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Teoria Social, Democracia e Autonomia

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Prêmio IESP 
TEORIA SOCIAL, 
DEMOCRACIA E AUTONOMIA 
UMA INTERPRETAÇÃO DA EXPERIÊNCIA 
DE AUTOGOVERNO ZAPATISTA
Cassio Brancaleone
Azougue
editorial
2015
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B812t
Brancaleone, Cassio, 1981-
 Teoria social : democracia e autonomia uma interpretação da experiência de 
 autogoverno zapatista / Cassio Brancaleone. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Beco do 
 Azougue, 2015.
 408 p. : il. ; 21 cm. Inclui índice
ISBN 978-85-7920-192-9
1. Poder (Ciências Sociais). 2. Democracia - Aspectos sociais. 3. Democracia -
Aspectos políticos. I. Título.
 15-27241 CDD: 320
 CDU: 32
 15/10/2015 15/10/2015
Coordenação editorial
Sergio Cohn
Assistência editorial
Barbara Ribeiro
Projeto gráfico
Tiago Gonçalves
Equipe Azougue
Barbara Ribeiro, Juliana Travassos, Rafaela dos Santos, Tiago Gonçalves e Welington Portella
[ 2015 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 82 subsolo 115
CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel/Fax 55_21_2259-7712
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azougue - mais que uma editora, 
um pacto com a cultura
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À Carmela e para 
a vida que insiste.
Aos camaradas Mefistófeles e 
Dulcinéia
 in memoriam.
Aos 43 de Ayotzinapa.
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SUMÁRIO
Agradecimentos 7
PARTE I 13
1 A vaca, a faca e o queijo: 15 
as ciências sociais contemporâneas 13 
em uma perspectiva indisciplinada e descolonial 15
2 Da democracia como autogoverno 71
3 Do autogoverno como sociabilidade 117
PARTE II 189
4 Chiapas e o Exército Zapatista De Libertação 191 
Nacional (EZLN): notas de história social em uma perspectiva 13 
anissistêmica de longa duração 13
5 A formação dos Caracóis, das Juntas de Bom Governo e a 283 
reconfiguração dos municípios autônomos rebeldes: 13 
sobre a arquitetura de poder, o projeto e a experiência 13 
de autogoverno zapatista 283
6 Navegando por territórios rebeldes zapatistas: 327 
narrativas, causos, observações 327
Considerações finais 363
Referências 375
Lista de ilustrações 401
Lista de abreviaturas e siglas 403
Índice 405
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AGRADECIMENTOS
Um texto sempre é mais que o amálgama de ideias, imagens e argu-
mentos que o constitui. Textos são experiências, histórias, narrativas, 
afetos e relações humanas condensados seletivamente e grafados em 
forma de registro. Em suma, textos são vidas, e vidas assim mesmo, no 
plural, pois ultrapassam as coordenadas existenciais daqueles que to-
maram a iniciativa de produzi-los. Mesmo uma tese acadêmica, com 
toda pretensão de pseudo-objetividade e a aura de legitimidade que a 
contorna na produção daquilo que alguns consideram como “discursos 
de verdade”, quando implícita ou explicitamente parece portar sentidos 
mais apurados para a realidade que desesperadamente buscamos, atra-
vés da sedimentação de conceitos, teorias e hipóteses enredados para 
dar inteligibilidade a determinados eventos, fenômenos e processos 
sociais, não escapa das “armadilhas” da ineludível condição humana 
de estarmos projetados no âmago de tudo o que se coloca em relação 
conosco, como a tão conhecida maldição do rei Midas que transfor-
mava em ouro tudo que tocava: antropomorfizamos (o que nem sem-
pre é algo do qual devemos nos orgulhar) todas as coisas com as quais 
entramos em contato e relação. À diferença do monarca da cidade de 
Frígia, nosso processo de contágio nos reserva um “efeito-reciprocida-
de”: também somos e estamos parte das coisas, pessoas e ideias que 
alcançamos. 
Este trabalho foi gestado com forte consciência do seu significado 
como texto e experiência. Ainda que não desenvolvido plenamente 
como o resultado de uma multiplicidade de encontros, intercâmbios, 
diálogos, vivências, relações, etc., ele é uma pequena amostra em po-
tencial, pronta para germinar em algum terreno favorável, e não ne-
cessariamente pelas mãos do “autor”. Identificar toda uma complexa 
teia de relações do “cérebro” e “coração” social que o tornou possível 
é uma tarefa inglória tal como contabilizar os grãos de areia que fa-
zem da praia uma realidade aprazível concreta. Portanto, serei gros-
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seiramente arbitrário ao mencionar alguns dos seres humanos e não 
humanos que acredito haver tido uma incidência direta no processo 
de realização deste trabalho, o que não significa, a essa altura, um 
desprezo ou desconsideração pelo que não será nomeado. Aos não 
nominados, minha mais sincera saudação e deferência a despeito de 
minhas deficiências mnemônicas, entre outras. 
Inicialmente quero agradecer àqueles que motivaram esse estudo: 
@s companheir@s zapatistas de Chiapas de todas as comunidades re-
beldes dos cinco Caracóis que me receberam como irmão e camarada 
da “sociedade civil internacional”. Em especial ao companheiro M. e 
à sua família, que me acolheram em sua casa como um dos seus, aos 
quais eu devo o inesquecível aprendizado do significado da palavra 
dignidade quando convertida em atitude. Agradeço também aos com-
panheir@s da sociedade civil mexicana e internacional pelo sincero 
e desprendido espírito de colaboração e apoio mútuo com o qual foi 
viável constituir e sustentar uma verdadeira rede global de ativismo e 
solidariedade, em particular através de duas agrupações que atravessa-
ram minha inserção no universo zapatista, ambas atualmente extintas: 
a Casa de la Paz, meu coletivo-base em Chiapas, com o qual pude com-
partilhar ricas e estimulantes vivências ao lado d@s camarad@s Rodri-
go, Lilica, Alex, Molly, Leiloca, María, Leo, Azul, Carla, Erin, Julia, Loren, 
Juan, entre outr@s tant@s agregad@s; e o CAPISE, pela oportunidade 
oferecida a muitos ativistas como eu, fundamentalmente por meio da 
criação das Brigadas de Observação Terra e Território (BOTT) para au-
xiliar no seu trabalho diligente de investigar e denunciar as dinâmicas 
sistemáticas de violação de direitos humanos através dos processos 
de (para)militarização do território chiapaneco e de novas estratégias 
governamentais de contrainsurgência em relação aos povos indígenas 
zapatistas e outros povos. 
A tod@s @s camarad@s mexican@s, como Héctor, Marisol, Carlos 
Rojas, Edmundo, Oscar, Edgard, Mayela, Gaspar, Jose Manuel, Jorge 
Santiago, Ramon Vera, Gilberto Lopez y Rivas, e tant@s mais, que atra-
vés do diálogo generoso e/ou da amizade me ajudaram a compreender 
um pouco a complexidade da realidade mexicana e chiapaneca.
 Aos camaradas que ajudaram a dar vida à Comuna do Outeiro da 
Glória, coletivo e espaço metarresidencial fundado nos idos de 2006 na 
cidade do Rio de Janeiro, cujas histórias e motivações se confundem com 
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as histórias e motivações que deram origem a esse trabalho: João Mar-
tins, Isabela Nogueira, Estevão, Julio Cesar, Tati, Lúcia, Larissa, Sandro 
Gafanhoto, Marcelo Lacombe e Mefisto (a estes dois últimos, precoce-
mente apartados desse mundo, in memoriam). E a tod@s @s camaradas 
dos diversos coletivos e redes de ativismo da cidade do Rio com os quais 
a Comuna manteve uma relação de colaboração e companheirismo.
Aos camaradas do Grupo de Trabalho Anticapitalismos e Sociabili-
dades Emergentes (ACySE) do CLACSO: Alex Hilsenbeck (parceiro de 
outras vidas e outras histórias), Armando, Paula, María, Blanca, Mario, 
Dmitri, Pedro, Lucas, André, Juan, Vicente, Ana... Em sua primeira ver-são. Um espaço reflexivo e colaborativo latino-americano de impor-
tante interconexão entre o ativismo social e a investigação sociológica, 
que me ajudou a refrescar ideias, projetos e ânimos, apesar de estarmos 
apenas começando... 
Aos professor@s, trabalhador@s e estudantes do extinto IUPERJ, 
atual IESP/UERJ, por terem me oferecido um saudável e estimulante 
ambiente intelectual para a continuidade de minha formação como 
aprendiz de sociólogo (e outras “artes arcanas”). Aos coordenador@s do 
OPSA e do CEDES, núcleos de pesquisa dessa instituição que em distin-
tos períodos me abrigaram como um dos seus investigadores: Maria Re-
gina Soares de Lima, Luiz Werneck Vianna, Jose Eisenberg e Maria Alice 
de Carvalho. Muito especialmente agradeço ao meu orientador Cesar 
Guimarães, pela acolhida, heróica paciência, inarredável perseverança 
e outras qualidades sem as quais provavelmente eu teria respeitado o 
sinal vermelho e não avançado com o trabalho. Ao CNPq por ter me 
possibilitado durante quatro anos o financiamento das atividades re-
lativas à tese através da bolsa de doutorado, tornando materialmente 
factível a dedicação e o empenho integral aos estudos e à investigação. 
Aos colegas de pós-graduação, camaradas das mais diversas estirpes 
e verves que foram valios@s interlocutor@s, confidentes e amig@s: Ana 
Paula, Carla (figurante de Hermes), Betina, Tereza, Luzia, Carlos San-
tana, Krista, Augusto, Thiago, Diogo, Julia, Fidel, Francisco Conceição, 
Guilherme, Fabrício, Diego e Juliano. Aos camaradas e amigos que so-
mente o Rio poderia me proporcionar: Chumbinho e Gavazza.
Aos camaradas que me auxiliaram na alucinante etapa final de orga-
nização do material da tese, revisões, comentários, etc.: Carlão Profeta, 
Dani, Débora, Carlos Balmant e Pedro Paulo. 
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Aos nov@s camaradas de jornada da UFFS – campus Erechim, pela 
compreensão e estímulo aos 45 minutos do segundo tempo, com o juiz 
e os bandeirinhas no meu pescoço: Daniel, Márcio, Paula, Dilermando, 
Fábio, Gerson(s), Luis Fernando e Thiago.
E por fim, o meio que virou (re)começo: a pequena Carmela, por 
descortinar novos horizontes e atualizar minhas utopias...
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E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio.
Caetano Veloso, “Um índio”.
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PARTE I
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1
A VACA, A FACA E O QUEIJO: 
AS CIÊNCIAS SOCIAIS CONTEMPORÂNEAS 
EM UMA PERSPECTIVA INDISCIPLINADA E DESCOLONIAL
Eu não gostei da peça, mas eu a vi em condições adversas 
– a cortina estava levantada.
GroUCho marx
1.1. Prólogo1
Goyo Yic é um camponês indígena consumido pela busca 
alucinada por sua mulher Maria Tecún. Abandonado com os filhos, 
cego de nascença, pobre, capturado pelas relações oligárquicas que 
assenhorou as terras e quase tudo que se move sobre elas, Goyo Yic 
protagonizaria uma longa jornada por vilarejos, freguesias e ranchos 
com a esperança de encontrar sua esposa, em uma cruel e anedótica 
série de histórias que culminariam com a regeneração de sua visão pela 
ação de um curandeiro nahual2. 
De acordo com a opinião corrente naqueles povoados, Maria Tecún 
provavelmente teria sido vitimada pelos efeitos do “labirinto de ara-
nha”, um encantamento realizado sobre um aracnídeo e que exerceria 
um poder sobre todas as mulheres que foram tocadas, direta ou indire-
tamente, por suas patas amaldiçoadas. Sob tal influência, Maria Tecún 
1 História extraída (e recontada de forma adaptada) do romance Hombres de Maíz, obra na qual 
o escritor guatemalteco Miguel Angel Astúrias navega pelos sentidos da experiência humana 
inspirado pela perspectiva da cosmologia maia-quiché. Através de uma elaborada narrativa 
que entrecruza várias histórias e personagens interligados em distintas camadas do espaço-
tempo de um mesmo processo histórico, o autor desenvolve muitos dos elementos contidos no 
imaginário autóctone em torno de um ponto crucial: a implantação do capitalismo no continente 
americano por meio do antagonismo entre homens que concebiam o milho como parte do 
seu ser e o produziam de forma equilibrada e limitada às suas necessidades, e aqueles que o 
consideravam um objeto alienável, intensificando e ampliando a área de seu cultivo para fins de 
comercialização, promovendo consequentemente o rompimento do tecido social comunitário 
e a desarticulação das cadeias ecológicas existentes. Nada menos que um belíssimo retrato da 
acumulação primitiva no continente americano. 
2 Entre os indígenas mesoamericanos, nahual ou nagual é um animal considerado espírito 
protetor. Acreditava-se que algumas pessoas, especialmente bruxos e xamãs, poderiam assumir 
habilidades ou até mesmo a forma de seu nahual.
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teria escapado de sua casa induzida por um desejo frenético de correr o 
mundo, sem rumo e destino consciente. 
Depois de anos procurando pela mulher, Goyo Yic progressivamente 
foi se resignando diante de seu fracasso. Demasiado tempo afastado de 
sua casa e filhos, envolveu-se com outras mulheres, roubos e um assassi-
nato, e após uma ébria e vertiginosa noite, entre tantas, se viu enredado 
em um inesperado projeto de comercialização de aguardente com um 
desconhecido companheiro de bebedeira. Foi dessa maneira que ele e 
um tal Domingo Revolorio reuniram o que possuíam de suas miseráveis 
economias e compraram uma modesta quantidade de aguardente de 
cacau, com planos de negociá-la em um vilarejo relativamente distante 
onde se celebraria em iminente data uma importante festa religiosa. 
Desprovidos do auxílio de uma besta de carga, foram impelidos a 
caminhar alguns quilometros até o local, enfrentando as já familiares 
inclemências de sol, chuva, fome, frio e escuridão, com o tonel do licor 
amarrado a uma rede que transportavam às costas, de maneira alterna-
da. Da operação de compra lhes restaram precisamente seis pesos, uma 
irrisória quantia que trataram de manter para alguma eventualidade, e 
que Goyo Yic portava consigo. Ao final, segundo combinado, o futuro 
lucro dessa empresa seria dividido em partes iguais entre os dois sócios. 
Durante o primeiro dia de percurso, subitamente assombrado pela 
lembrança de Maria Tecún, talvez despertada pelo cansaço produzido 
pela jornada, Goyo Yic revelaria ao seu novo compadre “Mingo” (ape-
lido atribuído a Domingo em virtude da súbita intimidade promovida 
pela noite de diversão) sua crescente necessidade de aliviar-se com um 
trago da aguardente. A insinuação foi suficiente para despertar a ira 
momentânea do seu companheiro, que trouxe à tona as bases do trato 
que firmaram entre si: trago somente mediante pagamento, ainda que 
fosse entre um deles, os donos da mercadoria. Goyo Yic, frustrado, se 
viu paralisado por um curto lapso de reflexão, até se agitar bruscamen-
te com a lembrança de que levava no bolso seis pesos, exatamente a 
quantia estipulada para a venda dos tragos da aguardente, revidando 
em seguida seu compadre em bons termos ao revelar que, na realidade, 
pretendia pagar pelo trago em conformidade com o acordo estabeleci-
do e jurado entre ambos. 
O compadre Mingo recebeu as moedas e imediatamente lhe serviu 
um trago do desejado líquido. Entretanto, isso foi suficiente para que 
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ele sentisse dentro de si o despertar de incontrolável ânsia e desejo de 
igualmentedesfrutar da bebida, especialmente ao ver as feições de re-
gojizo do companheiro. Domingo Revolorio decidiu também da sua 
parte beber, mas obviamente, pagando como ditava o trato, e assim 
desembolsou os seis pesos, já que naquele momento ele era seu porta-
dor, e os transferiu como pagamento a Goyo Yic demonstrando justeza 
e correção ao cumprir o acertado que mesmo eles pagariam pelo trago, 
para o êxito vindouro do empreendimento.
Mas a caminhada seguia, dura e pesada, e a cada instante pare-
cia que só era possível resisti-la mediante o conforto propiciado pela 
aguardente. Os companheiros viajaram com pouca comida e alterna-
vam o peso da carga a cada número de horas, e a cada pausa da marcha 
e troca de carga, se relaxavam comprando mutuamente tragos da bebi-
da, com os mesmos seis pesos, e cada gole agia imediatamente como 
estímulo para os passos seguintes e, obviamente, para novas paradas. 
Após un par de dias chegariam finalmente ao vilarejo. A festa já pre-
nunciava seu fim, e da aguardente, não parecia restar mais que vestí-
gios. Possuídos por um misto de cansaço, alegria e embriaguês, deci-
diram-se os compadres por um breve cochilo para recobrar as forças, 
e assim depois, iniciar o comércio em algum canto da praça principal. 
Não demoraria muito para serem despertados aos chutes e gritos pelos 
guardas locais, que os tomaram por ladrões forasteiros. Eles revidaram 
a acusação com os recursos disponíveis, e não eram muitos, inclusi-
ve pela dificuldade de esboçar palavras inteligíveis. Com muito esfor-
ço, conseguiram expressar que vieram à festa local para comercializar 
aguardente, “e boa aguardente”, como quiseram demonstrar ao oferecer 
uma pequena amostra aos agentes da lei. Desgraçadamente, foram to-
mados por súbitos espasmos diante da misteriosa constatação de que 
não havia mais da prometida bebida. E se não havia aguardente, para os 
guardas, significava que fora vendida, e se fora vendida, era necessário 
pagar pela autorização e impostos aplicados a tal tipo de atividade. 
Perplexos, Goyo Yic e Domingo Revolorio buscaram em seus respec-
tivos bolsos e alforjes pela quantia correspondente a venda de sua mer-
cadoria, não encontrando nada mais que seis irrisórios pesos, revelados 
entre os dedos trêmulos do compadre Mingo, desencadeando uma at-
mosfera recíproca de perplexidade, desconfiança e animosidade. Sem 
saber se foram roubados ou enganados, ou vitimados pelo sortilégio de 
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algum bruxo discreto, foram levados abruptamente ao cárcere do vila-
rejo, sob acusação de sonegação fiscal... 
1.2. Da necessidade de superação da economia cognitiva solipsista das 
comunidades acadêmicas
Que poderia ser, com efeito, o questionamento da institui-
ção social da ciência contemporânea fora de um questio-
namento da sociedade instituída? Não há mais política 
da ciência como não há ciência da política, salvo, em dois 
casos, como mistificação ou como pseudotécnica manipu-
ladora. Há somente, deve haver, política pensada e pensa-
mento político, e é isso que nosso tempo nos pede.
CorneliUs Castoriadis
O prólogo acima pode parecer sem propósito para começar uma 
discussão (meta)teórica, mas o tomarei como atmosfera incidental para 
iniciar e conduzir parte deste texto. Quero com isso propor elementos 
para uma reflexão sobre a prática e o exercício hegemônico das ciências 
sociais na América Latina, e muito provavelmente nos servirá para pen-
sar o seu estado nos demais países da periferia capitalista, levando em 
consideração sua relação com os centros legitimados de produção de 
conhecimentos propagados como científicos. Consciente das implica-
ções e limitações dos debates que se pautam pelas noções tradicionais 
de alienação e falsa consciência, pretendo contornar as armadilhas e 
lugares-comuns que as acompanham, usando como metáfora o relato 
do processo e do estado de embriagamento progressivo dos dois perso-
nagens descritos anteriormente, Goyo Yic e Domingo Revolorio, e tal-
vez com isso me aproximando mais da interpretação de uma percepção 
de ideologia como formulado originalmente por Marx3. 
Para começar me ocuparei não da equivalência entre espelhos e con-
tas de vidro, de um lado, e terra e força de trabalho, de outro, central para 
compreender nossa localização no sistema-mundo moderno/colonial 
capitalista (MIGNOLO: 2003; QUIJANO e WALLERSTEIN: 2005), mas da 
3 Ou seja, nos referimos explicitamente aos processos de universalização, disseminação e 
legitimação social de interesses e valores particulares a determinados grupos sociais (MARX 
e ENGELS: 2007). 
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economia de equivalência entre compadres, na correlação aguardente e 
seis pesos, conforme a história de Goyo Yic e Domingo Revolorio. Pro-
ponho e provoco a seguinte comparação: façamos dos nossos dois per-
sonagens uma parábola das comunidades acadêmicas4 dos cientistas 
sociais na América Latina (e insisto, por extensão, na periferia capita-
lista), ainda que não acreditemos em comunidades de dois elementos. 
O mais importante é salientarmos a relação que está em questão. As 
comunidades acadêmicas das ciências sociais às quais me refiro – que 
sem dúvida se utilizam de elementos empíricos coletados na realidade 
em que se inserem, por isso sua autorrepresentação como ciência, e 
não outra coisa – geralmente se encontram diante de um obstáculo: na 
maioria das vezes não criam “valor”, para nos apegar a outra alusão in-
cômoda hoje em dia, pois se baseiam na troca de equivalentes que ape-
nas mudam de mãos, se transferem, sem se transformarem ou produzi-
rem “algo mais”. Os seis pesos dos nossos compadres são como nossos 
conceitos e teorias, e a realidade social, a aguardente. À realidade re-
servamos, nessa dinâmica, apenas uma mediação de tipo extrativista. 
O conhecimento científico manuseado pelas ciências sociais na peri-
feria, através do conjunto de conceitos e teorias com os quais operamos, 
parece apenas transitar de um sujeito discursivo a outro no parlamento 
das comunidades acadêmicas, como algo que se basta à sua própria eco-
nomia cognitiva, promovendo um verdadeiro solipsismo na escala das 
comunidades acadêmicas a que se referem. Nesse sentido, creio que é 
pertinente à luz desse problema o teor da crítica de Marx presente em A 
ideologia alemã. Os cientistas sociais da periferia geralmente teorizam 
sobre fenômenos e processos sociais com ferramentas heurísticas ina-
propriadas e sem sintonia com as dinâmicas sociais das quais eles mes-
mos fazem parte. Talvez uma das respostas possíveis a esta questão é que 
4 Por comunidades acadêmicas procuro denominar instituições e espaços socialmente 
legitimados pela profissionalização e especialização dos produtores de conhecimentos e artes, 
relativamente auto-organizados segundo regras e princípios específicos estabelecidos por seus 
membros, mas ao mesmo tempo amparados em uma ou mais tradições e identidades que os 
precedem. Esta conceitualização se avizinha muito daquilo que Thomas Khun chamava por 
“comunidade científica”, e também se inspira em uma leitura em afinidade com temas levantados 
pelas obras de Pierre Bourdieu e Roberto Kant de Lima sobre o assunto. Por outro lado, das 
discussões mais recentes acerca do que se denominam por comunidades epistêmicas, das 
quais menciono aquela capitaneada por Peter Haar, procuro extrair a ênfase dada na formação 
de coalizões intelectuais transnacionais, muitas vezes no sentido de se afirmar em posições 
e espaços de onde se postulam determinados saberes considerados relevantes para áreas 
específicas de formulação de políticas (KHUN: 2003; BOURDIEU: 2008; LIMA: 1997; HAAS: 1992).
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os cientistas sociais da periferia, ao mesmo tempo que vivenciam tais 
dinâmicas, também estão sujeitos às dinâmicas dos centros de produção 
acadêmica que eles emulam, e que em menor ou maior grau os acolhem 
e tutelam sua formação (GERHOLM e HANNERZ: 1982).
Longe de estimular alguma aberração como variante de um xeno-
fobismo cognitivo e heurístico, o que quero ponderar é que as progra-
mações epistêmicas por trás das reflexões sofisticadas da elaboração 
sociológica colonizada são protegidas sanitariamente da “poluição” do 
mundo cotidiano em tudo aquilo que questiona e aniquila sua lógica. 
Assim, para citar exemplos correntes, a ausência de Estado é tratada 
como anomia; a ausência de mercado, como subdesenvolvimento; a 
ausência de lógica empresarial e espírito empreendedor, como inefi-
ciência produtiva; a ausência de partidos políticos orgânicos e compe-
titivos, como cultura cívica inepta. 
Estamos, pois, diante de um desafio que transcende os limites 
usualmente aceitos das assim chamadas comunidades acadêmicas, 
principalmente por afirmar que suas fronteiras são políticas, isto é, sua 
existência, em sua dimensão institucional e epistemológica, está ba-
seada em um conjunto de valores e premissas que orientam uma de-
terminada cosmovisão muito específica e paroquial, qual seja, aquela 
da racionalidade moderna/colonial, conferindo a lógica hegemônica 
que vertebra a configuração do sistema-mundo como modernidade/
colonialidade capitalista e sua correspondente geocultura (WALLERS-
TEIN: 2007, p. 12). A superação desses limites, seguindo esse raciocínio, 
aponta necessariamente para a introdução de multi-logos pluritópicos, 
tomando emprestada uma expressão de Walter Mignolo (2003), onde 
existam apenas dia-logos (ou mais bem, mono-logos) monotópicos, for-
çando tais fronteiras para situá-las em outras escalas e intersecções. 
1.3. Da ciência como cosmovisão moderna/colonial
1.3.1. O imperativo de “impensar” as ciências sociais
A ciência moderna se impôs a seus oponentes, não os 
convenceu. A ciência dominou pela força, não através de 
argumentos...
PaUl Feyerabend
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CASSIO BRANCALEONE 2 1
A emergência das ciências sociais, conforme tem insistido Imma-
nuel Wallerstein, é fruto de um processo histórico, social e espacial-
mente datado: falamos da Europa ocidental e, mais particularmente, 
dos desdobramentos dos processos sócio-históricos que passaram a 
ser conhecidos como renascimento e iluminismo. Daí sua determinada 
concepção de tempo, razão e moral – cronosofia, racionalidade e mo-
ralidade respectivamente sustentadas pela noção de progresso linear, 
analítica mensurável do sujeito/objeto e perfectibilidade humana. Do 
paradigma da ciência moderna herdou o princípio de produção de um 
conhecimento secular sistemático da realidade, baseado em duas pre-
missas: o modelo newtoniano do “presente eterno” (simetria entre pas-
sado e futuro) e o dualismo cartesiano, ou seja, a distinção fundamental 
entre natureza e ser humano, matéria e mente, mundo físico e mundo 
social (WALLERSTEIN: 1996). 
Para Wallerstein, a universalização do programa da Revolução Fran-
cesa5 também seria um dos aspectos centrais da moderna geocultura 
dominante, fundamentalmente pelo seu papel no processo de natu-
ralização: a) da mudança social como fenômeno corrente em todas as 
sociedades inseridas no sistema-mundo moderno/colonial, e b) do que 
se pode compreender como povo como sujeito da soberania política dos 
Estados-nação. E sendo a mudança o estado de normalidade dessas so-
ciedades emergentes pós-1789, caberia aos Estados também emergentes 
estimular a produção de conhecimentos que explicassem tais dinâmicas, 
para compreender suas tendências, estruturas e lógicas, e assim, condu-
zi-las de maneira mais racional, controlada e menos traumática possível. 
Desse modo, as ciências sociais, impulsionadas pelo processo de 
universalização de um paroquialismo filosófico e epistêmico, se insti-
tucionalizaram como forças motrizes da engenharia social, convergin-
do com o processo de ascensão de tecnocracias como parte sine qua 
non da constituição do aparelho dos Estados modernos, que a partir da 
expansão das relações entre diferentes territórios e populações, aberta 
com o circuito comercial do Atlântico (BRAUDEL: 1997), resultaria na 
formação do capitalismo, por si já o primeiro sistema-mundo conhe-
cido que lograria incorporar todo o planeta a seus domínios, retroali-
5 A opção de Wallerstein em estabelecer a organização da moderna geocultura dominante a partir 
da Revolução Francesa como marco, apesar de plausível, também se baseia em controversas 
premissas eurocêntricas (MIGNOLO: 2003). 
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA 2 2 
mentando as próprias condições para a consolidação da moderna geo-
cultura dominante.
Uma das primeiras tensões internalizadas pelas ciências sociais pa-
rece se originar da cristalização das barreiras entre as “duas culturas” no 
campo do conhecimento, cindido entre ciência e humanidades. Nesse 
conflito atroz, a filosofia seria expulsa e exorcizada do reino das ciên-
cias, e as ciências sociais buscariam emular o núcleo da lógica interna 
de funcionamento da ciência tal como estabelecido pelas ciências físi-
cas e naturais, ensaiando uma constituição híbrida, mas indefinida e 
raramente bem explicitada, como “terceira cultura”. Assim, as ciências 
sociais já nasceriam como parte de uma crise, e sempre teriam que lidar 
com uma contradição insolúvel: como aplicar os métodos canonizados 
pela ciência quando observador e observado participariam de uma 
mesma constituição comum?
Essa tensão produziria algumas consequências. Ainda seguindo as 
pistas de Wallerstein, as ciências sociais não somente foram objeto de 
severa compartimentação e especialização, como ditaram as dinâmi-
cas da divisão social do trabalho sob vertebração mercantil, mas prin-
cipalmente traduziram esta contradição com a materialização da es-
téril antinomia em disputa entre as lógicas nomotética e ideográfica. 
Na primeira frente, encontrariam-se a sociologia, a ciência política e a 
economia, operando com a noção de leis gerais, de estruturas e funções 
sincrônicas que poderiam ser mapeadas pelo analista em qualquer so-
ciedade a partir do uso sistemático do método empírico de observação 
das regularidades. Na outra linha, a antropologia, a história e os “estu-
dos orientais”, que operariam nos termos da especificidade e da parti-
cularidade e, por isso, “ignorando” a noção de leis de funcionamento 
pela de descrição e inventário6. 
Outro problema é que a prática das ciências sociais estaria ordenada 
por uma visão particular e não declarada de espacialidade, em que o 
conjunto das estruturas sociais que organizariam a vida humana seria 
os territórios soberanos do sistema interestatal que definiram o mapa 
geopolítico do mundo, o que explica seus vícios euro/estadocêntricos: 
6 Importante deixar claro que tal divisão deve ser entendida como rastreamento dos impulsos 
dominantes iniciais que forjaram os princípios explicativos e interpretativos das citadas 
modalidades de ciências sociais. (WALLERSTEIN: 1996). 
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CASSIO BRANCALEONE 2 
Casi todos los filósofos sociales daban por sentado que 
esas fronteras políticas determinaban los parámetros es-
paciales de otras interacciones clave – la sociedad de la 
sociología, la economía nacional del macroeconomista, 
el cuerpo político del politólogo, la nación del historia-
dor. Cada uno de ellos suponía una congruencia espacial 
fundamental entre los procesos políticos, sociales y eco-
nómicos. En ese sentido, la ciencia social era claramente 
una criatura, si es que no una creación, de los Estados, y 
tomaba sus fronteras como contenedoressociales funda-
mentales (WALLERSTEIN : 1996, p. 30). 
Já há quase 40 anos, ainda que à revelia de algumas comunidades 
acadêmicas mais institucionalizadas (e que, portanto, possuem recur-
sos e pessoal para reproduzir quadros e defender as tradições em que 
se fundaram), foi assinalada a insuficiência e os limites das ciências so-
ciais contemporâneas em dar conta satisfatoriamente dos processos e 
fenômenos sociais e mesmo para oferecer tecnologias sociais aos Esta-
dos e empresas para conduzi-los e controlá-los. Por isso, a forte e repe-
tida ressonância que possuem atualmente os temas da fragmentação, 
crise das grandes narrativas e coisas do gênero. Um dos sintomas desse 
debilitamento das ciências sociais parece se expressar naquilo que o so-
ciólogo Donald Levine batizaria acertadamente como a escassez de seus 
recursos simbólicos (LEVINE: 1997). Levine talvez não suspeitasse que 
essa escassez se colocaria como obstáculo até mesmo para o exercício 
autorreflexivo das próprias ciências sociais, turvando as alternativas 
que viessem a se prenunciar em seu horizonte.
Se, sob a perspectiva hegemônica nas ciências sociais, conhecer o 
mundo seria se apropriar do mundo e conferir sentido à experiência 
humana nesse mesmo mundo, tudo indica que cada vez mais o mundo 
resiste a essa apropriação e os sentidos que lhe aplicamos nos escapam 
peremptoriamente. É curioso que conceitos como os de perplexidade, 
complexidade e incerteza, desde pelo menos o final dos anos 1970, se 
tornariam moeda corrente entre físicos, químicos e filósofos (PRIGO-
GINE e STENGERS: 1984), naquilo que se poderia considerar como um 
dos mais promissores diálogos entre “as três culturas”, desde pelo me-
nos uma experiência que no mundo europeu praticamente se encerrou 
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA 2  
com o renascimento – e, fora dele, com a supressão de outras cosmovi-
sões levada a cabo pela conquista da América, África e Ásia. Isso e muito 
mais nos relata Immanuel Wallerstein e um grupo de pensadores dos 
quatro continentes, que no final dos anos 1980 tomaram a iniciativa de 
constituir a chamada Comissão Gulbenkian para a reestruturação das 
ciências sociais (WALLERSTEIN: 1996).
No caso de Wallerstein, com o chamado a impensar as ciências sociais, 
externava sua preocupação em estimular um movimento no interior das 
comunidades acadêmicas que culminasse em algo distinto de repensar 
suas premissas, conceitos e teorias. A questão seria avaliar e problema-
tizar a mentalidade existente por detrás (ou por dentro) das premissas, 
conceitos e teorias, no sentido de ultrapassar a própria crítica epistemo-
lógica, antes centrada na falsa antinomia nomotética/idiográfica, para a 
crítica das visões de mundo que organizam as epistemologias. Wallerstein 
apontava, a partir dessa perspectiva, algumas pistas relevantes:
Creemos que insistir en que las ciencias sociales avan-
cen hacia la inclusividad (en términos del reclutamiento 
de personal, la apertura a múltiples experiencias cultu-
rales, la lista de los temas de estudio legítimos) es tender 
a aumentar la posibilidad de un conocimiento más ob-
jetivo. Creemos que el énfasis en la historicidad de todos 
los fenómenos sociales tiende a reducir la tendencia a 
hacer abstracciones prematuras de la realidad y en de-
finitiva ingenuas. Creemos que el cuestionamiento per-
sistente en torno a los elementos subjetivos de nuestros 
modelos teóricos aumenta la probabilidad de que esos 
modelos sean relevantes y útiles. Creemos que […] una 
mejor apreciación de la validez de la distinción ontoló-
gica entre los seres humanos y la naturaleza, una defi-
nición más amplia de las fronteras dentro de las cuales 
se produce la acción social, y un balance adecuado de 
la antinomia entre universalismo y particularismo, será 
una importante contribución a nuestros intentos de de-
sarrollar el tipo de conocimiento más válido que quere-
mos tener (1996, p. 100-1). 
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CASSIO BRANCALEONE 2 5
Entretanto, o convite wallersteiniano de impensar as ciências sociais, 
juntamente com suas propostas esboçadas no bojo da Comissão Gulben-
kian, se confrontados consequentemente com o problema das visões de 
mundo, nos desloca uma vez mais a encarar um dilema político, que nes-
se instante passo a desenvolver mais claramente, atando-o ao problema 
da “equivalência entre espelhos e contas de vidro, de um lado, e terra e for-
ça de trabalho, de outro”, como mencionado no início da primeira seção. 
1.3.2. A colonialidade do saber e a opção descolonial
Dialogando com a análise do sistema-mundo de Wallerstein, Wal-
ter Mignolo propõe-lhe uma necessária retificação com a intenção de 
corrigir seu viés eurocêntrico (MIGNOLO: 2003). Ao evidenciar que a 
geocultura do sistema-mundo demonstrada por Wallerstein não passa 
da autorrepresentação do próprio sistema-mundo, o imaginário domi-
nante ou a ideologia (no sentido marxiano inaugural) do sistema-mun-
do capitalista, ele procura desvelar-lhe seu elemento oculto, colonial, 
assinalando que modernidade e colonialidade são aspectos insepará-
veis de um mesmo processo histórico. 
Para Mignolo, o capitalismo e o sistema-mundo moderno/colonial 
surgiram a partir e com a incorporação do continente americano. Atra-
vés dessa premissa, em que aspectos políticos e epistemológicos estão 
imbricados, ele articula a tradução destes pontos de intersecção em 
duas dimensões solidárias entre si: a colonialidade do poder e a colo-
nialidade do saber. O autor filia sua linha de pensamento às reflexões 
do sociólogo peruano Aníbal Quijano, que em 1992 publicou um ensaio 
seminal onde denunciava as íntimas relações entre racionalidade, co-
lonialismo e capitalismo: 
Ao mesmo tempo em que se afirmava a dominação colo-
nial, erigia-se um complexo cultural denominado racio-
nalidade e estabelecia-se como o paradigma universal do 
conhecimento e das relações hierárquicas entre a ‘huma-
nidade racional’ (Europa) e o resto do mundo (QUIJANO: 
2006, p. 416).
Quijano sublinha a colonialidade do poder como uma lógica espo-
liativa que organiza um determinado arranjo de dominação que sub-
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA 2  
mete populações e territórios através da imposição de um determinado 
sistema de classificação (QUIJANO: 2008). A classificação e reclassifica-
ção das populações do planeta (onde o conceito de “raça” e depois de 
“cultura” se tornariam cruciais) operariam por meio de uma estrutura 
funcional institucional (agências estatais, universidades, igrejas) e den-
tro de uma perspectiva epistemológica que articula o sentido e o perfil 
da matriz de poder como critério implícito de julgamento e distinção 
(QUIJANO: 2008). Em sua dimensão político-epistêmica, a resultante 
é que o saber e as histórias locais européias foram desenhados como 
projetos globais e estratégias imperiais (MIGNOLO: 2003), assim, colo-
nialidade do poder e dependência histórico-estrutural são duas expres-
sões-chave de processos que se supõem um ao outro e estão, portanto, 
visceralmente inter-relacionados. 
Mignolo busca realizar uma imersão no universo do pensamento 
social produzido em situações de subalternidade em distintos pontos 
da cartografia colonial, onde tenta localizar o que denomina como 
“outras topografias” do discurso, ou do contradiscurso e do discurso 
silenciado, para trazer à tona o que passaria a conceitualizar como a 
diferença colonial. Produzida sob as circunstâncias e contrangimentos 
do colonialismo e da colonialidade do poder,
 a diferença colonial é o espaço onde as histórias locais 
que estão inventando e implementando os projetos glo-
bais encontram aquelas histórias locais que os recebem; 
é o espaço onde os projetos globaissão forçados a adap-
tar-se, a integrar-se ou onde são adotados, rejeitados ou 
ignorados. A diferença colonial é finalmente o local ao 
mesmo tempo físico e imaginário onde atua a colonia-
lidade do poder, no confronto de duas histórias locais 
visíveis em diferentes espaços e tempos do planeta (MIG-
NOLO: 2003, p. 10).
A diferença colonial criaria condições para situações dialógicas nas 
quais se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação fratura-
da como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica. Nas coordena-
das culturais, políticas e econômicas fabricadas pela diferença colonial 
se dão as condições de possibilidade para emergentes heteroglosias su-
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CASSIO BRANCALEONE 2 
balternas, que o mesmo Mignolo passaria a denominar por pensamento 
liminar. 
O pensamento liminar se organizaria potencialmente como crítica 
da colonialidade do poder e do saber e se projetaria como gnose que 
se insurge contra a própria configuração do conhecimento como epis-
temologia e hermenêutica (ou seja, como lógica antinômica das “duas 
culturas”). A noção de gnose, originalmente formada sob influência de 
um movimento religioso hostil ao cristianismo (JONAS: 1958), em al-
gumas tradições mágicas remete a uma forma geral de conhecimento 
do homem e do mundo. Mignolo lança mão da concepção de gnose 
tal como elaborada por Valentin Mudimbe (1988) em seu estudo sobre 
a invenção da África para falar do conhecimento de um modo que ul-
trapassasse as culturas acadêmicas. Assim o pensamento liminar, ou a 
gnose limitar (aqui já sinônimos para Mignolo), se construiria em diálo-
go insurgente com a cosmovisão moderna a partir de saberes que foram 
subalternizados nos processos imperiais coloniais. 
Outro exemplo importante utilizado por Mignolo para fundamentar 
sua ideia de gnose liminar se encontra nas reflexões do filósofo marro-
quino Abdelkebir Khatibi, quando este, em um intrigante ensaio escrito 
nos anos 1980 sobre a descolonização da sociologia, advogava por “um 
outro pensamento” partindo de uma topografia subalternizada (dife-
rença colonial) para a realização intelectual do que nomeava por “dupla 
crítica”.
Com a noção de dupla crítica, Khatibi tentou salientar, a partir de 
um locus geo-histórico de enunciação chamado Magreb, as potencia-
lidades de um esforço de pensamento crítico que colocasse em visibi-
lidade as dinâmicas de subalternização dos modos locais de conheci-
mento (em sua condição de intelectual oriental ocidentalizado), mas 
sem necessidade de assumir fundamentalismos autóctones (em uma 
suposta condição de intelectual oriental purificado). A dupla crítica se 
constituiria como um modo de saber que se exerceria na inter-relação 
de distintas cosmovisões, daí a importância que autores como ele con-
cedem aos processos literários de tradução, entendidos como exercí-
cios de compreensão multissituados, almejando se despojar de qual-
quer razão imperial ou princípios de submetimento. 
Um “outro pensamento” seria possível, portanto, quando se leva em 
conta diferentes histórias locais e suas particulares relações de poder, 
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA 2  
buscando um horizonte de superação da cosmovisão monotópica da 
modernidade/colonialidade, sendo portanto
uma maneira de pensar que não é inspirada em suas pró-
prias limitações e não pretende dominar e humilhar; uma 
maneira de pensar que é universalmente marginal, frag-
mentária e aberta; e, como tal, uma maneira de pensar 
que, por ser universalmente marginal e fragmentária, não 
é etnocida (MIGNOLO: 2003, p. 19). 
Para denunciar e agir sobre a atual ordem geopolítica de produção 
do conhecimento, a dupla crítica se articula como crítica dos discursos 
imperiais (a exterioridade a partir da qual se construiu o Magreb como 
tal) bem como dos discursos que afirmam as identidades e as diferen-
ças articuladas no e pelos discursos imperiais (MIGNOLO: 2003, p. 39). 
Como pensamento liminar, não se opõe necessariamente a construção 
de macronarrativas, se estas podem ser entendidas como 
lugares nos quais ‘um outro pensamento’ poderia ser 
implementado, não para dizer a verdade em oposição às 
mentiras, mas para pensar de outra maneira, caminhar 
para uma ‘outra lógica’ – em suma, para mudar os termos 
e não apenas o contexto da conversação (MIGNOLO: 
2003, p. 106). 
As principais implicações do exercício da dupla crítica seriam a 
desconstrução descolonizadora do logocentrismo e do etnocentris-
mo ocidental impostos ao resto do mundo, e uma crítica aos saberes 
e discursos produzidos pelas diversas sociedades periféricas recepto-
ras, nesse momento, manifestados como pensamentos fronteiriços, ou 
pensamentos “entre línguas”, para usar outra expressão cara a Mignolo. 
Outro autor que influenciou a perspectiva desenvolvida por Mig-
nolo, também apresentado como representante de um pensamento/
gnose limitar, é o antropólogo argentino Rodolfo Kusch. Autor de uma 
vasta obra sobre populações indígenas e camponesas na Argentina e 
Bolívia, cujo trabalho se inicia nos idos dos anos 1950, Kusch defendia 
a urgência de se compreender/enfrentar o verdadeiro processo de co-
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CASSIO BRANCALEONE 2 
lonialismo mental, pari passu ao imperialismo econômico e político, 
ao qual estaria submetido o continente americano. Longe de encarnar 
um defensor saudosista do passado indígena pré-colombiano, estava 
ele determinado a compreender a “América profunda” em sua dimen-
são de negatividade/negação, conforme representação/relação estabe-
lecida pela racionalidade ocidental, e assim trazer à tona os variados 
modos como o pensamento popular reagia, resistia, e, especialmente 
realizaria a “fagocitose” desta mesma racionalidade. Para tanto, lançou-
se no ousado labor de produzir/promover uma verdadeira filosofia do 
“pensamento popular”.
Em seu livro de 1975, La negación en el pensamiento popular7, tra-
balho seminal que não chega a ser debatido por Mignolo em sua obra, 
desenvolveria Kusch a tese de que o pensamento popular não só foi so-
cial e historicamente rejeitado como modo legítimo de conhecer/agir 
no mundo, sendo com isso silenciado, mas fundamentalmente, nos 
apresenta com narrativa surpreedente e atraente como o pensamento 
popular também carrega consigo um modus operandi peculiar através 
do qual nega e se opõe a cultura dominante (estrangeira e nacional/
colonizada), no que tange a busca de uniformidade e submetimento.
 Para fins desse debate, apresentarei três aspectos mais centrais da 
argumentação de Kusch contida no citado livro, para situá-lo como 
uma importante contribuição ao campo das gnoses liminares. Primei-
ramente, a partir da rejeição dos limites do pensamento baseado na an-
tinomia noesis/doxa, ou seja, intuição intelectual/opinião, herdado da 
tradição grega, Kusch realiza uma defesa plausível de um resgate dos 
modos de conhecimento fundados na articulação das duas dimensões, 
reabilitando com isso o poder explicativo da doxa como multiplicidade 
de opiniões:
Se dice que la opinión da lo aparente y el conocimiento 
lo esencial. Pero el rechazo de lo aparente de un lado y 
la preferencia de lo esencial del otro, ¿no será porque la 
razón rechaza lo que es naturalmente plurívoco por una 
simple cuestión de comodidad? El juicio científico nos 
dice una cosa, la opinión nos dice muchas. Se hace cien-
cia para unificar, pero no por eso la realidad será unívoca. 
7 Aqui uso a edição de 2008, publicada pela editora Las Cuarenta (Buenos Aires).
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Queda la sospecha de que una ciencia realmente positiva, 
que parta del vivir mismo, puede ser plurívoca. Entonces 
¿no será que la opiniónencierra toda la verdad, mientras 
que la ciencia no dice más que una parte de ella? (KUS-
CH: 2008, p. 22).
Ao contrário da lógica científica moderno/colonial, que rechaça 
ou subordina o universo da opinião como “aparência”, a proposta de 
Kusch passa pela assunção da ciência como um elemento a mais no 
universo plurívoco de explicações sobre uma realidade que por sua vez 
também é plurívoca. A intuição intelectual não estaria, assim, hermé-
tica e sanitariamente separada e protegida do universo da opinião, e 
nem o contrário, em termos de construções discursivas sobre o mundo. 
E do ponto de vista do modo como nós, latino-americanos, assimila-
mos essa antinomia, Kusch assinala ainda que “el problema nuestro es 
que vivimos de la noésis occidental y no sabemos nada de nuestra doxa, 
porque la segregamos” (2008, p. 161). 
O segundo aspecto que nos interessa aponta para uma outra leitura 
da oposição razão e emoção. Contestando a validade dessa oposição, 
no mesmo espírito da crítica da antinomia anterior, e em sintonia com 
a perspectiva de Ferdinand Tönnies (1947), que nesse tema foi seletiva-
mente esquecida e ignorada pelas escolas sociológicas que lhe segui-
ram, Kusch nos explica que 
lo emocional en este caso no debe ser tomado como 
opuesto a inteligencia o como una simple disgregación 
de lo intelectual, sino como un campo del quehacer psí-
quico en el que las denotaciones son cada vez más difí-
ciles por cuanto ellas se tornan disponibles (2008, p. 32). 
Mais uma vez, o que lhe interessa não é a subordinação de uma es-
fera da atividade psíquica a outra, e sim, por um lado, a dignificação 
e legitimação de uma região do espírito que igualmente é responsável 
por operações mentais de grande relevo para a existência humana e, 
por outro, sua localização e o papel que exerce em determinadas cos-
mologias populares. Seu movimento vai no sentido da complexificação 
da natureza do ato de conhecer e conferir inteligibilidade e significado 
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CASSIO BRANCALEONE  1
à realidade e inevitavelmente recupera todos os dispositivos que sinali-
zam o caráter coletivo e intersubjetivo da construção do conhecimento 
e do sujeito cognoscente, em oposição frontal ao ego cogito. Se existo, 
e logo penso, existir implica participar de uma determinada ecologia 
cultural onde todo pensamento se torna possível, inclusive possível de 
ser representado como pensamento e o ser pensante ser representado 
como tal. E, por sua vez, outras ecologias culturais possibilitariam ou-
tras modalidades de representação das ideias e de sua significação ge-
rativa, como no caso do que Kusch tenta apresentar como pensamento 
popular (BATESON: 1998). 
Se razão e emoção não são os critérios definidores da atividade de 
pensar, se ambos dela participam em variadas combinações e articula-
ções, Kusch buscaria esse critério na capacidade de decisão, isto é, na 
capacidade de mobilização da vontade:
El aspecto profundo del pensar no consiste en decidir so-
bre la falsedad o la verdad, por la cual se niega o se afirma, 
sino que es una consecuencia de la decisión. La verdad 
en el pensar está en la posibilidad de decidir y no en la 
afirmación (KUSCH: 2008, p. 49). 
Com isso introduzimos o terceiro e último aspecto que me interes-
sa apresentar sobre a perspectiva de Kusch. Trata-se de sua leitura das 
condições de possibilidade do ser popular americano. Nitidamente em 
sintomia com as filosofias de extração fenomenológica e existencialista, 
mas demonstrando o caráter de sua recepção “aclimatizada” ao terreno 
que é próprio ao autor, Kusch procura demonstrar as razões pelas quais 
uma ontologia do pensamento popular na América estaria vertebrada 
não pela ideia do ser, mas pela do estar-sendo. Nela, o negado e a nega-
ção se encontrariam como abertura, orbitando ao redor de um contí-
nuo estar como infraestrutura de possibilidades. 
Na linguagem do imaginário ocidental corrente, enquanto a autor-
representação da noesis moderno/colonial estaria pautada pela afirma-
ção do que é, pela verdade como resultante unívoca de operações men-
tais/sociais, a doxa americana não convertida em saberes emulados 
sempre escaparia a essa lógica e, portanto, seria apresentada reiteradas 
vezes como pré-moderna, selvagem, indômita, bárbara e irracional. 
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O estar-sendo popular seria desdobramento não somente da herança 
indígena e autóctone, mas especialmente da sua relação com a expe-
riência colonial. Por um lado, a negação estaria conformada pelo des-
compasso das diferenças, forçado pelo exterior. Por outro, seria uma 
lógica criada no interior do próprio pensamento popular, um traço da 
sua cultura de resistência, como estratégia para viver. 
Aliás, essa é a concepção de cultura talhada por Kusch: considera-
da toda sorte de mediação simbólica, se conhece o mundo em última 
instância para habitar esse mesmo mundo. Como estratégia para viver, 
cultura também é política. Essas conclusões desaguam necessariamen-
te no problema da cultura e do ethos nacional ou, melhor dito, do aviva-
mento de um povo como comunidade política para que ele seja capaz 
de se autodeterminar. 
Tais alusões ao pensamento de Rodolfo Kusch nos levam inevitavel-
mente a um pensador brasileiro que, em condições históricas seme-
lhantes, também buscou dar suas respostas para o problema da men-
talidade colonial; e, embora não assinalado no trabalho de Mignolo, 
me parece uma contribuição inegável a constelação de pensamentos 
liminares que mapeamos até então. Refiro-me ao sociólogo Guerreiro 
Ramos, a quem pretendo dedicar um pequeno espaço para apresenta-
ção de algumas de suas ideias, encerrando assim essa seção.
 Em sua obra exemplar (pelo menos para este tipo de reflexão) – e 
por isso mesmo não isenta de armadilhas e contradições –, A redução 
sociológica, publicada em 1958, Guerreiro Ramos parece ter articulado 
dois pontos de abordagem para a superação do problema da mentali-
dade colonial em relação à sociologia: de um lado, avaliar o papel e a 
inserção social da atividade científica, especialmente em países onde se 
urgia a elaboração de iniciativas e programas políticos para alavancar o 
desenvolvimento nacional e extirpar todas as relações de dependência 
e submissão internacional (e acredito que é plenamente questionável 
o entendimento elaborado no período acerca do termo “desenvolvi-
mento”, tanto como suas “vias” de realização); e de outro, uma crítica 
profunda à constituição daquilo que poderíamos chamar de ciências 
sociais no Brasil. Em relação a este último ponto, é mais que conheci-
da a tensão com Florestan Fernandes, que rechaçava o valor científico 
dos trabalhos “pré-sociológicos” dos clássicos do “pensamento social” 
brasileiro, como Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Silvio Romero ou 
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CASSIO BRANCALEONE  
Alberto Torres, exatamente por seu comprometimento com a dogmá-
tica de que o único cânone válido de cientificidade provinha da matriz 
originária européia, institucionalizado nas universidades e academias.
Para analisar o estado da produção sociológica e o tipo de sua inser-
ção social no país, Guerreiro Ramos introduziria uma diferença entre 
“sociologia em hábito” e “sociologia em ato” (RAMOS: 1965, p. 28). A 
primeira entendida como uma certa destreza intelectual capaz de pos-
sibilitar o desenvolvimento de uma sensibilidade especial para reagir 
ao que se poderia considerar “fatos sociológicos” (e não é gratuita a uti-
lização pelo autor de termos como “empatia” como uma das caracterís-
ticas definidoras do espírito sociológico), e que não necessariamente 
dependeria de uma cultura livresca e de treinamento formal como um 
modo exclusivo de socialização e promoção dessahabilidade. Já a se-
gunda, se limitaria aos seus aspectos formais, de educação e condução 
do intelecto através da incorporação de métodos e teorias canonizadas 
e institucionalizadas como procedimentos de uma subcultura organi-
zacional que certificaria e qualificaria seus membros como integrantes 
da mesma. Considerado como praticante da “sociologia em ato” por 
Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes teria reproduzido em alguns de 
seus trabalhos sociológicos essa limitação de somente compreender 
como “sociologia” aquilo que se forjou à luz da fundação das escolas 
de sociologia. 
O importante ao salientar este caso seria o de proporcionar uma crí-
tica à prática da sociologia no Brasil, onde muitos sociólogos seriam 
extremamente capacitados para fazer uso da sociologia como discipli-
na científica, muitos com grande erudição e demonstração de pleno 
domínio de bibliografias canônicas, mas ao mesmo tempo incapazes 
de manusear sociologicamente os conhecimentos sociológicos (RAMOS: 
1965, p. 120). 
A noção de redução em Guerreiro Ramos é resgatada da filosofia de 
Husserl, mas apontando para além de sua própria constituição concei-
tual originária, como tentou demonstrar exaustivamente em seu livro. 
A redução sociológica, como procedimento metódico que visa tornar 
sistemática a assimilação crítica de teorias e práticas científicas, per-
segue o ideal de compreender/transcender os condicionamentos so-
ciais e históricos, no sentido de partir da condição humana como algo 
necessariamente situado e datado. Assim, “a redução sociológica é um 
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA   
método destinado a habilitar o estudioso a praticar a transposição de 
conhecimentos e experiências de uma perspectiva para outra” (RA-
MOS: 1965, p. 42). 
E a perspectiva em questão deveria ser a “perspectiva brasileira”, o 
elemento necessário, de acordo com o argumento do autor, para que 
o país se constituísse como uma sociedade/personalidade histórica, 
isto é, consciente de que a liberdade é a compreensão dos condicio-
namentos que fazem do “povo” e da “nação” o que eles são e o que eles 
podem vir a ser. Seria a consciência desses condicionamentos o que 
possibilitaria a uma coletividade a capacidade de se autodeterminar e 
se autogovernar.
Ainda assim, no caso de Guerreiro Ramos, em contraste com Ro-
dolfo Kusch, fica a impressão do comprometimento, mesmo ambíguo, 
com os desígnios e o programa da ciência moderno/colonial. A apos-
ta na universalidade da racionalidade moderno/colonial e na ideia de 
progresso/evolução por fases das sociedades, constituídos como valo-
res motrizes do ato crítico de conhecer, me parece derivar de sua crença 
em um ideal preexistente de comunidade humana universal. Pelo me-
nos, fica a confissão sincera desse autor de que o ato de conhecer não 
estaria apartado de um certo substrato de fé. 
1.4. Indisciplinar8 as ciências sociais: caos, complexidade, imaginário 
radical e anarquismo epistemológico
Se ultrapassarmos os limites do solipsismo das comunidades acadê-
micas e entendermos a racionalidade moderno/colonial para além dos 
seus próprios termos – ou seja, paroquializando-a na condição de uma 
cosmovisão entre outras mais, o que não necessariamente implicaria 
em negar-lhe parcial e contextual validade – podemos finalmente assu-
mir uma perspectiva verdadeiramente plurívoca onde as possibidades 
de conhecer se manifestarão como um campo aberto de encontro/con-
fronto/metálogo de gnosiologias reais e/ou possíveis. 
Por decorrência, uma leitura das condições de possibilidade/efeti-
vidade da produção do conhecimento erigida sobre essas bases impli-
caria em um movimento que poderá parecer drástico à primeira vista: 
8 Sobre a expressão “indisciplinar as ciências sociais”, me inspiro no trabalho de Santiago Castro-
Gómez, Freya Schiwy e Catherine Walsh: Indisciplinar las ciencias sociales. Geopolíticas del 
conocimiento y colonialidad del poder (2002). 
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CASSIO BRANCALEONE  5
a necessidade de re/des/construir as ciências sociais em seu caráter 
de disciplinas, que assumirei em diante como um movimento para in-
discipliná-las. Se recordamos Wallerstein, percebemos que a noção de 
disciplina se organiza em três dimensões: a) como constituição de um 
conjunto de categorias intelectuais ordenadas sob regras ou premissas 
comuns; b) como uma estrutura institucional que afilia membros e se 
responsabiliza pela socialização/(re)produção desse conjunto de cate-
gorias; e c) como uma cultura identitária/profissional compartilhada 
entre esses membros (WALLERSTEIN: 2005).
Foucault, por sua vez, e antes de Wallerstein, também colocava em re-
levo a solidariedade existente entre os aspectos epistemológicos e insti-
tucionais das disciplinas, enfatizando, sobretudo, o princípio de controle 
e normatização que estas dimensões exercem sobre a produção do dis-
curso científico (FOUCAULT: 2000). Tal modalidade de controle é respon-
sável pela produção de limites através dos quais opera o jogo de identida-
de que proporciona a reatualização permanente dessas mesmas regras. 
Como podemos perceber, fatos e evidências são construídos e fabricados 
sob determinado conjunto de regras e procedimentos. Essa constatação 
nos leva, pois, à questão que quero colocar em relevo: o problema da di-
nâmica de “disciplinamento” não é o fato de ela controlar o que pode ou 
não ser dito, mas, fundamentalmente, que ela provém as condições a par-
tir das quais é possível ou não enunciar alguma coisa. Enquanto em um 
caso o que não pode ser dito pode pelo menos ser pensado, ainda como 
pensamento dissidente ou herético, no outro caso lhe são negadas as 
próprias “condições axiológicas” para sua existência como pensamento 
opositor (sob o domínio de premissas que, digamos, obstacularizariam a 
inteligibilidade de conceitos ou estruturas conceituais).
Para o filósofo catalão Raimon Panikkar (2006), o homem ociden-
tal moderno parece ter sido o que mais desesperadamente criou para 
si próprio um mundo passível de ser organizado segundo os mais ri-
gorosos níveis de controle, único mundo no qual acreditava ser pos-
sível viver em paz e sem medo. O homem moderno, temente ao caos 
e a uma realidade (humana e natural) que lhe pudesse se apresentar a 
qualquer momento como inimiga, depositaria sua confiança exclusiva 
em seu poder, sua inteligência, e em todos os expedientes derivados de 
suas capacidades que pudessem ser convertidos em meios de domínio 
e controle. 
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA   
Através de seus estudos sobre o recente campo do diálogo inter-
cultural e da interculturalidade, Panikkar se incorpora na corrente dos 
principais críticos da ciência como cosmovisão particular da moder-
nidade/colonialidade, considerando ainda sua relação tensa em um 
universo onde operam cosmovisões distintas e mesmo antagônicas. No 
que toca essa última questão, ele buscou sua solução através de uma 
perspectiva que permitisse um plano de coexistência entre diferentes 
cosmovisões, defendendo um pluralismo que avançasse de uma posi-
ção exclusivamente metafísica ou sociológica para se converter em um 
verdadeiro locus existencial:
El pluralismo comienza cuando la praxis nos impulsa a 
tomar postura ante la presencia efectiva del otro, cuando 
la praxis hace imposible el evitar la mutua interferencia, y 
cuando el conflicto no puede ser resuelto por el triunfo de 
una de las partes o un sector de éstas. El pluralismo apa-
rece cuando el conflicto es inevitable (PANIKKAR: 1990, 
p. 20-1). 
Sua visão de pluralismo, tanto como pluralidade (diferenças/mul-
tiplicidades extracomunitárias e extrassocietárias) e como pluriformi-
dade (diferenças/multiplicidades intercomunitárias e intersocietárias),ao evocá-lo como locus existencial, converge com a sugestão de Migno-
lo quando, narrando a emergência e constituição das gnoses liminares, 
formula a noção de diversalidade enquanto um projeto contraposto ao 
universal abstrato oferecido pelas perspectivas hegemônicas. A diver-
salidade9, como projeto paradoxal e contraditório, deve ser entendida 
como um universalismo “negociado” para que não existam mais uni-
versalismos impostos e totalitários, calcada no princípio da criativida-
de e do livre contato, buscando a prática de um “cosmopolitismo crítico 
e dialógico” (MIGNOLO: 2000, p. 744). 
O cenário em questão, como podemos muito bem observar, é o da 
desafiante e audaciosa articulação entre princípios de universalismo e 
particularismo, diversidade e unidade, ao qual buscam dar respostas 
os autores suscintamente pontuados através de conceitos muito pró-
9 Mignolo, nesse sentido, é tributário das reflexões de Enrique Dussel sobre a transmodernidade 
e de Edouard Glissant e sua poética da diversidade (DUSSEL: 2001; GLISSANT: 2005).
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CASSIO BRANCALEONE  
ximos, como os de pluralismo, interculturalidade e diversalidade. Não 
restam dúvidas que todas as cosmovisões carregam consigo elementos 
normativos que em determinadas circunstâncias podem apresentar-
se como mutuamente excludentes (e de fato, isso é patente em rela-
ção a tópicos delicados e polêmicos como a representação ocidental 
hegemônica das questões de gênero e de direitos humanos). O ponto 
de Arquimedes da pluralidade/diversalidade como locus existencial é 
justamente partir da dignidade das diferenças como aspecto inicial de 
qualquer contato/comunicação/tradução, com vistas ao diálogo e ao 
entendimento mútuo. 
No entanto, temos que reconhecer que as virtudes e potencialida-
des discursivas da diversalidade como projeto são inseparáveis de ele-
mentos também normativos que, se violados, colocam em xeque sua 
própria condição de “metaprojeto universal”: são, basicamente, os ele-
mentos referenciais de qualquer cosmovisão que justifiquem e promo-
vam a prática da opressão, da dominação e da exploração do homem 
pelo próprio homem. Obviamente que tal princípio toma a espécie hu-
mana e os indivíduos que a constituem como portadores de um con-
junto mínimo de “direitos naturais” invioláveis, em sua acepção até en-
tão inegavelmente moderna/ocidental. No entanto, também é de pleno 
reconhecimento que esses princípios nunca lograram transcender as 
fronteiras do formalismo ético e jurídico, e se realizar/democratizar. As-
sim que, se a um tempo possa parecer que retornamos ao beco sem saí-
da do ocidentalismo por evocar tais princípios, não podemos esquecer 
que a elaboração histórica desses mesmos princípios, ainda que aloca-
das em um determinado topos, cartografia ou lugar discursivo (ou seja, 
a Europa ocidental), é impulsionada com a/através da projeção desse 
mesmo topos, em sua relação com o resto do mundo que pretende do-
minar/civilizar/cristianizar/humanizar. Sua mundialização implicou 
necessária e igualmente um estatuto inverso (em proporções difíceis de 
precisar pelo narcisismo etnocêntrico), o de ser mundializado e sofrer 
contrapressões daquilo que havia pressionado. 
Em outros termos, dizer que tais princípios são somente e exclusi-
vamente ocidentais/modernos é fazer vistas grossas a todo um com-
plexo processo de constituição moral e intelectual deles que se deu em 
relação com outros homens e ideias de distintos topos, cartografias e 
lugares de discursos, e esquecer toda sorte de contribuição daqueles 
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA   
que foram sacrificados pelo processo: as vozes silenciadas ou contra-
bandeadas daqueles que foram exterminados, vencidos e submetidos. 
Essa me parece a matriz da arrogância ocidental/moderna, e a arma-
dilha que recorrentemente caímos por nos situar com alguma dose de 
ingenuidade histórica nessa “tradição”.
Para que a crítica da ciência e das instituições modernas/colo-
niais não seja tomada como um rechaço total e absoluto contra todas 
as suas manifestações, e tão somente contra elementos de sua lógica 
instituinte que funda e legitima as estruturas de dominação das quais 
elas formam parte, apresentarei algumas das contribuições à crítica 
da racionalidade moderna elaboradas pelo filósofo grego Cornelius 
Castoriadis, acrescentando mais densidade a nossa discussão.
Cornelius Castoriadis, em plena agitação social e intelectual que 
marcou os anos 1960, foi um dos principais filósofos no campo da es-
querda a se insurgir contra a própria racionalidade moderna (lhe debi-
tando o nome de pseudorracionalidade), e o que é mais interessante, 
partindo do interior dessa própria racionalidade e mobilizando ele-
mentos que de algum modo lhe foram basilares. À parte a denúncia da 
intuição metafísica da racionalidade ocidental que inaugura e cristali-
za uma identidade grosseira entre ser e pensar (CASTORIADIS: 1987, p. 
16), o filósofo tensiona os mecanismos ocultos por detrás da elaboração 
lógica de qualquer identidade como unidade, procurando explicitar os 
aspectos imaginários que compõem a arquitetura da ordem social, po-
lítica e mesmo das disposições individuais. Sua crítica da identidade é 
a crítica da identidade instituída, ou melhor, da lógica identitário-con-
juntista (também denominada por ele de conídica), aquela que orde-
na, separa, classifica, e reunifica a realidade, reificando-a, partindo de 
pressupostos que são instituídos através de significações imaginárias 
sociais (CASTORIADIS: 1986). 
As significações imaginárias sociais, matéria-prima do imaginário 
social, podem ser tomadas como seus estruturantes axiais. Não são sig-
nificações “de” algo, ligadas ou referidas a algo. São autorreferentes, não 
se configurando nem mesmo como representações. Pelo contrário, são 
condições do representável e do factível, posição primeira, inaugural, 
imanente à sociedade (1986, p. 409; p. 412-4). Castoriadis considera que 
elas são organizadoras do mundo, criadoras de objetos ex nihilo, sendo 
em grande medida refratárias aos esquemas lógicos e ontológicos dis-
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CASSIO BRANCALEONE  
poníveis. Elas não denotam nada, mas conotam mais ou menos tudo. 
De suas derivações, composições, articulações, temos a instituição do 
social-histórico e seu correspondente imaginário social: 
A instituição da sociedade é o que é e tal como é enquan-
to ‘materializa’ um magma de significações imaginárias 
sociais, […] e não se pode também dizer que este magma 
é separadamente dos indivíduos que ele faz ser […]; é no 
e pelo ser e o ser-assim deste ‘suporte’ que essas significa-
ções são e são tais que são (1986, p. 401). 
Ainda que o autor não se detenha na questão de delinear uma (impos-
sível) genealogia das significações imaginárias, sua existência e transfor-
mação são impensáveis sem aquilo que ele denomina por imaginário ra-
dical. Tal “instância” é por ele definida como um fluxo de representações 
não sujeito a determinidade, como a capacidade de fazer aparecer como 
imagem alguma coisa que não é, e não foi, de seus produtos, expressando 
a parte eminentemente “individual”, espontânea e criadora, a alteridade, 
a autoalteração, importante dimensão e fonte de criatividade e mudan-
ça. As significações imaginárias, ainda que descritivamente complicadas 
de definir pelas propriedades da nossa racionalidade identitário-conjun-
tista, conformam “estruturas” que lhes dão as condições de possibilidade 
ao mesmo tempo em que são alimentadas por ela, tornando-as o que 
são. Numa dimensão, na psiquê-soma, o imaginário radical e suas “repre-
sentações individuais”; noutra, no social-histórico, o imaginário social e 
suas “representações coletivas”. Tais dimensões, é importanteressaltar, 
são inseparáveis e incomensuráveis entre si. 
Uma das teses de Castoriadis é que nos liames das significações 
imaginárias, estabelecendo no imaginário social os fatores instituin-
tes de ordem e realidade, e convertendo tais dimensões em imaginá-
rio efetivo, calcado na rigidez da relação símbolo/coisa, estão lançadas 
as condições de inauguração, manutenção e reprodução da sociedade 
instituída. De tal modo uma sociedade encontra os aportes simbólicos 
necessários para a manutenção de sua ordem e o fundamento das suas 
instituições (o que não descarta de modo algum os elementos funcio-
nais presentes em todo ordenamento social): 
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA  0 
Este elemento, que dá à funcionalidade de cada sistema 
institucional sua orientação específica, que sobredetermi-
na a escolha e as conexões das redes simbólicas, criação 
de cada época histórica, sua singular maneira de viver, de 
ver e de fazer sua própria existência, seu mundo e suas 
relações com ele, esse estruturante originário, esse signi-
ficado-significante central, fonte do que se dá de cada vez 
como sentido indiscutível e indiscutido, suporte das ar-
ticulações e das distinções do que importa e do que não 
importa, origem do aumento da existência dos objetos de 
investimento prático, afetivo e intelectual, individuais ou 
coletivos – este elemento nada mais é do que o imaginário 
da sociedade ou da época considerada (1986, p. 175). 
A contribuição de Castoriadis é vital para a nossa reflexão sobre a 
ciência não porque embasa ainda mais nossa preocupação em salientar 
em quais aspectos as condições sociais de produção do conhecimento 
amparam a reprodução/instituição de determinadas configurações de 
ordem social e moral, mas especialmente, porque aponta igualmente 
uma instância (imaginário radical) através da qual certos tipos de en-
gajamento com a produção do conhecimento podem levantar consigo 
dimensões instituintes de ordens sociais e morais alternativas. 
Nesse sentido podemos localizar uma multiplicidade de pontos de 
passagens (conflitivas) entre a reprodução e a criação. Esse tensiona-
mento, operado pelo sujeito cognoscente, ultrapassa ao mesmo tempo 
esse mesmo sujeito, retroalimentando sua própria condição contra-
ditória e complexa de sujeito. Por isso, Castoriadis procura uma com-
preensão da realidade (o social-histórico) como magma, ou seja, 
multiplicidade que não é uma no sentido adquirido do 
termo, mas que referimos como uma; que não é multi-
plicidade em sentido do que poderíamos enumerar, efe-
tivamente ou virtualmente, o que ela ‘contém’, mas onde 
podemos referir cada vez termos não absolutamente 
confundidos; ou ainda, uma indefinidade de termos 
eventualmente mutantes reunidos por uma pré-relação 
facultativamente transitiva (a remissão); ou a unificação 
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CASSIO BRANCALEONE  1
de ingredientes distintos-indistintos de uma diversida-
de (1986, p. 389).
Se a ciência como projeto ocidental de desvelamento/produção 
da verdade encontraria, segundo Castoriadis, um dos seus principais 
limites na lógica identitário-conjuntista e na manutenção de um imagi-
nário efetivo instituído como “braço simbólico da ordem social”, o que 
podemos preservar dela? Ou como superar esses aspectos que lhe são 
fundantes? A resposta de Castoriadis, convergente com a proposta de 
Panikkar, nos remete a defesa de uma “relacionalidade radical”, inserida 
na experiência humana da vida. Para tanto, uma das medidas práticas 
e imediatas é a superação do estado de separação e especialização so-
lipsista existente entre os distintos domínios da produção do conheci-
mento. Mas esse diálogo e essa ruptura de fronteiras nos remetem ne-
cessariamente ao tema do pluralismo e seus atuais condicionantes: o 
indeterminismo, a incerteza e o caos.
Castoriadis (2005) chega a propor a metáfora do caos (e que mais po-
deria ser o caos senão uma metáfora magmática?) como princípio on-
tológico fundamental do ser, naquilo que ele sugere de indeterminação, 
incomensurabilidade e inexaustibilidade. No campo das ciências exatas 
e naturais, muitos cientistas ao longo dos anos 1980 passaram a defen-
der posições muito similares. Nesse bojo se destaca o químico russo Ilya 
Prigogine, um dos principais representantes da moderna teoria do caos. 
Por muito tempo, e ainda hoje na cabeça de alguns acadêmicos pro-
tegidos por seus departamentos corporativos, noções como a de de-
terminação, causalidade, equilíbrio e reversibilidade dariam o tom de 
inteligibilidade para qualquer teoria que se pretendesse científica. Mas 
segundo a opinião de muitos cientistas e filósofos contemporâneos (e 
esse é um movimento de aproximação virtuosa entre ciência e filoso-
fia), como o próprio Prigogine, estas noções, quando aplicadas à expli-
cação da realidade, denotam muito mais idealizações e aproximações, 
sendo, ademais, exceções frente a maior parte dos fenômenos indeter-
minados e irreversíveis, que não apresentam nem padrões de equilíbrio 
nem conexões causais admissíveis. 
Prigogine, um dos maiores teóricos das estruturas dissipativas e de 
não equilíbrio na termodinâmica, argumentava que a dinâmica clássi-
ca e a física quântica, quando se referiam a leis fundamentais, não po-
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PRÊMIO IESP TEORIA SOCIAL, DEMOCRACIA E AUTONOMIA  2 
diam exprimir mais possibilidades do que certezas. Mesmo a perspec-
tiva de “sistemas”, tendo em conta as configurações complexas que os 
constituem e os envolvem, só poderia ser vislumbrada em situações de 
não equilíbrio. Consequentemente, “os fenômenos irreversíveis não se 
reduzem a um aumento de ‘desordem’, como se pensava tempos atrás, 
mas, ao contrário, têm um importantíssimo papel construtivo” (PRO-
GOGINE: 1996, p. 29). 
Em outras palavras, é o caos que produz a ordem, e continua sendo 
ele o princípio que permite a sua floração em diversidade e extensão 
espaço-temporal. O caos permite a organização da vida e da realidade 
como “totalidade” transitória, e a entropia é o movimento necessário de 
todo desenvolvimento ulterior. Mas a ordem é sempre criação possível, 
virtual, existente-inexistente em latência, em não equilíbrio. Assim, e 
para além da alegoria do “efeito borboleta”, frente ao que é incerteza e 
contingência, todos os fatores existentes e a existir inscrevem sua mar-
ca na realidade, e mesmo o mais insignificante pode ser capaz de esti-
mular bifurcações fractais que em determinadas circunstâncias podem 
transformar o sistema em sua totalidade. 
Diante da realidade concebida como complexidade, nos cabe não 
somente pensar o lugar da ciência moderna como mediação intelectual 
em seu formato sócio-histórico adquirido, uma entre outras existentes e 
possíveis – e portanto, seu diálogo e relação com mediações de outra na-
tureza –, mas especialmente, entre aqueles que ainda apostam em suas 
potencialidades, em sua recondução e transformação diante de reconhe-
cida complexidade (CAPRA: 1982; MATURANA: 1997; MORIN: 1996).
Para outro filósofo, como o austríaco Paul Feyerabend, esse não seria 
um problema a ser enfrentado como resultante do desenvolvimento da 
ciência e das sociedades modernas, em uma perspectiva de ondas linea-
res de superação (como o que se concebe como as crises de paradigma). 
Ao contrário, o problema estaria instalado entre os principais elementos 
que corroboraram sua formação, ao ponto de a ciência moderna conviver 
com uma autoimagem em descompasso com suas principais práticas.
Paul Feyerabend chega a defender, através de um interessante e sis-
temático estudo da filosofia, da história e da antropologia da ciência, 
que a ciência seria um empreendimento fundamentalmente anárqui-
co10. Seja através do exame de episódios históricos, ou da análise

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