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Maio/ 2019 Professor: Dr. Wander de Lara Proença Coordenadoria de Ensino a Distância: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida Projeto Gráfico e Capa: Departamento de desenvolvimento institucional Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 3História do crist | FTSA | SUMÁRIO História do cristianismo I Unidade I - Cristianismo antigo - Parte I 1. O estudo da história (O Cristianismo Antigo e Medieval)...............................07 2. O contexto sociocultural do Cristianismo antigo: o ambiente grego-romano..09 3. Contexto religioso em que se desenvolveu o cristianismo antigo..................15 4. Crescimento do movimento cristão em seus primórdios................................20 Unidade II - Cristianismo antigo - Parte II 1. Confl itos entre Cristianismo e Império Romano: os imperadores que perseguiram e as formas de perseguição...........................................................29 2. Liturgia e espiritualidade na igreja antiga..........................................................37 3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo antigo.......................................40 4. O papel dos Pais da igreja: por uma igreja fi el às origens apostólicas...........45 Unidade III - Cristianismo medieval - Parte I 1. Como se deu o surgimento do catolicismo romano?.....................................56 2. Como era a religião da igreja medieval e a religiosidade do povo?.................61 3. Doutrinas e ritos praticados na idade Média....................................................67 Unidade IV - Cristianismo medieval - Parte II 1. O surgimento do Islã e as cruzadas medievais..............................................78 2. Vida monástica: por uma espiritualidade voltasa à simplicidade e ao próximo...................................................................................................................94 3. Movimentos pré-reformadores: por um retorno doutrinal e eclesiástico às origens apostólicas.................................................................................................99 Para assistir os vídeos, ouvir os podcasts e fazer os exercícios, acesse o AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem) Atenção! Lembre-se que faz parte de suas obrigações: 1 - Participação na disciplina por meio da realização dos exercícios; 2 - Exercício integrativo - Resumo da disciplina, 1500 palavras; 3 - 2 Provas objetivas (5 questões cada); 4- Leitura de textos complementares (100 páginas); Consulte o “Programa de curso” e veja mais detalhes! | História do cristianismo I | FTSA4 HISTÓRIA DO CRISTIANISMO I Apresentação da disciplina Bem-vindo(a) à disciplina de História do Cristianismo! Nela você estudará prioritariamente fenômenos históricos ligados ao cristianismo nos períodos antigo e medieval, buscando, porém, estabelecer interfaces e pontes com a história da igreja cristã e movimentos derivados no tempo presente. Dentro da organização curricular da FTSA, a contextualização tem um papel muito representativo, pois seu ensino está comprometido em oferecer uma educação contextualmente direcionada às necessidades das igrejas brasileiras e latino-americanas. Para análise da realidade, o conhecimento histórico é preponderante, pois possibilita a compreensão do desenvolvimento social, político, cultural religioso que confi gurou esta realidade. Permite que se conheça a realidade, fundamente sua interpretação e, por conseguinte, oriente a ação transformadora em contextos do tempo presente, visto que a missão da igreja é continuidade de práticas que nos antecederam no transcurso dos tempos. Neste sentido, em relação à contextualização, a FTSA desde suas origens não abre mão do legado teológico produzido pelo processo histórico no advento da Reforma Protestante do século XVI. Mas, igualmente, considera preponderante que essa teologia, que deve estar sempre se reformando, seja interpretada e relida a partir das especifi cidades do contexto latino americano. A história possibilita que compreendamos como a igreja, em outras temporalidades, vivenciou a fé, a espiritualidade, praticou seu culto, formulou sua teologia, cumpriu sua missão, agiu em missão em favor de um mundo mais justo e pleno de vida, pelas prerrogativas do reino de Deus, promovendo assim transformações em perspectiva integral. Deste modo, 5História do crist | FTSA | a disciplina histórica serve de referência para as demais, pois é transversal aos diferentes conteúdos que compõem a matriz curricular do curso teológico. Por ser também crítica da realidade, contribui para ensinar que o movimento cristão experimentou momentos de crises e desafi adores comprometimentos; fala de perseguições sofridas que ameaçaram sua subsistência, mas também de perseguições que ele mesmo empreendeu, em dados momentos, contra os que se lhe opuseram ou não se moldaram a seus dogmas. O trabalho do estudante de história consiste em estabelecer uma relação de interrogação recíproca entre presente e passado, promovendo uma problematização, evitando, assim, apenas busca das origens como meio de compreensão da vivência atual, rejeitando os simplismos, triunfalismos e determinismos, tendo em vista que o presente não é mera repetição de fenômenos ou acontecimentos passados, nem o passado é um emaranhado de eventos que necessariamente desembocam no presente. Como uma metáfora do estudo da história, das relações entre passado e presente, ou das permanências e rupturas ocorridas no tempo, os historiadores costumam citar o exemplo do palimpsesto. Palimpsesto é uma palavra grega usada para identificar o que ocorria com a escrita em pergaminhos: uma antiga escrita, depois de ser apagada para dar lugar a um novo registro, com o passar do tempo reaparecia, permitindo sua leitura mesmo em tempos muito posteriores. A analogia do palimpsesto é usada para demonstrar como determinadas práticas podem reaparecer em tempos subsequentes, não como mera repetição, mas de forma ressignifi cada, com nova roupagem mesmo que já tenha sido considerada superada ou aniquilada. São os processos de rupturas e permanências que caracterizam o transcurso histórico. Na estrutura curricular da FTSA, o curso de história está distribuído em três disciplinas. Na parte I, parte-se dos | História do cristianismo I | FTSA6 primórdios do movimento cristão no ambiente antigo judaico e greco-romano, avançando-se até o mundo medieval, quando se dá a consolidação da cristandade. Em história II, os conteúdos se concentram nos processos que envolveram a Reforma Protestante e seus desdobramentos no mundo ocidental, com destaque para os avivamentos que marcaram os séculos XVIII e XIX, impulsionando as missões modernas. E, fi nalmente, a parte III focará a presença do cristianismo no contexto brasileiro e na América Latina, com caracterização dos grupos que deram origem ao cenário religioso hoje em evidência: católicos, protestantes e pentecostais, em suas variantes tipologias. A mensagem de Jesus, que partiu da Galileia e Jerusalém, chegou como Ele havia predito “aos confi ns da terra” (At 1:8). O Brasil é um destes “confi ns”. A disciplina de História nos ajudará a compreender como isso foi possível, guiando-nos numa travessia de 21 séculos pelos caminhos desafi adores que o tempo desenhou. Iniciemos a jornada... 7História do crist | FTSA | Unidade I – CRISTIANISMO ANTIGO Introdução à unidade Nesta unidade, apresentaremos alguns dos procedimentos que orientam o estudo da História e também aspectos que caracterizam os períodos antigo e medieval. Identifi caremos o contexto de surgimento das primeiras comunidades cristãs, assim como as transformações que envolveram as práticas do cristianismo nascente antes que, no período medieval, viesse a se confi gurar como cristandade. Estudar a trajetória do movimento cristão nos períodos antigo e medieval signifi ca incursão em temáticas historicamenteriquíssimas, como por exemplo: o contexto em que viveram os primeiros cristãos; as relações de confl ito com o Império Romano e posterior vinculação do cristianismo com o próprio Estado; o advento do papado, a cristandade medieval; o surgimento do Islamismo e suas relações de tensão com territórios cristãos; fi xação de dogmas e doutrinas, como o purgatório e a veneração de imagens; a organização da Inquisição; movimentos pré-reformistas, dentre outros. Em síntese, esta unidade tem como principais objetivos conhecer aspectos conceituais que orientam o estudo da História; identifi car aspectos característicos do cristianismo antigo e medieval; compreender o contexto em que surgiu e se desenvolveu o cristianismo; apresentar exemplos históricos da vivência da fé cristã no ambiente antigo e medieval. 1. O estudo da História. O Cristianismo Antigo e Medieval 1.1 Em que consiste o estudo da História? A História confi gura-se no campo de conhecimento que estuda o “tempo”, mais essencialmente, os acontecimentos e transformações ocorridos no tempo. Ou como dizia o importante historiador Marc Bloch: “História é o estudo do homem no tempo”. Um dos termos da língua grega para a palavra “tempo” é kronos – de onde advém cronologia, que trata das temporalidades históricas. Essas | História do cristianismo I | FTSA8 temporalidades são classifi cadas para melhor demarcar os períodos históricos. Para defi nição dessas escalas temporais, que indicam quando começa e quando termina uma temporalidade, são convencionalmente propostos alguns marcos ou acontecimentos representativos. Glossário As divisões cronológicas da História: 1) Pré-história (todo o período que antecede a invenção da escrita em 3 mil a.C.) 2) Período antigo (da invenção da escrita, em cerca de 3 mil a.C., até a queda do Império Romano no Ocidente, no século V d.C.) 3) Período medieval (da queda do Império Romano no Ocidente até o fi m do Império Romano no Oriente, no século XV, quando em 1453 os muçulmanos tomaram a cidade Constantinopla (capital do referido Império) 4) Período moderno (desde a tomada de Constantinopla até a Revolução Francesa, em 1789) 5) Período contemporâneo (da Revolução Francesa aos dias atuais) Fica caracterizado, pelos episódios indicados acima, que os critérios usados são indicativos de mudanças (com dimensões geralmente políticas ou sociais). Isso é algo simbólico, pois não signifi ca que abruptamente um período termina e começa outro; um determinado período continua existindo ou se estendendo na temporalidade do outro, naquilo que em História se chama de “continuidades” ou “permanências”. Também é preciso dizer que outros critérios ou circunstâncias podem ser usados para distinguir uma temporalidade de outra. Para o estudo da história são fundamentais as fontes, que servem para o historiador buscar evidências em sua análise e relato. As fontes para 9História do crist | FTSA | estudo do cristianismo são diversas, como por exemplo: os próprios textos neotestamentários, as obras de Flávio Josefo, os achados arqueológicos dos manuscritos de Qumran, a Didaquê, as catacumbas de Roma, registros de historiadores não cristãos, correspondências, literaturas não canonizadas, dentre outros. Exercício de aplicação Ao ler o texto bíblico de Lucas 1:1-4, que características podem ser aplicadas ao trabalho do historiador na produção do conhecimento histórico? a) a busca de fontes históricas, independentemente de sua confi abilidade, que servem para o historiador buscar evidências em sua análise e relato. b)a busca de fontes históricas diversas, sem uma grande preocupação com a confi abilidade dos materiais, pois dependendo do assunto a ser pesquisado sempre há uma variedade de materiais disponíveis, mas sim que servem para o historiador buscar evidências em sua análise e relato. c) fazer um recorte cronológico para situar a produção do conhecimento histórico, dentro das temporalidades históricas propostas por marcos ou acontecimentos representativos. Acesse o AVA para fazer o exercício e ver a reação do professor! 2. O contexto sociocultural do Cristianismo antigo: o ambiente greco-romano A história de conquista, poder e domínio do Império Romano começa com a morte de Alexandre no século IV a.C., e a queda do grande Império grego. Mantendo a infl uência da cultura e língua gregas, os romanos tornaram-se sucessores dos gregos em todos os lugares, passando a difundir os valores da então chamada cultura greco-romana (resultado | História do cristianismo I | FTSA10 da fusão entre as duas culturas) através da construção e manutenção desse poderoso Império. Segundo o historiador Martin Dreher, houve um movimento que foi o grande responsável pela unidade cultural do Império Romano: o helenismo. Basicamente, trata-se da cultura da era de Alexandre, quando língua, costumes, utensílios, arte, literatura, fi losofi a e religião dos gregos foram disseminados em diferentes lugares do mundo antigo. Saiba Mais Siglas que identifi cam temporalidades: a.C: antes de Cristo d.C: depois de Cristo a.D: anno domini (termo que signifi ca “ano do Senhor”, em referência à era de Cristo) No período em que se consolidou como imperador romano, nos anos 40 a.C., Otaviano estabeleceu uma ordem ansiada por muitos, por meio da chamada Pax Romana. Utilizando-se do controle das legiões armadas, fez cessar os confl itos nas dimensões do Império através do uso da força. Em 12 a.C. recebeu o altíssimo cargo sacerdotal de “Pontifex Maximus”. Por meio de uma votação popular o senado lhe acrescentou ainda: “Augusto pater patriae”. Pouco antes de morrer, Otaviano Augusto apresentou um relatório retrospectivo de sua política, destacando orgulhosamente os títulos que recebera como homenagem por sua clemência, justiça e piedade. Os romanos desenvolveram o culto ao imperador a partir do momento em que este passou a receber o título de “Augusto”. Uma inscrição feita na Ásia menor, em 9 a.C., dizia: “Pode-se colocar o início do ano no aniversário de César, pois a divina providência trouxe à vida dos homens: paz, salvação, abolição de guerras. O dia do nascimento do deus foi para o mundo o início de boas notícias”. De acordo com Dreher (1993), a unidade do Império apresentava-se de maneira visível na fi gura do Imperador, que reunia na sua pessoa os principais cargos da antiga república romana. 11História do crist | FTSA | Glossário Pax Romana: paz romana Pontifex Maximus: máximo pontífi ce Pontífi ce: líder religioso supremo Pater Patriae: pai da pátria Augusto: venerável, digno de culto. César: título concedido aos imperadores romanos que sucederam a Caio Júlio César; designava o sucessor do imperador reinante. No ano 14 d.C., ocorreu a morte de Augusto (aos 76 anos de idade). Seu fi lho adotivo Tibério logo assumiu o governo, com 56 anos. Sob o seu governo, Pôncio Pilatos foi constituído procurador da Judéia e da Samaria (26-36 d.C.) – Jesus morreu durante o seu reinado. Em 37 d.C., Calígula assumiu o governo, com 25 anos de idade: vida dissoluta e aspiração exagerada; quis exigir que sua estátua fosse colocada no templo de Jerusalém. Sua morte súbita, impediu a realização deste projeto. Em 41 d.C. foi morto numa revolta palaciana, pela guarda pretoriana, a qual proclamou Cláudio (tio de Calígula), como César (41-54). Em Roma, Cláudio, no ano 49 (d.C.), fez um decreto contra os judeus devido a confl itos surgidos entre eles. O testemunho do historiador antigo Suetônio - em sua obra Vidas dos Césares - apresenta as razões dessa medida adotada: “Expulsou os judeus de Roma, por que causavam agitação contínua, instigados por um certo Chresto” (apud FABRIS, p. 45). Chresto seria uma referência a Cristo? As circunstâncias parecem denotar esta interpretação: a pregação sobre Jesus, anunciado como Cristo, o Messias de Israel, teria provocado divisões e confl itos entre judeus, uma parte ligada ao judaísmo e outra já convertida ao cristianismo. O certoé que os judeus foram expulsos da cidade. Havia lá grande comunidade deles. Foram-lhe proibidos o culto e as reuniões sinagogais. Este decreto também envolveu, portanto, os judeus-cristãos. Mais tarde Nero revogou esse edito. | História do cristianismo I | FTSA12 Exercício de fi xação Em Roma, Cláudio, no ano 49 (d.C.), fez um decreto contra os judeus devido a confl itos surgidos entre eles. O motivo da expulsão foi o de causarem agitações contínuas, instigados por um certo Chresto. As circunstâncias parecem denotar esta interpretação: a pregação sobre Jesus, anunciado como Cristo, o Messias de Israel, teria provocado divisões e confl itos entre judeus, uma parte ligada ao judaísmo e outra já convertida ao cristianismo, e isto afetava a chamada Pax Romana. Seguindo esta mesma lógica, em que medida podemos pensar que a morte de Jesus foi infl uenciada pela tentativa de manutenção da Pax Romana? a) Não podemos afi rmar que a morte de Jesus foi infl uenciada pela Pax Romana, uma vez que ela deveria ocorrer para cumprimento da vontade de Deus que visava a salvação do ser humano; b) O envolvimento político de Jesus com grupos revolucionários, tais como os sicários e zelotes, que possuíam membros dentro do grupo dos doze discípulos (Judas e Simão), sempre representou uma ameaça ao governo de Roma, por isso ele foi perseguido e morto; c) A ameaça que Jesus causava à Pax Romana estava relacionada aos embates com os religiosos judeus, que embora tivessem um cunho religioso, poderia sublevar os ânimos dos seus respectivos seguidores e provocar confl itos entre os grupos. Acesse o AVA para fazer o exercício! Glossário Sinagoga: etimologicamente signifi ca “casa do livro”, ou seja, lugar de ensino da Lei e dos costumes judaicos; as sinagogas surgiram no período do exílio babilônico sofrido pelos judeus, passando a ter um papel importante na diáspora subsequente para, na ausência do templo de Jerusalém, manter a identidade das tradições judaicas. 13História do crist | FTSA | No ano 54 d.C. Cláudio foi envenenado por sua esposa Agripina, que o assassinou para entronizar seu fi lho Nero, fruto de seu primeiro matrimônio, adotado por Cláudio. Nero tinha apenas 17 anos, recebendo, por isso, auxílio de outros. Tornou-se depois descomedido: gostava de apresentar-se publicamente como artista; mandou matar sem escrúpulos quem se opusesse a ele; instigou a primeira perseguição contra os cristãos em Roma, incendiando a cidade em 64, culpando por isto os cristãos, perseguindo e condenando à morte os que eram presos. Tácito, historiador antigo, relata as atrocidades praticadas por Nero, mandando, inclusive, matar membros de sua família; suicidou-se em 68. Tempos depois da morte de Nero, correu o boato de que na verdade não havia morrido, o que teria sido apenas mais uma de suas artimanhas. A sua possível reaparição causava terror e pode estar associada à base imaginária com que o Apocalipse descreve a Besta que ressurge, depois de ter sido ferida de “morte” (Ap 13). Para saber mais sobre o comportamento de Nero, assista parte do documentário em vídeo: Roma - Construindo um império (27:30 a 33:00 min.) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UFZ_ihWq8CY Após sua morte, três generais foram proclamados simultaneamente seus sucessores: Galba (Espanha); Oto (Roma); Vitélio (Germânia). Nenhum dos três conseguiu aprovação de todo o Império: o que tornava iminente uma nova guerra civil. Diante disto, Vespasiano (que estava com suas tropas na Palestina, e com o apoio delas, conseguiu apoderar-se do governo e estabelecer a ordem, em 69 d.C. Vespasiano impôs a renovação da instituição do “primeiro sucessor”, criada por Augusto, assegurando assim a sucessão de seus fi lhos. Em 79, morre; seu fi lho Tito - o conquistador de Jerusalém - tornou-se imperador. Em 81, sucedeu-lhe o seu irmão Domiciano (81-96), que: procurava sublinhar seu poder absoluto; propagava em público a santidade de sua pessoa, deleitando-se com a aclamação do povo a si e à sua esposa no anfi teatro, no dia do grande banquete (“salve nosso Senhor e nossa | História do cristianismo I | FTSA14 senhora”); exigia de todos uma cega submissão às suas ordens; sufocava qualquer movimento de resistência; em 96, foi vítima de uma conjuração. Este é o imperador que ocupa o poder na época em que o livro do Apocalipse foi escrito. Após sua morte, operou-se uma mudança: o senado elegeu como imperador um descendente de uma antiga família romana: Nerva (96-98), correspondendo assim à imagem do soberano movida pelo pensamento estóico: “o melhor deveria governar em função do bem comum”. Em 98, Trajano (Filho adotivo de Nerva) ocupa o poder, nele permanecendo até o ano 117. Desta forma, pelo método da adoção, assegurava-se a escolha do mais capacitado entre os candidatos. Para saber mais sobre o Império Romano, assista os primeiros 25 minutos do documentário em vídeo: Roma - Construindo um império. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UFZ_ihWq8CY 15História do crist | FTSA | 3. Contexto religioso em que se desenvolveu o Cristianismo antigo 3.1 Crenças e diversidade de cultos no contexto greco-romano Desde a antiguidade, o oriente considerava os soberanos como fi lhos dos deuses. Por exemplo, no Egito, o Faraó recebia poder, leis e proteção para governar o seu povo; isso legitimava seu poder como majestade intocável. Quanto aos gregos, os deuses adorados por eles não estavam separados dos homens por uma fronteira bem defi nida. Homens importantes podiam ser elevados da condição humana à divina, colocados como heróis na comunhão sagrada, como observado nas mitologias. Acreditava-se que os deuses vinham até onde estavam os humanos ou desciam à terra em forma humana, como observado em Atos 14:11, que relata que Paulo e Barnabé, em Listra, depois de curarem um paralítico desde a infância, provocaram a seguinte reação: “deuses em forma humana desceram até nós”. Alexandre Magno, que difundiu o Império grego, no século IV a.C., já era venerado por muitos de seus súditos. Sobre o chamado culto estatal, as cidades romanas tinham seus deuses particulares; construíram-lhes esplêndidos templos; a vontade dos deuses determinava a vida da cidade e do Estado; festas e espetáculos culturais eram realizados durante o ano em sua homenagem, algumas destas festas, por exemplo, estão associadas aos jogos Olímpicos realizados a cada quatro anos. Os deuses romanos participavam ativamente da política e da sociedade. O culto era voltado em torno do Estado, havendo datas pré-estabelecidas pelo calendário. O culto era obrigação civil. Durante a época de Augusto, muitos templos foram edifi cados na Grécia, na Itália, no oriente e norte da África. Tentava-se forjar uma moral a partir da religião, mas a infl uências externas culturais eram muito intensas. Também houve forte infl uência de cultos estrangeiros, trazidos do oriente para Roma. Valorizavam-se os sacerdotes, cujos oráculos orientavam as batalhas, por exemplo. O deus Sol (Hélio) ganhou projeção, na época do Novo Testamento, o qual correspondia a Mitras (deus persa), ao ponto do próprio imperador se identifi car como seu legítimo fi lho. | História do cristianismo I | FTSA16 No ano 40 a.C., Herodes O Grande, rei judeu, assinou um acordo com Roma no qual foram assegurados três principais benefícios aos judeus: não trabalhar no sábado, não servir ao exército romano, não cultuar os deuses do Império (apenas fazer orações em favor do imperador). Nos primeiros anos de sua existência, comunidades cristãs formadas também por judeus, benefi ciaram-se de prerrogativas concedidas àqueles no âmbito do Império Romano, pois eram vistas pelas autoridades como ramifi cações do judaísmo. Muitos cristãos, em função disto, optavam inclusive por realizar a circuncisão, como forma de se proteger de possível questionamento pela não veneração aos deuses romanos ou participação em cerimônias religiosas obrigatórias.Posteriormente, porém, à medida que os cristãos cresceram, tendo a adesão de diferentes povos gentílicos – havendo, também, confl itos entre judeus e cristãos – estas regalias foram desaparecendo, dando lugar a tensões e confl itos. No Império Romano, um elemento importante destes cultos eram os sacrifícios e oferendas de animais, feitos, de modo geral, da seguinte maneira: parte era queimada; parte era dada aos sacerdotes; outra vendida como carne no mercado; parte era distribuída aos pobres, em ocasiões especiais. Toda carne era de alguma forma sacrifi cada; faziam- se banquetes no templo, com a presença de parentes e amigos. Esperava- se, com isto, que os deuses favorecessem o destino dos homens e afugentassem o infortúnio e a ruína das cidades. Acontecimentos milagrosos também ocorriam através de pessoas dotadas de poderes especiais, que irradiavam força divina. Por exemplo, quando o imperador Vespasiano chegou a Alexandria, pouco tempo depois de tomar posse do governo romano, um cego pediu-lhe que molhasse seus olhos com saliva, e um paralítico que lhe tocasse a perna com seu calcanhar. Suetônio, historiador romano, relata que o imperador atendeu a esse pedido, transmitindo força curativa aos doentes, que recuperaram a saúde. 17História do crist | FTSA | Exercício de aplicação A partir de Gálatas 6:12-14, qual a possível relação desta passagem com o contexto religioso descrito acima? a) A questão da circuncisão limitava-se exclusivamente a uma questão religiosa, sem implicações com as políticas do império. b) Deve levar em conta por um lado a ameaça de perseguição romana e por outro lado os benefícios de isenção de certas obrigações desfrutados pelos judeus. c) A perseguição não era uma ameaça aos cristãos, assim, qualquer relação à fatores relacionados à política imperial são irrelevantes para a leitura da passagem acima. Acesse o AVA para fazer o exercício! 3.2 Religiões de mistério Paralelamente ao culto ofi cial desenvolveu-se grande religiosidade popular marcada por intenso misticismo. Havia a busca de acontecimentos milagrosos. No século I era muito forte o medo, a ameaça dos poderes demoníacos, de doenças, infortúnios etc. As pessoas se sentiam indefesas ante as forças sobrenaturais. As religiões de mistério se apresentavam para dar “segurança” e meios de proteção: prometendo salvação e oferecendo-lhe força curativa. Saiba mais Cultos de mistério: A expressão decorre do fato de a comunidade reunida para determinados atos cultuais guardar silêncio absoluto sobre tais atos, nada podendo revelar a não-iniciados. Os iniciados recebiam fórmulas sagradas e sinais simbólicos, que ajudavam na identifi cação mútua. Participavam libertos e escravos; homens e mulheres. Celebrava- se ali o renascimento da pessoa para a eternidade; acreditava que os deuses sofriam, morriam e ressuscitavam. Estes elementos criaram aproximações entre os adeptos e a mensagem que ouviram sobre Jesus. | História do cristianismo I | FTSA18 Por exemplo, o deus da cura Asclépio (ou Apolo), era popularmente muito venerado, cujo símbolo era a serpente. O culto foi introduzido em 19 a.C., devido à grande peste que ocorrera nas dimensões do Império. Ao redor dos templos deste deus, existiam vários dormitórios onde os doentes fi cavam hospedados, esperando serem curados durante o sono à noite – especialmente paralíticos, mudos e cegos. Saiba mais Exemplo de um rito de iniciação nos cultos de mistério Um dos rituais que envolvia os cultos de Ísis e Apolo dava-se geralmente da seguinte forma: o iniciante fazia votos de ablução (não comer carne por um determinado tempo, por exemplo, 10 dias); logo após, o noviço vestia uma roupa específi ca, ao pôr-do-sol, e era levado ao salão de culto, sendo que ali, repetia palavras como: “eu cheguei às proximidades da morte e com a ajuda da divindade estou agora alcançando a luz verdadeira”; no dia seguinte, ao clarear do dia, terminada a celebração, o iniciado apresentava-se ao povo, vestido com uma estola adornada com a fi gura do deus Sol. Isto signifi cava que, através da consagração, nasceu agora como ser divino, cheio de força e rodeado por brilhante luz; estava agora preparado para um dia se apresentar a Osíris, o juiz dos mortos. O culto a Mitras difundiu-se bastante no Império Romano. Proveniente da Pérsia, seu culto tratava de luta e vitória, por isso muitos soldados se fi liavam a essa religião, levando-a às fronteiras do Império. Venerado como deus da luz, Mitras era aquele que dissipava as trevas. Religião de mistério que, ao contrário das demais, só aceitava a fi liação de homens, que eram marcados na fronte com um ferro candente, como um guerreiro. Tornavam- se membros, por meio de um batismo, após o qual podiam participar dos banquetes santos, para os quais a comunidade se reunia. Após a morte, cada um deveria responder por seus atos perante um tribunal divino, que os pesaria numa balança antes de permitir-lhes a entrada para o mundo da luz. Este culto atraía fi éis pelo dever moral que impunha. 19História do crist | FTSA | Saiba mais Mitras e o Cristianismo: o culto a Mitras desempenhou uma acirrada disputa com o cristianismo pela conquista de adeptos. Esse embate terminou no 4º século, quando o imperador romano Constantino – adepto de Mitras – declarou-se cristão e ressignifi cou ritos deste culto com ritos cristãos, como, por exemplo, a fi xação do dia 25 de dezembro como o natal de Cristo. Por isso, em muitos lugares construíram-se templos cristãos sobre santuários de Mitras, simbolizando a vitória de Cristo. Em síntese, os cultos de mistério: (a) estavam difundidos em todo o Império; (b) ofereciam proteção contra o mal e ajuda redentora da divindade; e (c) concediam benesses mediante os ritos praticados pelos iniciados. Agora acesse o AVA e assista o vídeo! Para saber mais sobre o contexto religioso do mundo greco-romano, assista os últimos 20 minutos do documentário em vídeo: Deuses e deusas - GréciaDisponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QwjW371UYOs Acesse o AVA para baixar e ouvir o podcast! Como a igreja primitiva caminhou nos limites e controles estabelecidos pelo Império Romano? (10 minutos) | História do cristianismo I | FTSA20 4. Crescimento do movimento cristão em seus primórdios 4.1 As contribuições que o cristianismo recebeu para se expandir Costuma-se afi rmar que, no contexto em que surgiu, três povos ou civilizações acabaram por contribuir para a expansão do cristianismo: os gregos – pela língua grega, que foi difundida pelo Império de Alexandre o Grande, facilitando assim a comunicação do evangelho (o Novo Testamento foi escrito nessa língua); os romanos – criaram redes de comunicação por meio das estradas, além da tolerância religiosa geralmente praticada em relação aos diferentes povos sob seu domínio, o que deu certa liberdade para o cristianismo se expandir por um determinado tempo; os judeus – outorgaram ao cristianismo a fé monoteísta e a ideia sobre da vinda de um Messias, no tempo da diáspora; o judaísmo é o berço religioso das comunidades cristãs, o próprio Novo Testamento atesta isso. Glossário Diáspora: Signifi ca dispersão. Dá-se o nome de diáspora às duas grandes dispersões que envolveram o povo hebreu: a primeira ocorrida por ocasião do cativeiro babilônico, no século VI a.C.; e a segunda quando da destruição do templo de Jerusalém pelos romanos, no ano 70 d.C. Para o judeu que vivia fora da Palestina, Jerusalém permaneceu sendo o centro da sua fé e referencial de vida. Lá era o local de sacrifícios ou peregrinações. A Palestina continuava sendo a sua terra, herança dada por Deus. Fora do país, o povo hebreu estava em terra alheia ou impura. Por que os judeus foram para países estrangeiros? Por vários móvitos: devido aos exílios a que foram submetidos; para seguir as grandes rotas comerciais, estabelecendo-se nas cidades mercantes ou portos; em razão dos pesados tributos impostos pela dominação estrangeiraà agricultura, cresceu a pobreza e muitos preferiram outra sorte, por isso 21História do crist | FTSA | recorreram ao comércio. O judaísmo da diáspora também crescia pela conversão de não-judeus. Locais em que viviam os judeus, em expressivas aglomerações: Babilônia; Síria; Ásia menor e Norte da África. Só no Egito, viviam 1 milhão de judeus, sendo a maior parte em Alexandria. Condições em que viviam os judeus na Diáspora: a) desfrutavam de isenção do serviço militar; b) não tinham necessidade de comparecer no dia de sábado perante instituições públicas e tribunais; c) as comunidades tinham certa autonomia especialmente nas questões de fé; d) todo judeu pagava sua contribuição ao templo, anualmente, o equivalente a dois dias de trabalho (jornaleiro); quem podia pagava voluntariamente quantidades mais altas; e) viagem a Jerusalém nas festas religiosas; f) por outro lado, o Templo mantinha relações com as comunidades judaicas da diáspora; g) falavam quase que exclusivamente grego; h) sofriam infl uência do helenismo (iam ao teatro, participavam de competições esportivas etc.); i) atraíam muitos simpatizantes às sinagogas (pregações e orações) – a circuncisão se tornava obstáculo para ser prosélito; j) sofriam perseguições e discriminações devido ao seu estilo de vida e costumes. 4.2 Desafi os do movimento cristão para se desenvolver no mundo urbano antigo O movimento que Jesus funda e lidera se origina e se desenvolve e um ambiente com traços predominantemente rurais. Após sua morte, há uma grande demanda por se fazer a transposição da mensagem cristã de cariz rural para o universo cultural citadino, da pólis grega. Os ensinos de Jesus têm como cenário a vida rural: fala de semente, fl ores, trigo, pássaros, pescadores, lírios do campo. Para o tempo em que o movimento cristão necessitava transpor-se do ambiente rural para o mundo urbano, a providência divina preparou e vocacionou Saulo. Este teria a tarefa de fazer prosseguir a obra de Jesus agora no espaço das grandes cidades. Comparativamente, vale estabelecer um contraponto entre Jesus e Saulo. | História do cristianismo I | FTSA22 Saulo, nascido e formado até os 18 anos na cidade intelectual de Társis. Em seguida, mudou-se para Jerusalém para estudos na escola rabínica farisaica, tendo como mestre Gamaliel. Nesse tempo de estudos, residiu provavelmente na casa de sua irmã, que morava na cidade santa (At 23:16). Saiba mais Társis: região da atual Turquia, com uma população de 300 mil habitantes à época de Paulo. Era considerada o terceiro mais importante centro da fi losofi a antiga, fi cando atrás somente de Atenas e Alexandria. Por essa razão, nela circulavam diferentes correntes de pensamento; uma cidade cosmopolita, ou seja, nela estavam representados diferentes mundos culturais. Jerusalém: cidade com cerca de 60 mil habitantes nos dias de Jesus. Nela estava situado o templo judaico, que abrigava a escola rabínica (formada por fariseus) e a escola sacerdotal (formada por saduceus); ambas forneciam membros para compor o Sinédrio (alta corte jurídica formada por 70 doutores da Lei). Jesus viveu 90% de sua existência terrena nas regiões rurais da Galileia; não tendo condições fi nanceiras para a obtenção de títulos nas escolas rabínicas da Cidade Santa; Saulo era cidadão romano; Jesus, para sobreviver, trabalhava na carpintaria ou no campo; Saulo, posteriormente, irá elaborar todo o seu ensino tendo como pano de fundo a vida urbana; suas ilustrações e metáforas têm origem naquilo que é próprio do seu contexto de formação; em seus escritos, encontram-se refl exos de vistas e cenários de Tarso de quando era ainda jovem, de ser conduzido em “triunfo”, de jogos olímpicos, compara o “tabernáculo terrestre” desta vida a um edifício de Deus, destaca as correntes fi losófi cas circulantes nas pólis gregas; procurou também formar líderes nos grandes centros – especialmente com a criação da Escola Paulina de Éfeso - para que os mesmos dessem continuidade à missão de proclamar o evangelho, principalmente entre os gentios. 23História do crist | FTSA | Saiba mais Escola Paulina de Éfeso: Criada por Paulo, na cidade de Éfeso, provavelmente no lugar onde funcionara anteriormente a Escola de Tirano (At 19:9). A Escola Paulina teve três importantes funções: 1) treinar e preparar líderes para a expansão missionária (Tito, Timóteo e Silas são exemplos destas lideranças); produzir cópias das cartas paulinas para envio circular a diferentes comunidades paulinas; 3) preservar a teologia paulina, voltada aos gentios, fazendo frente às ideias judaizantes que infl uenciavam o cristianismo nascente. Saulo, depois Paulo, teve, portanto, um papel decisivo na tarefa de introduzir a mensagem cristã nos espaços das grandes cidades do mundo antigo. O êxito de tal empreitada se pode medir pela presença da igreja – muitas vezes incômoda - nas principais cidades do mundo antigo até o século II, como Roma, Alexandria no Egito, Éfeso, Corinto, além de Jerusalém e Antioquia. Agora acesse o AVA e assista o vídeo! Assistir à videoaula sobre Paulo e a institucionalização do cristianismo (10 min.) Exercício de fi xação Em que medida Paulo é responsável pelo êxito de introduzir a mensagem cristã nos espaços da pólis grega e de construir elos de aproximação entre povos e mundos tão distintos? a) Paulo utilizou apenas a língua grega, não efetivando a passagem do cristianismo da cultura semítica judaica para a cultura grega; b) Uma das principais difi culdades de Paulo foi que, assim como Jesus, a sua mensagem permaneceu tendo como pano de fundo as regiões rurais da Galileia; c) Paulo efetivamente conseguiu traduzir a mensagem do Cristo, o Messias judaico, de uma cultura para outra: da cultura semítica dos judeus para a cultura grega. | História do cristianismo I | FTSA24 4.3 Grupos sociais influentes no Império Romano A mensagem cristã exerceu atração sobre três grupos sociais muito representativos no Império romano: escravos, soldados e mulheres. Em relação aos escravos, que compunham basicamente dois terços da população total do Império Romano, que era de cerca de 70 milhões de pessoas, a pregação cristã falava de igualdade de relações, visto em diferentes textos, como por exemplo: “porque em Cristo não há mais escravo nem livre” (Gl 3:28); ao escrever a Filemon, Paulo adverte que o escravo Onésimo seja tratado como “irmão caríssimo” e não mais como escravo (Fm 16); dentro da comunidade cristã as distinções sociais eram niveladas, não havendo mais separação entre senhor e escravo; isso apontava para o fi m da escravidão à medida que o reino de Deus fosse implantado e Jesus retornasse para reinar. Em relação aos soldados, a guerra era uma das sinas do Império Romano, expondo precocemente a vida dos combatentes; desse modo, uma mensagem que falava de um mundo novo no qual não mais haveria a guerra e a violência exercia grande fascínio sobre tais personagens e suas respectivas famílias, que ansiavam por novos valores de preservação da vida. Quanto à mulher, sua condição de exclusão social foi impactada por uma mensagem de que em Cristo não há mais distinção entre homens e mulheres (Gl 3:28). Segundo Rodney Stark (2006), as comunidades cristãs se transformaram em espaços de acolhimento de mães em busca de proteção para as fi lhas recém-nascidas que, segundo costumes no mundo greco-romano, poderiam ser “descartadas” ao nascer quando em uma casa já existisse uma fi lha. A igreja primitiva combateu as práticas abortivas e de infanticídio de meninas, promovendo assim uma mobilização em favor da vida. As mulheres, com isso, foram numericamente muito expressivas nas comunidades cristãs. Em síntese, fi ca evidente que a mensagem e a práxis cristã no mundo antigo não separaram alma de corpo, ou o que é espiritual do que é material. Com isso, desenvolveu uma missão contextualizada com as demandas sociais 25História do crist | FTSA | daquele tempo, caracterizando-se,assim, por uma integralidade no modo de cumprir sua tarefa. Não quis apenas salvar as almas, mas transformar o mundo pela pregação do Evangelho. Glossário Androcentrismo: comportamentos, sociedades ou situações em que o foco é o homem, ou que são controlados por uma perspectiva masculina. O valor dado à mulher é um aspecto marcante no contexto das primeiras comunidades cristãs. No ambiente judaico havia se formatado desde os tempos vétero-testamentários uma mentalidade patriarcal com absoluta superioridade do homem sobre a mulher. Exemplo disto era o rigor com que a Lei religiosa se impunha em relação à mulher, sendo por isso legada sua participação nos cerimoniais e cultos a uma condição de inferioridade e submissão. Durante as cerimônias religiosas havia espaços próprios e limites para a sua restrita participação, sendo obrigada, inclusive, a permanecer em silêncio durante o evento. Tais restrições impostas à mulher acabavam gerando comportamentos um tanto constrangedores: estudos mostram que todo judeu piedoso costumava repetir três vezes ao dia a oração “graças te dou, oh! Deus, porque não nasci samaritano, nem escravo e nem mulher”. Na fi losofi a grega à época também não era muito diferente: a liberdade era atributo do homem. Platão e Xenofonte, por exemplo, afi rmavam que as mulheres haviam sido criadas exclusivamente para trabalhos domésticos. Nesse contexto, foi decisiva para a libertação da mulher a atitude de Jesus na realização de seu ministério terreno. Ele estabeleceu um comportamento inaugural ao criar espaços de sociabilidade em relação às mulheres, razão pela qual muitas passaram a segui-lo e a servi-lo, como atestam os relatos dos evangelhos (Mt 27:55,56). Esta participação ativa pode ser observada nos evangelhos, de forma explícita ou não: Jesus valorizou a viúva no momento do ofertório (Mc 12:41-44); benefi ciou-as com milagres e curas (Mt 9:19-22, 15:21-28); citou-as em seus ensinos Glossário Androcentrismo: comportamentos, sociedades ou situações em que o foco é o homem, ou que são controlados por uma perspectiva masculina. | História do cristianismo I | FTSA26 (Mt 13:33; 25:1-13); delas recebeu presentes (Mt 26:6-13); no momento em que celebrou a última páscoa, no cenáculo, lá certamente estavam as mulheres não apenas servindo na preparação dos elementos, mas também desfrutando daquele momento de comunhão; no primeiro anúncio que se faz da ressurreição acontecida, confi ou-se a uma mulher, Maria Madalena, essa nobre tarefa; também quando ocorreu o envio do Espírito Santo em pentecostes, mulheres também estavam lá presentes, em oração. Um antigo manuscrito, que se constatou ser um evangelho escrito pelo apóstolo Tomé, foi encontrado por arqueólogos no Egito, em 1945, o qual não apenas registra referências da valorização dada por Jesus à mulher, como também destaca a participação de liderança feminina no movimento comandado pelo Filho de Deus. Quando nasceram inúmeras comunidades cristãs pelo trabalho apostólico, mulheres também participaram ativamente do estabelecimento daquela tarefa, constituindo-se também em membros da liderança que se formava. São exemplos disto: Febe, diaconisa e líder da igreja existente no porto de Cencréia, na cidade de Corinto; Trifena, Trifosa e Pérside, que “muito trabalharam” em comunidades paulinas; Priscila, que juntamente com seu marido, Áquila, realizou importante trabalho missionário em Roma e, depois, em Corinto como colaboradores de Paulo, ressaltando- se que há, inclusive, hipóteses de ter Priscila participado da redação da carta aos Hebreus; Maria, mãe de Jesus que, segundo tradições da igreja antiga, teve um importante papel de liderança nas igrejas da Ásia Menor, desempenhando funções de pregadora e missionária em toda aquela região, especialmente na cidade de Éfeso, onde também morou até o fi nal da sua vida junto à família de João apóstolo. Exercício de reflexão Com base no texto de João 4:1-42, no qual ocorre o diálogo de Jesus com a mulher samaritana, os estudiosos do Novo Testamento interpretam esta passagem como sendo uma das ações inclusivas da pregação do Messias. Trata-se da elevação do papel feminino na sociedade da época. Abaixo, encontra-se o recorte entre os versos 5 a 19 deste diálogo: 27História do crist | FTSA | Chegou, pois, a uma cidade samaritana, chamada Sicar, perto das terras que Jacó dera a seu fi lho José. Estava ali a fonte de Jacó. Cansado da viagem, assentara-se Jesus junto à fonte, por volta da hora sexta. Nisto, veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. 8 Pois seus discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos. Então, lhe disse a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana (porque os judeus não se dão com os samaritanos)? Replicou-lhe Jesus: Se conheceras o dom de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Respondeu-lhe ela: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu, porventura, maior do que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, do qual ele mesmo bebeu, e, bem assim, seus filhos, e seu gado? Afi rmou-lhe Jesus: Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna. Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede, nem precise vir aqui buscá-la. Disse-lhe Jesus: Vai, chama teu marido e vem cá; ao que lhe respondeu a mulher: Não tenho marido. Replicou-lhe Jesus: Bem disseste, não tenho marido; porque cinco maridos já tiveste, e esse que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade. Senhor, disse-lhe a mulher, vejo que tu és profeta. (Bíblia Almeida Revista e Atualizada) Partindo da leitura dos conteúdos apresentados na unidade e nos textos do Novo Testamento, descreva as implicações sociais, religiosas e políticas que este diálogo demonstrou quanto à participação da mulher na igreja antiga, utilizando, no mínimo, 200 palavras. | História do cristianismo I | FTSA28 Referências BARRO, Jorge H. De cidade em cidade. Londrina: Descoberta, 2002. COMBLIN, José. Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993. COMBY, J.; LEMONON. Vida e religiões no império romano no tempo das primeiras comunidades cristãs. São Paulo: Paulinas, 1988. DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993. DREHER, Martin. A igreja no mundo medieval. São Leopoldo: Sinodal, 1994. FABRIS, Rinaldo. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo: Loyola, 1988. MOULE, C. F. D. As origens do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1979. STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história. São Paulo: Paulinas, 2006. 29História do crist | FTSA | UNIDADE II – CRISTIANISMO ANTIGO Introdução Nesta unidade, veremos um pouco sobre a expansão do cristianismo, investigando possíveis razões que conduziram uma religião de minorias e da escória social, por assim dizer, ao patamar de religião em franca expansão e, por conseguinte, assumindo um caráter universal em termos de adesão e amplitude. Abordaremos como se delineia a espiritualidade cristã nos quadros da igreja antiga, usando como base alguns fragmentos de textos espirituais da época, como os do Bispo Hipólito de Roma. Primeiramente, falaremos sobre como eram as reuniões e cultos na igreja primitiva. Em seguida, a partir do exemplo de Hipólito, delinearemos algumas das características da espiritualidade cristã primitiva, mesmo sabendo que elas não se aplicavam a todos em todos os contextos. Trataremos também das controvérsias doutrinárias e sobre a atuação dos Pais da Igreja. O cristianismo, diferente das religiões pagãs do mundo romano, não nascera como resultado de mitos e mágicas. Ele teve como base a realidade e o fato histórico. Orígenes,Tertuliano, Justino Mártir, Agostinho e tantos outros defensores da fé tiveram poderosa infl uência em tornar o cristianismo mais razoável para os intelectuais, sendo vários deles convertidos. Teremos, portanto, a oportunidade de estudar e conhecer um pouco mais sobre a contribuição de alguns deles. 1. Conflitos entre Cristianismo e Império Romano: os imperadores que perseguiram e as formas de perseguição O primeiro imperador a iniciar uma ostensiva perseguição ao cristianismo foi Nero (54-68). Após o incêndio na cidade de Roma, no ano 64, a mando do próprio imperador, quando dez dos quatorze bairros foram destruídos, os cristãos passaram a ser acusados como culpados por tal episódio, sofrendo por isso atroz perseguição. Tácito, historiador antigo, descreve as atitudes tomadas por Nero na perseguição aos cristãos: | História do cristianismo I | FTSA30 Além de matá-los (aos cristãos) fê-los servir de diversão para o público. Vestiu-os em peles de animais para que os cachorros os matassem a dentadas. Outros foram crucifi cados. E a outros acendeu-lhes fogo ao cair da noite para que a iluminassem. Nero fez que se abrissem seus jardins para esta exibição, e no circo ele mesmo ofereceu um espetáculo pois se misturava com as multidões disfarçado de condutor de carruagem (Gonzalez, 1989, p. 56). Trilhando o caminho da cruz, a igreja primitiva encontra na ressurreição de Cristo a grande esperança de vitória e transformação. Vemos isso, por exemplo, nos textos de Apocalipse 12:11 “[...] por causa do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida”; e Apocalipse 20:4, “vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus... viveram e reinaram com Cristo. Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte nessa ressurreição... sobre estes a segunda morte não tem autoridade [...]”. Dados históricos e informações preservadas pela tradição antiga referentes ao que ocorrera com os apóstolos e outros importantes líderes do cristianismo em seus primórdios, também nos ajudam a entender que o compromisso com o caminho da cruz foi levado até as últimas consequências. Muitos foram submetidos ao martírio por causa do evangelho de Cristo. Vejamos primeiramente alguns exemplos envolvendo aqueles que fi zeram parte dos doze discípulos chamados por Jesus (Mc 3:13-19): André: após a morte e ressurreição de Jesus, foi pregar o evangelho na região do Mar Negro (hoje parte da Rússia); depois, segundo a tradição, pregou na Grécia, em Acaia, onde foi martirizado numa cruz em forma de “X”. Daí, este instrumento de tortura ter fi cado conhecido como “cruz de Santo André”. Bartolomeu: pregou inicialmente na Arábia, depois Etiópia, e por fi m, ao lado de 31História do crist | FTSA | Tomé, atuou como missionário na Índia, onde foi martirizado. Filipe: atribui-se a este apóstolo a fundação da igreja de Bizâncio, cidade mais tarde conhecida como Constantinopla. Posteriormente, pregou o evangelho na Ásia Menor, na região de Hierápolis, onde se convertera a mulher de um cônsul romano pela sua pregação. O cônsul, então furioso por este episódio, mandou prender a Filipe e matá-lo de forma cruel. Matias: Para o lugar de Judas Iscariotes, que se suicidou, a igreja primitiva escolheu Matias como seu substituto (At 1:21-26). Segundo a tradição, esse apóstolo se tornou missionário na Síria, onde acabou sendo queimado numa fogueira por causa do evangelho. Judas Tadeu: segundo a tradição, pregou na Pérsia, onde foi martirizado. Mateus: desenvolveu grande parte de seu ministério pastoreando a igreja de Antioquia, onde também escreveu o seu evangelho. Dirigiu- se posteriormente para a Etiópia, onde veio a ser martirizado por causa da pregação. Pedro: depois de exercer importante liderança na igreja de Jerusalém, este apóstolo transferiu-se para a cidade de Roma, capital do Império. No ano 67, durante perseguição imposta por Nero, Pedro foi preso e condenado a morrer crucifi cado. Relatos do segundo século afi rmam que o apóstolo, antes de sua execução, disse que não era digno de morrer como morrera Jesus, o seu Senhor, e pediu para que fosse crucifi cado de cabeça para baixo, e assim ocorreu. Paulo: considerado um apóstolo “nascido fora de tempo” (1 Co 15:8), tornara-se o grande líder da igreja entre os gentios e propagador da “mensagem da cruz” (1Co 1:18-23). Uma carta de Clemente de Roma, no segundo século, testifi ca o que ocorrera com este apóstolo: Paulo esteve preso sete vezes; foi chicoteado, apedrejado; pregou tanto no Oriente quanto no Ocidente, deixando atrás de si a gloriosa fama de sua fé; e assim, | História do cristianismo I | FTSA32 tendo ensinado justiça ao mundo inteiro, e tendo para esse fi m viajado até os mais longínquos confi ns do Ocidente, sofreu por fi m o martírio por ordens dos governadores, e partiu deste mundo para ir ocupar o seu santo lugar (Anglin e Knight, 1947, p. 13). No ano 67, quando da perseguição movida por Nero, Paulo foi preso e levado a Roma, onde recebera o martírio. Pelo fato de possuir cidadania romana, este apóstolo não poderia ser crucifi cado (algo humilhante para o cidadão romano), por isso deram-lhe como sentença a decapitação (morte instantânea). A tradição conservou de forma reverente o lugar da execução deste apóstolo, juntamente com Pedro: “Desde a mais alta antiguidade, a igreja romana celebrou juntos os martírios de Pedro e de Paulo no dia 29 de junho” (Comblin, 1993, p. 169,170). Simão Zelote: desenvolveu seu ministério de evangelização na Pérsia, onde o culto ao deus Mitras (deus Sol) estava extremamente desenvolvido. Devido a confl itos com seguidores de Mitras, acabou sendo morto por se negar a oferecer sacrifício a esta divindade. Tiago (Filho de Alfeu): pregou o evangelho na Síria. Segundo o historiador antigo Flávio Josefo, foi linchado e apedrejado até a morte (Proença, 2001, p. 103). Tiago (fi lho de Zebedeu): segundo tradições antigas, citadas por Justo Gonzalez, este apóstolo desenvolveu um trabalho missionário na Espanha, pregando na região da Galícia e Zaragoza. “Seu êxito não foi notável, pois os naturais desses lugares se negaram a aceitar o evangelho”. Ao regressar para Jerusalém, percorreu o caminho que deu origem ao lugar hoje conhecido como “Caminho de San Tiago de Compostela”, na Espanha. Em Jerusalém, veio a ser preso, sendo em seguida, decapitado por ordem de Herodes Agripa, no ano 44 (At 12:1,2) (Proença, 2001, p. 103).Tomé: segundo a tradição, desenvolveu sua atividade missionária inicialmente na Índia. Dali dirigiu-se para o Egito, onde realizou importante trabalho entre os habitantes de língua copta, ministério este que deu origem à 33História do crist | FTSA | comunidade até hoje lá existente. A Igreja Cristã Copta, como é conhecida, está separada do catolicismo romano desde o IV século, tendo patriarcas em sua liderança (Proença, 2001, p. 103). Saiba mais Santiago de Compostela: Os Caminhos de Santiago são os percursos dos peregrinos que afluem a Santiago de Compostela, na região noroeste da Espanha, desde o século IX para venerar as relíquias do apóstolo Tiago, cujo suposto sepulcro se encontra na catedral de Santiago de Compostela. A peregrinação foi uma das mais concorridas da Europa medieval, sendo concedida indulgência plena a quem a fizesse. João: este é, reconhecidamente pela tradição e pelos depoimentos do cristianismo antigo, o último apóstolo a morrer. Morreu na velhice, por volta do ano 100, na cidade de Éfeso, onde morava com sua família. Este apóstolo desenvolveu o seu ministério na Ásia Menor, onde foi preso nos anos 90, na época da intensa perseguição imposta pelo imperador Domiciano ao cristianismo, quando acabou deportado à ilha de Patmos, no Mar Egeu, vindo a receber ali a revelação do Apocalipse, por volta do ano 96. Sendo solto posteriormente, permaneceu em Éfeso ensinando até ao fi nal da sua vida (Gonzalez, 1989, p. 60). Além dos apóstolos, outros importantes líderesdo cristianismo primitivo também deram a sua vida pela causa do evangelho. É o caso de Timóteo, discípulo de Paulo, que segundo testemunho de Nicéfero, no segundo século, “foi martirizado durante o reinado de Domiciano, no ano 96 a.D., em Éfeso, cidade onde morava quando o apóstolo lhe escreveu as duas cartas” (Anglin, 1947, p. 15). Também de Tiago “o irmão do Senhor”, que exerceu importante liderança na igreja de Jerusalém, foi martirizado. O historiador Flávio Josefo, que descreveu o sítio desta cidade pelo exército do general Tito, no ano 70, | História do cristianismo I | FTSA34 atribui a destruição de Jerusalém a um “juízo de Deus sobre os judeus pelo fato de terem assassinado a Tiago, o Justo” (Anglin, 1947, p. 11). Também o historiador da igreja, Eusébio, cita um escritor do segundo século, chamado Hegesipo, que descreve a morte de Tiago. Afi rma este autor, que tinha se levantado um confl ito entre os judeus convertidos e os descrentes a respeito de Jesus ser ou não o Messias, e pediram a Tiago que resolvesse a questão. “Os escribas e fariseus” – diz Hegesipo – “Colocaram Tiago de um lado do templo e exclamaram, dirigindo-se a ele: visto que o povo é levado em erro a seguir a Jesus que foi crucifi cado, declara-nos qual é a porta pela qual se chega a Jesus, o crucifi cado?”. Ao que ele respondeu em alta voz: “O Filho do Homem está agora assentado nos céus, à mão direita do grande poder e está para vir nas nuvens do céu”. E como muitos se gloriaram no testemunho de Tiago, estes mesmos sacerdotes e fariseus tomaram a decisão de levá-lo à parte alta do templo e de lá o lançaram abaixo, “passando em seguida a apedrejá- lo, visto não ter morrido logo que caiu no chão, enquanto, ajoelhando-se pedia o perdão de Deus aos seus agressores”. Deste modo ele sofreu o martírio (Anglin e Knight, 1947, p. 11,12). Assista os primeiros 30 minutos do vídeo A expansão do cristianismo antigo e a formação do cânone bíblico. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LshphS25FWY Até o terceiro século da era cristã, a cruz realmente pautou a atuação da igreja. E é prova evidente disso o fato de tal período ter fi cado conhecido como a “era dos mártires”. O historiador Justo Gonzalez descreve com precisão ainda outros fatos desse período, como por exemplo, o testemunho de fé demonstrado por Inácio de Antioquia. Discípulo do apóstolo João, viveu no período de 60 a 117 d.C. Tornou- se célebre pela fi delidade a Cristo em meio às perseguições que sofrera e às cadeias que enfrentou devido à fé que professava. Sendo levado a Roma, em algumas paradas obrigatórias, não se esquecia de escrever às igrejas que o recebiam ou lhe enviavam saudações. Assista os primeiros 30 minutos do vídeo A expansão do Assista os primeiros 30 minutos do vídeo A expansão do Assista os primeiros 30 minutos do vídeo cristianismo antigo e a formação do cânone bíblico. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LshphS25FWYhttps://www.youtube.com/watch?v=LshphS25FWY 35História do crist | FTSA | Para testemunhar sobre Jesus Cristo, Inácio está disposto a enfrentar a morte. E, a caminho do martírio, proferiu as seguintes palavras: “Não quero apenas ser chamado de cristão, quero também me comportar como tal. Meu amor está crucifi cado. Não me agrada mais a comida corruptível... mas quero o plano de Deus que é a carne de Jesus Cristo... e seu sangue quero beber, que é bebida imperecível. Porque quando eu sofrer, serei livre em Jesus Cristo, e com ele ressuscitarei em liberdade. Sou trigo de Deus, e os dentes das feras hão de me moer, para que possa ser oferecido como pão limpo de Cristo” (GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 1989, p. 66). Não é diferente o exemplo de fé de Policarpo de Esmirna, o qual, diante da insistência das autoridades para que jurasse pelo imperador e maldissesse a Cristo, recebendo em troca disto a liberdade, respondeu: “vivi oitenta e seis anos servindo-lhe, e nenhum mal me fez, como poderia eu maldizer ao meu rei, que me salvou?” E estando atado já em meio à fogueira, Policarpo elevou os olhos ao céu e orou em voz alta: “Senhor Deus Soberano [...] dou- te graças, porque me consideraste digno deste momento, para que, junto a teus mártires, eu possa ser parte no cálice de Cristo. Por isso te bendigo e a te glorifi co. Amém” (Gonzalez, 1989, p. 71,72). As experiências de Inácio e Policarpo retratam bem a disposição dos cristãos de tal período em dar testemunho de sua fé em obediência a Jesus Cristo, até às últimas consequências. Para a igreja desse período, a ressurreição foi, sem dúvida, o impulso maior à perseverança e à fi delidade ao caminho da Cruz. Ao falar sobre martírios de cristãos, o teólogo Jürgen Moltmann diz que em Cristo aconteceu o que acontecerá com todos os que trilham o caminho da cruz. Nos sofrimentos de Cristo são antecipados os sofrimentos escatológicos do mundo inteiro. Ele acrescenta que “é Cristo que sofre através dos seus discípulos mártires, pois na Paixão apostólica | História do cristianismo I | FTSA36 pelo evangelho e pela nova criação está presente o próprio Cristo”. Por isso os sofrimentos apostólicos, como perseguição, prisão, pobreza e fome, são também sofrimentos de Cristo e, como tais, dores de parto da nova criação. E fi naliza: “Nestes sofrimentos do caminho da cruz, o mundo presente perece e nasce o novo mundo de Deus” (Moltmann, 1993, p. 216). Acesse o AVA e assista a videoaula: ROMA E AS PERSEGUIÇÕES AO CRISTIANISMO Exercício de Fixação Com base nos conteúdos lidos e na videoaula assistida, assinale a alternativa que indicam as opções que constituíram os motivos pelos quais os cristãos foram perseguidos no Império Romano. I - Negação do culto ao imperador romano. II - A pregação cristã não interferia nas festividades religiosas, não constituindo um motivo para perseguição. III - O anúncio de outro reino a ser instaurado com o advento de Jesus. IV - A presença de pestes compreendida como falta de culto oferecida por parte da população. a) I, III, IV b) I, II, III c) II, III, IV 2. Liturgia e espiritualidade na igreja antiga Na comunidade cristã do primeiro século, iniciou-se um novo paradigma litúrgico, no qual o que predominava não eram os holocaustos expiatórios mosaicos – posto que a cruz era o cerne da fé e da práxis dos crentes, sendo, portanto, o sacrifício de Cristo sufi ciente para a remissão dos pecados, e à “justifi cação” do pecador –, mas sim os atos que provocavam comunhão, misericórdia e solidariedade entre os fraternos. Cremos nesta possibilidade, mesmo considerando a posição de alguns autores, como N. Lohfi nk, que alegam que a prestação de culto a Jesus 37História do crist | FTSA | como Divino no primeiro século é uma hipótese que esbarra na tradição monoteísta judaica, da qual aqueles primeiros cristãos procediam, fato que leva a considerar a possibilidade de ter-se prestado culto a Jesus como “intermediário”, ou seja, um culto que “de Cristo, subia novamente a Deus Pai” (Proença, 2001, p. 24). Sabe-se com segurança, porém, que o paradigma da comunhão entre os da fé era simbolizado pelo “partir do pão”, conforme ensinara Jesus. A comunidade se reunia para o culto todo primeiro dia da semana, impulsionada por duas razões básicas: o “sabor” da comunhão e a celebração do Cristo ressurreto: “É patente que o maior motivo que levou os primeiros cristãos a cultuarem a Jesus foi, sem dúvida alguma, a sua ressurreição, a qual autenticou sua origem divina e seu senhorio” (Proença, 2001, p. 26). Vale destacar algumas das características comuns aos cultos das primeiras comunidades cristãs, com base nas informações de Justo Gonzalez (1993, p. 150-155), a quem uma vez mais nos reportamos. A primeira delas é o espírito de celebração, que aquela comunidade mantinha em quase todos os cultos. Segundo Gonzalez, tudo era motivo para celebração: “a comunhão era uma celebração. O tom característico do culto erao gozo e a gratidão, e não a dor ou a compunção”. Outra característica comum era a participação da comunhão somente aos batizados. A todos era permitido assistir os cultos. Todavia, quando se aproximava o momento da ceia, permaneciam obrigatoriamente no recinto apenas os membros assíduos da igreja, ou seja, apenas os batizados. Neófi tos não batizados e visitantes fi cavam de fora. Gonzalez (1993, p. 152) ressalta ainda outra característica que, desde cedo, fi zera parte do repertório litúrgico daquelas comunidades, que era a celebração nas catacumbas. A razão pela qual se davam estas reuniões nestes locais inauditos, era porque ali estavam enterrados os heróis da fé; e os cristãos criam que a comunhão os unia, não só entre si e com Jesus Cristo, mas também com seus antepassados na fé. | História do cristianismo I | FTSA38 Contudo, muito mais que nas catacumbas, os cristãos reuniam- se nos lares particulares. Há inclusive indicações disto nas Escrituras (como, por exemplo, em At 16:40 e Fl 1,2). Gonzalez afi rma que, à medida que as congregações iam crescendo e se expandindo, algumas casas foram dedicadas exclusivamente aos cultos, e posteriormente foram transformadas em templos (mas com a devida descrição pública). Por muito tempo, pode-se dizer que o cristianismo continuou sendo um “braço” do judaísmo, posto que, mesmo avançando com a doutrina evangélica apostólica, este preservou a tradição ritualística da lei e dos costumes judaicos. Daí se fala em uma tradição “judaico-cristã”, não podendo desvincular a segunda da primeira. Um exemplo é que a igreja primitiva possuía duas vertentes teológicas: a ala judaizante (representada por Pedro), e a ala gentílica, da qual Paulo fora o mentor. Aliás, de acordo com José Comblin, Paulo foi o verdadeiro fundador do cristianismo, como movimento religioso independente do judaísmo (Comblin, 1993). Para melhor traçar o perfi l religioso aqui referido, faremos breve menção do caso de um bispo e pastor da igreja de Roma no século III, Hipólito de Roma (160-235). Exímio escritor e erudito, Hipólito intentara com seus escritos recuperar para a vida da igreja a “verdadeira tradição apostólica”, difundindo seus comentários e lembranças dos costumes legados pelos apóstolos, mas que aos poucos vinham sendo deixados de lado. A espiritualidade cristã, em Hipólito, resumia-se basicamente em guardar preceitos morais e costumes religiosos (“místicos”). Nota-se uma observância exagerada aos mínimos detalhes dos ritos, que regiam a ação humana de forma global. Havia ritos e normas para tudo: quanto ao “uso” correto da sexualidade, sobre a castidade, sobre casados e solteiros, orientações aos batizandos, aos catecúmenos, às viúvas, confessores e até crianças. Sobre a doutrina de Hipólito, um comentarista, que escreveu a introdução de um de seus escritos, disse o seguinte: 39História do crist | FTSA | Torna-se moralista. Considerada a época crítica e difícil da igreja, comenta o livro de Daniel e, fazendo ressaltar as catástrofes do porvir da humanidade, tira lições, dá conselhos [...] Pretende assim levar à confi ança em Deus, mesmo quando se é perseguido ou incompreendido, fatos esses reais em sua vida agitada [...] Liga-se de modo escravizante ao texto bíblico como este se encontra, sem interrogar se tal capítulo fora escrito em hebraico, aramaico ou se encontra apenas em grego [...] Preocupa-se com o ensinamento que pretende tirar de um texto, como perfeito alegorista, sem tomar em consideração a realidade à qual a revelação quer ser resposta (Roma, 1981, p. 08). Dessa forma, observa-se que a liturgia era a própria vida para os cristãos que seguiam tais preceitos, e a vida prosseguia sendo regida por normas e orientações de ordem litúrgica. Exercia-se o sacerdócio sob o controle da tradição apostólica, porém, admitindo paralelamente a submissão a um legalismo ritualístico, reminiscente do judaísmo. Estabelecia-se, assim, uma espiritualidade “seletiva”, onde as regras de fé e prática mais aparentavam um código de posturas moralizante e legalista do que qualquer outra coisa, fato que mais distanciava do que facilitava a aproximação dos neófi tos até Cristo. Acesse o AVA e assista videoaula – Liturgia e espiritualidade na igreja primitiva (10 minutos) / Proença. Exercício de aplicação Com base no conteúdo lido e na videoaula 7, que apontam algumas características litúrgicas da igreja antiga, qual dos elementos abaixo ainda permanece central para a maioria das igrejas cristãs de vertente protestante: a) Papel importante da ceia litúrgica; b) Ausência de templos, sendo utilizadas exclusivamente casas domésticas; c) Demorada preparação para o batismo. Acesse o AVA e assista videoaula – Liturgia e espiritualidade na igreja primitiva (10 minutos) / Proença. | História do cristianismo I | FTSA40 3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo antigo De que modo podemos relacionar o problema das controvérsias teológicas e doutrinárias entre a igreja e outras crenças ou religiosidades do mundo antigo com o desenvolvimento e as facetas que o cristianismo foi assumindo até a conclusão deste período? Essa pergunta servirá como problema e orientação para o que será desenvolvido nesse tópico. A ideia básica é a de expor sobre duas abordagens inter-relacionadas com este problema, a saber: a) caracterização das crenças e/ou “heresias” principais que fi zeram frente ao cristianismo; b) as respostas dadas pela Igreja, seja contra ou a favor da manifestação dessas crenças. Confl itos são comuns quando falamos em ser humano e história. Mais ainda, quando esse ser humano é o crente (tanto no sentido estrito, como lato), e quando essa história é a história da Igreja. Desde os começos da era cristã, vimos controvérsias de todos os tipos: no tempo de Paulo foram o gnosticismo, judaísmo e outras doutrinas semelhantes; no século III foi debatida a questão da readmissão dos “desviados” na igreja. Quer dizer, não faltaram querelas e muito menos respostas (umas se julgando bem fundamentadas, outras nem tanto) para as principais questões que envolviam a fé cristã de um modo geral. Neste tópico, vamos tratar especifi camente sobre algumas das crenças e “heresias” que geraram muitas das controvérsias até o IV século da era cristã. De modo semelhante, também veremos a atuação dos chamados “Pais da Igreja”, tanto no Oriente como no Ocidente cristão, nos casos de afi rmação ou negação e combate de uma determinada doutrina ou crença. As perguntas que podemos lançar inicialmente são: quais os fatores que, na história da igreja, determinaram o surgimento da teologia cristã? O que é uma heresia e como ela se constitui? De que forma a igreja combateu os “hereges” desse período? Em nome de que ou quem e com que “armas” ela combateu e por quê? Qual foi o papel dos pais da igreja nesse contexto de confl itos de interesse e controvérsias doutrinárias? Nosso olhar certamente estará condicionado pelo presente, mas nunca 41História do crist | FTSA | na intenção de julgar, e sim de compreender (ainda que parcialmente) o passado, que sempre estará em suspenso e seus fatos nunca poderão ser apreendidos absolutamente, “tal como aconteceram”. 3.1. Os chamados “movimentos heréticos” Os movimentos chamados “heréticos”, muitas vezes pejorativamente e sem uma devida investigação, são considerados, na história da igreja, como aqueles que se apresentaram subversivos à ortodoxia, por defenderem ideias, práticas e doutrinas que ameaçavam a integridade dogmática e institucional da igreja. Nesse sentido, vale observar que, para a igreja, bastava algum movimento ou pessoa destoar do que era ensinado e determinado pela regra de fé ortodoxa, que já poderia ser considerado “herético” e digno de condenação, o que nem sempre signifi cava avesso à Bíblia e seus ensinamentos. Um exemplo disso está no que aconteceu com os anabatistas no século XVI, perseguidos pela própria igreja protestante e julgados como heregesperturbadores da ordem, basicamente porque ansiavam e lutavam por uma reforma mais profunda (estrutural). Assim, faz-se necessário para nós pesquisadores da igreja, considerar uma multiplicidade de vertentes que geram um dado movimento e certa crença ou doutrina, sem condenar de antemão. O julgamento sempre deve ser evitado, especialmente no estudo da história. O que aqui vamos fazer é um breve “passeio” pelos principais movimentos que foram condenados na era cristã, descrevendo as mais latentes marcas deixadas, tentando exercitar, antes, uma mentalidade crítica e investigativa, e não condenatória. a) Gnosticismo (séc. I) Afi rmava basear-se no “conhecimento” (gnose), embora não se tratasse do conhecimento racional (que, por sinal, era rejeitado pelos gnósticos), mas um conhecimento místico, sobrenatural, transcendental. Defendia uma visão dualista do universo, de origem persa, que separava pares opostos, irreconciliáveis, como o Deus transcendente dos gnósticos (criador da realidade espiritual, boa) e um “demiurgo” (semideus, que | História do cristianismo I | FTSA42 criara o mundo material, mau). Considerando que o mundo material é mau, logo, Cristo não poderia ter tido uma encarnação real, mas aparente, isto é, de natureza docética, um espírito visível, um fantasma. Boa parte dessa visão gnóstica da realidade se arraigou tanto que até hoje continua viva e presente, inclusive na Igreja. b) Marcionismo (séc. II) Um dos movimentos provenientes do gnosticismo. Foi fundado em 144 d.C. por Marcião de Sinope, um cristão religioso que foi denunciado pela igreja como herege. Sustentava em sua doutrina elementos gnósticos, tais como o dualismo, o docetismo cristológico e a recusa do Antigo Testamento. Desenvolveu melhor essa doutrina dos dois deuses, representados nos dois testamentos: A.T. - Demiurgo (justiça/lei); N.T. - Deus Superior (Jesus/Evangelho/amor). c) Montanismo (séc II) Originou-se entre 160 e 170 na Frígia, através de um certo Montanus, um ex-sacerdote das religiões de mistério, convertido ao movimento cristão. Ao ser batizado, pelo ano 150, manifestou a glossolalia (dom de línguas), passando a ensinar, a partir daí, que a direção da igreja não deveria ser por intermédio de cargos ou ofícios, mas sim, pela “voz do Espírito Santo” transmitida pela glossolalia. Passou a anunciar o fi m do mundo através de suas profecias e ordenava a seus adeptos a se reunirem em um determinado local — regiões da Frígia, na Ásia Menor — para aguardar a descida da Jerusalém celestial. Possuía duas discípulas imediatas: Priscila e Maximila, que serviam como suas intérpretes, quando dizia comunicar-se verbalizando “línguas espirituais”. Foi um movimento que queria a renovação das realidades pneumáticas e escatológicas da igreja dos primeiros tempos. Sua doutrina reunia três elementos principais: escatologia, ascetismo e profetismo. c) Arianismo (séc III-IV) Foi uma visão cristológica sustentada pelo presbítero Ário (246- 336), que negava a divindade de Jesus e sua consubstancialidade com o Pai. O início da controvérsia se deu quando o bispo Alexandre de Alexandria 43História do crist | FTSA | (250-328) começou a debater teologicamente com o pai do arianismo. A dinâmica do debate é bastante ampla. Seus pontos eram vários e sutis. Mas, como faz lembrar Justo González (1991, p. 90), “podemos resumir toda a controvérsia à questão de se o Verbo era co-eterno com o Pai ou não”. O próximo tópico trata, dentre outras coisas, dos desdobramentos desta controvérsia na vida da igreja da época. Gonzalez resume grafi camente o campo de forças em torno do qual tal querela gravitava: Ário dizia que o Verbo (Cristo) não era Deus, mas somente a primeira dentre as criaturas. Alexandre, valendo-se da visão do Evangelho de João, afi rmava que o Verbo sempre tinha existido com o Pai e que, junto com o Pai, ele também era Deus, isto é, tinham a mesma essência divina, embora não fossem uma e a mesma pessoa. Interessante notar que ambos os partidos tinham textos bíblicos em que se embasavam e razões lógicas que faziam a posição do oponente parecer insustentável (Gonzalez, 1990, p. 91). 3.2. A reação da igreja: doutrinas e dogmas Evidentemente, a Igreja não permaneceu calada e imóvel, apenas assistindo a implosão de suas doutrinas e práticas tradicionais. O cerne de sua reação se dá por conta de iniciativas isoladas, como a de Alexandre e outros bispos e teólogos da igreja, não citados. Quer dizer, tinha-se, em primeiro lugar, a convicção de que essas contendas só podiam ser vencidas pela força do argumento da fé. E é aqui que começam a surgir, de maneira mais sistematizada, as produções teológicas do período. A teologia nasce como produto do confl ito. Porém, em segundo lugar, entravam também as implicações políticas dessas controvérsias. Com o surgimento da “paz” na Igreja, após a ascensão e “conversão” ao cristianismo do Imperador Constantino o perigo de perseguição se tornou praticamente remoto, ao passo que havia uma liberdade maior para se debater religião. Porém, Igreja e Estado aliaram-se no sentido de conter os confl itos que pudessem surgir entre os fi éis em função de tais debates. | História do cristianismo I | FTSA44 Segundo Gonzalez (1990, p. 88), “Constantino queria que a igreja fosse o ‘cimento do império’, e por isso qualquer divisão nela podia ameaçar a unidade do Império”. Assim, quando a controvérsia ariana tornou-se pública, com o risco de dividir toda a igreja oriental, Constantino resolveu interferir, dando opiniões sobre o assunto. A saída que ele encontrou para resolver esse e outros impasses e colocar a vida da igreja em estabilidade, foi a de convocar uma grande assembleia de todos os bispos cristãos. E foi assim que, em 325, o concílio afi nal se reuniu na cidade de Nicéia, na Ásia menor, perto de Constantinopla. Hoje conhecemos esta assembleia como sendo o primeiro concílio universal da igreja na história. Não se sabe o número exato de bispos ali reunidos. Como informa Gonzalez, acredita-se que tenham sido trezentos. Embora a maioria dos cristãos ali congregados não pertencesse a nenhum dos grupos outrora mencionados, conta-se que a maioria posicionou-se para o lado que defendia a doutrina da Trindade, em oposição à negação da divindade de Jesus por parte dos arianos. Aliás, a natureza divino-humana, ora apenas divina, ora apenas humana, de Jesus foi um dos temas mais recorridos desde o primeiro século, como vimos anteriormente. Em Nicéia, portanto, chega-se ao que podemos chamar de ápice, naquele tempo, das discussões acerca da natureza de Deus: divino? Humano? Um? Dois? Três? Depois de um processo interno à reunião, que aqui não cabe narrar, mas que contou, entre outras coisas, com a intervenção de Constantino, sugerindo que fosse incluída a palavra “consubstancial” (de uma só substância) no documento fi nal, chegou- se à formulação de uma Doutrina da Trindade através do “Credo Niceno”, que hoje em dia é tido como o credo cristão mais universalmente aceito. Pode-se dizer, como fi nalização deste tópico, que as reações da Igreja a todos estes e outros movimentos, crenças e “heresias” que surgiram até o fi m do período antigo, deram-se através de quatro principais instâncias: 45História do crist | FTSA | • Primeiro, o fortalecimento da autoridade apostólica: hierarquização ou clericalização da Igreja; • Segundo, a produção de importantes escritos: credos, confi ssões de fé, manuais. • Terceiro, Concílios eclesiásticos; • Quarto, estabelecimentos de livros “canônicos”, os quais deveriam ser escritos por apóstolos ou por discípulos de apóstolos; serem livros cristocêntricos e, por fi m, serem aceitos perante a comunidade. Acesse o AVA e assista à videoaula 3 – O contexto religioso em que se desenvolveu o cristianismo antigo - e observe a diversidade que caracterizou as primeiras comunidades cristãs. Exercício de reflexão Como você imagina que tenha se dado a construção
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