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2019 Introdução à EscrIta dE sInaIs Prof.ª Ma. Mariana Correia 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Prof.ª Ma. Mariana Correia Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: C824i Correia, Mariana Introdução à escrita de sinais. / Mariana Correia. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 215 p.; il. ISBN 978-85-515-0315-7 1. Escrita de sinais. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 372.4 III aprEsEntação Prezado acadêmico, seja bem-vindo ao Livro Didático de Introdução à Escrita de Sinais. Você alguma vez já se deu conta de como a escrita está na base das relações sociais que estabelecemos? Quando queremos comprar algo, seja pequeno como uma meia ou grande como uma casa, utilizamos a escrita como modo de validar aquilo que havíamos combinado através da fala, desse jeito, mesmo através de uma simples nota fiscal ou de um complexo contrato de financiamento imobiliário, é por meio da escrita que nossas relações se constituem. Também a nossa identidade é dada através de um documento escrito como o RG, nossa formação acadêmica é comprovada por certificados, diplomas e históricos, todos eles não passam de simples papéis nos quais as informações foram escritas e certificadas através de assinaturas, também escritas. Assim sendo, além da ideia do senso comum de que a escrita é a forma gráfica que os fonemas recebem, ou seja, o modo de escrever o que está sendo dito, também a escrita tem aprofundamentos, valores sociais e conceitos bem mais importantes do que o de simples registro. Com base nos usos dentro da sociedade em que vivemos, a nossa interação não seria possível sem o uso da escrita como meio e do papel (físico ou digital) como suporte. Este livro tem como objetivo discutir estas e outras questões vinculadas ao desenvolvimento da escrita, sua importância social como representação das relações sociais e qual a relevância da escrita na aquisição da linguagem e garantia de direitos das comunidades surdas. Portanto, neste livro didático, estudaremos questões importantes para a compreensão do desenvolvimento da escrita das línguas de sinais dentro do caminho teórico e metodológico feito a partir dos estudos linguísticos sobre a história da leitura e da escrita; o processo de aquisição da leitura e escrita de sinais; os estudos da linguagem e letramento no contexto da surdez e a estrutura do dicionário em escrita de sinais e em português. Na Unidade 1 discutiremos qual a perspectiva linguística sobre a escrita e a leitura, a relação entre a leitura e a fala, as questões referentes à história do registro escrito das línguas orais, as formas como o registro das línguas de sinais se desenvolveram ao longo do tempo e, por fim, veremos como se deu o desenvolvimento da escrita de sinais, quais os sistemas de escrita de sinais existentes no Brasil. Desse modo, a primeira unidade tem como objetivo principal a compreensão do lugar da escrita nos estudos linguísticos, o conhecimento da história da escrita e sua relação com a fala e a leitura, e o conhecimento das especificidades do desenvolvimento dos sistemas de escrita das línguas de sinais. IV Na Unidade 2 veremos as questões específicas em relação à linguagem e à surdez, iniciaremos com um tópico para discussões sobre alfabetização e letramento, abordando tanto em uma visão mais geral quanto em relação às características específicas dos surdos. Depois, estudaremos os aspectos específicos sobre a relação dos surdos com a escrita, tais como o histórico da educação de surdos, a relação entre a aprendizagem da escrita de língua portuguesa como L2 e de língua de sinais como L1. Ao final desta unidade trataremos dos aspectos sociais do uso de uma língua escrita para a comunidade surda. Para encerrarmos esta unidade, estudaremos os aspectos ligados à escrita, surdez e cidadania, com as discussões sobre direitos, representação e educação linguística. Para encerrar as discussões introdutórias sobre o estudo da escrita da língua de sinais, na Unidade 3, estudaremos tópicos referentes aos processos de aquisição e desenvolvimento de linguagem. Por isso, nesta unidade veremos os assuntos referentes aos períodos de aquisição da linguagem, a construção do sistema simbólico de representação, a relação entre cognição e linguagem e a aquisição de linguagem das crianças surdas. Ainda na última unidade, abordaremos quais são as áreas da linguística ou níveis de análise que aparecem na escrita da língua de sinais. Ao final, abordaremos aspectos gerais sobre a leitura e a escrita das línguas de sinais, tais como a etimologia das línguas de sinais, o registro do dicionário e do registro em escrita de sinais, a relação entre a escrita de sinais e o desenvolvimento de linguagem para as crianças surdas, a estruturação dos elementos linguísticos na escrita de sinais e as bases para a leitura dos textos em SignWriting. Desse jeito, o livro didático que temos em mãos tratará das bases para o estudo da escrita de sinais de modo a fazer discussões que relacionem o conhecimento linguístico sobre a escrita em um geral ao contexto de estudos sobre a surdez e da escrita das línguas de sinais, passando pelos processos de aquisição e registro de linguagem, bem como pelo estudo das questões referentes à alfabetização e letramento em língua de sinais. Ao longo de todas as unidades aparecem sugestões de diferentes materiais para exemplificação ou aprofundamento das discussões e estudos realizados. Assim como notas explicativas e diferentes observações que têm como objetivo explicar, ampliar e desenvolver as discussões apresentadas a seguir. Desejamos que você vivencie momentos de bons estudos e tenha uma ótima leitura! Ah, lembrando que a escrita se realiza como instrumento de registro através da leitura, ou seja, são faces de uma mesma moeda de trocas linguísticas. V Para já iniciarmos o nosso contato com as palavras em escrita de sinais, ao longo deste livro aparecerão algumas delas ao lado da escrita em português ou do desenho do sinal correspondente, podemos encontrá-las/criá-las através do site: <http://www. signbank.org/signpuddle/>. Acesso em: 9 maio 2019. NOTA Prof.ª Ma. Mariana Correia. Sinal da autora Apresentação VI Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA VII VIII IX UNIDADE 1 – HISTÓRIA DO REGISTROESCRITO DAS LÍNGUAS ...................................... 1 TÓPICO 1 – A ESCRITA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA .................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 LINGUAGEM, LÍNGUA E ESCRITA ............................................................................................... 3 3 LINGUAGEM E LÍNGUA ................................................................................................................... 6 4 A RELAÇÃO ENTRE LÍNGUA, ESCRITA E FALA ....................................................................... 9 5 A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE A ESCRITA E LEITURA ....................................................... 11 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 14 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 16 TÓPICO 2 – DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS ............................. 17 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 17 2 A CATEGORIZAÇÃO DO MUNDO PELA LINGUAGEM ......................................................... 17 3 DO PICTÓRICO AO SIMBÓLICO ................................................................................................... 20 3.1 SÍMBOLOS GRÁFICOS MENEMÔNICOS .................................................................................. 22 3.2 ESCRITA FONÉTICA ...................................................................................................................... 29 4 SISTEMAS DE ESCRITA .................................................................................................................... 32 5 ESTRUTURAÇÃO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS ......................................................... 36 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 38 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 41 TÓPICO 3 – REGISTRO PARA AS LÍNGUAS DE SINAIS ............................................................ 43 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 43 2 DESCRIÇÃO .......................................................................................................................................... 45 3 DESENHOS/FOTOS ............................................................................................................................ 47 4 REGISTROS EM VÍDEOS .................................................................................................................. 49 5 GLOSAS/ÍNDICES ............................................................................................................................... 50 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 51 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 52 TÓPICO 4 – ESCRITA DAS LÍNGUAS DE SINAIS ........................................................................ 53 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 53 2 HISTÓRIA DOS SISTEMAS DE NOTAÇÕES DAS LÍNGUAS DE SINAIS .......................... 54 3 DESENVOLVIMENTO DA SINGWRITING ................................................................................... 59 3.1 VALERIE SUTTON E A SW ........................................................................................................... 63 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 68 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 71 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 73 UNIDADE 2 – SURDEZ E LINGUAGEM .......................................................................................... 75 TÓPICO 1 – O SURDO E A ESCRITA ................................................................................................. 77 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 77 sumárIo X 2 HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA DOS SURDOS ................................................ 78 2.1 ORALISMO ....................................................................................................................................... 82 2.2 BIMODALISMO/COMUNICAÇÃO TOTAL .............................................................................. 86 2.3 BILINGUISMO ................................................................................................................................. 89 3 A RELAÇÃO HIERÁRQUICA ENTRE A LIBRAS (L1) E O PORTUGUÊS (L2) PARA OS SURDOS ................................................................................................................................................. 95 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 100 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 102 TÓPICO 2 – ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO E O LUGAR DA ESCRITA DA LÍNGUA DE SINAIS ......................................................................................................................... 103 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 103 2 ALFABETIZAÇÃO: CONCEITUAÇÃO ........................................................................................... 106 2.1 MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO ............................................................................................... 110 2.2 ALFABETIZAÇÃO, BILINGUISMO E ESCRITA DE SINAIS ................................................... 112 2.3 NÍVEIS DE ALFABETIZAÇÃO, ANALFABETISMO E ANALFABETISMO FUNCIONAL ..... 116 3 LETRAMENTO: CONCEITUAÇÃO ................................................................................................. 119 3.1 EVENTOS E PRÁTICAS DE LETRAMENTO ............................................................................. 122 3.2 LETRAMENTOS .............................................................................................................................. 123 4 ATIVIDADES DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO PARA ESTUDANTES SURDOS...... 123 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 129 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 131 TÓPICO 3 – ESCRITA, LEITURA E CIDADANIA ........................................................................... 133 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 133 2 DIREITOS LINGUÍSTICOS ............................................................................................................... 134 3 REPRESENTATIVIDADE LINGUÍSTICA ......................................................................................136 4 EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA ............................................................................................................. 139 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 140 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 144 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 145 UNIDADE 3 – AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E ESCRITA DE SINAIS ................................... 147 TÓPICO 1 – AQUISIÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM .................................... 149 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 149 2 AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM ........................................................................................................ 149 3 PERÍODOS DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM .......................................................................... 153 4 CARACTERÍSTICAS DE AQUISIÇÃO DAS CRIANÇAS SURDAS ........................................ 156 5 A IDADE CRÍTICA DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ........................................................... 163 6 AQUISIÇÃO DE L2 .............................................................................................................................. 165 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 168 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 170 TÓPICO 2 – AS ÁREAS DA LINGUÍSTICA E O REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS DE SINAIS ................................................................................................................................ 171 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 171 2 FONÉTICA/FONOLOGIA .................................................................................................................. 172 3 MORFOLOGIA ..................................................................................................................................... 179 4 SINTAXE ................................................................................................................................................. 186 5 SEMÂNTICA ......................................................................................................................................... 187 6 PRAGMÁTICA ..................................................................................................................................... 188 XI RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 190 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 191 TÓPICO 3 – LEITURA E ESCRITA DE SINAIS ................................................................................ 193 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 193 2 A CRIANÇA SURDA E A ESCRITA DE SINAIS ........................................................................... 193 3 OS DICIONÁRIOS E O REGISTRO DA LÍNGUA DE SINAIS ................................................. 195 4 BASES PARA A LEITURA EM ESCRITA DE SINAIS .................................................................. 199 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 203 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 206 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 208 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 209 XII 1 UNIDADE 1 HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender qual a definição e o papel da escrita na perspectiva dos es- tudos da linguagem; • estabelecer parâmetros acerca da relação existente entre fala e escrita, e escrita e leitura; • conceituar a escrita completa; • relatar o desenvolvimento da escrita das línguas orais ao longo da história; • delimitar as características do sistema silábico de escrita; • perceber a estruturação da escrita das línguas orais; • enumerar as diferentes formas de registro da cultura surda em relação às línguas de sinais; • conhecer a história do desenvolvimento de sistemas de escrita para as línguas de sinais; • observar os diferentes sistemas de escrita de sinais; • delimitar a história e algumas das características estruturais do SignWriting; • entender porque o SignWriting tornou-se o sistema “adotado” por comu- nidades surdas de diferentes países; • entender a evolução da escrita das línguas orais e como estes estudos são importantes para a compreensão do desenvolvimento da escrita das lín- guas de sinais. Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – A ESCRITA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA TÓPICO 2 – DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS TÓPICO 3 – FORMAS DE REGISTRO DA CULTURA SURDA TÓPICO 4 – ESCRITA DAS LÍNGUAS DE SINAIS 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 A ESCRITA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA 1 INTRODUÇÃO Você sabia que existem várias línguas com apenas o registro da memória oral? Claro que menos do que já existiu, mas ainda persistem comunidades nas quais a escrita não tem o mesmo valor, o mesmo peso e a mesma importância que a nossa sociedade dá para ela. Ou seja, o desenvolvimento da escrita não é obrigatoriamente atrelado à fala ou à sinalização das diferentes comunidades. Inclusive, até pouco tempo, as línguas de sinais se desenvolveram plenamente, mesmo sem um sistema de escrita que conseguisse abarcar suas peculiaridades e tivesse o mesmo desempenho social dos sistemas fonéticos e ideográficos das línguas orais. Entretanto, o papel social da escrita é importante não apenas para a comunicação das ideias, mas como modo de afirmação dos direitos sociais aos quais as comunidades inseridas nas sociedades letradas têm direito. Para compreender o papel social da escrita dentro de uma perspectiva linguística, iniciaremos nosso estudo introdutório sobre a escrita das línguas com o tópico que tratará do estudo da escrita como forma de representação da língua, para isso, veremos como as discussões linguísticas delimitam e diferenciam a linguagem da língua e a escrita em relação à fala. 2 LINGUAGEM, LÍNGUA E ESCRITA A Linguística é a ciência que estuda os fenômenos referentes à linguagem, embora desde a antiguidade houvessem estudos sobre a história das línguas, estudos sobre a origem das línguas e obras que procuravam descrever e fixar a gramática das diferentes línguas. Apenas com o estabelecimento da Linguística, uma ciência que tem como objeto de estudos os fenômenos referentes ao ponto de vista estrutural da língua, é que se pode estabelecer o estudo da linguagem humana de modo organizado e cientificamente constituído. Assim sendo, é partir dos estudos de Saussure e da publicação do Curso de Linguística Geral, em 1916, livro produzido a partir das anotações que dois alunos fizeram a partir das aulas dadas porSaussure na Universidade de Genebra, que o estudo da linguagem ganha contornos de ciência. UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 4 Saussure coloca que a matéria e a tarefa da ciência linguística é de: A matéria de Linguística é constituída inicialmente por todas as manifestações da linguagem humana, quer ser [sic] trate de povos selvagens ou de nações civilizadas, de épocas arcaicas, clássicas ou de decadência considerando-se em cada período não só a linguagem correta e a ‘bela linguagem’, mas todas as formas de expressão. Isso não é tudo: como a linguagem escapa as mais vezes à observação, o linguista deverá ter em conta os textos escritos, pois somente eles lhe farão conhecer os idiomas passados e distantes (SAUSSURE, 2012, p. 37, grifo nosso). Assim sendo, Saussure aborda que a matéria, ou seja, aquilo que a Linguística estuda, é a linguagem, sendo que ela é formada pelas manifestações da linguagem humana em todos os povos, civilizações, destacando que não apenas aquilo que é relacionado às manifestações da linguagem humana. Ou seja, Saussure deixa claro que a Linguística se dedica ao estudo de todas as formas de uso da linguagem humana, não apenas aquelas reconhecidas como certas, corretas ou de prestígio social. Assim sendo, a matéria da linguística é a linguagem humana tal qual ela acontece, na observação do fenômeno linguístico sem priorizar o julgamento de valor quanto à correção gramatical. Ainda sobre o assunto que a Linguística aborda, Saussure menciona que o texto escrito pode ser o lugar de observação da linguagem humana, porque a escrita guarda em si as características da linguagem dos idiomas antigos ou distantes do local em que o linguista está realizando a análise. Desse modo, temos uma das características da escrita/texto escrito no contexto dos estudos linguísticos, permitir a observação dos fenômenos referentes à linguagem humana num tempo e espaço diferentes daquele em que o linguista está localizado. Dito de outro modo, a escrita tem como propriedade ser um meio de acesso à linguagem distante no tempo, por exemplo, a Pedra de Roseta é um pedaço de rocha encontrado em 1799 e datado de 192 a.C., nela está escrito o mesmo texto em três línguas diferentes e, por isso, permitiu a decifração do código escrito dos hieróglifos egípcios por Champollion em 1822 e, por consequência, a compreensão de todo um mundo escrito até então escondido na língua escrita (SUPERINTERESSANTE, 2018). Assim, a língua escrita permitiu que os historiadores tivessem acesso às informações de quase 2000 anos antes, exemplificando a característica da escrita como forma de permitir acesso à linguagem humana em um período distante do tempo do estudioso. TÓPICO 1 | A ESCRITA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA 5 FIGURA 1 – DESENHO DE COMO SERIA A PEDRA DE ROSETA COMPLETA COM A DIVISÃO DOS IDIOMAS ESCRITOS NELA FONTE: <http://4.bp.blogspot.com/-iNB8KJVZius/VaXHopMH5oI/AAAAAAAACjo/E_ vNU9875QQ/s640/rosetta.jpg>. Acesso em: 17 jan. 2019. Em relação à escrita proporcionar o acesso à linguagem em diferentes espaços físicos, podemos utilizar como exemplo o estudo que estamos fazendo através do livro didático, que pode ser utilizado em diferentes lugares daquele em que foi escrito. Neste caso, você, como um futuro professor de línguas (um linguista por natureza da profissão) poderia analisar o modo como a linguagem é utilizada neste tipo de material de estudos mesmo que esteja em um espaço físico diferente da pessoa que escreveu o texto. Assim sendo, através da escrita, o estudo da linguagem humana se torna possível a partir dos registros escrito que ultrapassam as fronteiras do tempo e do espaço que a língua falada tem. ESTUDOS FU TUROS Ainda neste tópico veremos as questões referentes às diferenças entre a fala e a escrita. Depois de definir a matéria sobre a qual a Linguística trata, Saussure delimita que a tarefa da ciência linguística deverá ser de: a) fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder abranger, o que quer dizer: fazer a história das famílias de línguas e reconstruir, na medida do possível, as línguas-mães de cada família; b) procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da história; c) delimitar-se e definir-se a si própria (SAUSSURE, 2012, p. 37, grifo nosso). UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 6 Assim sendo, na visão de Saussure, a Linguística tem três tarefas. A primeira delas é a descrição da história das línguas, com o objetivo de perceber qual a história das línguas que são derivadas de uma mesma língua, ou seja, da mesma família linguística, por exemplo, é o caso da Língua Portuguesa, que está incluída na família das línguas neolatinas, tendo em vista que se originou a partir do latim, sendo tarefa da Linguística descobrir quais outras línguas fazem parte desta família e como as línguas se relacionam. Em segundo lugar, o autor coloca que uma das tarefas da Linguística como ciência é localizar as forças, ou seja, os agentes que se relacionam em todas as línguas de forma constante e que englobam a todas elas com o objetivo de deduzir, pela observação, aquilo que aparece durante o uso das línguas para entender o que aconteceu ao longo da história que justifique as características específicas das línguas. Um exemplo disso é a observação do modo como as línguas marcam o sujeito das sentenças, por exemplo, no inglês não são utilizadas estruturas sem sujeito, por exemplo, a sentença (1) não é gramatical em inglês (por isso está marcada com um asterisco indicativo de agramaticalidade), sendo necessário colocar o pronome It para tornar a sentença gramatical, como escrito em (2). Já em português a sentença (3) é gramatical mesmo sem o sujeito expresso na frase: (1) *Rains. (2) It rains. (3) Chove. Por fim, Saussure coloca que a última tarefa da Linguística é delimitar e definir o seu próprio campo de estudos, dessa maneira, a própria ciência linguística tem como incumbência estudar a si mesma de modo a delimitar o que faz parte da sua área de estudos. 3 LINGUAGEM E LÍNGUA Antes de continuarmos com as discussões específicas sobre a escrita, é importante termos em mente que ao relacionarmos aquilo que Saussure coloca como matéria da Linguística e suas tarefas, podemos perceber que o autor utiliza as expressões linguagem e língua. Desse modo, as duas palavras estão relacionadas à Linguística e têm conceitos diferentes, sendo importante vermos brevemente quais as características destas expressões e a que cada uma delas está relacionada. Sobre a linguagem, Saussure coloca que: Tomada em seu todo, a linguagem [humana] é multiforme e heteróclita [eclética]; o cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica; ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe inferir sua unidade (SAUSSURE, 2012, p. 41, grifo nosso). TÓPICO 1 | A ESCRITA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA 7 Ao definir a linguagem desse modo, o autor destaca a característica não previsível, muito variada e que está relacionada a diferentes instâncias, por isso, a linguagem seria impossível de ser o objeto de estudo da linguística, porque tem uma infinidade de manifestações e implicações que podem ser vistas de diferentes modos, não podendo ser relacionada apenas a um tipo de fenômeno. Dito de outro modo, a linguagem humana é abrangente e múltipla. De acordo com Petter (2010, p. 17): “uma pintura, uma dança, um gesto podem expressar, mesmo que sob formas diversas, um mesmo conteúdo básico, mas só a linguagem verbal é capaz de traduzir com maior eficiência qualquer um destes sistemas semióticos [de sentido, de significado]”. Em outras palavras, a compreensão e o sentido que atribuímos às diferentes linguagens necessitada língua para ser traduzida de forma a explicar como compreendemos aquilo que a linguagem, que temos contato, expressa, ou seja, é através da linguagem verbal que damos sentido às demais linguagens. Desse modo, o entendimento que temos das diferentes linguagens expressivas, como a dança, o teatro, a música, a tatuagem, a pintura, a escultura, a mímica, entre outras, passa pela linguagem verbal para que seja atribuído um sentido da experiência que estamos vivenciando ao sermos expostos a estas linguagens. Por isso, não existem interpretações estanques sobre as diferentes linguagens, pois toda a compreensão semiótica passa pelo filtro da linguagem verbal para ser entendida, ou seja, a interpretação das diferentes linguagens é mediada pela linguagem verbal, assim, a língua é uma parte fundamental da linguagem. Ao vincular as tarefas da ciência da linguagem à língua, Saussure (2012) coloca a língua como o objeto concreto de estudo da Linguística e a define do seguinte modo: Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade [da linguagem] nos indivíduos (SAUSSURE, 2012, p. 41, grifo nosso). Assim, a língua faz parte do conjunto que a linguagem engloba, sendo que a língua é essencial para a faculdade da linguagem porque nos permite compreender as diferentes linguagens a que temos acesso. Pois, “a língua, ao contrário [da linguagem] é um todo por si e um princípio de classificação. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação” (SAUSSURE, 2012, p. 41). Ao mesmo tempo que faz parte do conjunto das linguagens, “a língua existe na e para a coletividade” (DUBOIS et al., 1973, p. 261), sendo, por isso, um conjunto de convenções, ou seja, de combinações. Segundo Saussure UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 8 (2012, p. 51): “a língua existe na coletividade sob forma de uma soma de sinais [regras] depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos”. Dito de outro modo, a língua é aquilo que aprendemos na convivência social com as pessoas que a utilizam, por exemplo, as crianças surdas expostas à Libras como língua materna aprendem através do contato linguístico com outros surdos que também utilizam Libras. Dubois et al. (1973) bordam que, de acordo com Saussure, a língua não pode ser mudada pela vontade dos indivíduos, pois por ser socialmente construídas, as mudanças no interior da língua acontecem também socialmente. Talvez você já tenha escutado alguém falar que sabe usar, mas não sabe qual a regra da gramática que se encaixa, por exemplo, a pontuação na língua portuguesa funciona assim, algumas pessoas sabem utilizar, mas raras vezes pensam na regra específica para tal situação. Esse é um exemplo de como a língua é socialmente aprendida, porque as normas de uso não são a mesma coisa que as regras da gramática. Quando falamos em língua, estamos nos referindo àquilo que aprendemos através do contato com a língua de uma determinada comunidade. Por isso, é socialmente constituída. No caso da Libras, provável que você tenha escutado alguém referir- se incorretamente a ela como “linguagem de sinais”. Mas, porque está errado? Pois a Libras é uma parte da linguagem que tem regras próprias construídas socialmente e permite que estruturemos a nossa compreensão sobre as demais linguagens, logo, é uma língua. Sobre a Faculdade da Linguagem, Coelho, Monguihott e Martins (2009, p. 5, grifo nosso) colocam que: Embora outros animais de uma forma ou de outra se comuniquem, o homem é a única espécie que combina um certo número de elementos de acordo com determinados princípios para formar sentenças. Essa capacidade que nasce conosco [seres humanos] e tem a ver com o tipo específico de estrutura e organização da mente humana é denominada Faculdade da Linguagem. NOTA TÓPICO 1 | A ESCRITA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA 9 DICAS Como forma de memorizar a diferença entre esses dois conceitos, é interessante utilizar as características dos sinais em Libras para LINGUAGEM e LÍNGUA, porque, a nosso ver, eles agregam algumas das características que vimos anteriormente. Primeiro, observemos o sinal para “linguagem” na fi gura a seguir. FONTE: Capovilla et al. (2017, p. 1685) Neste sinal o movimento parece trazer algo que parte da boca em direção à mente do sinalizador, ou seja, algo que foi enunciado e compreendido pela pessoa através da interpretação feita na sua mente. Na fi gura a seguir, temos a sinalização da palavra “língua”, que, de acordo com Capovilla et al. (2017, p. 1683, grifo do original): “trata-se de um sinal formado pelo morfema Fala – Comunicação Oral codifi cado pelo local de sinalização na região da boca [...]”. É um movimento realizado para fora, lembra a característica de comunicação social que a língua tem. FONTE: Capovilla et al. (2017, p. 1683) 4 A RELAÇÃO ENTRE LÍNGUA, ESCRITA E FALA Ao apresentar a oposição feita por Saussure entre língua e fala, Dubois et al. (1973), mencionam os seguintes pontos: 1 – A língua é coletiva, a fala, individual. 2 – A língua é aprendida de forma passiva, a fala é uma ação livre e de criação. 3 – A língua não é criada nem modifi ca na individualidade, a fala é um lugar da liberdade do indivíduo. UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 10 A partir disso, Dubois et al. (1973, p. 262, grifo do autor) concluem que, para Saussure: A língua mostra-se, pois como um conjunto de meios de expressão, como um código comum ao conjunto de indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade linguística; a fala, ao contrário, é a maneira pessoal de utilizar o código; ela é, diz F. DE SAUSSURE, “a parte individual da linguagem”, o domínio da liberdade, da fantasia, da diversidade. Desse modo, para Saussure (2012, p. 51) a língua e a fala estão “[...] estreitamente ligados[as] e se implicam mutuamente; a língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta [fala] é necessária para que a língua se estabeleça [...]”. Isso porque a língua está depositada no cérebro do usuário da língua, e será através da realização da fala/sinalização que estas regras da língua são utilizadas de modo a produzir sentido e estabelecer a comunicação. Por exemplo, o sinal referente a “casa” faz parte da Libras, ou seja, da Língua Brasileira de Sinais, e está depositado no cérebro das pessoas que utilizam essa língua. Para que possamos observar de que modo esse sinal funciona dentro dessa língua, precisamos observar como acontece a fala/sinalização dele em diferentes contextos. Isso porque a materialização da língua acontece no momento da fala. Desse modo, é através das regras da língua que o sinal da palavra “casa” ganha significado, mas só temos acesso à Libras através da sua materialidade que é a fala/sinalização. Você pode se perguntar: “onde a escrita entra nessa relação?”. Para Saussure (2012), o objeto do estudo da Linguística é a língua e o objeto linguístico de estudo é a fala. Ainda, segundo ele, a escrita tem como única razão a representação que ela faz da língua, também coloca que a escrita é a imagem da fala. Ao tentarmos observar a escrita é como se fizéssemos a observação de uma fotografia do rosto de alguém e não o próprio rosto da pessoa. Contudo, como já vimos anteriormente, Saussure também reconhece que o suporte da escrita permite o estudo ao longo do tempo e do espaço, bem como o registro das línguas antes da invenção das tecnologias que permitissem o registro direto da fala. É interessante compreendermos que, no momento histórico em que ocorramos pensamentos de Saussure, a escrita tinha grande relevância para os estudos feitos sobre a língua até então, principalmente, em um contexto normativo de manutenção das regras gramaticais. Por isso, ao colocar a fala no centro das discussões da Linguística, o linguista apresenta uma perspectiva completamente diferente daquela que os estudos sobre a língua vinham apresentando. Assim sendo, a escrita e a fala estão intimamente relacionadas entre si e ambas apresentam um papel em relação à língua, a fala é o lugar de realização da língua, já a escrita é o modo de representação da língua. Como não é possível ter TÓPICO 1 | A ESCRITA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA 11 acesso direto à língua depositada no cérebro do indivíduo, não é possível para a escrita representar diretamente a língua, logo, a escrita se organiza a partir da fala para poder exercer o seu papel como representação da língua. 5 A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE A ESCRITA E LEITURA A leitura e a escrita estão relacionadas de modo interdependente porque não é possível a realização de uma sem a existência da outra. Lembrando do exemplo da Pedra de Roseta, mencionado anteriormente, a tradução da escrita dos hieróglifos egípcios só foi possível porque o texto estava escrito em grego e ainda existiam pessoas capazes de ler o grego escrito. Logo, caso não existissem mais pessoas que soubessem ler em grego, a escrita da Pedra de Roseta não seria traduzida e não teríamos acesso ao conhecimento dos hieróglifos egípcios. Deste modo, a escrita só faz sentido se existirem pessoas capazes de fazer a leitura daquele texto escrito. Porém, fazer a leitura é muito mais do que apenas juntar as letras (no caso das línguas orais) ou sinais (no caso das línguas de sinais), porque a língua que a escrita representa também é mais do que uma simples junção de vocabulário. De acordo com Leffa (1999 apud COSSON, 2016, p. 40-41, grifo nosso), a leitura é realizada em três etapas: A primeira etapa, que vamos chamar de antecipação, consiste em várias operações que o leitor realiza antes de penetrar no texto propriamente dito. Nesse caso são relevantes tanto os objetivos da leitura [...] quanto os elementos que compõem a materialidade do texto. [...] A segunda etapa é a decifração. Entramos no texto através das letras e das palavras. Quanto maior é a nossa familiaridade e o domínio delas, mais fácil a decifração [...]. Denominamos a terceira etapa como interpretação. Embora a interpretação seja com frequência tomada como sinônimo de leitura, aqui queremos restringir seu sentido às relações estabelecidas pelo leitor quando processa o texto. [...] A interpretação depende, assim, do que escreveu o autor, do que leu o leitor e das convenções que regulam a leitura em uma determinada sociedade. Interpretar é dialogar com o texto tendo como limite o contexto. Esse contexto é de mão dupla: tanto é aquele dado pelo texto quanto dado pelo leitor; um e outro precisam convergir para que a leitura adquira sentido. Assim sendo, a leitura envolve três etapas, uma que avalia onde aquele texto está inserido, se num jornal, num livro de receitas, num texto acadêmico ou se é um bilhete familiar, porque cada uma dessas materialidades do texto influencia no modo como a interpretação é feita. Depois, é a etapa da decifração, ou seja, a parte em que analisamos os itens gráficos que compõem o texto, vemos quais as palavras que formam o texto escrito e como elas se relacionam. Por fim, a interpretação é o momento em que aquela pessoa que lê o texto estabelece as relações entre o texto e o contexto, uma mesma palavra ou expressão pode ter UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 12 sentidos diferentes de acordo com o tipo de texto (materialidade), quem foi o autor dele, onde foi encontrado. Um exemplo bem simples: um bilhete colado numa folha do seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) tem a expressão fonte diferente de um bilhete deixado pelo cara que consertou o seu computador. Em uma leitura mais vinculada aos processos internos do texto, ler é compreender todos os seis níveis linguísticos que, segundo Barreto e Barreto (2015, p. 47), estão envolvidos nos processos de: “[...] aprender utilizar ou ensinar a Escrita de Sinais [...]” ou qualquer outra língua escrita, são eles: (1) fonético, (2) fonológico, (3) morfológico, (4) sintático, (5) semântico e (6) pragmático. Mais adiante, neste Livro Didático, estudaremos com mais detalhes estes aspectos. Neste momento, é importante ficar claro que a escrita apresenta mais aspectos do que o morfológico (vocabular), desse modo, a leitura também necessita da compreensão dos demais aspectos envolvidos além do fonético/fonológico (sons/ partes que constituem os morfemas). Além desses níveis, ou partes da escrita, é importante termos em mente que a leitura possui uma dimensão que: [...] podemos compreender a leitura como um ato, ou seja, a noção de que ela é uma forma de agir sobre e a partir daquilo que está escrito. Através deste sentido, podemos relacionar uma visão dialógica da leitura, em que autor, obra e leitor se encontram através do texto, sendo a escrita o meio de encontro histórico e social. Sendo que a leitura ao mesmo tempo em que modifica o leitor é modificada por ele no momento do contato entre leitor e obra num dado momento histórico (CORREIA, 2018, p. 28). Pode-se afirmar que, a leitura é a forma como dois sujeitos históricos entram em contato a partir da escrita, logo, ampliando a dimensão colocada no início deste tópico, que destacava o texto escrito como forma de observação dos fenômenos linguísticos em diferentes tempos e espaços. Vamos encerrar esta seção com um exemplo concreto envolvendo uma receita de família para clarear um pouco mais essas distinções entre: língua, fala, escrita e leitura. A famosa receita de pudim de ovos e leite faz parte de muitas famílias, vem passando de gerações para gerações. E, justamente por este fato, muitas vezes os nossos avós não têm a receita escrita e nem a quantidade certinha de cada ingrediente, apenas meio aproximada e sem muitas medidas, tudo meio “no olho”. Alguns acham isso estranho, mas, mesmo assim eles conseguem passar as medidas aproximadas e, desde então, os netos passam a fazer pudim também, com isso, passam a perceber que as quantidades são no “olho” mesmo, pois dependem da qualidade dos ingredientes, da força da chama do fogão, da nossa “mão” na hora e etc. Neste momento, você, caro acadêmico, deve estar querendo saber como essa história do pudim se relaciona com o nosso conteúdo, pois bem, o pudim (ou qualquer outra IMPORTANT E TÓPICO 1 | A ESCRITA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA 13 receita passada de geração em geração) é um ótimo exemplo concreto para entendermos os conceitos e a relação entre língua, fala e escrita. Olhem só: • Receita de pudim na cabeça dos nossos avós é como se fosse a língua na nossa cabeça, pois, sabemos usar, sabemos como funciona, mas não sabemos direito como explicar as regras, normas e construções que estruturam ela. Além disso, o único jeito de tirar a receita da nossa cabeça é explicar ela para alguém ou fazê-la, fora isso, a receita segue guardadinha na cabeça da gente, sem se materializar no mundo concreto. Neste exemplo, a língua é um pudim guardado apenas na cabeça de nossos avós. • Ao ser feito o pudim é semelhante à fala: é a realização ou materialização da língua (receita na cabeça) e apresenta variáveis dentro das regras estabelecidas por ela, ou seja, nós até inventamos umas coisas, mas não colocamos primeiro para assar os ingredientes separados, porque a fala (o pudim sendo feito) precisa seguir as regras básicas da língua (receita na cabeça dos nossos avós), neste caso, misturar as coisas antes de colocar para assar. • Uma foto do pudim (como a imagem a seguir, postada no Instagram): pode ser comparada à escrita, porque apresenta a língua (receita na cabeça dos nossos avós), mas precisa da fala(realização concreta do pudim) para ter a materialidade, ou seja, não teria como tirar uma foto de um pudim que estivesse apenas na cabeça de alguém. Assim sendo, o pudim só pode ser registrado (escrita) porque existiu fala e só existiu porque a receita estava na cabeça de alguém (língua). FONTE: <https://www.instagram.com/p/Br0WWlOBo0JahYGbVpx-f0ZBE9lNUKMkTSls4Y0/>. Acesso em: 28 jan. 2019. No momento em que você olhou a foto do pudim (escrita) você foi capaz de fazer a leitura dela, ou seja, ao olhar percebeu, pelas suas experiências anteriores, que isso é um pudim e, através da foto (escrita) pode ter acesso à materialidade (fala) daquela receita de pudim da cabeça dos nossos avós (língua), ou seja, houve interação, mesmo que estivermos em tempo-espaço diferentes. 14 Neste tópico, você aprendeu que: • A matéria da Linguística é a linguagem humana. • As tarefas da ciência da linguagem são descrever as famílias linguísticas, localizar as forças em ação que explicam as características particulares das línguas ao longo da história. • O texto escrito permite a observação dos fenômenos referentes à linguagem humana em um tempo e espaço diferentes daquele em que o linguista está localizado. • Linguagem e língua são expressões que possuem conceitos diferentes. • A linguagem humana é tudo aquilo a que podemos atribuir sentido, por isso, ela tem inúmeras facetas e manifestações, é uma faculdade, uma habilidade humana, que só pode ser vista nas realizações concretas que a compõe, a língua faz parte dela. • A língua é a parte essencial da linguagem humana, também é um produto social observável, por isso, a Linguística tem suas tarefas relacionadas à língua e não à linguagem humana. • A língua tem um caráter coletivo social, a fala tem um caráter individual, pois é o modo como o indivíduo usa a língua de modo particular. • A língua faz com que a fala possa ser entendida e a fala faz com que a língua se estabeleça no mundo concreto. • Para Saussure, a escrita é uma representação da língua, uma fotografia estática de um rosto, enquanto a fala é o olhar para o rosto ao vivo. • Não é possível ter acesso direto à língua depositada no cérebro do indivíduo, então não é possível para a escrita representar diretamente a língua, logo, a escrita se organiza a partir da fala para poder exercer o seu papel como representação da língua. • A fala é o lugar de realização da língua, já a escrita é o modo de representação da língua. RESUMO DO TÓPICO 1 15 • A escrita e a leitura são intimamente ligadas, pois a realização da escrita só se concretiza no momento da leitura, que, mais do que decodificação é a compreensão da língua escrita utilizada em todas as suas características e um diálogo entre os sujeitos históricos envolvidos por meio dela. • A leitura envolve três etapas: antecipação, decifração e interpretação. 16 1 Leia as seguintes afirmações: I- A língua faz parte do conjunto de linguagens humanas. II- A língua é representada pela fala. III- A língua é socialmente constituída. IV- A língua se realiza através da fala. V- A língua está relacionada, de modos diferentes, com a fala e a escrita. Marque a alternativa que apresenta apenas as afirmações corretas: a) ( ) I, II, III, IV. b) ( ) II, III, IV, V. c) ( ) I, III, IV, V. d) ( ) II, IV, V. e) ( ) I, IV, V. 2 A partir do que você estudou neste tópico, em sua opinião, por que a sinalização das línguas de sinais pode ser equiparada ao conceito de fala utilizado por Saussure para as línguas orais? 3 Após refletir sobre a famosa receita de pudim, qual outro exemplo você poderia pensar que funcionasse também como uma forma concreta de exemplificar os conceitos de língua, fala, escrita e leitura e as relações entre eles? AUTOATIVIDADE 17 TÓPICO 2 DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO No último tópico, vimos as características da escrita na visão da linguística de Saussure, a partir disso, estudamos a base teórica da ciência da linguagem e vimos a relação entre os conceitos de linguagem, língua e escrita. Neste segundo tópico, estudaremos alguns aspectos referentes à história e ao desenvolvimento da escrita das línguas orais. É interessante conhecermos como desenvolveu-se a escrita para as línguas orais antes de estudarmos a escrita de sinais, porque a sistematização da escrita das línguas de sinais se deu a partir de um contexto histórico e social, em que a escrita das línguas orais está organizada naquilo que Fischer (2009) chama de escrita completa. Ou seja, embora a escrita das línguas de sinais tenha se estruturado a partir de um contexto específico, ela se inscreve dentro da história da escrita das línguas humanas, por isso, é necessário que conheçamos como ocorreu o avanço da estruturação da escrita ao longo da história antes de tratarmos especificamente da escrita da língua de sinais. Iniciaremos o Tópico 2 abordando a importância da escrita para o desenvolvimento da humanidade, retomando algumas reflexões sobre a conceituação da escrita e discutindo a escrita completa (FISCHER, 2009). Após, estudaremos como desenvolveu-se a escrita do pictograma ao símbolo, veremos quais os sistemas de escrita e suas características. Por fim, discutiremos alguns aspectos sobre a estrutura da escrita das línguas orais. 2 A CATEGORIZAÇÃO DO MUNDO PELA LINGUAGEM Muitos estudiosos tentaram definir a escrita, porém, Fischer (2009) aponta que uma definição específica que abranja o passado, o presente e as possibilidades futuras da escrita seria complicada de se fazer. Como vimos acima, mesmo Saussure (2012) define a escrita a partir de sua relação com os demais aspectos da linguagem humana não delimitando ela de modo individual e a colocando em uma relação de representação da língua apenas a partir da fala. Ou seja, não faz uma definição da escrita por si mesma. Fischer (2009), para fugir disso que chama de “[...] ‘armadilha’ de uma definição inteiramente formal, porque a escrita tem sido, e é inúmeras coisas distintas para inúmeros povos distintos em incontáveis épocas diferentes” UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 18 (FISCHER, 2009, p. 14), e, tendo em vista o objetivo que se propõe ao escrever sobre a história escrita, prefere delimitar as três características que, segundo ele, definem a escrita completa: • A escrita completa deve ter como objetivo a comunicação. • A escrita completa deve consistir de marcações gráficas artificiais feitas numa superfície durável ou eletrônica. • A escrita completa deve usar marcas que se relacionem convencionalmente para articular a fala (o arranjo sistemático de sons vocais significativos) (FISCHER, 2009, p. 14, grifo nosso). Para que a escrita seja completa, na visão de Fischer (2009) é necessário que tenha como meta a comunicação, ou seja, um indivíduo que use a comunicação para passar informação, comunicar algo para outra pessoa ou grupo de pessoas. Também é necessário que o suporte dessas marcas artificiais, quer dizer, feitas pelo homem, seja durável como argila, pedra, papel ou por meio eletrônico. Por fim, o autor coloca que essas marcas precisam relacionar-se convencionalmente com a finalidade de articular a fala, neste caso, a palavra convencionalmente faz referência às regras ou convenções sociais a que a escrita obedece enquanto forma de registro da fala, por isso, do arranjo sistemático, ou seja, dentro de sons vocais significativos. Esses três critérios de escrita completa combinam com aquilo que havíamos discutido até então sobre a escrita e abordam a comunicação, o suporte e a característica de ser uma convenção socialmente estabelecida que havíamos discutido anteriormente. Exatamente por sua característica social é que “a escrita muda à medida que a humanidade se transforma. É uma dimensão da condição humana” (FISCHER, 2009, p. 10). À vista disso, a escrita acompanha e se modifica na mesma proporção da sociedade em que está inserida, vistoque ela representa uma das facetas da linguagem humana. Servido como forma pela qual a linguagem humana (por consequência a língua, a fala e a escrita) classifica, categoriza e organiza o mundo. Para exemplificar como a linguagem categoriza o mundo, Fiorin (2010) apresenta a seguinte situação: inicialmente, podemos imaginar uma região onde existem os seguintes animais representados a seguir: “[...] oito animais, quatro grandes e quatro pequenos, quatro com cabeça quadrada e quatro com a cabeça redonda, quatro com a cauda reta e quatro com a cauda enrolada” (FIORIN, 2010, p. 57). TÓPICO 2 | DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS 19 FIGURA 2 – REPRESENTAÇÃO DE OITO ANIMAIS DE UMA REGIÃO FONTE: Fiorin (2010, p. 57) Vamos imaginar que na região em que estes animais vivem existem três povos diferentes que até um dado momento não haviam percebido a existência destes oito animais, ou seja, era como se estes animais não existissem para as pessoas que fazem parte das três comunidades. Porém, um dia, durante um momento de colheita povos percebem a existência destes bichos, assim sendo, os animais passam a existir para as pessoas dos três povos. O Povo 1 nota que os animais que têm o corpo menor comem cereais e os grandes não comem. Após perceber isso o povo 1, ignorando as demais características que diferenciam os bichos, dão o nome de gogos para os animais A, B, C e D, já os animais E, F, G e H ganham o nome de gigis. Desse modo, “Faz- se, então, abstração das demais diferenças entre eles [os animais] e produz-se uma categorização [classificação] dessa realidade” (FIORIN, 2010, p.57). O Povo 2 nota outra característica dos bichos e nota que os de cabeça redonda não mordem e os de cabeça quadrada fazem isso, logo, classificam de modo diferente a realidade dos mesmos animais observados pelo Povo 1. Na categorização do Povo 2, os animais que mordem (B, D, F e H) recebem o nome de dabas e os que não mordem (A, C, E e G) são chamados de dobos. Por fim, o Povo 3 tem uma experiência diferente com os animais, pois percebe que os animais de cauda enrolada caçam serpentes e os de cauda reta não fazem isso. Desse modo, organizam a realidade encontrada de um modo completamente diferente daquele feito pelos Povos 1 e 2, logo, dão o nome de busas para os animais A, B, E e F e busadas para os animais C, O, G e H. Refletindo sobre este exemplo percebemos que os animais, ou seja, a realidade encontrada pelos Povos 1, 2 e 3 foi categorizada a partir das experiências que cada um dos povos teve através da observação dos animais. Logo, a linguagem humana serviu como forma de organizar a realidade a partir do contato que os povos tiveram com aquilo que se apresentou a eles. De acordo com Fiorin (2010, p. 57): UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 20 A mesma realidade, a partir de experiências culturais diversas, é categorizada diferentemente. Nenhum ser no mundo pertence a uma determinada categoria, os homens é que criam categorias e põem nelas os seres. Isso não acontece apenas com os seres concretos. Imaginemos que uma pessoa mata outra. Essa ação pode ser categorizada como assassinato, como acidente, como cumprimento do dever, como ato de heroísmo, como perda temporária da razão. Essa categorização determina nossas atitudes: prendemos o assassino, perdoamos quem foi vítima das circunstâncias; elogiamos o policial que matou o sequestrador que mantinha pessoas como reféns, porque cumpriu seu dever; damos uma medalha ao herói que, na guerra, matou o inimigo. Como dissemos, a língua não é uma nomenclatura aplicada a uma realidade cuja categorização preexiste à significação. Dessa maneira a realidade se classifica através da linguagem humana e, por continuidade, da língua. Língua essa que ganha existência material pela fala e é representada pela escrita. Ou seja, a nossa percepção da existência não apenas é perpassada pela língua, mas ela se estrutura a partir da língua. Nesta perspectiva, a importância da escrita ganha força por sua característica de permanência, de acordo com Pereira e Fronza (2006, p. 1 apud BARRETO; BARRETO, 2015, p. 54): Colocar o que pensamos e entendemos em um material perene e estático proporciona a chance de refletirmos sobre a própria linguagem e sobre os nossos pensamentos, permite que revisitemos formas antigas de expressão e possibilita reflexão sobre a forma como nos expressamos e sobre a adequação da nossa linguagem em expressar nossos sentimentos. Logo, a escrita não apenas tem sua importância em nossa sociedade como modo de organização da realidade, mas como registro dos diferentes modos de percepção da realidade ao longo do tempo. Por isso, Fischer (2009, p. 13) coloca que “As raízes desse sistema se encontram na necessidade fundamental dos seres humanos de armazenar informação para comunicar, a si mesmos ou a outros, distantes no tempo e no espaço”. 3 DO PICTÓRICO AO SIMBÓLICO A história da escrita confunde-se com o desenvolvimento dos modos através dos quais a humanidade se utilizou para registrar aquilo que era importante para a vida cotidiana. Na compreensão apresentada por Barreto e Barreto (2015, p. 54) a história da humanidade foi drasticamente afetada a partir do desenvolvimento da escrita: A história [da humanidade] pode ser dividida em antes e depois da escrita. Segundo Higounet (2003), até hoje, sua origem é um mistério. Diferentes civilizações utilizaram diversas formas e artifícios para escrever suas mensagens. Seu desenvolvimento se deu ao longo de muitos séculos até chegar à imprensa. E desde então tem se desenvolvido cada vez mais. TÓPICO 2 | DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS 21 Continuando nesta perspectiva, os autores explicam que a importância da escrita para a história da humanidade se deve à capacidade dela de dar continuidade às descobertas, invenções e ao conhecimento acumulado pela humanidade ao longo de sua história. Além disso, os autores também colocam que: Se a humanidade caminhou a passos tão largos nos últimos séculos e agora parece correr, é porque, tal como reconheceu Isaac Newton, estamos ‘de pé sobre ombros de gigantes’ e, em grande medida, isto se deve à escrita. É imensurável o desenvolvimento social, neurológico e linguístico, dentre tantos outros aspectos, que a escrita traz ao ser humano (BARRETO; BARRETO, 2015, p. 54). Ou seja, a escrita, na visão destes autores, através do registro do conhecimento acumulado ao longo do tempo, permite a continuidade dos estudos, pesquisas, obras literárias e conhecimento histórico, científico e literário. Isso porque, ao ter um ponto de referência, os indivíduos podem desenvolver seu pensamento em relação a esses conhecimentos, concordando, refutando, contrapondo ou extrapolando aquilo que foi desenvolvido anteriormente. Dessa maneira, Barreto e Barreto (2015) colocam a escrita na dimensão de sua importância não apenas como registro, mas como intertexto em que os diferentes textos se entrecruzam em referências de leitura, de registro e de escrita. Por exemplo, quando um detetive literário como Sherlock Holmes chega até os dias atuais através dos livros de Sir Arthur Conan Doyle e influencia Jô Soares na escrita de seu livro O Xangô da Backer Street, no qual o detetive vive uma aventura no Brasil e acaba passando por situações muito diferentes. Assim, Jô pode redimensionar a personagem Sherlock Holmes porque o registro escrito permitiu que ele tivesse acesso às histórias do famoso detetive e, por isso, pode imaginar uma nova aventura para ele. Atualmente, através do desenvolvimento das tecnologias que nos permitem acesso remoto a um mundo de possibilidades com o uso de diferentes suportes virtuais, estamos em um contexto no qual as conexões são estabelecidas em hipertextos, de acordo com Correia (2018, p. 133): O conceito de hipertexto deriva da intertextualidade, mas a amplia a uma rede infinita de possibilidades, o que combina com as vivências da atualidadeatravés do uso das TICs [tecnologias de informação e comunicação] e serve de base para a elaboração de uma proposta de leitura em que os elementos responsivos dos enunciados se misturam e interligam de diferentes maneiras, suportes e mídias permitindo diferentes caminhos para a exploração da obra literária [ou qualquer outro conhecimento]. Se pensarmos nos modos como nos relacionamos em nossa sociedade atualmente, veremos que, cada vez mais, a escrita permeia as nossas relações sociais, de estudo e de trabalho. Para uso das redes sociais não basta termos um telefone inteligente com acesso à internet, também precisamos compreender as orientações escritas de uso para que nossa experiência seja efetiva; para estudar, UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 22 você precisa ter acesso ao conhecimento acumulado até então dentro da sua área e isso pode ser feito de vários modos, mas todos eles serão mediados, de algum modo pela escrita, seja via Livro Didático, objetos de aprendizagem, questões para estudos ou, até mesmo, dos vídeos dos professores que também são permeados pelo conhecimento acumulado através da escrita. DICAS Você conhece a história do livro O diário de Anne Frank? É o registro que a menina Anne fez enquanto esteve em um esconderijo durante a Segunda Guerra Mundial. Nele, a menina documenta não apenas os seus conflitos, mas também a tensão e perigo da época. A partir da sua publicação tivemos acesso a um relato em primeira pessoa sobre um dos piores períodos da humanidade, marcado pelo holocausto dos judeus. Existem várias adaptações em quadrinhos e filmes deste registro feito em formado de diário, assim, a escrita da adolescente judia, morta em um campo de concentração aos 15 anos, chega até nós mais de 70 anos depois, devido ao registro permitido pela escrita. Entretanto, a escrita não foi um sistema que nasceu pronto, ela se desenvolveu até chegar à escrita completa (FISCHER, 2009), aquela que, como vimos anteriormente, tem como objetivo a comunicação, um conjunto de marcações gráficas artificiais em um suporte durável e se relaciona por convenção para articular a fala. De acordo com o autor: Antes da escrita completa, a humanidade usou uma riqueza de símbolos gráficos e mnemônicos (ferramentas de memória) de vários tipos para acumular informações. A arte na pedra sempre possuiu um repertório de símbolos universais: antropomorfos (imagens humanizadas), flora, fauna, o sol, estrelas, cometas e muito mais, incluindo incontáveis desenhos geométricos. Na maior parte, eram reproduções gráficas do mundo físico. Ao mesmo tempo, elementos eram usados em contextos linguísticos também, como registros em nós, pictográficos, ossos ou paus entalhados, bastões ou tabuas com mensagens, jogos de cordas para cantos, seixos coloridos etc. ligando objetos físicos com a fala. Por milhares de anos, a arte gráfica e esses elementos mnemônicos se desenvolveram em certos contextos sociais (FISCHER, 2009, p. 15). 3.1 SÍMBOLOS GRÁFICOS MENEMÔNICOS Fischer (2009) afirma que os elementos gráficos desenvolvidos nos mais diferentes contextos sociais se fundiram em símbolos gráficos mnemônicos, e destaca alguns conjuntos de símbolos. A seguir, veremos algumas das formas de registros desses símbolos gráficos citados pelo autor: TÓPICO 2 | DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS 23 • Registros com nós: muitos povos utilizam como modo de registro um sistema de nós mais ou menos complexos que podiam ser simples e em uma corda única ou complexos e coloridos com o uso de cordas que se ligavam. Dentre os diferentes povos que utilizaram este modo de registro foi o Quipu inca que chegou até nós com um grupo significativo de exemplos. O Quipu ou Guipu era um complexo modo de contabilidade que representava não apenas as quantidades numéricas, mas também, supõe-se, diversas mercadorias através de cores diferentes. Ainda de acordo com Fischer (2009, p. 16): “os incas do Peru antigo usavam elementos mnemônicos quase exclusivamente para alcançar o que a escrita alcançou em contextos iguais ou semelhantes em outras sociedades”. Contudo, mesmo que os nós tenham como objetivo a comunicação, os fios não preenchem os demais requisitos para serem classificados como escrita completa, pois não são marcas gráficas artificiais feitas em suporte durável, nem têm uma relação convencional com a articulação da fala. FIGURA 3 – EXEMPLO DE REGISTRO DE NÓS QUIPU A – NÓS SEM SOMATÓRIO B – NÓS COM SOMATÓRIO FONTE: A <https://bit.ly/2VyIBnH>. Acesso em: 23 jan. 2019. B <https://bit.ly/2YmPwNC>. Acesso em: 10 maio 2019. Observe que, na figura A, aparece o registro de números individualmente, e, na figura B, foi inserido um fio amarrado ao último número simples da direita para registrar o somatório dos números anteriores. Segundo Fischer (2009, p. 17): “registros com nós são um elemento mnemônico muito mais versátil do que simples varetas com talhos e bastões entalhados. Ao permitir maior variedade e complexidade de categorias, podem facilmente ser ‘apagados’ ou ‘reescritos’ com novos laços”. Essa característica que permite certa reorganização das informações é uma qualidade muito interessante para pensarmos o desenvolvimento da escrita como forma de lembrete ou registro de informações referentes à contabilidade e informação e referente à quantidade de objetivos, assim, a escrita se desenvolve através de sua principal característica: UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 24 a comunicação de informações. Logo, o início de seu desenvolvimento está vinculado ao registro das quantidades de animais, objetos, mercadorias e demais coisas contáveis que apresentassem uma necessidade de registro desta informação. • Entalhes: existem registros de marcações, entalhes ou símbolos gráficos feitos de modo intencional há milhares de anos. Fischer (2009) destaca que, mesmo que os entalhes sejam claramente marcas feitas com algum propósito específico, este propósito se perdeu ao longo dos anos e não é claramente possível de se compreender para saber, com certeza, qual seria. Além disso, o autor também afirma que alguns dos artefatos descobertos datam de 100 mil anos atrás. Como exemplo, ele destaca os ossos de Ishango do Zaire, que, ao serem contados, chegam a uma quantidade que possivelmente indica os ciclos lunares. No que se refere a nossa discussão sobre escrita, os entalhes são importantes porque evidenciam uma forma de guardar informações, porém ainda não são considerados escrita completa porque não são passíveis de serem lidos de modo articulado. Conforme Fisher (2009, p. 18) aborda: “O que é importante é que dezenas de milhares de anos atrás, as marcas gráficas, ainda que primitivas, provavelmente registravam algum tipo de percepção humana, por alguma razão. Isso era armazenagem de informação”. FIGURA 4 – OSSO DE ISHANGO DO ZAIRE (FORMA DE NOTAÇÃO NUMÉRICA OU CALENDÁRIO) FONTE: <https://1.bp.blogspot.com/-HuAUHI9UfU8/V3BE4Jt46AI/AAAAAAAAJZQ/ KNYp2l7GWjA-6IMKzdfQGfOulCGm_f9cACKgB/s1600/Osso%2Bde%2BIshango.PNG>. Acesso em: 25 jan. 2019. • Pictografia: embora entalhes e nós possam fazer referência a lembretes, números ou categorias, as imagens podem transmitir um maior grau de detalhamento das características de um objeto (FISCHER, 2009). “A necessidade de transmitir uma variedade maior de informação pontual, além das citadas [categorias, números e lembretes], registrando com um ou mais símbolos pictóricos – isso é pictografia. A pictografia é um casamento fortuito entre marcas e elementos mnemônicos” (FISCHER, 2009, p. 19). TÓPICO 2 | DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS 25 Isto posto, a pictografia é, de acordo com o autor citado, uma junção entre o uso de marcas artificiais feitas para a comunicação e de elementos que servem para registro ou memória dos acontecimentos. Ainda segundo Fischer (2009), algumas pinturas rupestres aparentam ter como objetivo a comunicação através de pictogramas,ou seja, desenhos que não evidenciam apenas uma forma de registro de imagem, mas que aparentam ter como meta relatar algo através de registro. Na figura a seguir temos a reprodução de um desenho que Fischer (2009) coloca em seu livro. Nesta imagem aparece o desenho de um cavalo rodeado daquilo que, para nós, seriam letras “P”. Este desenho está localizado na caverna Les Trois Frères, no sul da França, e seu significado não é conhecido por nós. Mesmo assim, a possibilidade de que estes símbolos entalhados em torno do animal tenham como objetivo comunicar algo, talvez o som do bicho ou parte de uma história envolvendo o cavalo, parece ser bastante concreta. FIGURA 5 – ARTE RUPRESTRE: CAVALO ENTRALHADO NA CAVERNA LES TROIS FRÈRES FONTE: Fischer (2009, p. 19) Ainda mais completa é esta “carta” da tribo Cheyenne, em que a Tartaruga- seguindo-sua-fêmea manda a seguinte mensagem para o Pequeno-homem, que é seu filho: “eu lhe envio $53 e peço que venha para casa” (FISCHER, 2009, p. 19). Assim, a mensagem é transmitida através dos desenhos, que permitem sua compreensão. Apresenta quase todas as características de uma escrita completa, contudo, suas marcas são icônicas e não convencionalmente atribuídas, ou seja, apenas as pessoas que conhecem exatamente os referentes poderiam compreender a mensagem colocada. UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 26 FIGURA 6 – MENSAGEM PICTOGRÁFICA CHEYENNE FIGURA 7 – SÍMBOLOS ENTALHADOS EM CERÂMICA (5300-4300 a.C.) FONTE: Fischer (2009, p. 19) FONTE: Fischer (2009, p. 23) • Símbolos gráficos: conforme Fischer (2009), os símbolos gráficos se desenvolveram a partir da necessidade social de ampliar o repertório de registro, a partir da expansão da sociedade suméria e da contabilidade da mercadoria. Imaginemos o seguinte: até certo tempo eram pequenas comunidades que precisavam apenas registrar e controlar um número pequeno de coisas. Um exemplo prático, quando éramos crianças, nossa “comunidade” era pequena e nossos “recursos” eram poucos, apenas precisávamos registrar pequenos fatos ou histórias, ou seja, até uma certa idade os desenhos ou entralhes que fazíamos nas paredes de casa bastavam. Porém, quando entramos na escola, nossa “comunidade” se expande e são necessários outros modos de registro das coisas. Com a expansão comercial foi necessário que formas mais rápidas e eficientes de registro fossem criadas, por isso, criou-se um sistema de códigos em símbolos. É necessário distinguir símbolo de signo, pois, neste momento da história ainda estávamos desenvolvendo símbolos e não signos linguísticos: “um ‘símbolo’ é uma marca gráfica que significa outra coisa, enquanto um ‘signo’ é um componente convencional de um sistema de escrita” (FISCHER, 2009, p. 23). TÓPICO 2 | DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS 27 Dito de outro modo, um símbolo retoma outra coisa a qual ele faz referência, por exemplo, uma pomba branca é o símbolo da paz, ou seja, a pomba significa “paz” para as pessoas que sabem a relação entre o animal e o sentimento. Já um signo é algo que por convenção, ou seja, combinação social faz parte de um sistema de escrita, e tem várias características específicas, por exemplo, o sinal equivalente à “laranja” em Libras, quando feito na testa, tem o significado de “aprender”, ou seja, por convenção da língua, quando realizado na testa, esse sinal significa “aprender”, por isso, esse sinal é um signo da língua de sinais brasileiros. FIGURA 8 – SINAL DA FRUTA/COR LARANJA FIGURA 9 – SINAL DO VERBO APRENDER FONTE: Capovilla et al. (2017, p. 1543 e 244) FONTE: Capovilla et al. (2017, p. 1543 e 244) Dentro dos estudos linguísticos propostos por Saussure podemos observar a diferença de “símbolo” e “signo”, assim como as características dos signos linguísticos. Dubois et al. (1973), sobre o pensamento linguístico de Saussure coloca que “o símbolo, ao contrário do signo, tem por característica jamais ser arbitrário, isto é, existe um laço natural rudimentar entre significante (o símbolo) e significado (o sentido dele)”. Dubois et al. (1973) apresentam as características dos signos linguísticos segundo Saussure: 1) Unem um conceito a uma imagem acústica som. 2) São arbitrários, ou seja, não têm relação direta com o referente externo. 3) São linearmente organizados, quer dizer, precisam estar numa certa ordem para fazer sentido, como ogat não faz sentido, mas gato sim. 4) Não podem ser mudados livremente porque são uma convenção socialmente instituída. UNIDADE 1 | HISTÓRIA DO REGISTRO ESCRITO DAS LÍNGUAS 28 5) Mudam ao longo do tempo através do uso que é feito e dos novos acordos sociais, por exemplo, a mudança ocorrida ao longo do tempo com a expressão Vossa Mercê>Vosmecê>você. Não confunda a noção de sinal icônico com símbolo, pois os sinais fazem parte de uma língua, logo, não são símbolos. E, os signos apresentam certa semelhança com seu referente concreto, sendo característicos nas línguas de sinais. IMPORTANT E • Fichas de argila: o sistema de fichas de argila era utilizado para contabilidade, de modo que uma ficha era igual a um produto e cada produto tinha um formato específico de ficha. A partir de 4000 a.C. as fichas começaram a ser utilizadas de maneira diferente, pois a quantidade de itens começou a ficar muito grande para contar todas as fichas sempre. Por isso, elas começaram a ser colocadas em “pequenos ‘envelopes’ de argila chamados de bullae [que] continham essas fichas e eram marcados e impressos por fora, evitando ter de abri-los e quebrá-los para saber quantas fichas e qual mercadoria encerravam” (FISCHER, 2009, p. 25). FONTE: Fischer (2009, p. 25) FIGURA 10 – ALGUNS MODELOS DE FICHAS DE ARGILA JÁ ENCONTRADOS Dessa maneira, os pequenos envelopes de argila (bullae) armazenavam as fichas e não precisavam ser abertos para saber a quantidade de fichas que tinham dentro, porque possuíam marcas que indicavam o tipo e a quantidade das fichas existentes em seu interior. Com o tempo, os símbolos usados nos envelopes fizeram com que as fichas fossem dispensadas, dando início ao processo de uso de símbolos indiretos. De acordo com Fischer (2009), para a teoria das fichas, a escrita completa começa a desenvolver-se a partir do momento em que foi possível ler através do uso de símbolos indiretos, o tipo e a quantidade de cada bullae. TÓPICO 2 | DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DAS LÍNGUAS ORAIS 29 Nessa perspectiva, o sistema de fi chas contribuiu para a emergência da escrita completa. O autor coloca a seguinte comparação para demonstrar que as fi chas deram origem ao pictograma e ao signo cuneiforme referente à ovelha. FONTE: Fischer (2009, p. 27) FONTE: Fischer (2009, p. 28) FIGURA 11 – PROCESSO DE FICHA PARA SIGNO FIGURA 12 – MARCAS PADRONIZADAS NA ARGILA UTILIZADAS PARA CONTAGEM • Tabuletas: existiram no mesmo momento que as bullae e tinham uma função semelhante, a de contabilizar as mercadorias. Para Fischer (2009), elas representam certa complexidade superior às bullae, tinham marcas referentes às quantidades e às mercadorias, utilizando de marcas feitas com a ponta de um bambu para representar as quantidades. 3.2 ESCRITA FONÉTICA Segundo Fischer (2009), a fonetização acontece quando um símbolo gráfi co se transforma, a partir da leitura em um som articulado, ou seja, é a transição de um símbolo gráfi co para um símbolo referente ao som da palavra (fonético). No entanto, a fonetização não garante a existência da escrita completa, pois mesmo as fi chas e os pictogramas estão vinculados à leitura da palavra que fazemos, ao vermos uma fi cha que tem o signifi cado de ovelha (como na Figura 16) transformamos esta imagem em sua representação acústica em nossa cabeça. Quando analisamos a carta pictográfi ca enviada por Tartaruga-seguindo- sua-fêmea (Mensagem Pictográfi ca Cheyenne), também conseguimos identifi car alguns elementos e fazer a leitura. As três etapas de antecipação, decifração e interpretação estão presentes
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