e saudável, capaz de combater a 
indisciplina, no sentido lato deste termo. Apelos morais e científicos misturam-se. A moleza das carnes que 
o espartilho esconde se transforma numa indecência, antes desconhecida, acusando uma personalidade 
fraca e desprovida de vontade própria.
Se agora o esforço para a correção corporal deve vir de cada indivíduo, o princípio gerador da 
vontade, que diferencia as personalidades, passa a ser buscado na parte mais íntima do ser humano: a 
subjetividade. Do magnetismo de Mesmer à psicanálise, passando pelo hipnotismo, a subjetividade ocupará 
um lugar privilegiado nas pesquisas científicas. Para conhecê-la, a fisiognomonia, que desde o século XVI 
se desenvolve na Europa, coloca o indivíduo como sendo indissociável da expressão singular do seu rosto 
(Courtine & Haroche, 1988). A aparência revelando a essência de cada um, justamente numa era de
crescimento das cidades em que o fenômeno do anonimato no cotidiano se massifica. O sentimento de 
identidade individual acentua-se na medida em que o indivíduo é chamado a se distinguir da multidão6. Ora, 
pela fisiognomonia trata-se de conhecer, pela aparência, aquilo que é invisível no ser: suas emoções, seus 
desejos, suas “taras”. O que se busca é um aprofundamento do governo das paixões humanas, uma 
expressão moderada, fruto de um cálculo prévio, ao mesmo tempo em que se afirma a possibilidade de 
leitura do ser humano por meio do desenho exterior do seu corpo.
Novos estudos sobre a fisiognomonia, e também sobre o cérebro, florescem entre os séculos XVIII 
e XIX. Na medida em que a descendência de cada indivíduo deixa de ser uma garantia para desvendar a 
sua honra e predizer sobre o seu futuro, é na própria aparência fisica que os olhares inquisidores acerca 
dos segredos da subjetividade serão depositados. Com a promoção das aparências, uma cultura visual, 
fundada sobre o detalhe anatômico, é chamada a se sofisticar. A massificação do uso dos espelhos, o 
surgimento da fotografia e, em seguida, a democratização do retrato, fazem parte dessa intensificação do 
gosto pela contemplação de uma subjetividade que se acredita estampada nas aparências. Uma vontade de 
precisar objetivamente as aparências coincide com a promoção de um olhar que se quer documental e, 
sobretudo, capaz de participar dessa nova sensibilidade semiótica que concede ao rosto um lugar de 
destaque.
E não por acaso. Uma rígida hierarquia dos órgãos e das partes do corpo humano participa dessa 
decifração das aparências, tanto quanto ela se apóia no imaginário científico que há muito fez do cérebro, 
essa parte interna do rosto, a sede da alma. Da fisiognomonia à frenoIogia, o desafio de encontrar em cada 
indivíduo as razões que explicam os talentos e os defeitos pessoais não será indiferente à promoção do 
cérebro e das expressões do rosto. Transformado num intérprete ativo que gera as relações do homem com 
o mundo, o cérebro já havia sido em outras épocas um objeto de veneração de artistas e de médicos. Mas 
com Louis-Jean Marie Daubenton (1716-1800), um dos primeiros a fazer do crânio um objeto de estudo 
privilegiado, o que se observa é a legitimação da tentativa de relacionar o fisico à moral, uma ciência das 
correspondências entre a subjetividade e a parte superior do corpo, entre o cérebro e as emoções.
Não demorará muito para que a verdade do ser seja buscada também em regiões mais 
desconhecidas, naquilo que se chamou de inconsciente. Uma literatura do inconsciente não tardará a se 
expandir, da qual Baudelaire se tornou uma figura exemplar. Mas, paradoxalmente, o homem parece se 
aproximar de si mesmo tanto quanto se afasta. Em plena era de multiplicação das técnicas de escuta do 
mundo íntimo de cada um, a separação entre homem sensível e homem orgânico torna-se incontornável 
(Corbin, 1987, p. 272). Ao mesmo tempo, um outro paradoxo afirma-se com os progressos científicos. 
Desde há muito a Terra deixou de ocupar o centro do universo, e os grandes filósofos do século XVI já 
haviam rejeitado a idéia de que o mundo natural fora criado exclusivamente para o homem. Ora, com 
Darwin o homem deixa definitivamente de ser o centro da Criação, enquanto que com Freud ele deixa de 
ser o centro dele mesmo. Ele não ocupa mais um lugar central no mundo e, no entanto, nunca se falou tanto 
a seu respeito.
O horror à degenerescência humana justifica, em parte, essa preocupação com o ser humano, 
melhor dizendo com as “populações”. Sobretudo após Darwin e Pasteur. A verdade das identidades 
corporais, a partir da seleção natural, explicaria, segundo Le Bon, o declínio da nação francesa. Do mesmo 
modo, a aparição repentina de uma vida microscópica extremamente complexa comprova que os micróbios 
pululam por toda parte. A universalidade da vida dos micróbios torna-se uma evidência. O perigo da 
contaminação está no ar, na água e em todos os corpos, a higienização se quer redentora. O receio da 
decadência nacional e da degenerescência da raça se misturam. Novamente encontramos aqui o 
entusiasmo em torno da educação física, dirigida não apenas aos nobres mas também à classe 
trabalhadora. Com ela, mais do que o teatro das aparências elegantes dos nobres de outrora, a burguesia 
triunfante busca a higiene dos comportamentos (Vigarello, 1995). Cresce então uma confiança face aos 
movimentos corporais que coincide estrategicamente com o receio político perante as populações 
consideradas “amolecidas” e avessas ao trabalho.
Uma “pastoral do suor” (Courtine, 1995) atinge os corpos, no lazer e nas fábricas, assim como ela 
modifica o imaginário ligado ao funcionamento orgânico. Já no início deste século, os anúncios publicitários, 
na Europa e também no Brasil7, ilustram o fato: elixires para acelerar o processo de digestão dos alimentos, 
estâncias balneárias e águas medicinais para limpar o organismo, desobstruir os canais de circulação dos 
fluxos, facilitando o aumento da produção de energia, exercícios para majorar o vigor dos corpos, atenção 
extremada à saúde dos pulmões, esse centro de combustão do corpo, tal qual ele é entendido nesta era da 
termodinâmica. Limpar, acelerar os movimentos, produzir mais rápido: tais são os enunciados dirigidos aos 
corpos humanos e às cidades, acada organismo e a cada trabalhador. Já assistíamos, desde então, à 
emergência do homem “excitado” mencionado por Nietzsche, mas também preparávamos o terreno para o 
homem superexcitado do qual fala Virilio (1933; pp. 129-167).
Assim como o fantasma puritano da higiene havia encontrado um pretexto científico com as 
descobertas de Pasteur (Serres, 1977), agora, o medo do homem improdutivo encontrará apoio no discurso 
médio defensor da aceleração do trabalho orgânico: o corpo passa a ser tratado como algo que 
“naturalmente tem preguiça de realizar sua obra cotidiana”, de digerir os alimentos para transformá-los em 
energia produtiva.
No entanto, até meados deste século, a demanda pelo aumento da produtividade ainda se mantém 
autoritária e pouco sedutora. A iniciação à aceleração da vida permanece austera e relutante em associar 
termos até então opostos: sedução e higiene, prazer e desgaste físico, trabalho e lazer. Será preciso 
esperar que as grandes mensagens ideológicas percam sua força de adesão social, que a crença numa 
história linear rumo ao progresso seja esmaecida, que a sociedade de massas se desenvolva, para que os 
apelos em torno do aumento da produtividade possam aliar o prazer à disciplina no trabalho. Será preciso 
também que a biologia molecular se desenvolva, tornando possível a transformação dirigida do ser vivo, 
para que o saber sobre o corpo ganhe uma profundidade e uma complexidade inéditas. Será necessário, 
enfim, que as técnicas de intervenção no organismo se sofistiquem e se massifiquem, que se banalize, 
enfim, o espaço corporal - na mídia e na medicina -, para que um novo modelo de corpo seja construído.
Desde então, o corpo energético, modelo produzido pela termodinâmica, começa a concorrer com a 
imagem de um corpo informatizado: não apenas máquina de produção e consumo de energia mas também 
de informação. Se com a informática o pensamento sai da era Gutenberg, com o desenvolvimento da 
bioquímica, da genética e da biologia molecular, o ser vivo será percebido como sendo, fundamentalmente, 
um produtor e um transmissor de informação (Olby, Cantor, Christie, Hodge, 1990). No domínio científico 
encontramos exemplos lapidares dessa situação. Nele, tem a impressão de que o corpo passou a ser 
semelhante a um que se dobra sobre si mesmo, um dispositivo composto por redes de mensagens cujas 
possibilidades de interpretação parecem mais variadas e fragmentadas do que no passado. A diversificação 
e a multiplicação de exames médicos, por exemplo, exigem uma interação maior entre ciência e tecnologia. 
Muitas vezes, substitue-se o olho humano por máquinas capazes de reconstituir as imagens do organismo 
em três dimensões, o que demanda da medicina o aprendizado de uma nova semiologia. O progresso no 
conhecimento do corpo deixou, portanto, de se limitar a uma medida humana, pois tal medida passa a estar 
contida nos próprios instrumentos e técnicas de investigação, levando a ciência a ultrapassar a escala 
humana individual.
Ao mesmo tempo, as técnicas da informação deram à tecnologia um lugar privilegiado no quadro de 
diversas ciências, da biologia à medicina passando pela lógica e pela fonética. E não apenas para a 
mecanização do ser vivo, mas fundamentalmente para a sua reconstrução. O que não poderia ocorrer sem 
o aprofundamento da pesquisa sobre a origem da vida e as razões de sua diversidade. Com o projeto 
genoma, por exemplo, uma espécie de carta de informação invisível, interior a cada indivíduo, promete 
revelar suas singularidades e seus limites. Entretanto, repetindo uma tendência histórica, quanto mais 
avançamos na pesquisa da identidade do ser, mais amplo e complexo torna-se o espaço onde 
supostamente se encontrariam as suas verdades. Como se, doravante, para investigar a subjetividade 
própria ou alheia tivéssemos que perguntar não apenas quais os segredos do coração, do pensamento ou 
do inconsciente, mas também o que está guardado nesta outra memória do ser, ou seja, quais informações 
revelam o seu genoma.
Por conseguinte, em plena era de uma acentuada preocupação com a ecologia, na qual se busca 
afirmar o princípio de responsabilidade face às gerações futuras (para as quais se quer legar um planeta 
menos devastado), antigos interesses eugenistas podem ser atualizados com a busca de um patrimônio 
genético não degradado. O conhecido risco de considerar a pesquisa científica em si mesma fecunda e 
inocente une-se ao sedutor gosto pela aventura que, em ciência, às vezes, inocenta o projeto de evolução 
da espécie.
Se com Darwin a sobrevivência não se devia ao acaso, mas era, em parte, dependente da 
constituição hereditária dos indivíduos que sobrevivem, agora é o futuro da espécie que se defronta com a 
possibilidade científica de introdução no genoma de novas informações até então inexistentes. É quando a 
antiga ambição de programar e de controlar os corpos propulsa o homem para além da evolução natural 
darwinista. Por conseguinte, trata-se não apenas de investir no fortalecimento da raça por meio da 
recomendação da digiene, da boa alimentação e de uma vida saudável. Trata-se de transformar de modo 
dirigido o patrimônio hereditário de cada ser vivo. Na verdade, desde o século passado, quando a teoria 
celular emerge com Schwann e Schleiden, o conhecimento científico sobre o corpo não cessou de acelerar 
o processo de mecanização do ser vivo e de promover a investigação dos constituintes celulares, tais como 
os cromossomos e, a seguir, os genes. Da biologia molecular à bioengenharia o conhecimento do ser 
humano não poderá mais ser concebido sem a leitura, a descrição, o tratamento, a seleção, a análise e a 
reprogramação da informação biológica num nível infinitesimal (Rosnay, 1991). Com as técnicas de 
clonagem e de recombinação genética de moléculas do ADN, por exemplo, torna-se possível intervir 
diretamente no patrimônio genético. Com o projeto genoma, cria-se uma interface nova, por meio da qual o 
código genético próprio ao ser humano e os códigos culturais de uma determinada época podem trocar as 
informações neles contidas (Tibon-Cornillot, 1992, p. 18). Além disso, com a biologia molecular, conhecer 
cientificamente o corpo não se limita mais à especialização em torno de urna patologia ou de um órgão. 
Este conhecimento exige agora que o pesquisador seja especialista em uma série química ou em um 
receptor. Pignarre (1995) sublinha uma das principais conseqüências dessa transformação ao dizer que “a 
biologia molecular teve como resultado visível a quebra da velha hierarquia do corpo com órgãos”. “Desse 
modo,” diz ele, “nasceu o corpo sem órgãos dos biólogos”.
4. Subjetividade “à la carte” na era do culto ao bem-estar
 Uma nova paisagem microscópica transborda da ciência para o imaginário social: moléculas, 
macromoléculas, genes, novos vírus, emissores e receptores de informação pululam num número cada vez 
maior de reportagens de divulgação científica, assim como nos filmes de ficção e nos jogos infantis. A 
secular ambição de conhecer, manipular e controlar o corpo, várias vezes mencionada neste artigo, não se 
limita portanto à esfera científica e nem se dirige unicamente à fisiologia. Tal ambição abarca o psíquico e o 
orgânico, a ciência e o imaginário, a tecnologia e a sociedade. Ela se associa a valores e a justificativas que 
se modificam no decorrer dos anos e de acordo com as culturas. Assim, se no século passado o controle do 
corpo encontrava um forte argumento na necessidade do fortalecimento da raça, a partir deste século é 
sobretudo o bem-estar individual que vai se tornar uma justificativa inquestionável. É quando a própria 
saúde se torna sinônimo de bem-estar. Segundo a definição dada pela Organização Mundial da Saúde, logo 
após a Segunda Guerra Mundial,ser saudável significa, de agora em diante, não apenas estar livre de 
doenças mas também usufruir de um bem-estar permanente.
Entretanto, a apologia do bem-estar - ora traduzido em termos de prazer, ora compreendido como 
sinônimo de satisfação pessoal e harmonia entre corpo e mente - é paralela à galopante desnaturalização 
do sofrimento. Como se, doravante, tudo estivesse destinado a fornecer, unicamente, prazer. As 
conseqüências dessa exaltação ao bem-estar paralela à agudização da aversão ao sofrimento são diversas. 
Entre elas, poderíamos arriscar a pensar que principalmente após a década de 1960, com os movimentos 
de liberação do desejo e promoção ainda maior do bem-estar, a relação do homem com o seu passado se 
vê transformada: se anteriormente ele se arrependia dos pecados cometidos ou dos prazeres furtivamente 
experimentados sem o consentimento social, em nossos dias, ele tende a lamentar os possíveis prazeres 
que deixou de viver, as supostas relações sociais que ele não experimentou. O passado continua a 
perseguir cada um, no entanto, menos para trazer a memória culpada
da transgressão e muito mais para lembrar os prazeres que poderiam ter sido vivenciados. Na medida em 
que o prazer ganha legitimidade e o bem-estar torna-se uma regra, toda satisfação obtida se quer para além 
do lícito e do ilícito, para além da moral e de toda oposição, participando de todas as esferas da vida. Nesse 
sentido, as grandes cidades multiplicam seus serviços de fornecimento de bem-estar e enfatizam que é 
preciso ter prazer em tudo o que se faz: a publicidade dos alimentos diet, por exemplo, não cessa de aliar o 
prazer de comer com a dieta, termos outrora incompatíveis. É preciso ter prazer não apenas no lazer mas 
tambem no trabalho, nas relações conjugais e extraconjugais, na rotina ou fora dela. Como se o prazer não 
pudesse mais ser algo extraordinário.
Associada à exigência do prazer e do bem-estar, encontramos a ênfase nas vantagens do esporte 
(Sant'Anna, 1994b) e de um modo de ser que prima pela descontração dos gestos, pela flexibilidade do 
corpo e do pensamento. A imagem de um psiquismo e de urna aparência contrários à toda rigidez começa a 
ganhar um estatuto positivo. Mas menos do que o fim da vontade de controlar os corpos, essa exaltação do 
bem-estar emerge como uma nova estratégia para legitimá-la. Pois controlar o corpo implica agora colocá-lo 
em movimento muito mais do que cerceá-lo. Ter o domínio de si é menos uma tarefa de restrição e 
de contenção do que de diversificação e ampliação das forças corporais e psíquicas: ela implica, desde 
então, liberar todas as nossas supostas “identidades” para que possamos conhecê-las melhor e expandir o 
nosso mundo subjetivo. Em outras palavras, a procura do bem-estar, estreitamente vinculada à vontade de 
controle de si mesmo, implica aqui a legitimação crescente do arriscar-se em experiências novas. Por 
conseguinte, torna-se natural a busca de uma subjetividade muito mais fluida, móvel e reciclável do que 
aquela que se expressa nos modelos de conduta herdados do passado. Como se estes modelos se 
tornassem rapidamente insuficientes ou tirânicos diante do incentivo em adotar uma espécie de 
“subjetividade à la carte”, construída livremente, tendo por único critério a ampliação dos níveis de 
satisfação pessoal. Uma subjetividade capaz de conviver com as incertezas do presente e com a 
valorização crescente de um modo de vida aberto às diferentes experiências de dilatação do mundo 
sensível e dos prazeres individuais.
Na verdade, após maio de 1968, “as identidades inconstantes”, solidárias a uma “cultura da 
diferença” ganharam uma positividade inédita, enquanto que a manutenção de um mesmo perfil subjetivo 
deixou de ser uma prova de eficiência e de autenticidade. Há quem afirme que em substituição a uma 
sociedade habituada às grandes mensagens, à austeridade das visões regeneradoras e aos sacrifícios em 
favor de um ideal, seja ele coletivo ou individual, assiste-se à emergência de uma sociedade em que o 
dever se tornou “anêmico” e “as lições de moral” foram recobertas pelos “spots do viver melhor, pelas férias 
e pelo divertimento mediático” (Lipovetsky, 1992). De todo modo, atualmente, com a apologia do indivíduo 
livre, o que rege cada uma das ações humanas é uma diversidade de possíveis (opções sexuais, estéticas, 
morais etc.), outrora inconcebível. Se, no século passado, com a ascensão da burguesia, a subjetividade 
tendeu a ser progressivamente liberada das filiações com a religião e com os laços de sangue, agora ela 
pretende ser liberada também de suas relações com a moral e de tudo o que se apresenta como sendo 
imutável ou incontrolável nos corpos.
Por conseguinte, em plena era do culto ao “bem-estar”, antigos receios em vez de desaparecerem 
serão atualizados. A exigência de um bem-estar constante vai implicar um aprofundamento da ambição de 
decifrar os corpos e de decodificar todo o complexo de informações por eles emitidos. Ou seja, a antiga 
aversão a tudo aquilo que no organismo se acumula e não tem utilidade toma a forma de um horror aos 
ruídos na decifração da linguagem corporal8. O essencial é obter cotidianamente uma informação clara 
sobre si, capaz de ser cada vez mais rápida e pormenorizada. Por conseguinte, uma nova rotina persegue a 
todos: proliferação de novas técnicas de autoconhecimento, autodiagnósticos em permanência, a partir dos 
aparelhos portáteis, registro de informação que se quer cada vez mais aguda, computadorizada, 
microprocessada. Testes de rendimento físico periódicos, associados não mais à doença em particular mas 
também à saúde, não somente nas clínicas e hospitais, mas nas academias de ginástica, nos parques, 
durante o lazer. O que vale é entrar em contato com o próprio corpo, “não abandoná-lo”, perceber suas 
características físicas e subjetivas, medi-las, controlá-las, dialogar com elas para estender ao infinito os 
níveis de prazer e de relação consigo.
Para tanto, a associação entre corpo e tecnologia entra na ordem do dia. Não mais o modelo das 
máquinas pesadas, vorazes e poluentes, constituintes da paisagem da termodinâmica, com suas usinas 
gigantescas, com seus labirintos de ferro e cimento. A era da informação evoca um novo conjunto de 
imagens, muito mais leves, frias, imateriais e sedutoras. Uma tecnologia produtora de máquinas lúdicas, 
conviviais, solidárias à busca do bem-estar individual e do conforto9. Uma tecnologia que mostra facetas do 
movimento corporal que parecem inexistir a olho nu. A aliança entre informática e vídeo, por exemplo, 
permite que seja possível decompor e analisar o gesto esportivo em seus mínimos detalhes. Ciência e 
interesses de mercado misturam-se dando lugar à produção crescente de novas técnicas de fortalecimento 
e expressão do corpo, de aparelhos e drogas destinados a afinar o contato com a esfera íntima, de serviços 
de entretenimento que contribuem para aprofundar os limites do conhecimento e do rendimento do corpo.
Centenas de opções de como encontrar o bem-estar, de como se conhecer e se fortalecer estão 
expostas nas lojas, nas farmácias e na mídia. Mais livre para decidir como construir o próprio corpo e, no 
entanto, mais solitário e incerto na decifração de uma subjetividade que se quer mutante e na escolha dos 
produtos e serviços destinados a aumentar os níveis de satisfação pessoal no cotidiano, o indivíduo tende a 
se transformar no seu principal empresário. Não haveria assim um único momento para uma transformação 
supostamente definitiva da subjetividade de cada um. As grandes narrativas, seguidas dos marcos 
históricos e dos nomes célebres, as grandes aventuras humanas que comoviam toda uma geração 
tornaram-se excessivamente longas, exageradamente universais. A partirda Segunda Grande Guerra, as 
revoluções da subjetividade humana ganharão um aspecto menos solene e mais banal.
Contribuindo para tornar a subjetividade suscetível às transformações de toda ordem, a 
materialidade orgânica que constitui cada homem consegue, por vezes, superar sua condição secular de 
suporte para ganhar uma dignidade nova no mundo científico, modificando o secular dualismo entre corpo e 
alma. Certamente, esta tendência está longe de se tornar majoritária. No entanto, “pensar com o corpo” já 
não é uma contradição entre termos, sobretudo para cientistas como Damasio (1995), por exemplo, 
segundo o qual não existiria “razão pura”, uma vez que o pensamento passa pelo corpo. Nesse caso, a 
subjetividade se quer misturada à materialidade orgânica e esta deixa de ser considerada um simples 
objeto. Segundo Varela (1993), um outro exemplo, as unidades de conhecimento são fundamentalmente 
encarnadas, inscritas nos corpos.
Mas o risco da renovação daquele antigo dualismo não desapareceu. Em publicidade, por exemplo, 
a antiga recusa da carne em favor do espírito é muitas vezes atualizada na atual obsolescência do corpo em 
nome do ideal da forma. A distinção entre corpo e alma pode, também, tomar a forma de uma cisão entre 
dois tipos de indivíduo: aquele que é sensível à escuta de seu íntimo, atento e devotado à decifração de sua 
sexualidade e de seus afetos, disposto a ampliar a zona de diálogo consigo mesmo e seus níveis de 
consciência e de controle sobre o próprio corpo, em oposição ao indivíduo supostamcnte considerado 
alienado em relação a seus desejos, insuficientemente liberado para poder encontrar prazer em se 
autodecifrar, analfabeto em relação às formas de expressão da subjetividade manifestadas por meio das 
novas técnicas de escuta em desenvolvimento no decorrer deste século. Sob a era da obsessão pela 
informação, quando o corpo se torna pura linguagem, meio, mensagem, os que permanecem analfabetos 
em relação à leitura de suas próprias intimidades, alheios aos prazeres da decifração do corpo, tornam-se, 
portanto, os novos excluídos da história.
5. Tecnologia encarnada e obsessão pelo “estar em relação”
Este corpo “informatizado” encontra-se, enfim, ao mesmo tempo liberado e medicalizado, mais 
protegido e mais integrado a novas próteses (uma parafernália de produtos terapêuticos, fortificantes, 
preventivos talvez, mais diversificada do que era a panóplia de instrumentos corretores do corpo utilizada 
pelos nobres do século XVI). Ele supõe um modo de vida que depende, mais do que nunca, de uma 
decifração das intimidades que conduzirá a “microrrevoluções subjetivas”, capazes de expandir a percepção 
e as possibilidades de “experimentar” o mundo com satisfação. Desde então, torna-se necessário colocar à 
disposição de todos um número maior tanto de canais de expressão quanto de especialistas que podem 
apoiar cada indivíduo na compreensão de si e na expansão da possibilidade de sentir prazer. Do esporte à 
psicanálise, passando pelas drogas e pelas novas tecnologias de lazer e de comunicação, encontramos 
diferentes estímulos à tendência de tornar cotidianos e cada vez mais intensos os momentos de “expressão 
do eu” e de revolução subjetiva.
Revolução que se quer múltipla, permanente e que, mais recentemente, implica a intrusão 
fisiológica de uma nova geração de máquinas dentro dos corpos: após a colonização da extensão 
geográfica da Terra, após enviar tecnologia a outros planetas e, inversamente, transformá-las em acessórios 
portáteis, transportáveis e coladas ao corpo, emergem as nanomáquinas. Segundo Paul Virilio (1933; p. 
132) esta tendência, que ainda parece existir unicamente nas ficções científicas, está em vias de ocorrer 
efetivamente graças às invenções biotecnológicas, por meio das quais uma série de micromotores, 
emissores e receptores de informação miniaturizados, são utilizados para serem ingeridos e servem para 
fortalecer os corpos e para modificar as funções orgânicas. Certamente, uma série de distúrbios orgânicos 
poderão assim encontrar soluções. Dos corações mecânicos implantados nos corpos aos “comprimidos 
inteligentes”, passando pelas memórias adicionais, a reconstrução incessante do corpo abarca aquela da 
subjetividade e dos ritmos orgânicos naturais. Entretanto, como já vimos em outras épocas, aqui também 
seria impossível pensar as estratégias de controle do corpo sem considerá-las, ao mesmo tempo, como 
solucionadoras de antigos problemas e produtoras de novos riscos. No caso do progresso biotecnológico, o 
risco apontado por Virilio não é outro senão o de tornar obsoleto, insuficiente, anacrônico, um número cada 
vez maior de orgãos e de ritmos humanos em função da performance das micromáquinas e dos orgãos 
criados industrialmente que se querem mais eficazes do que os orgãos humanos.
Nesse caso, teríamos a eliminação das distâncias entre a máquina e o corpo humano, a eliminação 
da mediação entre o dentro e o fora, pois esses produtos resultantes da biotecnologia estariam penetrando 
no funcionamento corporal para modificá-lo: Rheingold lembra que em breve um microrraio laser poderá 
pintar as realidades diretamente sobre a retina humana, tornando a tela algo dispensável e dilatando 
efetivamente as possibilidades de experimentar uma sensação pura. A telepresença, termo inventado por 
Marvin Minsky em 1979, lembra exatamente a possibilidade de uma experiência in direct, na qual se está ao 
mesmo tempo presente e fora do corpo. Como se fosse necessário eliminar toda a mediação entre os 
corpos. Os viajantes do ciberespaço, palavra que designa a realidade virtual desde o romance de William 
Gibson, Neuromancien, em 1984, elucidam esse desejo de transformar toda experiência, banal e cotidiana 
numa “sensação pura”, sem mediação. Os “esportes californianos”, outro exemplo, abusaram a união entre 
termos outrora incompatíveis: tecnologia de ponta e sensação pura, vertigem e disciplina. Se na experiência 
com as drogas muito se exaltou a possibilidade de dilatar os estados de consciência, ampliando a 
intensidade das sensações, com a realidade virtual, outra possibilidade de “viagem” sem ingestão de 
produto químico, tem-se o prazer de estar, todo o tempo, em contato com novos agentes emissores e 
receptores de mensagens no organismo e fora dele.
Estar em relação constantemente, obter um estoque de prazer suplementar, buscar as sensações 
puras, são valores paralelos à agudização da intolerância perante a solidão, o sofrimento e à subjetividade 
que recusa ser incessantemente reciclada, testada, colocada à prova, revolvida de suas supostas bases. 
Aquelas tendências demonstram que as transformações subjetivas se querem mais laicas e diversificadas, 
personalizadas e cotidianas: da ingestão do Prozac ou do Ecstasy, passando por uma experiência religiosa 
ou esportiva, torna-se comum a busca de uma overdose de vertigem corporal e psíquica, um suplemento de 
adrenalina e de percepção.
Ampliação da percepção e da freqüência em que cada indivíduo se coloca em relação com o próprio 
corpo e com os demais corpos, mesmo pela via virtual. Se no século passado o homem havia deixado de 
ser o centro dele mesmo, agora, as novas tecnologias o convidam para entrar num mundo tornado 
ciberespaço, no qual é possível “estar em comunicação”, em qualquer parte do planeta. “Doravante tudo 
nos chega sem que seja necessário partir” (Virilio, 1993; p. 167). O que nos chega é a “informação-mundo” 
(ibidem). Com as novas tecnologias de comunicação, a pergunta a se fazer hoje seria menos ara onde 
vamos e sim onde estamos. Precisamos de um atlas, afirma Michel Serres (1994). “O que é achar o bom 
lugar em nossos dias?” pergunta Alain Ehrenberg (1995). Com o aumento vertiginoso das tecnologias que 
nos prometemo acesso rápido, tanto ao mundo exterior quanto ao nosso mundo interno, cresce o fascínio 
pelo “estar em relação”, mas também o receio de não saber onde pairam, onde pisam, onde moram nossos 
corpos. Onde está o meu sangue que corre das veias até às máquinas hospitalares, meu pensamento que 
se expressa na Internet ou minha voz que fala ao telefone? Em curso, entre os espaços, no tempo. Como 
se os lugares que ocupamos, os solos sobre os quais caminhamos e habitamos não cessassem de partir. 
Um corpo informatizado, relacional, em comunicação, dispersado e literalmente ligado. Como se a metáfora 
que esse corpo exprime fosse o limite da metáfora do corpo energético.
6. “À flor da pele”
O coração, o cérebro, o inconsciente e o genoma são diferentes “espaços” que historicamente 
foram assimilados à alma e, mais tarde, à subjetividade de cada indivíduo. Poderíamos perguntar quais as 
razões dessa tendência histórica em alojar a alma humana em zonas de difícil acesso, e desde já, 
expressar a desconfiança de que o inacessível seria um meio de garantir a intensidade daquilo que nele se 
oculta. Entretanto, os sentidos dessa profundidade não permaneceram os mesmos no decorrer dos anos. A 
partir de meados deste século, por exemplo, tornou-se progressivamente legítimo indagar sobre a 
historicidade da matéria enquanto novos elos foram sendo estabelecidos entre ciência, cultura e sociedade. 
As leis científicas assumem um caráter provisório e a suposta sede de alma ganha um caráter pluralista e 
mutável. Assim, aquilo que por hábito costumamos chamar de subjetividade deixou de ser assimilado 
unicamente ao cérebro, ao inconsciente, ao coração ou ao genoma.
Transformada numa espécie de potência onipresente e impossível de ser circunscrita 
geograficamente, podendo estar alojada em diversas partes do corpo e da mente ao mesmo tempo, a 
subjetividade se quer, doravante, positivamente presente em toda a extensão de um ser e em todos os 
momentos do cotidiano. Se, por um lado, ela se quer plural e reciclável, por outro, ela se quer geral e 
totalizante. Como já vimos, não haveria momentos especiais para a expressão da subjetividade. Após os 
movimentos sociais de liberação da década de 1960, a manifestação da subjetividade, intimamente 
associada à expressão do desejo, tornou-se um direito de homens e mulheres, algo que se busca não 
apenas no lazer e nas relações amorosas, mas também no trabalho e em todas as relações sociais. O 
corpo tornou-se um “sensível” para as ciências humanas, ao mesmo tempo em que a subjetividade de cada 
um passou a ser buscada, dilatada e interrogada por uma gama diversificada de profissionais, da psicologia 
à educação física, passando pela moda e pela pedagogia. Tem-se a impressão de que os particularismos 
secretos de cada indivíduo poderiam ser encontrados em cada gesto, em cada frase, em cada parte do 
corpo. Como se o que é mais profundo no indivíduo tivesse saltado à superfície das ações e dos corpos, 
para nela se generalizar, legitimando uma aliança entre o visceral e o epidérmico, já anunciada por Paul 
Valéry.
Nesse sentido, nada melhor do que a pele para servir como metáfora dessa subjetividade votada a 
subir à superfície dos corpos, numa época em que se torna fundamental promover a relação entre os 
indivíduos, reestabelecer a ligação entre estes e a natureza, construir novas epidermes protetoras e 
informantes entre o mundo natural e a cultura. Mas, para tanto, foi necessário modificar a noção mesma de 
pele. Sob a era do corpo informatizado a pele passou a ser considerada menos uma barreira entre o ser e o 
mundo e muito mais um “instrumento” de comunicação entre o dentro e o fora e vice-versa: “sobre ela se 
inscrevem as principais funções do organismo”; “tal como 'um cérebro periférico' ela secreta as mesmas 
substâncias que os neurônios, os mediadores químicos responsáveis por nossas faculdades ditas centrais” 
(Dagognet, 1993; pp. 18 e 33).
Ao mesmo tempo, uma extrema valorização dos invólucros corporais ocorrida desde o século 
passado contribuiu, efetivamente, para modificar a concepção de pele. Tal como o cérebro, a pele 
transformou-se num lugar central do corpo humano. “Centro descentrado” (ibid.; p.16). Em plena era de 
sacralização das superfícies, de valorização extrema das aparências, da obsessão pelo “estar em relação”, 
a pele ascende à condição de “sensível” fundamental, tanto na ciência como na mídia. Ela é reinvestida de 
um estatuto quase sagrado, ao mesmotempo em que se toma um objeto industrial, confirmando que a 
intensa valorização da pele é seguida por sua revolucionária banalização. Em 1984, nos Estados Unidos, 
duas crianças que acidentalmente queimaram a pele de quase todo o corpo puderam ser salvas graças à 
nova técnica de transplante de pele. O fato foi considerado um sucesso que marcou época. Três anos mais 
tarde foi criada, em Cambridge, uma “usina única no mundo” (Bader, 1994): a Biosurface Technology. 
Epidermes obtidas in vitro, verdadeiras segundas peles, produzidas a partir de uma amostra de pele 
humana saudável. A pele pode, tal como a roupa, ser feita sob medida.
Todavia, a pela é ao mesmo tempo orgânica e social, mediadora maior entre o fora absoluto e o 
dentro individual. Pele que, numa posição intermediária, exprime o ser, informa-o e emite informações suas. 
Promessa de relação.
Ora, após tornar incomensurável a distância entre a menor parte do ser e a maior parte do universo, 
como não se tornar obsessivo em relação à manutenção do contato? Como rejeitar a emergência de uma 
subjetividade que, assimilada à pele, promete ser ela mesma “a relação” entre o corpo da terra e aquele do 
homem, colocando-o diretamente em contato com o mundo? Talvez em nossos dias, menos do que libertar 
a subjetividade das amarras da matéria orgânica, menos do que liberar as suas potencialidades, 
percebemos ser mais necessário transformá-las em nada mais, nada menos do que uma interface. Uma 
subjetividade que ganhou o lugar privilegiado de estar ao mesmo tempo no corpo e no mundo, como se, 
após séculos de cisão entre o homem e a natureza, pudéssemos agora retomar algum elo perdido.
Mas em vez de um retorno, talvez o que se busque seja muito mais a construção de uma mediação 
entre o corpo e o meio ambiente, entre o corpo e os demais corpos, capaz de aproximá-los ao invés de 
distanciá-los. Pois o reconhecimento da pele como sendo um orgão nobre e banal, nova sede da alma, é 
paralelo à crescente demanda atual em fazer da própria subjetividade um mediador entre a profundidade 
cavada nos corpos e a abertura do universo ao infinito, que desde a época moderna não cessaram de 
distanciar e de distinguir o homem do mundo, e de alimentar a vontade de controle do pensamento sobre o 
corpo.
Na verdade, muito do prolongamento da antiga ambição de controlar os corpos, incluindo o que 
neles existe de subjetivo e de objetivo, poderia, com as novas tecnologias, tomar a forma de um cenário 
apocalíptico, ou, ao contrário, ser investido de um poder redentor, segundo uma linguagem seduzida pelas 
vantagens que tais progressos representam para a humanidade. Principalmente quando se trata de analisar 
a época em que vivemos. Por exemplo, após tanto tempo passado sob a imposição de um único modelo 
identitário, como não se sentir seduzido perante a promessa de liberação dos diversos perfis subjetivos de 
um mesmo indivíduo? Ou então, como não pensar num cenário catastrófico perante a exigência de um 
corpo cada vez mais disponível às experiências da bioengenharias?
Talvez, recorrer à análise histórica, longe de solucionar tais dilemas, possa, em certa medida, nos 
impedir de retirá-los do tempo. E, desse modo, poderemos saber, ao menos, a idade dos nossos medos e 
de nossos sonhos. Não para evitar os primeiros, nem pararealizar os segundos. Mas para entrar em 
contato com eles em outras épocas, quando eles eram expressos por outras mentes, em outras línguas e 
segundo justificativas hoje tornadas, muitas vezes, hilárias. Ambição de entrar em contato; sem dúvida, filha 
do seu tempo.
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Notas
1 Estas transformações foram arroladas de modo claro e sucinto Peter Burke (1992) na apresentação do livro por ele 
organizado.
2 Um rico estudo sobre as práticas de higiene foi feito por Georges Vigarello no livro Le propre et le sale (Paris, Seuil, 
1985), traduzido para a língua portuguesa (Vigarello, 1988).
3 Para uma história das técnicas e práticas de endireitamento do corpo, ver Georges Vigarello (1978).
4 Copérnico não é ainda moderno, pois o universo infinito da física clássica não faz parte de suas concepções. 
Entretanto, o universo de Copérnico é bem maior que aquele de Aristóteles e, doravante, a Terra deixa de ocupar um 
lugar central.
17 [Erro de inserção da nota.]
5 Com a taxonomia, por exemplo, orientou-se o estudo dos seres vivos no sentido de ordenar a diversidade dos seres 
segundo uma extensa classificação, a partir da qual cada um dos elementos possui a sua autonomia, a sua vida 
própria. Na idade clássica cada corpo será considerado uma entidade individual única.
6 Inúmeros historiadores, muitos deles inpirados em Waker Benjamin, trabalharam esse processo de agudização do 
sentimento de identidade durante o século XIX. Um texto rico em detalhes acerca desse tema é o de Alain Corbin 
(1987).
7 Em relação ao Brasil, ver nossa tese de doutorado (Sant'anna, 1994a).
8 A caracterização desses ruídos pode, por exemplo, se resumir na recusa em aceitar a presença da gordura 
acumulada no corpo.
9 No esporte, essas máquinas de treinamento e de controle dos corpos invadem o espaço das academias e também 
aquele dos banheiros das casas, salas e locais de trabalho. Elas adquirem uma aparência mais leve, colorida e 
adaptada às particularidades físicas de cada corpo. Uma história dessas máquinas expressaria, sem dúvida, algumas 
das transformações da subjetividade mencionadas nesse artigo. A este respeito, ver, por exemplo, Pociello (1987a) e 
(1987b).

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