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76 Unidade II Unidade II 5 A RELIGIÃO NO MUNDO ROMANO A religiosidade na Roma antiga se expressava pelo politeísmo. O povo romano era sincrético e, assim, deuses de outras culturas foram assimilados por ele durante a expansão política e territorial, especialmente, nos períodos monárquico e republicano. Ao conquistar um povo, os romanos incorporavam parte de sua cultura, incluindo seus deuses, como ocorreu com os gregos, os egípcios, os celtas e os germânicos. A religião romana era bastante influenciada pela etrusca, a qual reverenciava os antepassados – especialmente na figura do pater familias, responsável pelo culto aos deuses Lares (os deuses das casas) – e acreditava na possibilidade de prever o futuro, com práticas de adivinhação e interpretação dos fenômenos naturais. Os romanos também se apropriaram das tradições gregas, incorporando seus vários deuses. Dos egípcios, passaram a cultuar Ísis e Osíris. Sabemos disso por meio de vestígios materiais da presença de templos dedicados a eles no território romano. Uma prática religiosa muito comum na Roma antiga era o culto aos deuses protetores do lar e da família em santuários domésticos. Templos para o culto público aos deuses também foram erguidos em diversas províncias romanas. Os rituais religiosos romanos eram controlados pelos governantes. O culto a uma religião diferente à do império era proibido e condenado. Os cristãos, por exemplo, foram perseguidos e assassinados. Por esse motivo, para realizar seus cultos, muitos deles se encontravam nas catacumbas romanas. Vários imperadores exigiram um culto pessoal, como se fossem deuses, prática iniciada no governo do imperador Júlio César. No entanto, no século IV, com o significativo crescimento do cristianismo, este passou a ser considerado religião oficial do Império Romano e, assim, o politeísmo foi aos poucos sendo abandonado. 5.1 A convivência com os deuses Cinco séculos antes de Cristo, as lições de Sócrates e Platão ensinavam que o mundo temporal sensível é apenas sombra do mundo real, em que se encontram os ideais supremos (bem, verdade, beleza). Eles alertavam os gregos para uma realidade que transcendia o mundo visível e passageiro, e diziam que a verdade não era material nem temporal, mas espiritual e eterna. Essa busca pela verdade não se relacionava com os deuses pessoais da mitologia grega. Eram dois sistemas que competiam para alcançar o sagrado. Os gregos contribuíram para a destruição das religiões antigas, pois a disciplina intelectual levou muitos a abandonar a religião em favor da filosofia. No entanto, a filosofia falhou em dar conta das 77 FILOSOFIA DA RELIGIÃO aspirações espirituais da população, fracassou como alternativa religiosa. Com o tempo, passou a haver a necessidade de retornar às questões espirituais da vida. Assim, o grego comum ou se tornava cético, ou se voltava para os antigos cultos. O cristianismo, por sua vez, ofereceu àqueles que aceitavam o pensamento de Sócrates e Platão a possibilidade de uma revelação histórica da beleza, da verdade e do bem na figura de um Deus-homem, Cristo. Enquanto nas propostas filosóficas Deus era concebido como um ser inalcançável, totalmente impessoal; no cristianismo, a divindade revelada em Jesus era um Deus de amor, pessoal, que se importava com o ser humano e se compadecia dele como um pai que deseja o bem ao filho. Lembrete No desenvolvimento do cristianismo, dois grandes modelos de pensamento da filosofia grega foram reinterpretados: o platonismo por Agostinho, e o aristotelismo por Tomás de Aquino. Outra diferença relacionava-se com a visão do pecado: os gregos o enxergavam como algo contratual e mecânico; os cristãos, como uma questão pessoal, que afrontava a Deus e prejudicava os homens. Roma, berço do cristianismo, desenvolveu um sentido bem específico de unidade e de solidariedade em forma de organização política, em especial quanto à lei romana, outorgada a todos do império e originada da antiga lei consuetudinária monárquica. Essa lei foi codificada (Lei das 12 Tábuas), fazendo parte da educação de toda criança romana. Ela incorporava ainda algumas leis das nações que estavam sob o domínio de Roma, por meio do praetor peregrinus, que “era encarregado da tarefa de tratar com as cortes nas quais estrangeiros estivessem sendo julgados, e também se tornou realidade para todos os sistemas jurídicos desses estrangeiros” (CAIRNS, 1995, p. 30). Assim, a Lei das 12 Tábuas, baseada nos costumes de Roma, foi robustecida por leis de outras nações. Os romanos que se especializavam em filosofia do direito defendiam que as semelhanças surgiam tendo em vista o “conceito grego de uma lei universal, cujos princípios foram escritos na natureza do homem” (DALAL, 2016, p. 65) e descobertos em decorrência de um processo racional. Outro meio de contribuir com a unidade das leis foi contemplar os não romanos com a concessão de cidadania romana, prática iniciada antes do nascimento de Cristo e encerrada pelo imperador Marco Aurélio Antonino, conhecido como Caracala. Este “concedeu cidadania romana a todos os cidadãos nascidos livres” (DALAL, 2016, p. 66). Na prática, isso foi o mesmo que conferir a todos os homens a possibilidade de serem cidadãos de um único reino e se submeterem a um mesmo sistema jurídico. Um dos destaques da lei romana era a exaltação da dignidade do indivíduo, com o direito de receber justiça e cidadania romana, unindo homens de diferentes raças numa única organização política. Esse cenário acabou favorecendo a aceitação do que era pregado pelos cristãos, em especial no que se referia à mensagem de unidade da humanidade e à questão do pecado e de sua solução. Certamente, isso teria sido mais difícil na época em que o mundo era dividido em tribos ou cidades-Estado. 78 Unidade II Como os soldados romanos conseguiram manter a paz nas estradas da África, da Ásia e da Europa, iniciada com a expulsão dos piratas do Mediterrâneo, a movimentação dos primeiros cristãos foi facilitada, e assim eles viajavam para pregar sua fé. Ademais, o sistema de estradas criado pelos romanos ligava Roma a todas as regiões do império, alcançando locais muito distantes. Saiba mais Sobre o cotidiano do Império Romano, leia: COTRIM, I. S. Representações da vida cotidiana no Império romano: cultura, sexo e religião em Pompeia (século I d.C.). In: SEMANA DE HISTÓRIA UFES, 11., 2017, Vitória. Anais […]. Vitória: Ufes, 2017. Disponível em: http:// www.periodicos.ufes.br/semanadehistoria/article/view/23097/15668. Acesso em: 6 jan. 2020. Depois de Constantino (272-337) se tornar imperador e adotar o cristianismo como religião oficial do império, o exército desempenhou um papel significativo na divulgação da fé cristã. Os romanos tinham como prática utilizar os habitantes das províncias na guarnição, a fim de suprir as deficiências de contingente. Com isso, os incorporados aprendiam a cultura romana e propagavam suas ideias. Muitos se converteram ao cristianismo, levando a fé cristã às cidades em que viviam. As conquistas romanas colaboraram para esse processo. Os povos subjugados se sentiam abandonados por seus deuses, que não conseguiram protegê-los dos romanos, ficando insatisfeitos com as religiões que professavam. Roma também oferecia uma ampla variedade de deuses, os quais conviveram com a divindade cristã por aproximadamente três séculos. As religiões de mistérios eram um dos maiores adversários do cristianismo. Chamavam-se assim porque a participação nelas era reservada apenas aos iniciados e porque pareciam oferecer muito mais do que um meio de auxílio emocional e espiritual. Entre elas, estava o culto a Cibele, a grande mãe-terra, levado da Frígia para Roma. Cibele era conhecida como a deusa da fertilidade e tinha ritos específicos, como a morte e a ressurreição de seu consorte. O culto a Ísis, que vinha do Egito, era análogo ao de Cibele, enfatizando a morte e a ressurreição. O mitraísmo, trazido da Pérsia, também gozava de boa reputaçãoentre os soldados romanos. Burkert (1991, p. 20) afirma: As chamadas religiões de mistérios ficaram conhecidas como uma alteração básica na postura propriamente religiosa, transcendendo a perspectiva realista e pragmática da religião romana e possuindo uma espiritualidade mais elevada. Eram também consideradas religiões de salvação. O culto a Cibele tinha por rito o sacrifício de um touro, momento em que os devotos se banhavam no sangue do animal. O mitraísmo, por outro lado, promovia refeições sacrificiais. 79 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Para os apologistas e os heresiarcas cristãos, a questão se colocava num outro plano, pois aos múltiplos deuses do paganismo eles opunham o deus único da religião revelada. Era-lhes necessário, portanto, demonstrar, por um lado, a origem sobrenatural do cristianismo – e, por consequência, sua superioridade – e, por outro lado, explicar a origem dos deuses pagãos, sobretudo a idolatria do mundo pré-cristão. Também precisavam explicar as semelhanças entre as religiões dos mistérios e o cristianismo. Foram sustentadas várias teses: 1) os demônios, nascidos do comércio dos anjos caídos com as filhas dos homens, tinham arrastado os povos para a idolatria; 2) o plágio: os anjos maus, conhecendo as profecias, estabeleceram semelhanças entre as religiões pagãs e o judaísmo e o cristianismo, a fim de perturbarem os crentes; os filósofos do paganismo haviam inspirado suas doutrinas em Moisés e nos profetas; 3) a razão humana pode elevar-se por si mesma ao conhecimento da verdade, portanto o mundo pagão podia ter um conhecimento natural de Deus (ELIADE, 1992, p. 7-8). Se por um lado o cenário político de Roma era propício à expansão do cristianismo, por outro o ambiente intelectual era todo influenciado pela cultura grega. Mesmo que os romanos fossem exímios construtores de estradas, pontes e prédios, foram os gregos que erigiram os grandiosos edifícios da mente, construindo a cultura intelectual do império em substituição à cultura rural da antiga república. Quando o Império Romano nasceu, o grego era a língua universal. Só depois o latim se tornou universal no mundo medieval erudito, assim como o inglês no mundo contemporâneo. Contudo, é importante frisar que não se tratava mais do grego clássico, mas do coiné, um dialeto falado pelo homem comum, utilizado pelos cristãos para escrever o Novo Testamento e pelos judeus para a Septuaginta. Observação Coiné era a língua grega comum falada e escrita nos tempos do Novo Testamento, nos países da parte oriental do Mediterrâneo. O grego coiné foi difundido desde os tempos de Alexandre, o Grande, por soldados e comerciantes do mundo helenístico, entre 338 e 146 a.C. Foi por intermédio dele, e não do grego clássico, que os cristãos tiveram a chance de se relacionar com povos do mundo antigo. Cairns (1995, p. 32) diz: Adolf Deissman (1866-1973) descobriu, no fim do século passado, que o grego do Novo Testamento era o mesmo utilizado pelo homem comum do primeiro século nos relatos deixados em papiros sobre seus negócios e em documentos fundamentais de sua vida diária. Eruditos como James Hope Moulton e George Milligan construíram a base científica para a descoberta de Deissman, ao estudarem comparativamente o vocabulário dos papiros e o do Novo Testamento. Essa descoberta deu origem a inúmeras traduções modernas. Se o evangelho foi escrito na língua do 80 Unidade II povo comum à época de sua produção, raciocinaram os tradutores modernos, deveria ser vertido para a língua do homem comum de nossos dias. Quando do nascimento de Cristo, muitos gregos e romanos já tinham abdicado do politeísmo para assumir as filosofias epicurista e estoica, bem como as religiões de mistérios, e isso fortaleceu o desejo dos seres humanos por uma relação mais íntima com um Deus que satisfizesse corações sedentos por uma religião que abrangesse uma espiritualidade maior. Desse modo, os sistemas religiosos romano e grego contribuíram para o crescimento do cristianismo: o primeiro, por abandonar as religiões politeístas; o segundo, por demonstrar a incapacidade da racionalidade filosófica em alcançar Deus. Em certo sentido, as religiões de mistérios também colaboraram, porque traziam os termos pecado e perdão, fazendo com que as pessoas do Império Romano se dispusessem a prestar atenção numa religião que oferecia uma melhor perspectiva espiritual para a vida. Lembramos que os primeiros cristãos europeus eram judeus. González (1995a, p. 15) afirma: Portanto, a Igreja nunca foi uma comunidade desprovida de contato com o mundo exterior. Os primeiros cristãos eram judeus do século primeiro, e foi como judeus do século primeiro que escutaram e receberam o evangelho. Depois, a nova fé foi se propagando, tanto entre os judeus que viviam fora da Palestina como entre os gentios que viviam no Império Romano e ainda fora dele. Diferentemente dos gregos, os judeus não tentavam encontrar Deus por intermédio da racionalidade, pois já pressupunham a existência dele. Obedeciam a Abraão e aos profetas, e aguardavam o Messias (o Salvador). O judaísmo é o berço do cristianismo. Os judeus se diferenciavam da maioria das religiões pagãs especialmente pelo monoteísmo explícito. Os judeus, depois de Moisés, nunca mais caíram no pecado da idolatria. Apegaram-se de forma definitiva ao Deus de Israel, condenando constantemente os deuses dos pagãos através de seus profetas, que se referiam a eles como falsos deuses. O Messias que eles aguardavam era o único que poderia estabelecer a justiça na terra. Essa esperança messiânica era proclamada pelos judeus no mundo romano. De acordo com o Novo Testamento, os discípulos de Cristo também esperavam por esse reino sobre a terra, mas aguardavam uma segunda vinda de Jesus. A ideologia monoteísta defendida pelos judeus cristãos trouxe alguns problemas para a população. Eles eram contra o helenismo, que mesclava as culturas das nações subjugadas e pretendia equiparar os deuses de diversos povos. Os judeus viam nele uma séria ameaça à fé no Deus único de Israel. Desde a conquista de Alexandre, o Grande, até a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C., houve um longo conflito, na tentativa de que os judeus trocassem o monoteísmo pelo politeísmo. Sobre essa hostilidade, González (1995a, p. 16-17) escreve: O ponto culminante dessa luta foi a rebelião dos macabeus. Primeiro o sacerdote Matatias e depois seus três filhos – Jônatan, Judas e Simeão – se rebelaram contra o helenismo dos selêucidas, que pretendia impor deuses 81 FILOSOFIA DA RELIGIÃO pagãos entre os judeus. O movimento teve algum êxito. Mas já João Hircano, o filho de Simeão Macabeu, começou a se amoldar aos costumes dos povos circunvizinhos e a favorecer as tendências helenistas. Quando alguns dos judeus mais restritos se opuseram a essa política, desatou-se a perseguição. Por fim, no ano de 63 a.C., o romano Pompeu conquistou o país e depôs o último dos macabeus, Aristóbulo II. Os romanos eram tolerantes em relação aos costumes e à religião das nações conquistadas, inclusive ofertando aos macabeus certa medida de autoridade, permitindo que seu líder usasse o título de sumo sacerdote e etnarca. No entanto, o foco do monoteísmo judeu causou alguns problemas: a insistência em render culto somente a Deus levou a rebeliões ante a menor ameaça a sua fé. Lembrete O cristianismo, religião monoteísta, deve seu crescimento aos sistemas romano e grego: o primeiro enfraqueceu as religiões politeístas, e o segundo demonstrou a incapacidade da razão de alcançar a Deus. Herodes, ao tentar introduzir o politeísmo no país, passou a construir templos em honra a Roma e a Augusto em Samaria e Cesareia. Ao colocar uma águia de ouro na entrada do Templo, os judeus se opuseram ferozmente, fazendo Herodes recorrer à violência, medida também adotada por seus sucessores. Essa postura dos judeus se justificava pela defesa dos valores éticos e pelo elevado padrão de comportamento apresentado nos dez mandamentos,uma vez que esbarravam nos demais sistemas éticos e práticas corruptas da época. Como vimos, para os judeus, o pecado não era uma espécie de fracasso, mas uma violação dos mandamentos divinos, marcada por um coração impuro e por atos pecaminosos. A perspectiva moral e espiritual registrada no Antigo Testamento colaborou para que a doutrina da redenção resolvesse o problema do pecado através de um Deus que se compadecia de seu povo, e não por meio de sistemas racionalistas éticos ou de religiões de mistério. O Antigo Testamento se impõe com a vinda do cristianismo, em especial quando Jesus e seus apóstolos o mencionam, reverenciando-o como a palavra de Deus legada ao ser humano. Os gentios que o leram se habituaram à fé judaica, e muitos adeptos judeus se converteram ao cristianismo devido ao livro sagrado e à nova Igreja, vistos como literatura viva. As sinagogas judaicas foram essenciais para o início e o desenvolvimento do cristianismo antigo, pois desde o cativeiro babilônico tinham se tornado parte da vida dos judeus, como espaços que substituíam o Templo de Jerusalém. As sinagogas passaram a ser a “casa de pregação do cristianismo primitivo” (CAIRNS, 1995, p. 36). Nelas, muitos gentios e judeus se familiarizaram com um jeito súpero de viver, e é provável que a forma de governança e justiça praticada na Igreja primitiva tenha sido herdada dos costumes judaicos nas sinagogas. 82 Unidade II Observação Qualquer comunidade habitada por pelo menos dez judeus adultos deve ter um local designado onde possam se reunir para a prece. Esse local é a sinagoga. Todos esses elementos evidenciam que houve benefício ao cristianismo por diversos fatores: a época em que surgiu, o período de sua formação e a região em que se desenvolveu. O centro cultural era Roma, que dominava o mundo mediterrâneo. A língua comum (o grego coiné) permitiu que a mensagem fosse levada para a maioria das regiões do Império e de volta à Palestina, o local de nascimento da nova religião. A Palestina estava bem situada: era “um importante cruzamento, que ligava os continentes da Ásia e da África à Europa por via terrestre, e muitas das batalhas importantes da história antiga foram travadas por causa da posse dessa estratégica região” (CAIRNS, 1995, p. 36). Sem dúvida, as condições para a divulgação das ideias cristãs através do mundo mediterrâneo foram muito favoráveis até o terceiro século de sua existência. O cristianismo se fundamenta sobre a própria história temporal e, de forma indissolúvel, sobre a vida e a morte de Cristo. Para entender um pouco de sua história, é necessário ler o livro que os cristãos dizem ser a revelação de Deus a seu povo, a Bíblia. A história da Igreja é contada em Atos dos Apóstolos. Inicialmente, apresenta-se uma Igreja forte em Jerusalém, que aos poucos chegou até a capital do império. Ainda que haja poucos dados sobre aquela que seria a primeira Igreja, sabe-se que essa comunidade teve algumas dificuldades, em especial quanto ao povo que não era judeu e que ia às reuniões. Houve problemas com a arrecadação de contribuições, como o caso de Safira e Ananias, os quais, ao mentir sobre o valor de venda de uma propriedade, caíram mortos. Os helenistas também reclamavam, pois suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária de esmolas. Como resultado dessa desavença, houve o primeiro processo de eleição para cargos administrativos na Igreja cristã, embora apenas alguns fossem responsáveis por divulgar a fé. Os judeus que abraçaram o cristianismo não pensavam que faziam parte de uma nova religião, mas que continuavam judeus, pois sua fé consistia na realização da promessa messiânica tão aguardada pelos hebreus e que havia se cumprido com Jesus Cristo. Por essa razão, os cristãos da Igreja de Jerusalém continuavam frequentando o culto no Templo e guardando o sábado, mesmo que perseguidos pelos judeus. A perseguição feita ao apóstolo Paulo e aos demais cristãos ocorreu porque pregavam que em Jesus se cumpriram todas as promessas feitas a Israel. Para celebrar esse fato, eles repartiam o pão, momento em que comemoravam a ressurreição e o início de uma nova era. Sobre esse rito, registrou-se o seguinte: “E, perseverando unânimes todos os dias no Templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração” (BÍBLIA…, [s.d.], Atos 2,46). 83 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Na prática do jejum, os primeiros cristãos seguiram o mesmo modelo dos judeus. Os mais regrados o faziam duas vezes por semana, diferindo apenas em relação aos dias escolhidos: “Enquanto os judeus jejuavam segundas e quintas, os cristãos jejuavam quartas e sextas, provavelmente em memória da traição de Judas e da crucificação de Jesus” (GONZÁLEZ, 1995a, p. 35). Observação O jejum, prática comum em determinadas religiões, consiste em alguém se abster de alimentos e/ou água, podendo ser total ou parcial. Inicialmente, a liderança da Igreja primitiva coube aos 12 apóstolos que acompanharam Jesus em seu ministério, mas não apenas a eles. Tiago, irmão de Jesus, gozou de muita autoridade após se reunir ao grupo. Com isso, surgiu a tradição que atribui a Tiago o título de bispo de Jerusalém, sendo ele o primeiro chefe dessa Igreja. No que se refere ao crescimento e ao desenvolvimento da primeira Igreja, Branco (2014, p. 20) destaca: Judeus de todas as partes do mundo mediterrâneo estavam presentes em Jerusalém para ver a Festa do Pentecostes por ocasião da fundação da Igreja. […] A manifestação sobrenatural do poder divino no falar línguas, claramente relacionada à origem da Igreja, e a vinda do Espírito Santo levaram os judeus presentes a declarar a maravilha das obras de Deus em sua própria língua. O apóstolo Pedro aproveitou a oportunidade para proferir o primeiro sermão já pregado, bem como para proclamar a messianidade de Cristo e a graça salvadora. Três mil pessoas aceitaram sua palavra e foram batizadas. Foi dessa maneira que a entidade espiritual, a Igreja invisível, o corpo do Cristo ressuscitado, começou a existir. O crescimento foi rápido. Logo o número chegou aos 5 mil. Muitos eram judeus helenistas da dispersão (a diáspora) que estavam em Jerusalém para celebrar as grandes festas da Páscoa e do Pentecostes. Nem mesmo os sacerdotes judeus ficaram imunes ao contágio da nova fé. Vários se tornaram membros da Igreja primitiva em Jerusalém. Os judeus não ficaram muito contentes com esse rápido crescimento, pois suas autoridades acreditavam que o cristianismo representava uma intimidação. Por isso, tanto os intérpretes da lei quanto os sacerdotes se uniram para fazer oposição à nova fé. A princípio, o órgão político-eclesiástico que originou a perseguição foi o Sinédrio, que obteve dos romanos permissão para supervisionar a vida religiosa e civil do Estado. Por duas vezes, os apóstolos João e Pedro foram proibidos de pregar a mensagem da fé, mas nenhum dos dois obedeceu a essa ordem. Depois, a perseguição tomou um cunho mais político, e Herodes matou Tiago e prendeu Pedro. Estevão foi acusado injustamente de blasfêmia contra Moisés, inclusive com falsas testemunhas, tornando-se o primeiro mártir da Igreja cristã. Ao comparecer ao Sinédrio, denunciou os líderes judeus por não aceitarem Cristo como seu Messias, sendo executado por apedrejamento devido a tal afirmação. 84 Unidade II Observação O Sinédrio era a corte suprema da lei judaica, com a missão de administrar justiça, interpretando e aplicando a Torá, tanto oral como escrita. Era a representação do povo judeu perante a autoridade romana. O cristianismo primitivo proporcionou uma grande mudança social em determinadas regiões. A Igreja de Jerusalém insistiu na igualdade espiritual dos sexos e valorizou a importância da mulher na Igreja. Um grupo de homens criado para se dedicar ao trabalho social foi outro destaque, com um forte apelo para a caridade. Isso mostra que a divulgação da fé, que no início ficou a cargo dos apóstolos, não descuidava da parte social.Em seguida, outros ofícios foram criados para cuidar da Igreja, a qual não parava de crescer. Presbíteros e diáconos ficaram responsáveis pela parte administrativa, formação essa que até hoje se faz presente na Igreja Católica. 5.2 Elementos do cristianismo Em termos técnicos, o cristianismo é uma religião monoteísta que há cerca de 2 mil anos derivou do judaísmo na região do Oriente Médio. Sua figura central é Jesus Cristo, que se acredita ser o filho de Deus, a encarnação humana da própria divindade. Trata-se da maior religião do planeta (reunindo cerca de 30% da população terrestre) e da mais influente no mundo ocidental. Muitas doutrinas cristãs diferenciadas entre si surgiram desde as primitivas comunidades cristãs. O aparecimento dessas comunidades deu-se em plena expansão do Império Romano. Como o imperador romano era também a figura religiosa máxima do Império, quaisquer seitas eram prejudiciais a seu poder absoluto. Com isso, as comunidades cristãs desse período foram perseguidas. No entanto, mais tarde, o Império Romano adotaria as crenças cristãs como sua religião oficial, ocorrendo assim a fundação da Igreja de Roma. A partir dela, originaram-se as diversas doutrinas cristãs. Como visto, a nova religião cristã surgiu na Palestina, região que tinha muita ligação comercial e cultural com o Egito. O faraó da época era ptolomaico, ou seja, descendia de uma cultura grega helenista. Quando Jesus nasceu, Seth não era mais considerado membro da família de Ísis, Osíris e Hórus. A proeminência de Hórus estava bem estabelecida, e a filosofia da mãe protetora (Ísis) e de seu filho gerado por magia (Hórus) era o ideal teológico aceito. Na narrativa de sua infância, Jesus lembra mais Hórus do que Osíris. Jesus tinha uma grande mãe, que também havia sido impregnada de maneira divina, e que depois ficou conhecida como divina entre as mulheres e como virgem mãe. Embora em Osíris possamos reconhecer Jesus em sua maior essência espiritual depois de adulto, as fugas do menino Jesus nos braços de Maria, em razão das ameaças de Herodes, assemelham-se às do pequeno Hórus nos braços de Ísis, o qual o usurpador do trono do Egito (Seth) queria matar porque ele (Hórus) estava destinado a ser o rei legítimo. Para os seguidores de Jesus, ele também estava destinado a ser 85 FILOSOFIA DA RELIGIÃO o rei dos judeus, o Messias, o libertador de seu povo da tirania estrangeira e de todo o sofrimento terrestre. Mas isso só podia acontecer se Herodes morresse. As aspirações seculares ou políticas não beneficiaram Jesus, e ele acabou sendo apenas o rei espiritual de uma divisão dos judeus. Só mais tarde se tornou o eterno rei espiritual para milhões dos que ainda são considerados gentios pelos judeus (SAMBU, 2007). Hórus e Osíris também formavam uma pessoa. Ao examinar os aspectos mitológicos e simbólicos dos principais atores da narrativa de Osíris, verificamos os paralelos com a narrativa cristã. Essa entidade composta, Osíris-Hórus, é o arquétipo do evangelho de Jesus. Esse argumento se sustenta pelo fato de que, quando os gregos adotaram Osíris como um de seus deuses, chamaram-no Dionísio, literalmente “o filho de Deus” em grego. Esse é o título que mais tarde será atribuído a Jesus (SAMBU, 2007). Maria, mãe de Jesus, atraiu os primeiros convertidos egípcios ao cristianismo por causa de sua semelhança com a Ísis adulta. O amor e a devoção das duas grandes mães a um filho perseguido que mais tarde se torna grande são semelhantes. Como Maria e o menino Jesus, muito frequentemente Ísis era representada em esculturas amamentando seu filho, Hórus. Outros deuses, como Tot, às vezes são mostrados oferecendo presentes a Ísis enquanto ela se encontra na postura de mãe e filho. A imagem popular de mãe e filho, difundida por antigos artistas egípcios, retratava a mãe como criadora, e era natural apresentá-la em sua postura ideal, segurando o filho, porque isso simbolizava todo o seu poder de criação (SAMBU, 2007). O cristianismo primitivo era controlado no Egito por sacerdotes gnósticos egípcios, que estavam abandonando a fé em Ísis sem se separar completamente dela e de sua sagrada família. A coisa mais importante sobre os pregadores gnósticos dessa época é que eles acharam fácil e apropriado criar alegorias, isto é, inventar, adotar, adaptar e contar histórias que se adequassem a determinada moral em determinado momento, considerando o nível de educação do público. Para aqueles teólogos, a historicidade do evento não importava. O valor exegético da narrativa superava todas as outras considerações. A extensão da influência desses sacerdotes e de seus escribas sobre a escrita do Novo Testamento pode ser medida quando se estudam os atributos alegóricos. Abaixo de uma imagem da sagrada família de Ísis, Hórus e Osíris, podemos ler que eles compõem a trindade divina do pai, da mãe e do filho (SAMBU, 2007). Essa história é puramente alegórica e simbólica. Não se pode comprovar nada a respeito da existência terrena desses deuses. Osíris foi o maior deus do Egito, filho do fogo celestial. Ísis é a virgem mãe, a personificação da natureza. Ela é descrita como a mulher vestida com o sol da terra do Egito. Hórus foi o filho que sucedeu Osíris na linha dos soberanos divinos do Egito. Ele é chamado de amado do céu e amado do sol. Hórus também é a substância de seu pai, isto é, relacionado à morte e ao tempo. O mundo é julgado por ele. Ísis era especialmente popular em seu aspecto de mãe com o bebê Hórus. Tanto ela quanto Hórus eram retratados com pele negra, característica dos etíopes. Juntos, Ísis e Hórus formam a primeira e original madona negra. Os afrescos romanos quase sempre mostram os sacerdotes de Ísis como etíopes. As legiões romanas levaram sua imagem e seu culto para os confins da Europa selvagem. Quando o cristianismo finalmente penetrou nessas regiões, onde quer que uma imagem de Ísis segurando o pequeno Hórus fosse encontrada, ela era transformada na madona negra com seu filho. Por mais de um milênio e meio, essas madonas negras foram colocadas em santuários sagrados da Europa católica e, até hoje, milhões de europeus se inclinam para adorar uma deusa africana e seu filho (SAMBU, 2007). Nesse sentido, não podemos esquecer que a padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, é negra. 86 Unidade II A leitura do que os antigos egípcios escreveram sobre Osíris, centenas de anos antes de Jesus nascer, faz lembrar capítulos do Novo Testamento. Os estudiosos reconhecem, por exemplo, o paralelismo fenomenológico entre a ressurreição de Jesus Cristo e a ressurreição de Osíris. Além disso, quando Jesus nasceu, o povo do Império Romano, do qual a Palestina fazia parte, celebrava a miraculosa ressurreição corporal de Osíris. O paralelismo entre esses episódios de ressurreição não termina no momento do reaparecimento físico. Cristo, como Osíris, não retoma sua vida terrena depois da ressureição; ambos sobem ao céu (SAMBU, 2007). Osíris era denominado o salvador da humanidade e tinha um lugar especial na vida e nas esperanças das pessoas comuns como nenhum outro deus. Mas um dia apareceu o sucesso da globalização do ministério de Jesus. Osíris era o deus salvador original, concepção da qual provinha o termo técnico dos teólogos soteriologia, que significa “salvação”. Osíris deu a seus devotos a esperança de uma vida eternamente feliz em outro mundo, governado por um rei justo e bom. Quando Rá reinou sem a ajuda de Osíris, ele proibiu a entrada de pessoas comuns no céu. Somente quem era da linha de descendência de Rá, e por isso espiritualmente dependente do faraó, considerado uma forma humana de Rá, tinha garantida a entrada no céu. No entanto, o caráter humano, o sofrimento e a morte de Osíris mudaram tudo isso, trazendo um sentido de identificação e pertencimento mais próximo das massas. O movimento que adotou Osíris como deus foi em sua época uma revolução social e espiritual, pois finalmente as massas podiam se encontrar com a linhagem real nasala de julgamento de Osíris como iguais. O destino de Osíris estava aberto a todos os indivíduos, através da confissão e do julgamento. Eles tinham de se provar moralmente aceitáveis para ter acesso ao céu. Essa igualdade de direitos perante o criador foi o cerne para o sucesso do culto de Osíris, algo que ainda hoje é um pilar e um grande diferencial de seu sucessor, o cristianismo. Outras semelhanças entre Osíris, Hórus e Jesus podem ser mostradas por meio do calendário. Os antigos egípcios contavam 360 dias para o ano e mais cinco dias adicionais, que representavam o aniversário de alguns deuses egípcios. Os cinco dias adicionais efetivamente transformaram o ano em 365 dias. O primeiro dos deuses a nascer durante os cinco dias foi Osíris, o segundo foi Hórus, o terceiro foi Seth, o quarto foi Ísis e o quinto foi Néftis. O ano novo egípcio começava no dia seguinte ao aniversário de Néftis. Os egípcios comemoravam quatro dos cinco dias adicionais. O terceiro dia, que coincidia com 28 de dezembro, era o dia em que Seth, o deus do mal, nasceu. Era considerado um dia ruim, e não se fazia nenhum negócio nele. Quando o cristianismo chegou e Jesus assumiu plenamente os atributos de Osíris e Hórus, foi natural que a figura de Seth se transformasse no rei Herodes, o rei dos judeus. Seth, quando foi rei do Egito, caçou e tentou matar o bebê Hórus, depois de matar Osíris, pai de Hórus. Assumindo as propriedades temperamentais de ciúme assassino, o rei Herodes, da alegoria cristã, procura matar Jesus ordenando a morte de todos os meninos bebês. Portanto, Herodes e o assassinato de crianças estão associados a 28 de dezembro, o chamado Dia dos Santos Inocentes. Tudo isso confirma a extensão da influência da religião do Egito sobre o início do cristianismo (SAMBU, 2007). Outro fato importante é que o dia do Natal cristão, 25 de dezembro no calendário gregoriano ocidental, cai exatamente no último dia do antigo ano egípcio. Este também é o dia aproximado do solstício de inverno, que foi igualmente reconhecido como sagrado na Europa pagã. É o dia em que, no hemisfério norte, o sol atinge seu ponto mais baixo e está acima do horizonte sul durante o período 87 FILOSOFIA DA RELIGIÃO mais curto do ano. Além de ser o dia mais curto, ele acontece entre as duas noites mais longas do ano. No hemisfério norte, o sol nasce e se põe no ponto mais ao sul, e tem a elevação mais baixa ao meio-dia, em comparação com sua elevação ao meio-dia nos outros dias. O dia do solstício de inverno é o que tem menos luz solar. Ao mesmo tempo, marca o fim da descida do sol no céu do hemisfério norte e o começo de sua ascendência, até atingir o solstício de verão, seis meses depois. Segundo relatos romanos, os anglo-saxões e os alemães festejavam nesse dia o Dia da Criança. Mais tarde, os romanos decidiram comemorar no dia 25 de dezembro o aniversário do sol invicto. Isso aconteceu antes de o Império Romano se tornar cristão, ou seja, a escolha não foi influenciada pelo cristianismo. Tecnicamente o solstício de inverno natural cai entre os dias 20 e 21 de dezembro. Mas naquela época, para o olho humano, a determinação do sol era clara no dia 25 de dezembro, que por essa razão foi escolhido como dia da celebração. Posteriormente os romanos usaram esse dia para marcar o início das celebrações da Saturnália, uma época de intensa folia (SAMBU, 2007). Observação A Saturnália era um festival da Roma antiga, em honra a Saturno, que ocorria em 24 de dezembro, quando o sol voltava a subir na linha do horizonte. A fixação do Dia do Sol e, em seguida, do Natal no dia 25 de dezembro se deve muito à influência egípcia, porque o aniversário do deus Osíris cai nesse dia. Uma vez que o registro da observância da data pelos egípcios é muito mais antigo, restam poucas dúvidas sobre qual deles foi o antecedente e, portanto, o protótipo. O antigo aniversário egípcio em 25 de dezembro foi reconhecido por Roma como o dia do nascimento de Jesus no ano de 336 (SAMBU, 2007). É fácil lembrar a proposta de monoteísmo de Aquenáton, com seu deus sol, quando vemos a posição do sol determinar a nova data de aniversário de Jesus Cristo. Mas há vários “filhos do sol”, que também tiveram seu aniversário marcado para essa data. Como nota Sambu (2007, p. 424), “todos os deuses pagãos foram identificados com o sol, que foi considerado o grande pai, o gerador de toda a vida, enquanto a deusa era a terra ou matéria, a fonte passiva de geração”. O antigo dia do Natal era 6 de janeiro, celebrado no passado pelos cristãos de Jerusalém, enquanto os primeiros cristãos do Egito celebravam a data como o dia do batismo de Cristo. Agora todos os cristãos comemoram esse dia como o Dia da Epifania. Na Igreja Católica do Oriente, a Igreja Ortodoxa, o dia marca o batismo de Jesus. Na Igreja Católica Romana, é chamado Dia de Reis e lembra a visita dos reis magos. Curiosamente, a data de 6 de janeiro também coincide com o dia de limpar as casas, costume dos anglo-saxões desde os tempos pagãos (SAMBU, 2007). É interessante perceber que o cristianismo foi coletando reminiscências de diversas crenças dos povos conquistados por Roma e, assim, construindo novos símbolos. Uma das questões mais complicadas é a da trindade, discussão que foi tão importante entre os primeiros cristãos que acabou suscitando o primeiro concílio de bispos, justamente para decidir sobre o assunto. Todas as principais divindades egípcias antigas 88 Unidade II integravam uma trindade. A mais antigas delas era a ligação de Ptah, Amon e Rá. Os três eram deuses que construíam. Cada um a seu modo construiu o mundo, o que levou os egípcios a reverenciar essas entidades como três aspectos do mesmo deus. Ísis também formou uma trindade divina com Osíris e Hórus. Alguns estudiosos da filosofia da religião dizem que a ideia da santíssima trindade do Novo Testamento, implícita em Mateus 28,19 e mais aceita no Concílio de Niceia, representa uma transição do aspecto trinitário da antiga teologia egípcia. Osíris era o Pai. Hórus era o filho. Ísis não se tornou Maria devido ao machismo exacerbado da época; tornou-se antes o Espírito Santo, que traz a luz e a paz. No Antigo Testamento não há nenhuma menção de que Deus divida seu espaço ou seu poder. Cabe lembrar, porém, que grande parte do desenvolvimento do primeiro cristianismo aconteceu no Egito, e que eram os padres egípcios que estavam utilizando analogias de crenças anteriores para converter as pessoas à religião. O berço da religião cristã era um Egito que estava sofrendo grandes mudanças socioculturais, abandonando o helenismo desenvolvido desde a conquista de Alexandre, o Grande, quando os faraós passaram a ser os descendentes de Ptolomeu, general grego que ficou no controle do Egito. Cleópatra era dessa família e, nesse sentido, sua cultura era grega, e não egípcia. Quando o cristianismo estava nascendo, o Egito estava sendo incorporado pelo Império Romano. Tal subjugação não fez muita diferença culturalmente falando, porque vários soldados romanos e mesmo administradores tinham adotado a forma egípcia de religião, sendo, naquelas regiões do Império, culturalmente egípcios. Por isso, podemos afirmar que, fora de Roma e de Israel, os primeiros padres cristãos eram em sua maioria homens que estavam se convertendo da religião de Ísis para o cristianismo. Os antigos teólogos cristianizados de Ísis, cuja maioria era formada por nativos, mestiços egípcios e gregos egípcios, continuaram exercendo influência cultural sobre a nascente religião cristã (SAMBU, 2007). Um dos primeiros padres da Igreja foi Tertuliano (Quintus Septimius Florens Tertullianus), a quem se atribui a adaptação do conceito egípcio de trindade como doutrina cristã. Ele era cidadão de Cartago, no norte da África, e foi o primeiro escritor de língua latina a exercer uma influência considerável no desenvolvimento da doutrina cristã. Mas qual o motivo de se insistir numa trindade numa religião monoteísta? Figura 4 – Tertuliano(c. 160-240) 89 FILOSOFIA DA RELIGIÃO As religiões egípcias constituíam trindades porque sabiam que o deus superior era inacessível aos mortais. Desse modo, o acesso ao deus superior era mediado pelo espírito do bem e pelo espírito do mal, que serviam de mensageiros para as súplicas dos fiéis. Com o tempo, as trindades na religião egípcia criaram um lugar separado para o espírito do mal, representado por Seth, aquilo que poderíamos chamar inferno. Isso abriu espaço para as trindades que ligam as divindades do bem, no intuito de proteger melhor as pessoas. É interessante a ideia de santíssima trindade, que originalmente devia incluir Maria, Jesus e Deus. O motivo óbvio é que Deus gerou seu filho no ventre de Maria, consagrando-a. A trindade final, porém, acabou substituindo Maria pelo Espírito Santo. Com isso, temos representações na forma de imagens e ídolos tanto de Jesus quanto do Espírito Santo, festejamos as duas entidades e fazemos nossos pedidos aos dois. Mantivemos o Deus cristão sem nenhuma aparência imediata, próximo da ideia de demiurgo de Platão. Como sabemos hoje, isso foi decidido num concílio, uma assembleia religiosa; a decisão não foi exclusivamente racional, mas fruto de batalhas de teses e ideias defendidas por oradores vigorosos. Outra questão é a ideia de Diabo. Segundo Sambu (2007), a palavra Satanás pode não ser de origem semítica. No leste da África, conta-se a história de um rei que deu seetan a seus soldados como proteção, para enfeitiçar, cegar ou enganar o inimigo na guerra. Na tradição judaica, ele está presente como o tentador, o caluniador, o inimigo, o mentiroso e o anjo decaído. Todos esses títulos o apresentam como aquele que tem o poder da morte, governa com mentiras e enganação, acusa a humanidade diante de Deus e se opõe ao propósito de Deus no mundo, mesmo que permaneça em último caso obediente a Deus. Na tradição judaico-cristã, Satanás sempre está próximo, tendo papel primordial na necessidade de atuação de Deus. Ele é o inimigo mencionado nas orações. Se Satanás deixasse de fazer parte da vida religiosa, toda a organização religiosa poderia simplesmente diminuir de tamanho, pois não haveria sentido em arregimentar mais pessoas para deter os avanços de Satanás na vida humana. Por causa de sua presença penetrante, manifesta como o mal inevitável que alcança todos os lugares, Satanás estimula o desenvolvimento das estruturas religiosas dedicadas à defesa dos fiéis. Nesse sentido, o judaísmo e o cristianismo, em suas práticas cotidianas, ainda são religiões dualistas, que lidam o tempo todo com a dicotomia entre o bem e o mal. Isso existe nas antigas religiões animistas da África, assim como em todas as religiões do mundo antigo. Não é coincidência que o conceito de Satanás na Bíblia esteja cristalizado no relato das atribulações de Jó, residente de Uz, região onde o dualismo era a norma teológica. Em Jó 1 e 2, vemos Deus ser convencido, num diálogo com Satanás, a punir Jó severamente, embora saiba que este não mereça tal punição. O livro de Jó retrata Satanás como um visitante frequente de Deus, em busca de conselho, ainda que só faça isso com o intuito de causar sofrimento. Satanás também é descrito, no mesmo livro, como o instrumento de punição de Deus. Embora os cristãos confessem prontamente a crença na trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a quantidade de vezes que se menciona Satanás como causa do mal no mundo parece sugerir que há um reconhecimento não oficial da presença dele nessa equação. A presença do Espírito Santo, que só apareceu três séculos depois do início do cristianismo, tem a ver com uma anomalia que, naquele tempo, assombrava 90 Unidade II os padres da Igreja. De acordo com a sabedoria teológica da época, os anjos precederam o Filho, Jesus. Eles foram as primeiras emanações divinas da substância divina preexistente. O próprio Paulo havia declarado em Hebreus 2,7-9 que Deus fez Jesus um pouco menor que os anjos, mas ainda mais elevado do que Moisés. Os anjos eram os agentes de Deus desde o princípio, representando sua criatividade e sabedoria. Eles precisavam ser incorporados na religião em igualdade com o Filho e o Pai. Outra razão possível é o fato de algumas das principais religiões antigas, a egípcia especialmente, perceberem o Criador sempre em forma de trindade. Parece que os primeiros padres da Igreja foram buscar uma genealogia dos deuses pronta, que já existia e fazia sentido para milhares de pessoas desde antes da Era Cristã. Na opinião de alguns estudiosos, foi o movimento gnóstico que influenciou o cristianismo a pedir a inclusão tardia do Espírito Santo, a fim de completar uma trindade. De acordo com esse movimento, o Filho de Deus era o logos, ou seja, a palavra, compartilhando as qualidades do Pai e do Espírito Santo. Observação O termo gnóstico vem da palavra grega gnosis, que significa “conhecimento”; gnóstico é, portanto, quem adquire um conhecimento especial e vive de acordo com ele. O Espírito Santo foi concebido pelos gnósticos na forma feminina. Para eles, Jesus estava falando da mãe quando mencionava o Espírito Santo. De acordo com o apócrifo Evangelho dos Hebreus, Jesus teria dito: “Minha mãe, o Espírito Santo”. Segundo o pensamento gnóstico, o Pai era preexistente e autogerado, e portanto origem da divindade. Por meio da palavra, encarnou em Jesus, através da mãe, que se tornou o Espírito Santo. Essa interpretação constituía um tipo de trindade análoga à de Ísis. Na filosofia gnóstica, Deus era triplo depois de invocar “ele mesmo de si mesmo” na fórmula Nous, “a mente”, Ennoia, “o pensamento ou ideia”, e Logos, “a palavra ou razão” (SAMBU, 2007, p. 435). O movimento cristão equacionou Nous com “Deus Pai”, Ennoia com “Deus, o Espírito Santo” e Logos com “Deus, o Filho”. A trindade era uma grande preocupação para os teólogos egípcios, pois em sua tradição cultural milenar era comum que três deuses fossem combinados e tratados como um único ser. Por esse viés, podemos verificar uma ligação direta da religião egípcia com a teologia cristã. A tradição trinitária tinha de ser mantida pelos padres do então novo movimento cristão, provavelmente para dotar de máxima credibilidade as conversões, como postulado por um maniqueísta do século III, porque os evangelhos não foram escritos nem por Jesus Cristo nem por seus apóstolos, mas muito depois de seu tempo por algumas pessoas desconhecidas. Como essas pessoas julgavam que seria bem difícil acreditar nas coisas que contavam, coisas que mesmo os padres não tinham visto, cogita-se que utilizaram o nome dos apóstolos e de seus discípulos diretos para indicar quem tinha testemunhado e escrito as narrativas que traziam os feitos de Jesus. Como vimos, a trindade egípcia era composta de Ísis, Osíris e Hórus. A maioria das pessoas que cresceram no ambiente judaico-cristão, com a disposição cosmológica centrada no homem, tenderia a supor prontamente que Osíris era o chefe e Ísis sua esposa subserviente. Mas as mulheres egípcias, 91 FILOSOFIA DA RELIGIÃO mesmo na sociedade mortal, não eram meros apêndices dos maridos. Elas tinham direitos iguais aos deles, podendo inclusive herdar a propriedade de seus pais. Nos momentos finais da religião egípcia, existia uma forte adoração da virgem mãe (SAMBU, 2007). Isso nos conduz a outra reflexão, a de certa manutenção de valores religiosos através de milênios e de cultos diferentes. A tendência humana de criar divindades à própria imagem sempre foi um fato teológico e filosófico bem conhecido. O filósofo pré-socrático Xenófanes de Cólofon, professor de Parmênides de Eleia, pensava que a representação dos deuses como figuras humanas era uma falácia. Ele observou que, se os animais pudessem desenhar ou esculpir, eles representariam as divindades de acordo com sua própria forma. Mas na prática animais não representam. Os homens são o único caso na natureza de seres que criam representações. O antropomorfismo na religião inevitavelmentedecorre do fato de que o Homo sapiens só pode conceber a divindade em termos de suas próprias categorias mentais. Daí também a atribuição às divindades não apenas da forma humana, mas da natureza e das paixões humanas. Observação Antropopatismo é a atribuição de emoções, paixões e desejos humanos a Deus. Antropomorfismo é a atribuição de características humanas, como membros do corpo, a Deus. A propensão humana ao antropomorfismo é inevitável e previsível. Se tudo o que se pudesse encontrar nas relíquias de uma sociedade passada fossem pinturas e esculturas representando a divindade, também seria possível encontrar, examinando esses ícones, a verdadeira representação das características físicas daquela sociedade. Os antigos egípcios fizeram isso ao extremo, deixando evidências de sua aparência na época. As gerações seguintes não precisaram criar as próprias divindades, pois os ancestrais já tinham feito isso. Esse mesmo fenômeno pode ser verificado nas formas de representação de Jesus e em toda a iconografia ligada ao catolicismo. Em geral, os santos aparecem com as roupas e com a aparência da época em que foram representados. O interessante é que esse fenômeno pode ser observado mesmo nas figuras mais antigas das religiões africanas. Entre os povos Maasai e Oromo, por exemplo, as divindades benevolentes eram negras. Deuses como Ísis, Osíris e Ptah eram retratados como negros. Seth, o deus ruivo do antigo Egito, e Enkai, a divindade do mal dos Maasai, eram vermelhos. As primeiras Madonas eram negras e retratavam Ísis e Hórus. Na Europa, em contrapartida, o povo eslavo figurava o divino de maneira distinta: o Deus Branco, Byeloborg, personificava forças criativas positivas; e o Deus Negro, Chemobog, personificava forças destrutivas malignas. O Deus Branco era o deus da luz e do dia, enquanto o Deus Negro era o deus das sombras e da noite. As divindades serem percebidas como pessoas negras apenas confirma o fato de que a pele dos ancestrais era majoritariamente negra. As divindades hindus costumam ser retratadas com características humanas dos negros. O nome Krishna significa “aquele que é negro”. Embora na arte hindu dos últimos séculos ele apareça com a pele azul, no passado, ele era representado com a pele negra. O retrato artístico de Buda se destaca como a imagem típica de um homem negro, com lóbulos alongados e perfurados, algo mais representativo dos estilos africanos tradicionais. Em suas duas últimas encarnações, primeiro 92 Unidade II como Krishna e depois como Buda, Vishnu assumiu a forma de um homem negro. Durga, a deusa-mãe do hinduísmo, com dez mãos, é frequentemente retratada como uma guerreira negra. O que esses exemplos hindus nos mostram é que os fundadores da religião eram basicamente pessoas negras, cujos descendentes, no norte da Índia, tiveram o perfil gradualmente alterado por meio do casamento com a nova raça ariana. Já os hindus do sul, como os dravidianos, ainda são essencialmente negros, mais ou menos como durante as fases iniciais do hinduísmo (SAMBU, 2007). O sol ainda é o deus que mais migrou de uma forma para outra. A ligação do sol com uma divindade originalmente feminina gerou a natureza cíclica de quase todos os temas culturais e religiosos. O sol nasce, sobe e depois desce, à medida que se põe. Então se renova e ressurge no dia seguinte, sem falhar. Os seres humanos, da mesma forma, nascem como bebês, crescem até o auge na idade adulta e declinam gradualmente como anciãos; depois morrem e renascem como bebês. Ninguém que é um exemplo brilhante para os outros e vive uma vida justa morre para sempre. Após cada morte, assim como o sol, deve reencarnar. No antigo Egito, todos os principais deuses estavam igualmente associados ao sol e a seu ritmo. Como rezavam os antigos sacerdotes egípcios de Mênfis para o deus Ptah, senhor dos anos, mensurador do tempo e eterno: “Eu sou ontem, hoje e amanhã, porque nasci de novo e de novo. Eu sou o Senhor da Ressurreição, que sai do crepúsculo e cujo nascimento acontece na Casa da Morte” (SAMBU, 2007, p. 494). Hoje em dia percebemos que, assim como a cultura do ser humano, sua religiosidade representa uma construção coletiva de várias nações. Através de movimentos de sincretismo e transmutação, a partir da ideia de um Deus que criou tudo e de espíritos de ancestrais que, como família, cuidam dos interesses dos seres vivos, intermediando a comunicação com o supremo, formularam-se as religiões que conhecemos. Suas fases históricas servem para verificarmos como o conhecimento vai transformando o dogma das crenças em novas crenças, oferecendo às pessoas a experiência do sagrado. Saiba mais Sobre o sincretismo, leia: KARNAL, L. O que é sincretismo? Cruzeiro do Sul, 27 nov. 2019. Disponível em: https://www.jornalcruzeiro.com.br/opiniao/artigos/o-que- e-sincretismo/. Acesso em: 6 jan. 2020. 6 A RELIGIÃO NA IDADE MÉDIA 6.1 Constantino e o Concílio de Niceia O Concílio de Niceia, muito importante para a consolidação do cristianismo na Europa, foi o primeiro concílio ecumênico a poder ser considerado universal, em razão da expressiva participação dos bispos. A esse encontro, compareceram bispos de todas as regiões em que os cristãos professavam sua fé, pois ocorreu quando a Igreja Católica já tinha alcançado estabilidade e dispunha de liberdade para reunir-se abertamente. 93 FILOSOFIA DA RELIGIÃO O evento foi realizado entre os dias 20 de maio e 25 de julho de 325. O imperador Constantino, que ainda não tinha sido batizado, facilitou a participação dos bispos pondo à disposição deles os serviços do exército imperial para as viagens e os traslados, além de oferecer seu palácio em Niceia de Bitínia, próximo de sua residência em Nicomédia. Observação De acordo com a Catholic encyclopedia, “os concílios são assembleias legalmente convocadas de dignitários eclesiásticos e especialistas em teologia com o objetivo de discutir e regular assuntos de doutrina e disciplina da Igreja” (QUAL…, 2019). Cabe destacar que as condições para a propagação da fé cristã foram muito favoráveis até o terceiro século. Após essa data, houve um período crítico. Constantino empunhou o nome de Cristo como estandarte e, embora tenha posto fim à perseguição aos cristãos, outros problemas surgiram, em especial a dominação da Igreja pelo Estado. A pureza, a coragem e o amor da Igreja primitiva, bem como a constância dos fiéis (a ponto de morrerem se fosse necessário), tiveram grande influência sobre a sociedade pagã no Império Romano, de modo que Constantino se viu obrigado a reconhecer oficialmente a importância do cristianismo para o Estado, convocando e presidindo o Concílio de Niceia. Desde sempre, o cristianismo enfrentou problemas tanto de ordem interna quanto de ordem externa. Havia heresias e perseguições, e esses enfrentamentos fizeram Tertuliano dizer que o sangue dos mártires era a semente da Igreja, e que a realidade era terrível para muitos cristãos. Mesmo assim, a “Igreja continuou a se desenvolver até o período em que conseguiu a liberdade de culto no governo de Constantino” (CAIRNS, 1995, p. 70). Quanto às causas da perseguição, podemos elencar pelo menos quatro: • Política: o cristianismo não teve muitos reveses enquanto era visto como uma seita do judaísmo. Após sua definitiva separação, e com a exclusiva lealdade espiritual e moral dos que recebiam a mensagem de Cristo, César foi posto em segundo plano. Os cristãos se recusavam a oferecer incenso sobre os altares dedicados ao culto do imperador romano. Uma vez que não faziam esse sacrifício, eram vistos como desleais. • Religiosa: como a religião de Roma era externa, com altares, ídolos e ritos expostos ao povo, ela se diferenciava do culto que os cristãos prestavam a Deus, pois o faziam com os olhos fechados e sem nenhuma representação visual. Não havia problema em acrescentar mais um deus ao panteão romano, desde que ele pudesse ser visto. Acusações de ordem moral também foram inventadas, relacionadasao comer e beber (atos que simbolizavam o corpo e o sangue de Cristo) e ao beijo da paz, que foram interpretados, respectivamente, como canibalismo e incesto. 94 Unidade II • Social: os líderes aristocráticos odiavam os cristãos, pois em sua maioria eram pobres e escravos. Os cristãos afirmavam que devia haver igualdade entre todos os homens. Outra questão espinhosa era a vida escandalosa que os romanos tinham, totalmente oposta à dos cristãos. • Econômica: uma clara representação desse ponto está registrada na história de Paulo em Éfeso. É bem provável que a preocupação não fosse tanto com uma possível ameaça ao culto de Diana, mas sim com os lucros, pois sacerdotes, fabricantes de ídolos, videntes, escultores etc. não se animavam com uma religião que não colaborasse com seu meio de vida. Por esses motivos, a perseguição na segunda metade do segundo século passou a ser mais violenta. Quando Roma se aproximava do primeiro milênio de sua fundação, a fome e a agitação civil devastaram o império. Os cristãos foram acusados pela opinião pública de serem os culpados. Isso favoreceu e justificou a perseguição a eles pelas autoridades, que não os consideravam leais ao Estado romano. Entre os principais perseguidores da Igreja cristã estava o imperador Nero, responsável por incêndios em bairros de Roma, dos quais culpava os cristãos. Outro imperador que também acirrou a perseguição foi Domiciano. Uma vez que os judeus se negaram a pagar um imposto público, como os cristãos eram identificados a eles, também sofreram as consequências. O livro do Apocalipse, escrito por João, foi redigido nessa época na ilha de Patmos. Durante a administração de Plínio, por volta do ano 112, ele demonstrou preocupação por causa dos cristãos. Escreveu uma carta ao imperador Trajano em que relatou o crescimento dessa religião nos grandes centros, nas cidades, nas vilas e nas regiões rurais, informando que os vendedores de animais para sacrifício abandonaram o negócio em decorrência do esvaziamento dos templos. Diante dessa situação, Plínio resolveu que todo cristão denunciado seria levado ao tribunal e, se confessasse três vezes que era cristão, seria condenado à morte. No entanto, se no interrogatório renegasse sua fé e adorasse os deuses romanos, a acusação seria retirada e o indivíduo poupado. Em resposta, o imperador assegurou que Plínio estava correto em sua decisão. Quando Roma estava sofrendo com calamidades naturais, subiu ao trono o imperador Décio. Ele pensou que, se tentasse salvar a cultura clássica, teria um grande álibi contra os cristãos. Como eles estavam se expandindo desenfreadamente por todo o império, Décio acreditava que Roma poderia em breve sucumbir por causa da criação de um Estado paralelo. No ano de 250, Décio promulgou um decreto que exigia um sacrifício nos altares romanos à figura do imperador e aos deuses pelo menos uma vez por ano, o que garantiria um certificado chamado libellus. Era evidente que todos os que receberam o libellus tinham traído a fé cristã, mas essa questão a Igreja teve de tratar posteriormente. O primeiro decreto a ordenar perseguição aos cristãos foi promulgado em 303. Diocleciano determinou o fim das reuniões, a destruição das igrejas e das Escrituras, a destituição de oficiais e a prisão dos que insistissem em testemunhar a favor de Cristo. Antes, a perseguição se dava num âmbito mais velado; agora, havia uma verdadeira caça às bruxas. Mais tarde foi promulgado outro decreto, obrigando os cristãos a sacrificar animais para os deuses pagãos; se não o fizessem, seriam mortos. 95 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Em 311, em seu leito de morte, o imperador Galério promulgou um decreto no qual dizia que os cristãos que não quebrassem a paz do império podiam ser tolerados. Finalmente, em 313, com Constantino, a perseguição terminou, por meio do Édito de Milão, que garantiu liberdade de culto não apenas para os cristãos, mas para todas as religiões. González (1995a, p. 175-176) explica: Segundo dois historiadores cristãos que conheceram Constantino, às vésperas de uma batalha, ele teve uma revelação. Um desses historiadores, Lactâncio, diz que num sonho Constantino recebeu a ordem de pôr um símbolo cristão sobre o escudo de seus soldados. O outro, Eusébio, diz que a visão apareceu nas nuvens, junto com palavras escritas no céu, “vence nisto”. Em todo caso, o fato é que Constantino ordenou que seus soldados empregassem para a batalha do dia seguinte o símbolo que se conhece como Iabarum, que consistia na superposição de duas letras gregas, X e P. Visto que essas duas letras são as duas primeiras do nome de Cristo em grego, o Iabarum bem podia ser um símbolo cristão. Alguns historiadores modernos assinalaram muitos outros indícios que nos dão a entender que, embora fosse possível que já nessa data Constantino se inclinasse em direção ao cristianismo, ainda continuava adorando ao sol invicto. Constantino acreditava que a adoração a Deus deveria ser o foco de todo governante – daí a política adotada pelo império. É possível que a visão da cruz que lhe deu a certeza da vitória sobre seus rivais tenha algo a ver com essa política tolerante. A partir daquele momento, os cristãos tiveram total liberdade para divulgar sua fé e converter outras pessoas. Para assimilar a tensa relação entre Estado e Igreja após a concessão dessa liberdade, precisamos entender os problemas políticos enfrentados pelo imperador nessa época. Cairns (1995, p. 99-100) diz: A anarquia do século da revolução, que arruinou a República Romana entre 133 a.C. e 31 a.C., terminou mediante o poderoso principado criado por Augusto após destruir o exército de Antônio. Esse principado, no qual o imperador, como príncipe, dividia o poder com o Senado, mostrou-se também fraco para superar o desafio do declínio interno e da presença dos bárbaros nas fronteiras do império; ademais, a prosperidade e a paz do primeiro período do principado foram seguidas por outro século de revolução, entre 192 e 284. Em 285, Diocleciano reorganizou o império em bases mais autocráticas, tomadas de empréstimo dos despotismos orientais, [a fim] de garantir a cultura greco-romana. Como o cristianismo parecia ameaçar essa cultura, Diocleciano fez uma fracassada tentativa de destruí-lo entre 303 e 305. Mais astuto, Constantino, seu sucessor, compreendeu que, se o Estado não podia destruí-la pela força, o melhor seria usar a Igreja como um aliado para salvar a cultura clássica. Embora oficialmente dividisse o poder com um coimperador, Licínio, entre 311 e 324, ele tomou a maioria das decisões importantes do Estado. 96 Unidade II Nos anos seguintes, os cristãos, que até então estavam sendo perseguidos, foram beneficiados por alguns decretos de Constantino relacionados à recuperação de propriedades confiscadas, concessão de recursos do Estado para a Igreja, desautorização de adivinhações, dispensa do serviço público para os clérigos, e designação do Dia do Sol (domingo) como o dia de prestar culto e descansar. A cidade de Constantinopla, fundada em 330, tornou-se o centro do poder político no Oriente. Após 476, o bispo de Roma passou a ter também poder político, além de espiritual. Esse fato colaborou para dividir a Igreja entre Oriente e Ocidente, abrindo caminho para o Grande Cisma, em 1054. Os filhos de Constantino mantiveram a política de favorecimento aos cristãos, fixando decretos que proibiam a frequência a templos pagãos e o ritual de sacrifício. O cristianismo só não se tornou a religião oficial do Estado porque, em 361, quando Juliano ascendeu ao trono imperial, foi restaurada a liberdade plena de culto, e os privilégios foram retirados. Entretanto, em 380, o cristianismo se tornou a religião exclusiva do Estado, com um édito promulgado por Teodósio I. Apesar de os benefícios concedidos por Constantino e por alguns de seus sucessores serem favoráveis à união entre Igreja e Estado, quando avaliamos seu caminho de transformação, vemos que, em troca de proteção,ajuda e privilégios, o imperador se apoderou do direito de se imiscuir nas contendas na Igreja, ainda que fosse com seu poder temporário, pois acreditava que podia interferir nos assuntos teológicos e espirituais. A partir daí, começou um longo conflito entre Estado e Igreja, e o poder que ela adquiriu foi utilizado para perseguir as Igrejas consideradas pagãs. Assim, passou de perseguida para perseguidora, reagindo da mesma forma que as autoridades no passado em relação aos cristãos. Ainda sob o reinado de Constantino, por volta de 318, um dos presbíteros da Igreja, Ário, erudito e pregador, após ouvir um sermão de Alexandre, bispo de Alexandria, com o título “A Unidade da Trindade”, acabou concebendo uma doutrina que recusava a divindade de Cristo, na ânsia de evitar uma concepção politeísta de Deus. Essa questão, basicamente soteriológica, cresceu tanto que um sínodo de Alexandria condenou Ário, o qual teve de fugir para o palácio de Eusébio, seu amigo de estudos e bispo de Nicomédia. Mesmo com Constantino tentando resolver o conflito de modo sensato, enviando cartas tanto a Ário quanto ao bispo de Alexandria, a contenda extrapolou todos os limites, obrigando Constantino a convocar os bispos da Igreja para tentar resolver o caso. No começo do verão de 325, trezentos bispos da Igreja se reuniram em Niceia, concílio presidido pelo imperador. Essa foi a primeira vez que um chefe de Estado dominou a Igreja, fato que nem sequer foi percebido pelos bispos, provavelmente porque estavam muito preocupados com a ideia de que se afastavam dos ensinamentos da tradição religiosa. Sobre esse concílio, Curtis (2003, p. 23) afirma: O Concílio de Niceia foi convocado tanto para estabelecer uma questão teológica quanto para servir de precedente para questões da Igreja e do Estado. A sabedoria coletiva dos bispos foi consultada nos anos que se seguiram, quando questões espinhosas surgiram na Igreja. Constantino 97 FILOSOFIA DA RELIGIÃO deu início à prática de unir o império e a Igreja no processo decisório. Muitas consequências perniciosas seriam colhidas nos séculos futuros dessa união. Nesse concílio, três partidos se formaram. No primeiro estavam Ário, Eusébio de Nicomédia e alguns dos presentes. Eles defendiam que Cristo passou a existir por um ato criativo de Deus, ou seja, seria de substância diferente do Pai. Pela obediência à vontade do Pai, ele pôde ser considerado divino, mas não era Deus nem existira desde a eternidade: era um ser de essência diferente, criado a partir do nada, mas subordinado ao Pai. Atanásio, por sua vez, fazia apologia de uma interpretação mais ortodoxa, defendendo a ideia de que Cristo existiu desde a eternidade e que era da mesma essência (homoousios) que o Pai, mas de personalidade distinta. A defesa de seu argumento se pautava no seguinte: se Cristo fosse menor do que ele mesmo afirmava, jamais poderia ser o salvador dos homens, e o relacionamento entre Pai e Filho era fundamental no tocante à salvação eterna do homem. Eusébio de Cesareia liderava o maior partido. Renomado historiador da Igreja, tinha aversão a controvérsias. Por isso, tentou propor um significado que pudesse ser aceito por ambos os grupos. Para ele, Cristo não foi feito do nada, conforme Ário preceituava, mas criado pelo Pai antes da eternidade, sendo de essência semelhante (homoi) ou igual à do Pai. Com base nessa crença, foi concebido o Credo Niceno, afirmando a unidade da substância do Pai com o Filho: Cremos em um só Deus, Pai, Todo-Poderoso, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E em um só Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, luz da luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não criado, de uma só substância com o Pai, pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne, pelo Espírito Santo, da Virgem Maria, e tornou-se homem, e foi crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, e padeceu e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu ao céu e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai e do Filho, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas. E na Igreja una, santa, católica e apostólica. Confessamos um só batismo para remissão dos pecados. Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro. Amém (ANGLADA, 1998, p. 179-180). A ortodoxia se tornou vitoriosa em Niceia, com a afirmação da eternidade e da identidade de Cristo com o Pai. O credo usado na Igreja hoje é distinto do Credo Niceno. Como ensina Cairns (1995, p. 108), “o credo de 325 cessa na frase ‘e no Espírito Santo’ e é seguido por uma seção condenatória das ideias de Ário”. Foi retirada a expressão “anatematiza”, que constava no último parágrafo, e esse ficou sendo o credo cristão universalmente aceito. 98 Unidade II Cremos em um Deus Pai Todo-Poderoso, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus; gerado como o Unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus; luz de luz; Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não feito; consubstancial com o Pai; mediante o qual todas as coisas foram feitas, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra; que para nós humanos e para nossa salvação desceu e se fez carne, se fez homem, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, e virá para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo. Aos que dizem, pois, que houve quando o Filho de Deus não existia, e que antes de ser concebido não existia, e que foi feito das coisas que não são, ou que foi formado de outra substância ou essência, ou que é uma criatura, ou que é mutável ou variável, a esses a Igreja Católica anatematiza (GONZÁLEZ, 1995b, p. 97). No entanto, Constantino e seus filhos sofreram uma derrota pelo arianismo, ainda que temporária, entre os anos de 325 e 361. Em 381, Teodósio definiu as doutrinas elaboradas pelos ortodoxos de Niceia como as que “deveriam ser consideradas a fé dos verdadeiros cristãos”. Outro concílio, dessa vez em Constantinopla, no mesmo ano, estabeleceu que “não deveriam abandonar a fé dos pais de Niceia” (GONZÁLEZ, 1995b, p. 108). Observação O Concílio de Constantinopla foi convocado pelo imperador Teodósio. O texto original desse concílio se perdeu no tempo. Houve discussão sobre o arianismo e novamente foi escrito um credo cristão (niceno-constantinopolitano), pondo-se o Espírito Santo no mesmo patamar do Pai e do Filho. Ao analisar o credo, vemos que seu intuito era suprimir toda doutrina que implicasse dizer que Cristo era um ser criado, em especial nos trechos “Deus de Deus”, “luz de luz”, “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro” e “gerado, não feito”. Quando o credo se refere a Deus como “criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis”, dizendo mais à frente que o Filho é “gerado, não feito”, imediatamente o exclui das coisas visíveis e invisíveis criadas pelo Pai. Ademais, o último parágrafo anatematiza (condena, amaldiçoa, reprova) todos os que afirmarem que o Filho “foi feito das coisas que não são”, asseverando que o Filho foi concebido “da substância do Pai”, no intuito de fechar definitivamente a questão e não deixar qualquer margem para dúvidas. 99 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Ao que parece, quase todos os bispos assinaram esse credo, demonstrando que ficaram satisfeitos por expressar o sentimento de sua fé. Somente poucos, como Eusébio de Nicomédia, não quiseram referendá-lo, o que causou sua condenação e deposição. Constantino ainda determinou que eles deveriam deixar suas cidades. Talvez esse seja o ponto culminante dessa história: quando a Igreja firma a condenação de exílio, somada à de heresia, revela-se a clara possibilidade de o Estado, a partir daquele momento, poder intervirnos dogmas ou assuntos da Igreja. Lembrete Segundo historiadores, Constantino teve uma revelação em sonho: ele recebeu a ordem de pôr um símbolo cristão sobre o escudo de seus soldados, símbolo esse que consistia na superposição de X e P, as duas primeiras letras do nome de Cristo em grego. Desde então, ele passou a ter “tendências cristãs”. 6.2 Carlos Magno e a conversão em massa O Império de Carlos Magno (768-814), também denominado Império Carolíngio, representa um dos momentos de maior esplendor do Reino Franco, que chegou a ocupar toda a região central da Europa. Por suas realizações, o imperador Carlos Magno é considerado o mais importante rei dos francos. Ele destacou-se, principalmente, por conquistas militares e pela organização administrativa implantada nos territórios sob seu domínio. Nas regiões ocupadas eram construídas fortalezas e igrejas, em volta das quais, organizavam-se vilas, que posteriormente passavam a ser ligadas por estradas. Sendo cristão, Carlos Magno obrigava os povos conquistados a se converter ao cristianismo. Uma das características centrais do governo de Carlos Magno é que ele não tinha uma sede fixa. Com sua corte, que se constituía basicamente de familiares, amigos, membros do clero e funcionários administrativos, viajava de um lugar para outro. Nos séculos VIII e IX, o reino medieval na França era liderado pela dinastia carolíngia, que chegou ao auge com Carlos Magno. O filho de Carlos Martel, Pepino, o Breve, ou Pepino, o Grande (714-758), governou junto com o irmão quando este entrou para um mosteiro. Pepino foi o primeiro rei carolíngio exatamente por ter arrogado para si esse título, sendo consagrado como rei dos francos pelo papa Bonifácio. Depois, auxiliou o papa enviando expedições contra os lombardos entre 754 e 756. Ainda em 754, prometeu terras ao papa na região central da Itália, ato que ficou conhecido como Doação de Pepino, tendo um significado muito especial para a cidade de Roma, que havia sido construída há exatos mil anos. Carlos Magno subiu ao trono em 768 e teve grande influência na Europa Ocidental, em todos os setores. Embora dedicado à religião, além da esposa, ele mantinha em seu palácio concubinas, o que mostra que ele divorciava a teoria da prática. Sobre sua aparência física, Curtis (2003, p. 60) diz que “a 100 Unidade II imagem do novo imperador era impressionante: alto, forte, grande cavaleiro, lutador destemido e, em alguns momentos, cruel”. Ele gostava muito de guerras, participando de aproximadamente cinquenta campanhas militares durante seu reinado. Assim, conseguiu ampliar suas fronteiras para a Itália, a Alemanha e a França. No entanto, como toda essa terra se devia exclusivamente a sua competência como conquistador, após sua morte, em 814, esse reinado não se manteve com seus sucessores. O soberano ainda criou um excelente sistema de governo imperial para comandar seus domínios, dividindo-o em vários condados, os quais eram administrados por um duque. O responsável prestava contas a alguns homens da corte, que chegavam de forma imprevista para inspecionar o trabalho, o cumprimento da lei, a manutenção da ordem e a determinação de novos decretos. A Igreja também foi favorecida. Ele a comparava com a alma e o Estado com o corpo. Vinte anos depois da doação de terras feita por seu pai ao papa, Carlos Magno a confirmou. Embora acreditasse que o dirigente da Igreja não devesse se imiscuir nas decisões do soberano do Estado, entendia que os bispos tinham de se subordinar ao papa. Carlos Magno gostava de ouvir a leitura de grandes livros do passado, em especial A cidade de Deus, de Agostinho. Inclusive, recomendou aos abades que abrissem no mosteiro uma escola. Queria que os tradutores da Bíblia fossem homens esclarecidos, que interpretassem e compreendessem as Escrituras de forma correta. Certa vez, o papa Leão III, atacado por um grupo em Roma, foi para a corte de Carlos Magno. O rei conduziu-o de volta a Roma e depois, no Natal de 800, o papa pôs sobre sua cabeça uma coroa, declarando-o imperador dos romanos. Com isso, o Império Romano voltou a existir no ocidente, e uma nova Roma, governada por um teutão, substituiu o antigo Império Romano. Essa atitude certamente contribuiu para que houvesse uma grande conversão. Quase toda a cristandade ocidental fazia parte de seu império, exceto as Ilhas Britânicas e as regiões remotas da Espanha, onde os cristãos tinham se refugiado das invasões muçulmanas. Por isso, o rumo que os acontecimentos tomariam em seu império teria amplas consequências para a história futura do cristianismo e de toda a Europa (GONZÁLEZ, 1995b, p. 141). Por causa dessa coroação, houve uma reconciliação entre a população do velho Império Romano e os conquistadores teutões, encerrando o sonho do imperador oriental de reconquistar as terras do Império Romano que foram dominadas pelos bárbaros do Ocidente. Ademais, a posição do papa foi acentuada, como se os imperadores devessem a coroa a ele e tivessem a obrigação de ajudá-lo sempre que preciso. Assim, passou-se a indagar o seguinte: o poder que o imperador tinha sobre os homens era recebido de Deus ou conferido pela Igreja, que detinha um poder absoluto? Até essa questão ser resolvida, muitas discussões ocorreram na Idade Média. 101 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Ainda no tocante às preocupações da Igreja, Carlos Magno tentou unificar o Ocidente e o Oriente para formar um único império. Ele queria englobar a maior parte possível dos territórios que pertenciam ao antigo Império Romano. Sobre suas intensas colaborações, Cairns (1995, p. 152-153) diz: Não se pode esquecer que os imperadores orientais impediram as hordas muçulmanas de invadir a Europa até que o Ocidente se recuperasse da confusão e do caos provocados pela queda do império e pela chegada em massa dos bárbaros. O Oriente enfrentou o problema particular da controvérsia iconoclasta de 752 a 843. Leão III, em decretos de 726 e 730, proibiu o uso de imagens na Igreja e determinou sua destruição. Carlos Magno fez uma declaração em favor do uso de imagens na época em que Irene se tornou imperatriz do império oriental. Ele chegou até a propor casamento a Irene para reunir as áreas do velho Império Romano numa só coroa, com sede no Ocidente. Irene recusou suas propostas, e a divisão do império, começada quando Constantino transferiu a capital de Roma para Constantinopla em 330, continuou. O segundo Concílio de Niceia, em 787, permitiu a veneração, não a adoração de imagens. Carlos Magno não se preocupou em estender seus territórios apenas em direção a seus vizinhos cristãos. Avançou com uma intensa expedição para controlar os frísios e saxões, que habitavam o nordeste de seu império, e os muçulmanos, que estavam a sudoeste – os primeiros constantemente furtavam igrejas, mosteiros e aldeias, depois retornando a seu território, o que dificultava capturá-los. Em 772, Carlos Magno invadiu as terras dos saxões e destruiu uma família que era considerada uma das principais daquele povo. Aparentemente, queria facilitar a conversão dos saxões ao cristianismo e eliminar sua religião. Depois de os saxões se renderem, ele enviou missionários para a região com o propósito de ensinar a fé cristã. Em seguida, Carlos Magno avançou contra os lombardos na Itália, e todos os missionários deixados entre os saxões foram mortos. Ele voltou a invadir a região, sufocou a rebelião e convocou uma assembleia nacional em Paderborn. Lá os saxões não apenas viram seu país ser organizado de forma eclesiástica como tiveram de ajudar na criação de abadias e dioceses. Ainda que dentro de seus territórios, Carlos Magno se dedicou a ordenar e monitorar a vida da Igreja. Demonstrava ter grande convicção e era chamado para assuntos civis e religiosos, inclusive porque, ao que parece, ele não diferenciava uma coisa da outra. Da mesma maneira que os condes, os bispos eram nomeados pelo rei, alterando a forma anterior de eleição, feita pelo clero ou pelo povo.
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