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TEORIAS DA LEITURA E FORMAÇÃO DO LEITOR PONTA GROSSA - PARANÁ 2012 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Evanir Pavloski LICENCIATURA EMLetras CRÉDITOS UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância - NUTEAD Av. Gal. Carlos Cavalcanti, 4748 - CEP 84030-900 - Ponta Grossa - PR Tel.: (42) 3220-3163 www.nutead.org 2012 Pró-Reitoria de Assuntos Administrativos Ariangelo Hauer Dias – Pró-Reitor Pró-Reitoria de Graduação Graciete Tozetto Góes – Pró-Reitor Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância Leide Mara Schmidt – Coordenadora Geral Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Pedagógica Sistema Universidade Aberta do Brasil Hermínia Regina Bugeste Marinho – Coordenadora Geral Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Adjunta Silvana Oliveira – Coordenadora de Curso Marly Catarina Soares – Coordenadora de Tutoria Colaborador Financeiro Luiz Antonio Martins Wosiack Colaboradora de Planejamento Silviane Buss Tupich Projeto Gráfico Anselmo Rodrigues de Andrade Junior Colaboradores em EAD Dênia Falcão de Bittencourt Jucimara Roesler Colaboradores em Informática Carlos Alberto Volpi Carmen Silvia Simão Carneiro Adilson de Oliveira Pimenta Júnior Colaboradores de Publicação Márcia Monteiro Zan – Revisão Glaucia Marilia Hass – Revisão Fernando Lopes – Diagramação Colaboradores Operacionais Edson Luis Marchinski Rafael Fernandes Siqueira Samuel Clemente de Souza Thiago Barboza Taques João Carlos Gomes Reitor Carlos Luciano Sant’ana Vargas Vice-Reitor Todos os direitos reservados ao Ministério da Educação Sistema Universidade Aberta do Brasil Ficha catalográfica elaborada pelo Setor Tratamento da Informação BICEN/UEPG. Pavloski, Evanir P338t Teorias da leitura e formação do leitor / Evanir Pavloski. Ponta Grossa : UEPG/NUTEAD, 2012. 87 p. : il. Licenciatura em Letras - Educação a distância. 1. Leitor – formação. 2. Leitiura. I. T CDD: 808.068 APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL A Universidade Estadual de Ponta Grossa é uma instituição de ensino superior estadual, democrática, pública e gratuita, que tem por missão responder aos desafios contemporâneos, articulando o global com o local, a qualidade científica e tecnológica com a qualidade so- cial e cumprindo, assim, o seu compromisso com a produção e difusão do conhecimento, com a educação dos cidadãos e com o progresso da coletividade. No contexto do ensino superior brasileiro, a UEPG se destaca tanto nas atividades de ensino, como na pesquisa e na extensão Seus cursos de graduação presenciais primam pela qualidade, como com- provam os resultados do ENADE, exame nacional que avalia o desem- penho dos acadêmicos e a situa entre as melhores instituições do país. A trajetória de sucesso, iniciada há mais de 40 anos, permitiu que a UEPG se aventurasse também na educação a distância, mo- dalidade implantada na instituição no ano de 2000 e que, crescendo rapidamente, vem conquistando uma posição de destaque no cenário nacional. Atualmente, a UEPG é parceira do MEC/CAPES/FNED na exe- cução do programas Pró-Licenciatura e do Sistema Universidade Aberta do Brasil e atua em 40 polos de apoio presencial, ofertando, diversos cursos de graduação, extensão e pós-graduação a distância nos estados do Paraná, Santa Cantarina e São Paulo. Desse modo, a UEPG se coloca numa posição de vanguarda, as- sumindo uma proposta educacional democratizante e qualitativamen- te diferenciada e se afirmando definitivamente no domínio e dissemi- nação das tecnologias da informação e da comunicação. Os nossos cursos e programas a distância apresentam a mesma carga horária e o mesmo currículo dos cursos presenciais, mas se uti- lizam de metodologias, mídias e materiais próprios da EaD que, além de serem mais flexíveis e facilitarem o aprendizado, permitem cons- tante interação entre alunos, tutores, professores e coordenação. Esperamos que você aproveite todos os recursos que oferecemos para promover a sua aprendizagem e que tenha muito sucesso no cur- so que está realizando. A Coordenação SUMÁRIO ■ PALAVRAS DO PROFESSOR 7 ■ OBJETIVOS E EMENTA 9 A LEITURA NO BRASIL: MITOS E FRONTEIRAS 11 ■ SEÇÃO 1 - Antecedentes históricos da leitura no Brasil 13 ■ SEÇÃO 2 - Os analfabetismos no Brasil do século XXI 20 ■ SEÇÃO 3 - O brasileiro não lê! (O quê?) 26 TEORIA DA RECEPÇÃO – DIÁLOGOS COM OS TEXTOS 33 ■ SEÇÃO 1 - Os caminhos da leitura e as veredas da teoria 35 ■ SEÇÃO 2 - As dimensões da leitura 41 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO – DIÁLOGOS COM OS TEXTOS LITERÁRIOS 63 ■ SEÇÃO 1 - O que é literatura? As perspectivas de autores, teóricos e receptores 65 ■ SEÇÃO 2 - As especificidades do diálogo literário 71 ■ SEÇÃO 3 - As faces do diálogo literário 77 ■ PALAVRAS FINAIS 84 ■ REFERÊNCIAS 85 ■ NOTA SOBRE O AUTOR 87 PALAVRAS DO PROFESSOR Seja bem-vindo ao Curso de Letras, na modalidade Português/ Espanhol e, em especial, ao conteúdo de Teorias da Leitura e Formação do Leitor. A leitura representa não apenas um caminho para a aquisição de conhecimento, aperfeiçoamento da linguagem e catarse, mas também uma parte integrante da formação de indivíduos dotados de senso crítico, princípios éticos e cidadania. Entretanto, dados estatísticos revelam problemas crônicos no Brasil no que se refere à leitura de textos literários ou não, como, por exemplo, deficiências no processo de alfabetização e o analfabetismo funcional. Tais problemas podem ser enfrentados por meio de uma consciência mais plena do processo da leitura como um todo: suas dimensões, as inferências e as expectativas envolvidas na leitura de diferentes gêneros textuais, a estrutura composicional que forma a tessitura dos textos e as diferentes etapas que compõem o processo de desenvolvimento da capacidade de leitura dos sujeitos. Diante disso, esta disciplina foi organizada com o objetivo de promover o estudo e a reflexão sobre o real panorama da leitura no Brasil e os desafios que o cercam. Nesse sentido, privilegiou-se, em um primeiro momento, a análise de dados estatísticos e de textos críticos sobre a questão. Em seguida, buscamos delinear os principais conceitos das chamadas teorias da recepção, tendo em vista um aprofundamento crítico da própria definição de leitura e das suas múltiplas faces. Contudo, o foco principal da disciplina repousou sobre a interação com textos verbais e os diversos elementos que permeiam a sua organização e que condicionam a sua interação com o leitor. Finalmente, reservamos uma unidade específica para o estudo das especificidades do texto literário e da experiência estética na qual o leitor mergulha ao percorrer as páginas de contos, fábulas, crônicas, poemas e romances. Dessa forma, buscamos evidenciar as especificidades estruturais e dialógicas que perpassam o processo da leitura e apontar características relevantes que podem contribuir para uma formação mais efetiva de leitores mais competentes e mais conscientes. Assim, esperamos que o diálogo silencioso com os textos aqui inseridos ecoe para outras dimensões textuais e possibilite, eventualmente, a dissipação de outros silêncios sustentados pelo desconhecimento e pela exclusão. OBJETIVOS E EMENTA ObjetivOs ■ Promover a discussão sobre as causas históricas, sociais e educacionais dos problemas de alfabetização e leitura de jovens e adultos no Brasil. ■ Analisar, no horizonte das teorias da recepção, os problemas e desafios enfrentados em sala de aula para a formação de leitores, tendo como corpus de análise dados apresentados por autores e institutos interessados (INAF, IPM,IPEA, etc.). ■ Aprofundar os conhecimentos teóricos sobre os processos dialógicos envolvidos na leitura de textos ficcionais ou não. ■ Problematizar os limites da escrita literária e do cânone ocidental enquanto elementos integrantes do processo de formação de leitores. ■ Aprofundar o conhecimento teórico sobre as relações que se estabelecem entre o leitor e a obra literária, as quais caracterizam um processo dialógico de ordem histórica, cultural e interpessoal (comunicação diferida). ementa Análise de dados estatísticos e textos críticos sobre o panorama da leitura no Brasil. Estudo das teorias da leitura e do papel do leitor no processo de significação de textos verbais e não verbais. Discussão sobre a produção, circulação e recepção de obras literárias, tendo em vista o papel ativo dos leitores sobre essa dinâmica. A leitura no Brasil – mitos e fronteiras ObjetivOs De aPRenDiZaGem ■ Analisar os aspectos histórico-sociais que contribuíram para um quadro deficitário da leitura no Brasil. ■ Distinguir os conceitos de analfabetismo e analfabetismo funcional no contexto brasileiro, relacionando-os com índices estatísticos sobre a alfabetização e a leitura no último século. ■ Perceber as diferentes modalidades de leitura presentes nas sociedades modernas e problematizar a noção de que o povo brasileiro simplesmente não lê. U N ID A D E I ROteiRO De estUDOs ■ SEÇÃO 1 - Antecedentes históricos da leitura no Brasil ■ SEÇÃO 2 - Os analfabetismos no Brasil do século XXI ■ SEÇÃO 3 - O brasileiro não lê! (O quê?) U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 12 UNIDADE 1 PARA INÍCIO DE CONVERSA Ao se abordar o tema da leitura, seja ela ficcional ou não, no contexto cultural brasileiro, depara-se com a enunciação de um pensamento que, devido a sua recorrência, já se impõe como parte do senso comum: “o povo brasileiro não gosta de ler!”. Contudo, ao analisarmos mais profundamente a questão, percebemos que supostas “verdades imediatas” sobre a leitura no país escondem generalizações e simplificações que não se sustentam sob o foco de um olhar mais crítico. Afinal, a que modalidade de leitura ou gênero textual nos referimos? O que apontam os indicadores estatísticos? Quais as transformações impulsionadas pelas novas mídias digitais? De que maneira(s) o próprio conceito de leitura tem sido rearticulado e reinterpretado? E mesmo que, adotando os parâmetros tradicionais de leitura, verifiquemos que os índices nacionais se mostram inferiores aos de outros países, cabe-nos problematizar os aspectos históricos que contribuíram para a formação de tal quadro. Assim, na presente unidade discutiremos o panorama da leitura no Brasil, partindo do que o senso comum carrega de verdade e o que pode (e, possivelmente, deve) ser questionado. T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 13 UNIDADE 1 SEÇÃO 1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LEITURA NO BRASIL Primeiramente, tomemos como critério inicial de análise os indicadores estatísticos de alfabetização no país, uma vez que não é possível apreciar a difusão da leitura e o seu possível apreço por um determinado grupo social sem mencionar a formação educacional dos membros desse grupo. Ao apresentarmos uma discussão sobre o analfabetismo no Brasil, o primeiro ponto a considerar é que se trata de um problema crônico em nossa história e que se confunde com a própria colonização do território. Inicialmente, não havia um sistema educacional constituído na sociedade colonial, ficando a cargo dos jesuítas portugueses o exercício de práticas pedagógicas descontínuas e que tinham como objetivo primordial a transmissão da língua do colonizador e dos preceitos religiosos da Igreja Católica. Tal desestruturação associada a um processo colonizador caracteristicamente exploratório manteve a educação formal (e, consequentemente, a alfabetização) distante das prioridades da metrópole. Em outras palavras, a dinâmica social privilegiava as relações comerciais e as práticas mercantilistas, atividades que não exigiam uma capacidade leitora desenvolvida. Em sua interessante obra História da instrução pública no Brasil (1500- 1889), José Ricardo Pires de Almeida comenta o fato de que no Brasil Colônia “havia um grande número de negociantes ricos que não sabiam ler” (ALMEIDA, 2000, p. 37). A progressiva formação de uma elite colonial, cujos filhos nasceram em terras brasileiras, fomentou a estruturação de um sistema educacional organizado. Entretanto, a educação formal se restringia a uma camada ínfima da população e priorizava o ensino das letras clássicas, especificamente U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 14 UNIDADE 1 o latim, como forma de consolidar uma elite culturalmente submissa à aristocracia portuguesa. Segundo Luiz Carlos Villalta, tais diretrizes redundam em uma prática educacional “claramente reprodutivista, voltada para a perpetuação de uma ordem patriarcal, estamental e colonial [...] uma não-pedagogia, acionando no cotidiano o aparato repressivo para inculcar a obediência” (VILLALTA, 1997, p. 351). No decorrer do período colonial, o tupi-guarani se tornou a língua franca no Brasil, isto é, a língua utilizada cotidianamente pela maioria da população. Nesse contexto, convencionou-se o uso da língua portuguesa apenas na esfera burocrática (certidões, promissórias, etc.), o que atribuiu um status privilegiado àqueles que dominavam tanto a modalidade oral quanto escrita do idioma. Dessa forma, o letramento se estabiliza como um dos vários elementos da dinâmica de poder e de exclusão na sociedade da época. (Poema em tupi-guarani. Fonte: FERNANDES, Adaucto. Gramática Tupi, Rio de Janeiro: Coelho Branco, 1960). Em 1758, a língua portuguesa foi declarada o idioma oficial do Brasil. No mesmo período, a responsabilidade pela formação educacional dos nativos e colonos foi transferida das mãos dos jesuítas para a máquina administrativa da Metrópole. Contudo, a carência de infraestrutura, a falta de qualificação e a baixa remuneração dos professores impossibilitaram a melhoria da educação e a ampliação do número de alfabetizados. Consequentemente, o poder cultural e econômico se mantinha como privilégio de uma minoria elitizada que podia financiar os estudos de seus T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 15 UNIDADE 1 filhos na Europa enquanto a vasta maioria dos indivíduos permanecia iletrada. Tal configuração fez com que a formação educacional da massa desprivilegiada se concentrasse sobre ensinamentos práticos que possibilitassem o exercício de ofícios necessários na época (artesãos, agricultores, etc.) e que não demandavam um ensino formal e mesmo a alfabetização. O conhecimento e a cultura eram vistos, sob essa perspectiva, como refinamentos distantes da realidade cotidiana e das urgências da subsistência1. A situação não se modificou substancialmente durante o período imperial, mesmo com a abertura das primeiras faculdades no Brasil. ALMEIDA (2000) menciona que, em 1886, o percentual da população escolarizada era de 1,8%, índice sensivelmente inferior ao de outros países latino-americanos como, por exemplo, a Argentina (em torno de 6%). “Prova disto é que, no Império, admitia-se o voto do analfabeto, desde que, é claro, este possuísse bens e títulos” (PINTO et al, 2000, p. 512). 1 É interessante perceber que essa visão instrumentalista da educação e do conhecimento parece ter ressurgido com nova roupagem na contemporaneidade. Esse pragmatismo se revela na grande quantidade e variedade de cursos em nível técnico ofertados atualmente e na ênfase no papel das instituições de ensino na formação de profissionais para o mercado de trabalho. Isso não significa, obviamente, que a leitura foi relegada a um segundo plano. Podemos apenas questionar a completudedesse processo formativo e os modelos de profissional e leitor a serem gerados por ele. Com a corte no Rio de Janeiro, foram instaladas as primeiras instituições de ensino superior no Brasil, eram faculdades voltadas para a formação da burocracia estatal que emergia. Essas instituições de ensino, portanto, privilegiaram as camadas superiores da sociedade, europeizando e produzindo uma educação que visava à manutenção do status quo. As classes populares, que precisavam do ensino primário para aprender a ler e escrever a língua portuguesa, continuaram negligenciadas. (PARANÁ, 2008, p. 41) Ainda no final do século XIX, e com o advento da República, a preocupação com a nascente industrialização influenciou a estrutura curricular: tendo em vista a formação profissional, as Humanidades não eram consideradas prioritárias, fortalecendo-se o caráter utilitário da educação. Houve, então, a necessidade de rever o acesso ao ensino para atender às necessidades da industrialização. (PARANÁ, 2008, p. 41) U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 16 UNIDADE 1 É pacífico afirmar que parte dos ideais progressistas difundidos em todo o mundo ao longo do Oitocentos foi responsável pelo fortalecimento do caráter utilitarista e excludente que então caracterizava o sistema educacional brasileiro. Essa conjuntura se alterou apenas em meados do século XX, quando projetos de ampliação da rede de educação foram colocados em prática. Sem dúvida, tais medidas representaram uma melhoria nas condições do ensino no país. Não obstante, o avanço parece ter ocorrido mais em termos quantitativos do que qualitativos. Em outras palavras, o número de instituições de ensino aumentou, mas a qualidade da instrução oferecida aos alunos se manteve passível de críticas. Ainda assim, determinadas transformações e inclusões se revelaram expressivas como, por exemplo, o reconhecimento de variantes linguísticas, sociais e econômicas nas salas de aula e a ênfase no trabalho com textos literários. No entanto, mesmo tais aspectos revelam facetas problemáticas como a disseminação de formas de preconceito e a instrumentalização da literatura como fonte exemplar da norma culta da língua. Durante o período da ditadura militar, os estudos comportamentalistas2 foram utilizados como suporte teórico-metodológico para o ensino nos níveis fundamental e médio. Acreditava-se que uma proposta pedagógica alicerçada sobre práticas de memorização e repetição seria mais adequada ao regime autoritário instituído, uma vez que cerceava o desenvolvimento de reflexões críticas por parte dos estudantes. Assim, estabelecia-se um contraponto às conquistas alcançadas com a ampliação da rede educacional, ou seja, novos espaços de aprendizagem foram construídos, mas antigos objetivos estatais ainda os ocupavam. A leitura do texto literário, no ensino primário e ginasial, visava transmitir a norma culta da língua, com base em exercícios gramaticais e estratégias para incutir valores religiosos, morais e cívicos. O objetivo era despertar o sentimento nacionalista e formar cidadãos respeitadores da ordem estabelecida. (PARANÁ, 2008, p. 45) 2 O behaviorismo é um conjunto de teorias psicológicas cujos postulados defendem a noção de que os indivíduos podem ser condicionados ou ensinados a partir do trinômio: estímulo, resposta e reforço. Esse cabedal teórico teve grande influência na segunda metade do século XX não apenas na psicologia, mas também na pedagogia e filosofia. T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 17 UNIDADE 1 Tradução livre: “Eu espero que todos vocês se tornem pensadores independentes, inovadores e críticos que farão exatamente o que eu disser”. Além disso, a visão de que a educação formal deve se destinar à qualificação profissional foi não apenas reafirmada, mas também aprofundada pelo governo militar em instituições de todo o país. Para tanto, ainda no final da década de 60 foi inaugurado o projeto MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), que ofertava a possibilidade de alfabetização para indivíduos acima da idade escolar prescrita. Todavia, os fracos parâmetros de avaliação comprometeram a efetividade do programa e, consequentemente, produziram um grande número de indivíduos oficialmente alfabetizados, mas, na verdade, semianalfabetos. O resultado desse processo foi a divulgação de índices de letramento por parte dos militares que, até os dias atuais, são colocados em questão. U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 18 UNIDADE 1 QUADRO 13 Evolução do Índice de Analfabetismo no Brasil (1940-1977) Ano Índice 1940 56,1% 1950 50,7% 1960 39,6% 1970 33,6% 1971 30,7% 1972 26,6% 1973 25,5% 1974 21,9% 1975 18,9% 1976 16,4% 1977 14,2% 3 Cf. BELLO, José Luiz de Paiva. Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL. História da Educação no Brasil. Período do Regime Militar. Pedagogia em Foco, Vitória, 1993. 3 Cf. BELLO, José Luiz de Paiva. Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL. História da Educação no Brasil. Período do Regime Militar. Pedagogia em Foco, Vitória, 1993. Com isso, um novo conceito pode ser aplicado ao panorama da leitura no Brasil: o analfabetismo funcional. Tal definição é empregada para caracterizar aqueles indivíduos que, apesar de serem considerados alfabetizados pelos critérios instituídos, não conseguem extrair a mensagem de um texto dissertativo simples. A abertura democrática na década de 80 marcou o início de uma busca pela modernização do ensino brasileiro, tanto em termos conceituais quanto metodológicos. A influência dos estudos bakhtinianos, por exemplo, consolidou uma visão da linguagem como um elemento de natureza sociológica, dinâmico e historicamente construído. A adoção dessa nova perspectiva redundou, consequentemente, na caracterização da leitura como processo dialógico no qual o leitor participa ativamente. Diante dessa reestruturação de paradigmas, documentos oficiais foram redigidos priorizando um modelo de ensino-aprendizagem alicerçado, entre outras bases, no compartilhamento de experiências, no papel ativo dos alunos na construção do conhecimento e nos multiletramentos. T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 19 UNIDADE 1 Considerando o percurso histórico da disciplina de Língua Portuguesa na Educação Básica brasileira, e confrontando esse percurso com a situação de analfabetismo funcional, de dificuldade de leitura compreensiva e produção de textos apresentada pelos alunos – segundo os resultados de avaliações em larga escala e, mesmo, de pesquisas acadêmicas – as Diretrizes Curriculares Estaduais de Língua Portuguesa requerem, neste momento histórico, novos posicionamentos em relação às práticas de ensino; seja pela discussão crítica dessas práticas, seja pelo envolvimento direto dos professores na construção de alternativas. (PARANÁ, 2008, p. 47-48) Obviamente, os desafios a serem enfrentados ainda se revelam graves e abundantes. Contudo, a tentativa de renovação dos modelos educacionais tradicionais e a própria consciência da necessidade dessas transformações já representam avanços para uma estrutura que, ao longo do tempo, foi manipulada por mecanismos de poder e discursos excludentes. A partir de tudo o que foi exposto na presente seção, percebemos que um possível afastamento da população brasileira do diálogo com textos escritos está intimamente relacionado a uma organização educacional deficitária e excludente que, desde o período colonial, privou a vasta maioria da população de uma formação acadêmica que viabilizasse uma relação mais próxima com a leitura e a escrita. Assim, se considerarmos verdadeiro o aforismo de que “o brasileiro não gosta de ler”, devemosconsiderar também os aspectos histórico-culturais que moldaram (e talvez continuem moldando) esse posicionamento. U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 20 UNIDADE 1 SEÇÃO 2 OS ANALFABETISMOS NO BRASIL DO SÉCULO XXI Como vimos anteriormente, o impulso modernizador que atingiu o sistema educacional brasileiro nas últimas décadas do século passado representou, na pior das hipóteses, um processo de conscientização do caráter urgente de certas transformações estruturais e conceituais. Todavia, um panorama formado a partir de tão longa trajetória histórica não poderia ser rearticulado em poucos anos, mesmo com as melhores das intenções e o mais diligente dos projetos. Dessa forma, analisaremos na presente seção dados estatísticos que, baseados nos censos demográficos realizados em 2000 e 2010, lançam alguma luz sobre os índices atuais e os progressos alcançados nos últimos trinta anos. Com base no trabalho Um olhar sobre indicadores de analfabetismo no Brasil, publicado em 2000, vislumbraremos, primeiramente, as alterações quantitativas da alfabetização no país ao longo do século passado. Analfabetismo na faixa de 15 anos e mais no Brasil 1900-2000 (Fonte: IBGE) População de 15 anos ou mais Ano População total (em milhões) População analfabeta (em milhões) Taxa de analfabetismo (%) 1900 9.728 6.348 65,3 1920 17.564 11.409 65,0 1940 20.640 13.269 56,1 1950 30.188 15.272 50,6 1960 40.233 15.964 39,7 1970 53.633 18.100 33,7 1980 74.600 19.356 25,9 1991 94.891 18.682 19,7 2000 119.533 16.295 13,6 (Fonte: IBGE – Censo demográfico – 2000) T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 21 UNIDADE 1 Diante do quadro acima, é inegável a evolução nos índices de alfabetização no país no curso de cem anos. Entretanto, é preciso considerar que a queda dos percentuais do número de analfabetos está diretamente relacionada ao crescimento populacional da nação, o qual se mostra mais acelerado do que o decréscimo na taxa de analfabetismo. Como afirma Jose Marcelino de Rezende Pinto: É interessante perceber que a distribuição desse número de analfabetos no território nacional não é, de forma alguma, equilibrada, uma vez que há regiões do país onde os índices atuais se mostram mais críticos. Essa heterogeneidade está irremediavelmente vinculada ao desenvolvimento econômico dessas localidades, uma vez que o histórico de pobreza e de exploração característico desses espaços refreou (inclusive, por questões políticas) o desenvolvimento educacional. Em primeiro lugar, observa-se que a taxa de analfabetismo na população de 15 anos ou mais caiu ininterruptamente ao longo do século, saindo de um patamar de 65,3% em 1900 para chegar a 13,6% em 2000. Contudo, como já alertava Anísio Teixeira (1971), em trabalho de 1953, não basta a queda da taxa de analfabetismo; é fundamental também a sua redução em números absolutos. E neste aspecto há muito ainda a ser feito. Como dado positivo, temos o fato de que, finalmente, na década de 80, conseguimos reverter o crescimento constante até então verificado no número de analfabetos e, como dado negativo, o de que, em 2000, havia um número maior de analfabetos do que aquele existente em 1960 e quase duas vezes e meia o que havia no início do século 20. Como do ponto de vista da mobilização dos recursos o que interessa é o número absoluto de analfabetos, percebe-se a grande tarefa que temos pela frente, facilitada, é claro, pelo fato de a riqueza social produzida hoje pelo Brasil ser muito maior que a de 1960 ou a do início do século. (PINTO et al, 2000, p. 512) U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 22 UNIDADE 1 Não obstante a clara evolução demonstrada na primeira tabela, o Brasil ainda ocupa uma posição inglória no ranking dos países listados a partir do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano4) e da correspondente taxa de analfabetismo. Sem dúvida, as políticas públicas de educação desenvolvidas no país desde a colonização do território são diretamente responsáveis por essa colocação. Índice de desenvolvimento humano e taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais – 2000 País IDH Posição Taxa de analfabetismo (%) Noruega 0,942 1º 0,0 Austrália 0,939 5º 0,0 Áustria 0,926 15º 0,0 Espanha 0,913 21º 0,0 Argentina 0,844 34º 3,2 Chile 0,831 38º 4,2 Costa Rica 0,820 43º 4,4 Trinidad e Tobago 0,805 50º 1,7 México 0,796 54º 8,8 Colômbia 0,772 68º 8,4 Brasil 0,757 73º 13,6 Peru 0,747 82º 10,1 Cabo Verde 0,715 100º 26,2 (Fonte: IBGE – Censo demográfico – 2000) 4 O IDH é uma grandeza comparativa que serve para medir o desenvolvimento dos países pertencentes à ONU (Organização das Nações Unidas). O índice é composto por dados como o produto interno bruto, a renda per capita da população, a expectativa de vida e os níveis educacionais. T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 23 UNIDADE 1 Assim, percebemos que o crescimento econômico do país, a distribuição de renda e a qualidade de vida são parâmetros complementares ao desenvolvimento humano de um país e que, apesar dos inegáveis avanços, o Brasil ainda tem um pedregoso e longo caminho a ser seguido. Tal conclusão é confirmada pelo resultado do censo demográfico realizado em 2010. Nesta nova coleta de dados, os índices de analfabetismo mostraram, uma vez mais, aparente redução. Em reportagem publicada pelo jornal Folha de São Paulo em 16 de novembro de 2011, apontou-se que o índice caiu de 13,6% em 2000 para 9,6% em 2010, o que representa um declínio de quatro pontos percentuais. Entretanto, no mesmo período, o país caiu mais de dez posições no ranking de IDH publicado pela ONU em 2011. Atualmente, o Brasil ocupa a 84ª posição, permanecendo atrás de países como Zimbábue, país com PIB (Produto Interno Bruto) equivalente a 5% do produto brasileiro. Finalmente, é importante recordar que os índices estatísticos são construídos a partir de parâmetros e critérios específicos que definem o próprio conceito de alfabetização. É justamente nesta faceta da questão que a noção de analfabetismo funcional assume grande importância. Mas qual é a origem e a definição de alfabetismo funcional? Se, por um lado, o Brasil tem hoje plenas condições, do ponto de vista de seus recursos econômicos e da qualificação dos seus docentes, para enfrentar o desafio de alfabetizar seus mais de 16 milhões de analfabetos, por outro lado, o próprio conceito de analfabetismo sofreu alterações ao longo deste período. Assim, enquanto o conceito usado pelo IBGE nas suas estatísticas considera alfabetizado a “pessoa capaz de ler e escrever pelo menos um bilhete simples no idioma que conhece”, cada vez mais, no mundo, adota-se o conceito de analfabeto funcional, que incluiria todas as pessoas com menos de quatro séries de estudos concluídas. Usando este segundo critério, mais adequado à realidade econômica e tecnológica do mundo contemporâneo, o nosso número de analfabetos salta para mais de 30 milhões de brasileiros, considerando a população de 15 anos ou mais. (PINTO et al, 2000, p. 513) U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 24 UNIDADE 1 O termo alfabetismo funcional foi cunhado nos Estados Unidos na década de 30 e utilizado pelo exército norte-americano durante a Segunda Guerra, indicando a capacidade de entender instruções escritas necessárias para a realização de tarefas militares. A partir de então, o termo passou a ser utilizado para designar a capacidade de utilizar a leitura e escrita para fins pragmáticos, em contextos cotidianos, domésticos ou de trabalho, muitas vezes colocado em contraposição a uma concepção mais tradicional e acadêmica, fortemente referida a práticas de leitura comfins estéticos e à erudição. Em alguns casos, o termo analfabetismo funcional foi utilizado também para designar um meio termo entre o analfabetismo absoluto e o domínio pleno e versátil da leitura e da escrita, ou um nível de habilidades restrito às tarefas mais rudimentares referentes à “sobrevivência” nas sociedades industriais. Há ainda um conjunto de fenômenos relacionados que podem ser associados ao termo analfabetismo funcional, por exemplo, o analfabetismo por regressão, que caracterizaria grupos que, tendo alguma vez aprendido a ler e escrever, devido ao não uso dessas habilidades retornam à condição de analfabetos. Especialmente na França, o termo iletrisme foi utilizado para caracterizar populações que, apesar de terem realizado as aprendizagens correspondentes, não integram tais habilidades aos seus hábitos, ou seja, em sua vida diária não leem nem escrevem, independentemente do fato de serem capazes de fazê-lo ou não. (RIBEIRO, 1997, p. 145) Como vimos, se adotarmos o conceito proposto de analfabetismo funcional, o número de indivíduos no Brasil com competências de leitura deficitárias aumenta drasticamente. T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 25 UNIDADE 1 INAF aponta que 26% do país domina leitura e escrita Só 26% da população brasileira na faixa de 15 a 64 anos de idade são plenamente alfabetizados. Destes, 53% são mulheres e 47% são homens. Neste universo, 70% são jovens de até 34 anos. Esses índices tão altos de analfabetismo funcional no Brasil devem-se à baixa qualidade dos sistemas de ensino (tanto público, quanto privado), ao baixo salário dos professores, à desvalorização e desmotivação dos professores, à progressão continuada (ou aprovação automática) e à falta de infraestrutura das instituições de ensino (principalmente as públicas). Fonte: Instituto Paulo Montenegro (IPM) – IBOPE – set2005 Diante dos dados apresentados, nos deparamos com outra perspectiva da problematização da enunciação do senso comum sobre o desprezo da leitura por parte dos brasileiros. Sem dúvida, a baixa instrução educacional ou as lacunas deixadas por ela criam dificuldades consistentes na interação com textos verbais, o que redunda, em muitos casos, em um afastamento da leitura enquanto hábito. Tal reação não deve ser interpretada como uma resistência ideológica aos objetos textuais em si, mas como um dos resultados de um processo de formação de leitores ainda problemática. Entretanto, devemos questionar: a que tipo de leitura nos referimos? Seria exclusivamente à interação com obras literárias consideradas eruditas ou canônicas? Ou a noção de que o brasileiro não lê se estenderia a todos os gêneros textuais? A próxima seção objetiva a discussão não apenas desses limites e dos seus desdobramentos para o quadro da leitura no Brasil, mas também das possíveis aplicações das teorias da leitura para a sua transformação dessa realidade. U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 26 UNIDADE 1 SEÇÃO 3 O BRASILEIRO NÃO LÊ! (O QUÊ?) Tendo em vista os questionamentos com os quais encerramos a seção anterior, devemos considerar, primeiramente, que o termo leitura é muito amplo e suas manifestações na contemporaneidade são caracteristicamente múltiplas. Cotidianamente, somos levados a desenvolver os mais diferentes processos de decodificação e interpretação de signos verbais. Ao verificarmos um itinerário de ônibus, ao consultarmos uma lista telefônica, ao tomarmos ciência de algum aviso deixado no quadro de avisos da empresa para a qual trabalhamos ou ao examinarmos as opções de um cardápio, estamos desenvolvendo estratégias específicas de leitura que não podem ser desconsideradas. Desse modo, o ato de ler é uma ação indissociável da vida em sociedade para a camada alfabetizada da população. Não obstante, as modalidades de leitura citadas privilegiam objetivos pragmáticos que se diferenciariam daquelas aparentemente contempladas pelo pensamento que serve de título para esta seção. Podemos supor então que tal sentença se referiria ao ato da leitura como hábito ou prática de apreciação estética. Novamente, encontramos contrapontos a essa noção. Em primeiro lugar, pesquisas recentes demonstram que a tiragem de revistas no Brasil é uma das maiores do mundo. Em apenas quatro anos, de 1996 a 2000, o número de exemplares vendidos por ano no país saltou de 325 para 443 milhões. Em grande medida, esse crescimento impulsionou o lançamento de novos periódicos sobre os mais variados assuntos que buscam atender diferentes camadas da população. Venda de Revistas (milhões de exemplares) Venda de Revistas (milhões de exemplares) Período Bancas Assinaturas Total qtd % qtd % qtd % 1994 122 22,0 108 22,0 230 22,0 1995 186 52,5 155 43,5 341 48,3 1996 164 -11,8 161 3,9 325 -4,7 1997 169 3,0 158 -2,5 326 0,3 1998 180 6,5 150 -4,5 330 1,2 1999 242 (*) 160 (*) 402 (*) 2000 273 12,8 170 6,3 443 10,2 (*) informação não disponível por utilização de fontes diferentes Fonte: 1994 a 1998 - ANER - 1999 e 2000 - DINAP T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 27 UNIDADE 1 Considerando a periodicidade dos textos publicados, os dados acima demonstram que a leitura pode ser considerada como um hábito comum de uma parcela significativa da população, independentemente de possíveis juízos de valor sobre a qualidade ou a relevância dos conteúdos das revistas. Além disso, a tiragem de jornais impressos no Brasil cresceu em torno de 4,2% nos últimos dois anos, segundo dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC). Tal crescimento revela uma tendência inversa àquela que se verifica em nível internacional: a digitalização dos conteúdos dos periódicos. Obviamente, essa expansão da circulação de jornais em todo o país indica um crescimento do público leitor interessado. Nesse sentido, a propagação da internet e a relativa democratização de seu acesso não representaram um entrave definitivo para a sobrevida dos periódicos impressos. Ao contrário, a rede internacional de computadores tem atuado como um espaço complementar para a busca de informações e conhecimento. Consequentemente, um novo público leitor foi gerado, assim como novos gêneros textuais e novos modos de leitura. As redes sociais, os blogs, os fotologs, os podcasts, etc., conquistaram um vasto número de seguidores ávidos e fiéis que diariamente acessam os conteúdos que lhes interessam e, seja como lazer ou estudo, leem. U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 28 UNIDADE 1 As páginas da WEB exprimem ideias, desejos, saberes, ofertas de transação de pessoas e grupos humanos. Por trás do grande hipertexto fervilham a multiplicidade e suas relações. No ciberespaço, o saber não pode mais ser concebido como algo abstrato ou transcendente. Ele se torna ainda mais visível – e mesmo tangível em tempo real – por exprimir uma população. As páginas da Web não apenas são assinadas, como as páginas de papel, mas frequentemente desembocam em uma comunicação direta, por correio digital, fórum eletrônico ou outras formas de comunicação [...] Assim, contrariamente ao que nos leva a crer a vulgata midiática sobre a pretensa “frieza” do ciberespaço, as redes digitais interativas são fatores potentes de personalização ou de encarnação do conhecimento. (LÉVY, 1999, p. 162) A amplitude das possibilidades digitais citadas por Pierre Lévy no trecho acima de sua obra Cibercultura não exclui, obviamente, a leitura de obras literárias. Além da abundância de textos que já fazem parte do domínio público disponíveis na rede, é possível entrar em contato não só com jovens escritores autores que adentram o mundo das letras, mas também com autores consagrados que passam a publicar suas obrasem meio digital. Entretanto, a apreciação de textos literários não se restringe ao ambiente virtual. Dados estatísticos recentes apontam que a maioria da população brasileira poderia ser caracterizada como de leitores frequentes. Retratos da Leitura do Brasil foi o título dado a uma pesquisa encomendada pelo Instituto Pró-Livro e executada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e coordenada pelo Observatório do Livro e da Leitura (OLL). O estudo foi aplicado em 5.012 pessoas em 311 municípios de todo o país de 29 de novembro de 2007 a 14 de dezembro do mesmo ano, o que representou mais de 172 milhões de pessoas, ou seja, 92% da população. O método adotado para definir o leitor ou não leitor foi a declaração do T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 29 UNIDADE 1 entrevistado de ter lido ao menos um livro nos últimos três meses. A pesquisa constatou que 95 milhões de pessoas, ou seja, 55% da população são leitores, enquanto 77 milhões, 45% dos entrevistados, foram classificados como não leitores. O estudo apontou também que o brasileiro lê, em média, 4,7 livros por ano. Em algumas regiões o número é ainda maior, como é o caso do Sul, onde foi apurado que são lidos 5,5 livros por habitante ao ano. No Sudeste o número foi de 4,9, no Centro-Oeste 4,5, no Nordeste 4,2 e no Norte 3,9. A pesquisa confirmou também que as mulheres leem mais que os homens, 5,3 contra 4,1 livros por ano. A primeira edição da pesquisa foi realizada em 2000 e 2001 em 44 municípios brasileiros. Na época, o estudo constatou que 49% da população eram de indivíduos leitores. Obviamente, é possível afirmar que o avanço quantitativo de leitores no país foi tímido e que há ainda muito a ser feito. Todavia, os índices apresentados acima, assim como os outros dados expostos anteriormente, demonstram a superficialidade de alegações generalizadoras e fatalistas como as de que “o brasileiro não lê ou não gosta de ler”. Ao invés de tomarmos como base de análise um cenário ilusório de completo desinteresse da população brasileira pela leitura, acreditamos ser mais produtivo o estabelecimento de metas e projetos tendo em vista um panorama mais realista da prática leitora no país. Nesse contexto, os maiores desafios sejam, possivelmente, o de reduzir o número de analfabetos funcionais, o de aumentar o número de leitores frequentes e o de possibilitar àqueles indivíduos que já leem a competência e o acesso a outros gêneros textuais. Para tanto, as teorias da leitura e da formação de leitores parecem oferecer uma contribuição extremamente relevante. U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 30 UNIDADE 1 Nesta unidade discutimos a questão da leitura no Brasil e os aparentes mitos que a cercam. Tendo em vista a noção do senso comum segundo a qual os brasileiros não leem, buscamos apresentar dados e informações mais concretas sobre as verdades e as simplificações que embasam tal pensamento. Inicialmente, abordamos a trajetória histórica do ensino e da formação de leitores no país com o objetivo de entendermos melhor os aspectos socioculturais e políticos que influenciaram a relação do povo brasileiro com a leitura. Em seguida, apresentamos dados estatísticos sobre o progresso da alfabetização no Brasil no século passado, enfatizando a formação de uma nova forma de déficit na competência leitora de textos verbais: o analfabetismo funcional. Finalmente, buscamos demonstrar que o contato da população brasileira com a leitura pode ser considerado multifacetado e heterogêneo, mas que, ainda assim, ocorre de forma constante. Tal relação foi verificada não apenas pela tiragem de jornais e revistas, mas também pela prática leitora tanto no universo digital quanto na literatura impressa. Diante de tudo que foi exposto, pudemos traçar um panorama mais adequado da situação da leitura no país e sinalizar para as possíveis contribuições das teorias da leitura, sobre as quais passaremos a discorrer na próxima unidade. 01) Analise a tirinha abaixo tendo em vista o histórico da formação educacional no Brasil e os índices recentes do analfabetismo no país. De que forma o analfabetismo funcional pode ser relacionado ao texto abaixo? T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r 31 UNIDADE 1 02) Leia o texto abaixo e analise o posicionamento de Ulisses Tavares em relação à leitura no Brasil. A partir do que foi estudado nesta unidade, discuta os argumentos apresentados e se posicione sobre a visão expressa pelo autor. Sexo, dinheiro e sucesso? Só lendo! Ulisses Tavares Você é jovem? Mora no Brasil? Está lendo este artigo numa boa, sem soletrar palavra por palavra? Já leu mais de um livro inteirinho este ano? E, finalmente, entendeu tudo que estava escrito no livro? Respondeu sim a estas perguntinhas? Ufa! Que bom, parabéns, posso, então, ir direto ao ponto: Primeiro, você faz parte de uma elite. Segundo, você está com a faca e o queijo para conquistar tudo que quiser na vida. Terceiro, você precisa ler mais, muito mais. Agora, antes que você pare de ler isto aqui por achar que estou gozando com sua cara, relaxe que eu explico. O Brasil faz parte de uma lista horrorosa dos 12 países com mais analfabetos entre os 14 e os 21 anos. Pior que nós, apenas Paquistão, Indonésia, Nigéria e Etiópia, que raramente aparecem em boas notícias nos jornais. Ah, você já sabia disto por que lê jornais também? Nesse caso, você é minoria superespecial mesmo: apenas 1 entre 100 mil jovens brasileiros dá uma espiada em jornais regularmente. E o restante faz o quê? Exatamente: assiste televisão (não o noticiário, claro), ouve rádio (só os programas com músicas e brincadeirinhas para idiotas) ou fica caçando mulher pelada na internet. Ainda está lendo este texto, e compreendendo tim-tim por tim-tim? Encha o peito de orgulho: você está fora de uma lista ainda mais nojenta que aquela lá de cima. A Unesco faz um teste que avalia alunos de 15 anos em 40 países sobre compreensão da linguagem escrita. Um teste mamata: ler uma historinha de poucas linhas e depois dizer o que entendeu. É bom lembrar que os testados têm no mínimo oito anos de bumbum na carteira da sala de aula. Na grande avaliação deste ano, adivinhe quem tirou o último lugar? Coisa chata mesmo, bró: o adolescente brasileiro ficou com o troféu do mais burro do mundo. Não disse que você era minoria das minorias? Mas, sem querer pentelhar e já pentelhando, como diria o intelectual Chavez da televisão: existem quilômetros de livros para você devorar depois que entrar na facú, se quiser continuar fora da manada e não levar uma vida de gado. (...) Texto completo disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1235 U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 32 UNIDADE 1 Teoria da Recepção – diálogos com os textos ObjetivOs De aPRenDiZaGem ■ Discutir os conceitos contemporâneos de leitura e a proeminência dos textos verbais na contemporaneidade. ■ Distinguir os conceitos de leitura de mundo e leitura de textos. ■ Problematizar as leituras pré-concebidas de mundo que, por meio dos mais diferentes discursos, moldam pensamentos, atitudes e comportamentos. ■ Discorrer sobre as origens históricas das teorias da recepção e as influências que permeiam os seus horizontes de estudo. ■ Analisar os cinco processos que compõem o ato da leitura e, por meio de exemplos, aprofundar as suas dinâmicas. U N ID A D E II ROteiRO De estUDOs ■ SEÇÃO 1 - Os caminhos da leitura e as veredas da teoria ■ SEÇÃO 2 - As dimensões da leitura U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 34 UNIDADE 2 PARA INÍCIO DE CONVERSA Em termos históricos, o papel do leitor no diálogo com textos verbais e não verbais assumiu, apenas recentemente, posição central em determinadas linhas de estudos da semiótica, da semiologia e dos estudosliterários. Tal negligência pode ser entendida pela proeminência das teorias formalistas que, até meados do século XX, dominaram as análises textuais. Em outras palavras, valorizava-se a composição e a estrutura do objeto textual, mantendo-se em segundo plano o elemento que, em última análise, lhe atribui existência e significação: o leitor. De acordo com essa perspectiva, a atuação do leitor seria essencialmente avessa a padrões descritivos e a delineamentos concretos devido à infinita multiplicidade cognitiva e psicológica dos indivíduos que interagem com um determinado texto. Em certo sentido, essa visão se assemelha à distinção proposta por Saussure entre langue (língua) e parole (discurso), sendo este último conceito excessivamente amplo e, portanto, não analisável. Entretanto, um aspecto fundamental do processo da leitura era desconsiderado por essa linha de pensamento: a organização interna do texto prevê modos de leitura específicos que, apesar de plurais, restringem as possibilidades de significação por parte do leitor. A interação é mediada e direcionada pelo texto, formando, consequentemente, imagens possíveis e analisáveis de leitores reais. Diante disso, a presente unidade objetiva discutir modalidades diferentes de leitura e os pressupostos teóricos que permitem que o leitor seja analisado como um dos seus elementos fundamentais. 35 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r SEÇÃO 1 OS CAMINHOS DA LEITURA E AS VEREDAS DA TEORIA Nos dias atuais, a proposta de refletir sobre a leitura nos leva irremediavelmente a uma discussão sobre a recepção de textos verbais, ênfase facilmente compreendida ao considerarmos a indispensável utilização da linguagem verbal na contemporaneidade e a sua padronização como critério avaliativo da formação educacional de um indivíduo. Essa clara proeminência embasou não apenas os dados expostos anteriormente, mas a própria inclusão da unidade anterior neste livro. Contudo, antes de nos dedicarmos às teorias de leitura condizentes com esse quadro atual, é importante salientar que a interação com textos verbais não corresponde nem a uma única nem original modalidade de leitura. Em uma perspectiva semiótica mais ampla, a recepção desse gênero de texto surge consideravelmente depois da formação de uma capacidade leitora e analítica, tanto em termos históricos quanto individuais. Como saliente Eliana Yunes: As relações do homem com o mundo, inegavelmente, estão mediadas por sua percepção e construídas pela linguagem. É bem verdade que a natureza desta linguagem é de caráter social, pois a condição de sua existência é a própria exigência de troca e comunicação. A forma de designação do mundo pouco a pouco torna-se o próprio mundo. Mas, eis que, na própria oralidade que antecede a escrita, se insinua o gesto de criar sentidos. No mesmo ato em que se nomeia a natureza, o homem o interpreta; ou seja, desde o primeiro olhar o homem significa, isto é, atribui imaginariamente funções e designações: o homem lê. (YUNES, 2002, p. 53) U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 36 UNIDADE 2 Dessa maneira, as imagens que compõem o mundo são transformadas em elementos de significação pelos indivíduos em fases anteriores ao advento da escrita (em sua dimensão histórica) ou ao letramento (em sua dimensão cognitiva). Essa modalidade de leitura, ainda que menos arbitrária do que aquela que se debruça especificamente sobre o texto verbal, é influenciada por aspectos culturais, históricos, econômicos e psicológicos que compõem o universo referencial do sujeito leitor, produzindo formas diversas de significação a partir de diferentes receptores. Tais variantes se manifestam nas tentativas de representação do mundo e dos seres, as quais, desde a pintura rupestre até o hipertexto, revelam-se cada vez mais como leituras e discursos socialmente construídos. Desde os primórdios, quando expressou nas paredes das cavernas seus temores e desejos, grafando imagens de animais, quando codificou sinais nas trilhas de caçadas, quando atribuiu às formações de nuvens presságios e expectativas, o homem procedia a uma escrita não alfabética que sinalizava uma leitura precedente. Nessa hipótese de valorização da precedência da leitura, embora já se veja consignada uma participação indescartável do leitor na produção do texto, corre-se o risco de imaginar que, na codificação de uma mensagem, o sentido esteja apenas imobilizado, uma vez que preexistiria à escrita. Este gesto acarretaria em seguida a imobilidade da leitura, como de fato ocorreu ao longo dos séculos, segundo as ideologias dominantes – quando nasceram os “autorizados” a ler, isto é, a decodificar os signos e a interpretar os sentidos já definidos a priori (...) Nos dias de hoje, isto se nos afigura como possível paradoxo para os que defendemos na recepção a condição de historicidade, que intervém na leitura e cria sentidos pelos usos. (YUNES, 2002, p. 54) 37 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r Assim, a escrita cristaliza a leitura de mundo por meio de sua própria materialidade e restringe o seu potencial significativo a paradigmas discursivos pré-estabelecidos socialmente. Nesse sentido, a realidade é interpretada e formatada por discursos específicos que, muitas vezes influenciados por interesses políticos e econômicos, condicionam modos de comportamento, anseios, expectativas, padrões estéticos, ideais e ideologias. Em outros termos, a leitura de mundo individual é filtrada por parâmetros de significação externos. Do mesmo modo como a escrita não suprimiu a oralidade, a cultura midiática não extinguiu a condição do leitor dos que interagem no magma secundário da oralidade que permanece intenso na cultura alfabetizada. Contudo, está hoje condicionada pelo reducionismo imposto à linguagem pelas ideologias próprias da mídia. O mundo já aparece interpretado consoante as vozes que o manipulam, dos telejornais às telenovelas, dos comentários às entrevistas que alienam contextos para naturalizar práticas. (YUNES, 2002, p. 53-54) U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 38 UNIDADE 2 Ainda assim, os signos nos rodeiam incessantemente, possibilitando diferentes interpretações e evidenciando o caráter híbrido das significações dominantes e amplamente disseminadas, aspecto que as tornam objetos passíveis de análise. Dessa forma, percebemos que, seja por reação a discursos interpretativos pré-concebidos, seja pela importância que a leitura de mundo mantém na contemporaneidade, há outras modalidades de recepção e interpretação da realidade que devem ser exploradas no processo de formação de leitores. Se no processo de leitura de mundo a figura participativa do leitor se revela essencial, o mesmo ocorre com os diálogos com os textos verbais que complementariam o processo de significação da realidade. No entanto, apenas na segunda metade do século XX, surgiram teorias específicas com o propósito de analisar a figura do leitor em interação com textos na forma escrita. Em sua obra A leitura, Vincent Jouve analisa essa importante mudança de paradigmas nos estudos sobre a leitura. Uma curta caminhada por uma rua movimentada de qualquer cidade média do país serve para nos mostrar a infinidade de informações a serem lidas em sinais luminosos, placas publicitárias, roupas, calçadas, muros, informações diversas que vão compondo, no seu mosaico, o desenho da esfinge a nos interpelar ‘Decifra-me ou te devoro!’ (CARNEIRO in YUNES, 2002, p. 64) Dizendo de outro modo: resgatar a capacidade leitora dos indivíduos significa restituir-lhes a capacidade de pensar e de se expressar cada vez mais adequadamente em sua relação social, desobstruindo o processo de construção de sua cidadania que se dá pela constituiçãodo sujeito, isto é, fortalecendo o espírito crítico. (YUNES, 2002, p. 54) 39 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r É durante os anos 1970 que os profissionais da análise de textos começam a estudar a leitura. A obra literária que, até então, era entendida na sua relação com uma época, uma vida, um inconsciente ou uma escrita é repentinamente considerada em relação àquele que, em última instância, lhe fornece sua existência: o leitor. Os teóricos percebem que as duas questões mais importantes que eles se colocam – o que é literatura? como estudar os textos? – significam perguntar por que se lê um livro. A melhor forma de entender a força e a perenidade de certas obras não equivale, de fato, a se interrogar sobre o que os leitores encontram nelas? O interesse pela leitura começa a se desenvolver no momento em que as abordagens estruturalistas começam a sofrer certo cansaço. (JOUVE, 2002, p. 11) U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 40 UNIDADE 2 Jouve aponta a expansão da linguística pragmática como o aspecto que impulsiona o interesse de estudiosos em se debruçar sobre a leitura e o papel desempenhado pelo leitor. Segundo ele, a concepção de linguagem e a valorização dos elementos que compõem o discurso que advém das teorias pragmáticas são diretamente responsáveis por essa nova linha analítica. Em um primeiro olhar, a proposta das teorias da recepção parece carente de parâmetros e/ou objetos concretos de análise. Transcrevemos abaixo uma passagem na qual Jouve se remete a esses questionamentos: O que se sobressai dos estudos pragmáticos, portanto, é a importância da interação no discurso. Se a linguagem serve menos para informar do que para agir sobre o outro, um enunciado não pode ser entendido somente pela referência a seu emissor. É o binômio formado por aquele (o locutor) e aquele a quem se fala (o alocutário) que convém levar em conta. É evidente, portanto, a influência da pragmática sobre os estudos dos textos. Se no falar cotidiano a linguagem procura sempre produzir um efeito, esse fenômeno só pode ser exacerbado numa obra literária na qual a organização dos termos deve muito pouco ao acaso. Assim, entender uma obra não se limita a destacar a estrutura ou relacioná-la com seu autor. É a relação mútua entre escritor e leitor que é necessário analisar. (JOUVE, 2002, p. 13) 41 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r Mas o que é estudar a leitura? Se o objeto da crítica é a obra, qual é o das teorias da recepção? O desempenho do leitor? O texto que lhe serve de suporte? A interação entre os dois? Mas será que a leitura se reduz a uma troca bipolar? A relação com a obra não tem também a ver com as práticas culturais, os modelos ideológicos, as invariantes psicanalíticas? Levar em conta esses diversos parâmetros não nos traz de volta ao campo tradicional dos estudos literários? Analisar a leitura significa se interrogar sobre o modo de ler um texto, ou sobre o que nele se lê (ou pode se ler). Ora, se a observação do “como” da leitura confere às teorias da recepção certa especificidade, o problema de seu “conteúdo” leva frequentemente a se questionar sobre o ou os sentidos do texto. (JOUVE, 2002, p. 13-14) Diante disso, passamos agora a apresentar os conceitos e definições que fundamentam os estudos da recepção em ambas as esferas citadas pelo autor. SEÇÃO 2 AS DIMENSÕES DA LEITURA A leitura é caracteristicamente uma atividade plural e complexa, na qual podemos distinguir cinco processos específicos. - Processo neurofisiológico; - Processo cognitivo; - Processo afetivo; - Processo argumentativo; - Processo simbólico. Processo neurofisiológico “A leitura é antes de mais nada um ato concreto, observável, que recorre a faculdades definidas do ser humano. Com efeito nenhuma leitura é possível sem um funcionamento do aparelho visual e de diferentes U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 42 UNIDADE 2 funções do cérebro. Ler é, anteriormente a qualquer análise de conteúdo, uma operação de percepção, de identificação e de memorização dos signos. Diferentes estudos mostraram que o olho não apreende os signos um após o outro, mas por pacotes. Assim, é frequente “pular” certas palavras ou confundir os signos entre si. O movimento do olhar não é linear e uniforme; ao contrário, é feito de saltos bruscos e descontínuos” (JOUVE, 2002, p. 17). Vejamos um exemplo: “O deciframento do leitor é mais fácil quando o texto comporta palavras breves, antigas, simples e polissêmicas. Por outro lado, como a capacidade de memória imediata de um leitor oscila entre oito e dezesseis palavras, as frases mais adaptadas aos quadros mentais do leitor são as curtas e estruturadas. Quando um autor não respeita esses grandes princípios de legibilidade, todos os deslizes semânticos tornam- se possíveis; assim o texto “lido” não é mais realmente o texto “escrito”’ (JOUVE, 2002, p. 18). Na literatura, tais princípios de legibilidade são, muitas vezes, ignorados ou subvertidos com o objetivo de causar efeitos estéticos particulares. Nesse sentido, a dificuldade de compreensão de determinados termos e as ambiguidades consequentemente geradas atendem a uma intenção artística. Transcrevemos abaixo um breve trecho da obra Ulisses de James Joyce que ilustra essa manipulação estética da dimensão neurofisiológica dos textos. De aorcdo com uma pqsieusa de uma uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem as lrteas de uma plravaa etãso, a úncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia lrteas etejasm no lgaur crteo O rseto pdoe ser uma bçguana ttaol que vcoê pdoe anida ler sem pobrlmea. Itso é poqrue nós não lmeos cdaa lrtea isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo. 43 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r Prosseguiu solenemente e galgou a plataforma de tiro. (...) Então, percebendo Stephen Dedalus, inclinou-se para ele, traçando no ar rápidas cruzes, com grugulhos guturais e meneios de cabrita. Stephen Dedalus, enfarado e sonolento, apoiava os braços sobre o topo do corrimão e olhava friamente a nieneante cara grugulhante que o bendizia, equina de comprimento, e a cabeleira clara não tosada, estriada e matizada como carvalho polido. (...) A fomida cara sombreada e a soturna queixada oval lembravam um prelado, protetor das artes, da Idade Média. (JOYCE, 1967, p. 03) É justamente nesta dimensão da leitura que certos problemas de aprendizagem se manifestam, como, por exemplo, a dislexia, que pode ser definida como um distúrbio neurofisiológico caracterizado pela dificuldade no reconhecimento de signos na soletração e na produção escrita. As principais manifestações da dislexia são as seguintes: √ Um atraso na aquisição das competências da leitura e escrita. √ Dificuldades acentuadas ao nível do processamento e consciência fonológica. √ Dificuldades na memória verbal imediata. √ Leitura silábica, decifratória, hesitante, sem ritmo, com bastantes incorreções e erros de antecipação. √ Velocidade de leitura bastante lenta para a idade e para o nível escolar. √ Omite ou adiciona letras e sílabas (ex: famosa-fama; casaco- casa; livro-livo; batata-bata; biblioteca/bioteca; ...). √ Confusão entre letras, sílabas ou palavras com diferenças subtis de grafia ou de som (a-o; o-u; a-e; p-t; b-v; s-ss-ç; s-z; f-t; m-n; v-u; f-v; g-j; ch-j-x; v-z; nh-lh-ch; ão-am; ão-ou; ou-on; au-ao; etc.). √ Confusão entre letras, sílabas ou palavras com grafia similar, mas com diferente orientação no espaço (b-d; d-p; b-q; d-q; a-e;…). U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 44 UNIDADE 2 √ Inversões parciais ou totais de sílabas ou palavras (ai-ia; per- pré; fla-fal; me-em; sal-las; pla-pal; ra-ar;…). √ Problemas na compreensão semânticae na análise compreensiva de textos lidos. √ Dificuldades em exprimir as suas ideias e pensamentos em palavras. √ Lacunas na construção frásica. √ Ilegibilidade da escrita, letra rasurada, disforme e irregular, presença de muitos erros ortográficos e dificuldades ao nível da construção frásica. Vejamos alguns exemplos da dislexia na escrita de alguns alunos do ensino fundamental. Percebemos que a própria distribuição espacial do texto se mostra comprometida, ou seja, os autores não conseguem manter a escrita linear. Aluno com 09 anos cursando a 3ª série 45 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r Aluno com 09 anos cursando a 4ª série Aluno com 11 anos cursando a 5ª série Processo cognitivo “Depois que o leitor percebe e decifra os signos, ele tenta entender do que se trata. A conversão das palavras e grupos de palavras em elementos de significação supõe um importante esforço de abstração. Essa compreensão pode ser mínima, dizendo respeito apenas à ação em curso. O leitor, totalmente preocupado em chegar ao fim, concentra-se então no encadeamento dos fatos. É o que geralmente ocorre durante a leitura de jornais, revistas e romances policiais ou de aventura. Quando os textos são mais complexos, o leitor pode, ao contrário, sacrificar a progressão em favor da interpretação: detendo-se sobre este ou aquele trecho, procura entender todas as suas implicações” (JOUVE, 2002, p. 18-19). A primeira modalidade cognitiva de leitura citada por Jouve seria o que a teoria denomina de progressão, enquanto a segunda, mais atenta à representatividade dos detalhes do texto, corresponderia ao conceito U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 46 UNIDADE 2 de compreensão. Transcrevemos abaixo um exemplo de cada uma das modalidades. Leitura de progressão: Elizabeth II e ex-dirigente do IRA dão aperto de mãos histórico O encontro, inconcebível há alguns anos, aconteceu no segundo dia de visita da rainha à Irlanda do Norte A rainha Elizabeth II e o ex-dirigente do IRA Martin McGuinness deram um histórico aperto de mãos nesta quarta-feira em Belfast, um ato considerado como um novo marco no processo de paz na Irlanda do Norte, anunciou o Palácio de Buckingham. O antecipado aperto de mãos entre a soberana britânica e o atual vice-ministro principal da Irlanda do Norte aconteceu a portas fechadas durante um evento cultural no teatro lírico da capital norte-irlandesa, 14 anos depois do acordo de paz da Sexta-Feira Santa que acabou com 30 anos de violência entre protestantes leais à Coroa e católicos republicanos. O encontro, inconcebível há alguns anos, aconteceu no segundo dia de visita da rainha a esta província britânica, na presença de seu marido, o duque de Edimburgo, do ministro principal da Irlanda, o unionista Peter Robinson, e do presidente da Irlanda, Michael D. Higgins. Ao final do ato, desta vez diante das câmeras de televisão, a rainha e McGuinness voltaram a apertar as mãos, enquanto o ex-dirigente do IRA dizia algumas palavras. “Adeus e vá com Deus”, afirmou, ao que parece em gaélico, segundo os jornalistas presentes. Questionado sobre o aperto de mãos inédito, um porta-voz do primeiro-ministro David Cameron afirmou: “Acreditamos que é correto que a rainha se reúna com todas as partes”. O porta-voz recordou que a recente visita da rainha Irlanda “levou as relações entre os dois países a um nível completamente novo”. Elizabeth II fez em maio de 2011 uma histórica visita de reconciliação à Irlanda, a primeira de um monarca britânico desde a independência da república em 1922. McGuinness, 62 anos, passou de dirigente do Exército Republicano Irlandês (IRA) a líder no processo de paz que resultou no acordo de 1998. Fonte: www.gazetadopovo.com.br Acesso em: 27/06/2012 47 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r É possível perceber que o texto, dado o seu caráter informativo e a sua organização dentro dos moldes jornalísticos, privilegia uma leitura que se orienta pela sucessão dos fatos descritos, ficando em segundo plano qualquer elemento estético ou retórico que a reportagem apresente. Leitura de compreensão: Já neste segundo exemplo, notamos que a significação do texto depende menos do encadeamento de eventos narrados do que de uma compreensão de suas partes constituintes. O apelo da personagem em seu leito de morte e a referência à tristeza dos pés se remete ao uso do verbo perseguir na primeira linha do conto. Diante disso, é possível afirmar que a tristeza dos pés se justifica pela impossibilidade que essa personagem atingiu de perseguir novos amores. Em termos composicionais, o autor manipula os sentidos conotativos e denotativos dos termos como forma de instigar o processo cognitivo de seus leitores. Processo afetivo “O charme da leitura provém em grande parte das emoções que ela suscita. Se a recepção do texto recorre às capacidades do leitor, influi igualmente, talvez, sobretudo – sobre sua afetividade” (JOUVE, 2002, p. 19). Ainda que esse processo se desenvolva na leitura de qualquer gênero textual (um indivíduo pode ler, por exemplo, uma determinada MEUS PÉS Ela, que vivera sempre perseguindo amores intensos, mesmo agora que estava enferma, não conseguia conciliar o sono sossegado sem sentir, no seu pescoço ou no peito, o braço de um homem. Entretanto, quando seu estado se agravou, ela implorava: -Segure meus pés! Não posso suportá-los tão tristes! KAWABATA, 1964, p. 494 U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 48 UNIDADE 2 revista para encontrar informações sobre seu ator favorito), ele se torna mais evidente quando nos concentramos sobre a recepção de textos ficcionais. Esse comprometimento afetivo do leitor com os construtos ficcionais do texto encontra respaldo analítico nos estudos psicanalíticos. Sigmund Freud afirma que sem a dimensão afetiva da leitura seria profundamente difícil para o leitor interagir efetivamente com o texto e retirar dele uma experiência particular. Vejamos um exemplo no qual a dimensão afetiva da leitura é claramente privilegiada. As emoções estão de fato na base do princípio de identificação, motor essencial da leitura de ficção. É porque elas provocam em nós admiração, piedade, riso ou simpatia que as personagens romanescas despertam o nosso interesse [...] O papel das emoções no ato da leitura é fácil de se entender: prender-se a uma personagem é interessar-se pelo que lhe acontece, isto é, pela narrativa que a coloca em cena [...] Assim, querer expulsar a identificação e, consequentemente, o emocional – da experiência estética parece algo condenado ao fracasso. (JOUVE, 2002, p. 19, 20) Em relação ao que nos acontece na vida, comportamo-nos, todos, geralmente, com uma passividade igual e permanecemos submetidos à influência dos fatos. Mas somos dóceis ao apelo do poeta: pelo estado no qual ele nos deixa, pelas expectativas que desperta em nós, ele pode desviar nossos sentimentos de um efeito para orientá-los em direção a outro. (FREUD apud JOUVE, 2002, p. 20) GÊMEOS As leis não pesam o espírito. Nem a linguagem pode falar tudo. O que não se entende a tempo ainda é tempo. O que não está no corpo ainda é corpo. O que não está no mundo ainda é mundo. Vanessa está grávida de gêmeos. O menino morreu aos quatro 49 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r meses de gestação e a menina permanece viva. Os irmãos estão juntos no ventre, dividindo o mesmo espaço, as mesmas cordas, o mesmo degrau, o mesmo tecido. Não há como interromper a gestação do primeiro sem influenciar na saúde da segunda. Não há como tirar aquele que partiu para proteger a que ficou. Vanessa continua alimentando os dois com a igualdade do início da gravidez. Reconhece ambos como palpitações vivas, nervosas, definitivas. Os ruídosque escuta são dois nomes. Tenta adivinhar quem está chutando, quem está empurrando seu passo mais para adiante, quem está socando as camadas da pele como vento espantando as cortinas. Lá dentro a irmã conversa com o irmão do jeito que pode; o irmão conversa com a irmã do jeito que sonha. A mãe confia que os dois sairão gritando, de mãos dadas, apesar da avaliação do médico de que um deles não sobreviveu, apesar da onipotência do exame e da descrença dos conhecidos. A mãe não perdeu a esperança porque alterou o rumo dos móveis, duplicou a cama, apequenou o salário, esticou os ossos do velho armário, teve trabalho, andou ao seu extremo, preparou roupas, experimentou em si o amor de ler o que escreveu, o amor de entender que o mistério é esperar que cada gomo seja suco diferente nos dentes. Ela acorda quando um deles berra por ajuda e fome na noite de sua carne. E, insegura, não tem certeza de quem chama. Não tem mais certeza da própria voz. Não diz nunca que um morreu, com medo do que mora na sua boca. Ela reconhece por adivinhação e não precisa ver para testemunhar. Quanta coragem de Vanessa em segurar em seu útero os dois berços: um, anoitecido, e o outro, amanhecido, sem favorecer ou mimar um deles. Quanta coragem em seus tornozelos inchados, suas mãos rosadas e seu sobrepeso de telhado e chuvas. Quanta coragem em rezar debaixo das cobertas, debaixo dos zumbidos dos besouros, debaixo do formigueiro. A mãe Vanessa curva seus ombros para que seus filhos não passem frio, como toda mãe se derrama em raízes para subir o rosto lentamente. Quanta coragem em assegurar o direito à vida aos gêmeos, para U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 50 UNIDADE 2 que só assim eles possam ter direito à morte. Metade do que ela come vai para os dois, a comida em dois pratos, quatro olhos. Metade da vida que vive vai para os dois. Metade da vida que não vive vai para os dois. Metade de seus cabelos vai para os dois. Metade de seus joelhos vai para os dois. Metade de sua sede vai para os dois. Metade de seu riso vai para os dois. Metade de seus segredos vai para os dois. Metade de seu lamento vai para os dois. Metade da metade da metade ainda é muito quando a palavra é intenção de música. Quando a palavra não depende da melodia ou letra para ser ouvida. A gravidez é uma respiração sangue a sangue, mais atenta, mais rápida do que a respiração boca a boca. A respiração já é luz no escuro. Vanessa está grávida de gêmeos. Um morreu e o outro vive. Não importa agora se somente uma das crianças nascerá. O parto aconteceu bem antes, na confiança. A criança que nascer será sempre duas, porque o amor da mãe foi sempre dois, sempre maior do que a realidade permitiu. (CARPINEJAR, 2006, p. 33) Ao adotar como temas de sua crônica questões universais como a maternidade e a morte, Fabrício Carpinejar proporciona uma experiência caracteristicamente afetiva do leitor com o texto, aspecto fortalecido, sem dúvida, pela poética da linguagem e pela tragicidade da narrativa. Processo argumentativo “O texto, como resultado de uma vontade criadora, conjunto organizado de elementos, é sempre analisável, mesmo no caso das narrativas em terceira pessoa, como “discurso”, engajamento do autor perante o mundo e os seres. A intenção de convencer está, de um modo ou de outro, presente em toda narrativa [...] Qualquer que seja o tipo de texto, o leitor, de forma mais ou menos nítida, é sempre interpelado. Trata-se para ele de assumir ou não para si próprio a argumentação desenvolvida” (JOUVE, 2002, p. 21). Ao aceitarmos o pressuposto de que todo e qualquer texto tem uma 51 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r dimensão argumentativa, certos julgamentos e idealizações em relação a determinados gêneros textuais são, inevitavelmente, relativizados. Assumindo o conceito amplo da semiótica, segundo o qual tudo o que pode ser lido e interpretado pode ser considerado um texto, percebemos que noções como as de imparcialidade e objetividade se caracterizam como inalcançáveis diante da inerente argumentação de todo objeto textual. A fotografia, por exemplo, é entendida por muitos como uma captura circunstancial e meramente estética da realidade. Indubitavelmente, essa caracterização pode ser verdadeira quando atribuída a certa gama de fotos, como aquelas que preenchem os álbuns de recordações. Entretanto, se refletirmos sobre os textos produzidos por fotógrafos profissionais, perceberemos que a mesma concepção não pode ser estendida a eles sem uma enganosa simplificação. Tal atitude seria comparável à de atribuirmos a um bilhete deixado sobre a mesa da sala o mesmo potencial estético de um texto literário. A fotografia profissional ou artística é um recorte da realidade produzido a partir de elementos pré-definidos por seu autor (proximidade, incidência de luz, valorização do plano de fundo, etc.) e que pode servir a propósitos argumentativos específicos. Observem os exemplos a seguir que têm como tema comum o preconceito racial. U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 52 UNIDADE 2 Parece-nos evidente que os textos acima expressam um discurso claramente contrário à discriminação racial nas sociedades contemporâneas, utilizando, inclusive, a evidenciação do ponto de vista racista como forma de questioná-lo (foto 03). Mesmo quando a fotografia não é construída a partir de objetivos argumentativos determinados, o texto, uma vez completo, pode ser apropriado por diferentes vozes e adaptado aos discursos que elas representam. Vejamos um exemplo bastante esclarecedor: Rebelde Desconhecido Esta foi a alcunha atribuída a um jovem anônimo que se tornou famoso internacionalmente ao ser filmado e fotografado resistindo solitariamente a uma linha de tanques durante a Revolta da Praça de Tian’anmen, em 1989, na República Popular da China. A foto foi tirada por Jeff Widener e, na mesma noite, foi capa de centenas de jornais e revistas em todo o mundo. No Ocidente, a imagem se tornou um símbolo de coragem, de desprendimento e da luta pelos direitos civis. Na China, entretanto, a fotografia foi usada para exaltar a índole humanitária dos soldados do Exército Popular de Libertação, que se negaram a seguir com o comboio de tanques se isso significasse ferir um jovem civil. 53 UNIDADE 2 T e o ria s d a le itu ra e f o rm a çã o d o le ito r Em relação aos textos jornalísticos, os conceitos de objetividade e imparcialidade são também comumente adotados. Novamente, entretanto, a exaltação de tais ideais se mostra equivocada, tendo em vista a dimensão argumentativa dos textos e da leitura. Em verdade, praticamente todos os elementos que compõem um periódico jornalístico apresentam, em maior ou menor grau, um caráter argumentativo, o qual pode se manifestar tanto por meio da linguagem quanto pela veiculação de uma visão específica de mundo ou de uma análise do próprio mercado editorial. Desde na manchete que é escolhida para ocupar a capa da publicação até nas fotografias que acompanham as notícias, é possível apreender uma leitura prévia de mundo. Em outras palavras, a decisão de qual reportagem é a mais relevante a ser destacada ou qual atrairá mais leitores representa também uma argumentação sobre a realidade e sobre o interesse dos consumidores. No caso das revistas, o atual direcionamento temático já indica uma reflexão sobre os diferentes públicos leitores e sobre a pertinência dos assuntos tratados para a maior parcela possível de consumidores desses grupos. Não obstante, as revistas de variedades, semelhantemente aos jornais, também delineiam pontos de vista específicos e moldam, mesmo que de forma velada, uma dimensão argumentativa. U n iv e rs id a d e A b e rt a d o B ra si l 54 UNIDADE 2 É importante salientar
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