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Obras de Maria Helena da Rocha Pereira II: Estudos sobre a Grécia Antiga: Artigos Autor(es): Pereira, Maria Helena da Rocha Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/35593 DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0829-7 Accessed : 18-Nov-2020 18:44:54 digitalis.uc.pt pombalina.uc.pt ESTUDOS SOBRE A GRÉCIA ANTIGA OBRAS DE MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA M A RIA H ELEN A D A RO C H A PEREIRA A R T I G O S FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA ESTU D O S SO BRE A G RÉC IA A N TIG A II (Página deixada propositadamente em branco) (Página deixada propositadamente em branco) Co-Edição Fundação Calouste Gulbenkian E-mail: info@gulbenkian.pt Imprensa da Universidade de Coimbra E-mail: imprensa@uc.pt Vendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt CoordEnação Editorial Imprensa da Univers idade de Coimbra ConCEção gráfiCa António Barros infografia da Capa Carlos Costa infografia Simões & Linhares pré-formatação Catarina Arqueiro ExECução gráfiCa NSG, Novas Soluções Gráficas, S.A. iSBn 978-989-26-0828-0 iSBn digital 978-989-26-0829-7 doi http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0829-7 dEpóSito lEgal 366589/13 © novEmBro 2014, imprEnSa da univErSidadE dE CoimBra (Página deixada propositadamente em branco) Sumário 1. Enigmas em volta do mito .....................................................................................................7 2. O mito na Antiguidade Clássica ..........................................................................................17 3. O jardim das Hespérides ..................................................................................................... 25 4. Delos, a mais mítica das ilhas gregas ................................................................................37 5. As Amazonas. Destino de um mito singular ................................................................... 43 6. Frühhellenische Vorstellungen von Jenseits ...................................................................55 7. Nos alvores da cultura europeia: os Poemas Homéricos ...............................................65 8. Oralidade e escrita nos Poemas Homéricos. Estado actual da questão .....................83 9. Fórmulas e epítetos na linguagem homérica ..................................................................93 10. Emulação e inveja nos Poemas Homéricos ...................................................................105 11. Amizade, amor e eros na Ilíada .......................................................................................113 12. Os caminhos da persuasão na Ilíada ............................................................................. 127 13. História, mito e racionalismo na Ilíada .........................................................................143 14. Eros e philia no nostos de Ulisses .......................................................................................155 15. A teia de Penélope .............................................................................................................165 16. Breve ensaio sobre Hesíodo .............................................................................................179 17. Acerca do Hades em Hesíodo ...........................................................................................189 18. Fragilidad y poder del hombre en la poesía griega arcaica ......................................195 19. Poesia e poetas na Grécia arcaica ..................................................................................211 20. Poesia, persuasão e poder em Sólon ..............................................................................217 21. Anakreon ............................................................................................................................231 22. Entre o epos e o logos: Xenófanes de Cólofon ............................................................... 243 23. Textkritisches zu Pindar, Ol.2.76-77.............................................................................. 255 24. Notas a um passo de Píndaro, Ol.2.77-78 ...................................................................... 259 25. Pindar’s Wertbegriffe ...................................................................................................... 265 26. Legado cultural da Grécia arcaica ................................................................................ 273 27. As origens da tragédia grega ...........................................................................................279 28. Matéria e forma na tragédia grega ............................................................................... 285 29. O drama grego: paradigma ou catarse? ....................................................................... 297 30. O herói épico e o herói trágico ........................................................................................311 31. O coro da tragédia grega ..................................................................................................329 32. Valores éticos na epopeia e na tragédia grega ............................................................333 33. Ética, mitologia e teatro na Grécia antiga ....................................................................347 34. As combinações com as letras, memória de tudo, trabalho criador das Musas ...355 6 Estudos sobrE a grécia antiga 35. A propósito da representação de Antígona. ................................................................. 363 36. Valores civilizacionais na Medeia de Eurípides ...........................................................367 37. As Troianas – um drama intemporal ...............................................................................375 38. Mito, ironia e psicologia no Orestes de Eurípides ........................................................379 39. Sophia e Mania em As Bacantes de Eurípides ..................................................................397 40. O “Diálogo dos Persas” em Heródoto ........................................................................... 409 41. O mais antigo texto europeu de teoria política ......................................................... 421 42. Sentido de amor à terra pátria entre os Gregos ......................................................... 429 43. Demóstenes e a Oração da Coroa ......................................................................................439 44. Sobre a Poética de Aristóteles ......................................................................................... 455 45. Lexis e opsis na tragédia grega .........................................................................................471 46. Algunas cuestiones insolubles de la Poética deAristóteles ...................................... 485 47. Sobre a importância das informações de Pausânias para a história da língua grega ................................................................................... 495 48. La valeur du Vindobonensis Va dans la tradition manuscrite de Pausanias ...........511 49. Pausanias and the Roman conquerors ..........................................................................519 50. Introdução geral ao estudo de Plutarco .......................................................................527 51. Os Diálogos Píticos de Plutarco ..........................................................................................539 EnigmaS Em volta do mito1 Para os Gregos, a palavra μῦθος designava, desde os Poemas Homéricos, uma forma de discurso. Daí passará ao significado de «narrativa», real ou fictícia, e, neste último sentido, começará aos poucos a opor-se a λόγος, que se aplicava à história verídica. Um dos primeiros esboços desta distinção pode ouvir-se na I.ª Ode Olímpica de Píndaro (28-29), quando o poeta, acumulando uma série de gnomai, prepara a nova versão que vai apresentar da vida de Pélops: …… Muitos prodígios há, e muitas vezes as histórias dos mortais excedem a realidade (ἀλαθῆι λόγον). Desiludem-nos as fábulas (μῦθοι) buriladas com mentiras de matriz variegado. Um século depois, a distinção aparece claramente estabelecida em mais do que um passo de Platão. Escolhamos este exemplo do Górgias 523 a: Escuta então, disse ele, um λόγος muito belo, que terás na conta de μῦθος, segundo julgo, e eu, na de λόγος; pois é como coisa verdadeira que te farei a narrativa que me proponho contar. A noção de que os mitos eram narrativas que não correspondiam à realidade já fora expressa, aliás, pelos Sofistas que, no entanto, admitiam que neles se pudesse encontrar um nível de significação mais profundo. Esboça-se deste modo uma teoria que ainda hoje mantém vitalidade: a teoria alegorista. Pode mesmo dizer-se que a interpretação alegórica dos mitos é a que prevalece na recepção que vieram a ter na Idade Média, no Renascimento e mesmo até ao séc. XVIII, não obstante ter surgido, desde o séc. III a.C, uma outra linha de interpretação, a evemerista, que 1 Publicado em Actas do Symposium Classicum I Bracarense, Braga, 2000, 13-26. http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0829-7_1 8 Estudos sobrE a grécia antiga via nestas histórias tradicionais os vestígios de um passado histórico, centrado em figuras reais de outras eras — e que tem, igualmente os seus continuadores. Precisamente a partir do séc. XVIII surgem novos modos de considerar este fenómeno, entre os quais têm um lugar pioneiro os trabalhos de Christian Gotlob Heyne, que diferencia o mito da poesia, da retórica, da alegoria, como uma ma- nifestação autónoma, correspondente a um estádio inicial do género humano; e os de Herder e do seu círculo do Romantismo alemão, que vêem nele um objecto de investigação científica. A partir da primeira metade do séc. XIX, Carl Otfried Müller publica os seus Prolegomena zu einer wissenschaflichen Mythologie (Göttingen 1825), que abre o caminho à noção, depois propugnada por muitos outros grandes nomes, de que existiria uma ciência da Mitologia. Porém ao historiar a complexa evolução deste género de estudos, aquele que é geralmente considerado o maior especialista da actualidade nessa área, Walter Burkert, declarou já: «Ich glaube nicht, dass wir über diese Wissenschaft verfügen» («Não creio que se disponha dessa ciência»)2. Efectivamente, o estudo dos mitos tem sido reivindicado por distintas áreas do saber, não raro em conflito umas com as outras, e sem que se tenha atingi- do uma teorização e um método que definam as fronteiras de uma ciência. De entre essas áreas do saber, mencionaremos algumas, como a orientalística e a germanística (em ligação com a história comparada das religiões), a etnologia, a sociologia, a antropologia, a arqueologia, a linguística (em relação com o mé- todo estruturalista), a psicologia, a filosofia do conhecimento. Grandes filósofos tentaram elucidar a questão, como Kant e Hegel, Cassirer e Heidegger3, e, mais recentemente, Paul Ricoeur. Quase todas as especialidades mencionadas têm dado o seu contributo e, em muitas, as vantagens que permanecem superam os erros a que induziram. De uma e de outros apontaremos apenas alguns exemplos. Para isso, voltemos ao séc. XIX, a fim de recordar o impacto produzido pela publicação dos contos recolhidos pelos irmãos Grimm (1812-1815), e mais ainda pela redescoberta da epopeia medieval dos Nibelungen, em que viriam a inspirar- -se muitos poetas e, sobretudo, a famosa tetralogia operática de Wagner. Outro acontecimento marcante foi a edição, por Max Müller, do poema indiano do Rig- -Veda. E todos estes factos têm de situar-se na época em que, como todos sabem, Bopp havia encontrado afinidades suficientes entre a quase totalidade das línguas europeias e o sânscrito para se tornar possível postular a existência de um per- dido idioma originário, o indo-europeu. Neste contexto, compreende-se que as 2 «Griechische Mythologie und die Geistesgeschichte der Moderne», in: Entretiens Hardt 26 (Genève 1979) 159-207 [daqui em diante citado só como «Griechische Mythologie»]. A citação é da p. 159. 3 Sobre o famoso debate destes dois pensadores em Davos, vide Miguel Baptista Pereira, «O re- gresso do mito no diálogo entre E. Cassirer e M. Heidegger», Revista Filosófica de Coimbra 27 (1995) 3-66. 91. Enigmas Em volta do mito investigações de Max Müller o levassem a escrever uma Mitologia Comparada (1856) e que, de hipótese em hipótese, ele acabasse por criar uma «Mitologia do Sol», origem, por sua vez, de trabalhos de vários seguidores, de tal modo que, como resumiu Burkert, «na segunda metade do séc. XIX, a Mitologia ficou reduzida à Meteorologia»4 (já se tinha individualizado, por exemplo, uma mitologia da lua), ou, como antes dele ironizara L. R. Farnell, se tornou «uma conversa superiormente figurada sobre o tempo atmosférico»5. Convém lembrar que é também do final do séc. XIX e começos do seguinte a publicação do monumental estudo de J. G. Frazer, The Golden Bough, cujo ponto de partida fora uma investigação sobre o célebre ramo de ouro que Eneias tem de colher, no canto VI da Eneida (136-148), como condição para poder descer aos infernos, e acabou por se dilatar em doze volumes recheados de informações vin- das de todo o lado, incluindo de povos africanos. Esta entrada da antropologia no campo de estudos que nos ocupa está na origem da célebre Escola de Cambridge, com Robertson Smith e Jane Harrison, A. B. Cook, F. M. Cornford, a que depois se juntou o oxoniense Gilbert Murray. Estava constituída a teoria do ritual, que sus- tentava que os mitos eram narrativas tradicionais ligadas a ritos, correspondendo aqueles à parte falada do ritual, e estes à execução do mito. Posta nestes termos, pode dizer-se que tal doutrina caducou, nomeadamente, no que diz respeito à «divindade do ano», o ἐνιαυτὸς δαίμων que dava lugar às ce- lebrações. Os especialistas actuais tratam respectivamente esta parte da doutrina por «complexo do Ano Novo» (tal como falam também de um «complexo de inicia- ção», a que tudo se reduzia)6, e apontam exemplos de mitos a que não corresponde nenhum ritual e vice-versa7. E, no entanto, algo se pôde aproveitar desta teoria: a presença, em várias tragédias, do sacrifício ritual. O mérito desta revelação vai, mais uma vez, para Walter Burkert, que em dois artigos, um publicado em 1966 e outro em 19858, mostrou os vestígios desse acto nos três grandes dramaturgos gregos, sem deixar de reconhecer o lugar único da tragédia ática como forma de arte, em relação aos seus prováveis começos: «A transformação num alto nível de literatura, a adaptação do mito heróico, permanece, sem dúvida, um feito ímpar (...) E contudo, a essência do sacrifício ainda percorre a tragédia, mesmo na sua maturidade»9. Dos váriosexemplos escolhidos, como o do sacrifício e morte de Héracles nas Traquínias 4 «Giechische Mythologie», 167. 5 Citado por Burkert, ibidem, 169. 6 E.g. H. S. Versnel, in: Lowell Edmunds, ed., Approaches to Greek Myth (Baltimore 1990) 58. 7 Veja-se, entre outros, G. S. Kirk, Myth, Its Meaning and Function in Ancient and Other Cultures (Cambridge 1970) 8-31 [daqui em diante citado só como Myth]. 8 «Greek Tragedy and Sacrificial Ritual», Greek. Roman and Byzantine Studies 7 (1966) 87-121; e «Opfer- ritual bei Sophokles. Pragmatik - Symbolik - Theater», Das Altsprachliche Unterricht 18, 2 (1983) 5-20. 9 «Greek Tragedy and Sacrificial Ritual», 115-116. 10 Estudos sobrE a grécia antiga de Sófocles, o que mais impressiona pela argúcia revelada no estabelecimento desta relação é o do grande monólogo de Medeia, quando, no meio das hesitações em que se debate a protagonista antes de matar os filhos, exclama (1053-1055)10: A quem não agrada assistir aos meus sacrifícios, é consigo. Recorde-se que no êxodo da tragédia de Eurípides, Medeia anuncia, qual deus ex machina, que sepultará os filhos por suas mãos no templo de Hera Acraia, em Corinto, e nessa cidade instituirá uma festa sagrada em honra deles (1378-1383). Voltemos de novo às diversas orientações que surgiram no decurso do séc. XIX. Uma é a comparação com os mitos de diferentes povos além do grego. Falámos já, a este propósito, dos poemas da Índia antiga. Estava ainda para chegar o co- nhecimento dos chamados mitos orientais, entendendo por tal designação os da Mesopotâmia e do Egipto, datáveis do terceiro milénio a. C., a que vieram juntar-se os da Síria (Ugarit, hoje Ras-Shamra) e da Anatólia (Hattusa, hoje Boghaz-Köi). Saliente-se, a propósito da primeira destas regiões, a surpresa causada pela pu- blicação de S. H. Hooke, Myth and Ritual (livro que, logo no título, evidencia a sua filiação nos princípios da Escola de Cambridge), publicação essa ocorrida em 1933. Tratava-se da epopeia babilónia de Enuma Elis, que tinha de ser recitada na festa de Ano Novo, e num lugar fixo. Este poema, que poderá datar-se da primeira metade do séc. XVIII a.C, contém uma teogonia, cujas semelhanças — e também diferenças — em relação à de Hesíodo têm sido objecto de acalorada discussão. Outros textos semelhantes surgiram dos arquivos hititas de Hattusa, o Poema de Kumarbi e a Canção de Ulikummi, situados pelos orientalistas entre 1400 a 1200 a. C., e provavelmente precedidos de versões hurríticas, que ascenderiam a meados do segundo milénio a. C. Mais recentemente, a História Fenícia de Sanchuniathon, conhecida através da versão de Fílon, na época romana, viu confirmada a sua antiguidade pelo achado de novos fragmentos na antiga Ugarit. O assunto encontra-se certamente longe de estar esgotado. E até mesmo o recente livro de M. L. West significativamente intitulado The East Face of Helicon (Oxford 1997), destinado a convencer o campo oposto pela apresentação dos muitos textos orientais relevantes, tem defrontado o cepticismo dos helenistas11. 10 Ibidem, 117-119. 11 Veja-se a recensão de Stephen Halliwell, Greece & Rome 45, 2 (1998) 235, que termina com mal disfarçada ironia: «After the substance of this book has been sifted, and some of its historical claims tested by specialists, we still need a more explicitly reasoned account of the relationship between the east and west faces of Helicon. After all, even West concedes that the Muses seem to have been a purely Greek creation.» No prefácio à sua monumental edição comentada da Teogonia de Hesíodo (Oxford 1966), West ana- lisara o que àquela data se sabia dos modelos orientais. Da numerosa bibliografia sobre este assunto, veja-se, em especial, H. Erbse, «Orientalisches und Griechisches in Hesiods Theogonie», Philologus 108 111. Enigmas Em volta do mito Observe-se ainda que o poema de Hesíodo não era o único relato da criação do mundo que os Gregos conheciam. Já há muito que se entrevira outro na paródia contida nas Aves de Aristófanes (685-703)12 . Mas o achado do papiro de Derveni, em 1962, veio confirmar a existência de uma teogonia órfica13. Dentro deste âmbito, há um exemplo curioso, tanto mais que se relaciona com Héracles, o mais popular dos heróis gregos. Trata-se de um texto sumério-acádio sobre Ninurta e Akakku, datável dos sécs. XXII-XXI a. C., mas publicado só em 1983. Ninurta é um ser divino, dotado de grande valentia, que vence monstros e executa doze trabalhos com animais temíveis. É seu pai Enlil, senhor das tem- pestades e deus supremo. As coincidências, até aqui, são flagrantes, mesmo tendo presente, quanto aos trabalhos de Héracles, que o número de doze teria figurado pela primeira vez num poema do Ciclo Épico, de Pisandro de Rodes, talvez de 600 a.C, mas foi certamente a sua representação no friso interior do Templo de Zeus em Olímpia (456 a. C.) que lhes fixou o número. De facto, ao descrever as célebres métopas, Pausânias começa por dizer: «Estão também em Olímpia os trabalhos de Héracles na sua maior parte» (5.10.9). Ao referir-se a estes novos textos sumério-acádios, Burkert não deixa de notar que, além das semelhanças acima apontadas, também há muitas diferenças. Num ponto importante se aproximam, porém: ambos são heróis culturais, conquanto a esfera de acção de Ninurta seja ensinar a explorar minérios14. Regressemos mais uma vez ao séc. XIX, pois ainda não estão esgotadas as referências às muitas teorias do mito que os seus últimos anos viram surgir. Efectivamente, mesmo cingindo-nos só às principais, há duas que não podemos omitir — a de Nietzsche e a de Freud. A primeira, proclamando, na sua discutida e discutível Geburt der Tragödie (1872), o antagonismo entre espírito apolíneo e es- pírito dionisíaco, doutrina essa que Wilamowitz logo neutralizou nos domínios da Filologia Clássica15, mas que continua a ser frequentemente considerada a última (1964) 2-28; G. S. Kirk, Myth 118-131; A. Lesky, Griechischer Mythos und Vorderer Orient in: Gesammelte Schrif- ten (Bern 1966) 379-400. 12 O mais recente comentário desta obra, o de Nam Dunbar, ed., Aristophanes. Birds (Oxford 1995) 437-438, considera que Hesíodo foi de qualquer modo, o principal modelo do comediógrafo. 13 Descoberto em 1962 num túmulo em Derveni, e preciosamente guardado no Museu de Tessaló- nica, foi publicado na Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 47 (1982) 1-12 e discutido, antes e depois disso, por numerosos especialistas, entre os quais Walter Burkert, «Orpheus und die Vorsokratiker», Antike und Abendland 14 (1968) 93-114. Veja-se também a curiosa e ousada interpretação de Glenn W. Most, «The fire next time: cosmology, allegories, and salvation in the Derveni Papyrus, Journal of Hellenic Studies 17 (1997) 117-133. 14 «Oriental and Greek Mythology: The Meeting of Parallels» in: Jan Bremmer, ed., Interpretations of Greek Mythology (London 1987) 10-40. 15 «Ein geniales Irrtum» (Um erro genial), como se lê no sub-título do livro de M. Vogel, Apolli- nisch und Dionysisch (Regensburg 1966). 12 Estudos sobrE a grécia antiga palavra da ciência noutras áreas do saber. Atrás desse vieram ainda o mito de Zaratustra, do Super-Homem e do Eterno Retorno. A Psicanálise de Freud, dada a conhecer em Die Traumdeutung (1900) ganhou notoriedade mesmo entre leigos, em parte devido ao exemplo escolhido para do- cumentar o modo como as pulsões refreadas podem exprimir-se através do sonho. Esse exemplo provém dos versos 980-983 do Rei Édipo de Sófocles, em que Jocasta tenta dissipar as apreensões do Rei de Tebas quanto ao oráculo que anunciava que ele havia de cometer incesto, dizendo-lhe que muitos homens tinham já imagi- nado em sonhos a união com suas mães. Refira-se de passagem que, conforme já observaram diversos autores, Édipo, tendo sido criado pela Rainha de Corinto e não tendo conhecido nunca, até à idade adulta, os seus verdadeiros pais, de modo algum poderia ter sofrido do complexo que tomou o seu nome16. Tornaremos a este mito.Mas, já que estamos na família dos Labdácidas, observemos que os modernos opositores da psicanálise apontam agora jocosamente ao próprio Freud um novo complexo dessa proveniência, o de Laio, uma vez que ele sempre temera o que veio a suceder, ou seja, que Jung, o mais brilhante dos seus discípulos, destronasse as suas teorias... Com efeito, Jung abjurou do pan-sexualismo das interpretações de Freud e evolucionou no sentido de pressupor um inconsciente colectivo onde se formavam arquétipos, como o do velho sábio, da terra-mãe, da criança divina, do sol, e outros ainda. A verdade porém, como objectou G. S. Kirk, é que, embora se tenha afirmado repetidamente que esses símbolos são frequentes, «jamais se apresentaram provas e estatísticas convincentes ou se tentou sequer fazê-lo»17. Passando adiante nomes importantes, não poderá deixar de referir-se o de contemporâneos, como Mircea Eliade, cujos livros principais têm sido divulgados em muitas línguas. A doutrina de Eliade reconduz tudo ao mito das origens e do eterno retorno, não obstante haver inúmeros mitos irredutíveis a tal simplificação. Com este autor estamos já na segunda metade do séc. XX, época que, como se sabe, é invadida pelo estruturalismo, vindo das novas orientações do célebre Cours de Linguistique Générale de F. de Saussure (1915) e, depois, de Jakobson e outros. É neste modelo linguístico que se baseiam os trabalhos do antropólogo Claude Lévi- -Strauss. Em «The Structural Study of Myth» (1955), três anos depois reimpresso no seu livro Anthropologie Structurale, faz a aplicação desse mesmo modelo à mitologia, exemplificando-o com a mais discutida das histórias, a de Édipo, precisamente aquela de que falámos há pouco noutro contexto — embora depois se voltasse de preferência para as de outros povos, nomeadamente, dos índios sul-americanos. Para esta corrente, o mito é essencialmente um produto da linguagem, logo, um meio de comunicação, que só atinge significado na relação entre si dos diversos 16 A este propósito, veja-se, entre outros, J.-P. Vernant, «Oedipe sans Complexe» in: Mythe et Tragédie en Grèce Ancienne (Paris 1973) 75-98. 17 Myth 275. 131. Enigmas Em volta do mito elementos que o compõem — a que chama mitemas — e que, por isso mesmo, não têm sentido independente, quando desligados do sistema. Ou seja, o mito tem de ser considerado em todas as suas versões, e só a perspectiva sincrónica é válida, pelo que deixa de ser relevante a tão procurada distinção entre versão autêntica e versão primitiva. Daqui resulta que passa a haver, utilizando as palavras de Vítor Jabouille, «dois níveis de leitura (...): o nível narrativo manifesto e o nível mais profundo, que só se pode alcançar através da referenciação dos elementos constitutivos da narrativa mítica»18. Como vimos, o primeiro exemplo escolhido pelo antropólogo francês tinha sido o mito de Édipo, cuja apresentação é feita numa grelha disposta para leitura vertical e leitura horizontal. A primeira coluna assim obtida engloba o que o autor chama «relações de parentesco sobre-avaliadas» e agrupa os mitemas «Cadmo procura a sua irmã Europa, raptada por Zeus», «Édipo desposa Jocasta, sua mãe» e «Antígona enterra Polinices, seu irmão». A segunda coluna, esclarece o autor, «traduz a mesma relação, mas afectada por um sinal inverso: relações de parentesco sub-estimadas ou desvalorizadas»19: os Espartanos exterminam-se mutuamente; Édipo mata seu pai, Laio; Etéocles mata o seu irmão, Polinices. A terceira agrupa a destruição de monstros: Cadmo mata o dragão; Édipo imola a Esfinge. A quarta diz respeito a três figuras que têm dificuldade em andar direito: Lábdaco (pai de Laio) = coxo; Laio (pai de Édipo) = canhoto; Édipo = pé inchado. Estes três últimos mitemas estão, porém, afectados por um ponto de interrogação. De facto, não só partem da noção, sempre contestável, de que se trataria de nomes falantes, como assentam em etimologias incertas. Bastaria esta circunstância para nos pôr de sobreaviso contra o esquema, a que os seus opositores chamam bricolage. Aliás, da fragilidade deste modo de ordenar o famoso mito tinha consciência o próprio Lévi-Strauss, que precedeu a sua apresentação destas cautelosas observações: «Suponhamos arbitrariamente que tal disposição esteja representada no seguinte quadro (entendendo-se, mais uma vez, que não se trata de o impor, nem mesmo de o sugerir, aos especialistas da mitologia clássica, que certamente quereriam modificá-lo, se não mesmo rejeitá-lo)»20. Na verdade, foi isso mesmo que aconteceu, quer por parte de filósofos, como Paul Ricoeur, que atacou a doutrina nos seus fundamentos, acusando-a de ser um sistema fechado sobre si próprio, «sem referência à realidade nem à psicologia e à sociologia dos locutores» e de eliminar «a pretensão de o mito dizer alguma coisa, que, como visão do mundo, pode ser verdadeira ou falsa»21, quer por parte 18 Iniciação à Ciência dos Mitos. 2.a ed. (Lisboa 1994) 84. 19 Anthropologie Structurale 237. O quadro encontra-se na página anterior a essa. 20 Anthropologie Structurale 236. 21 «Mito. A Interpretação Filosófica» in: Paul Ricoeur et alii, Grécia e Mito (trad. port.: Lisboa 1988). As citações são de pp. 12 e 14 dessa versão. 14 Estudos sobrE a grécia antiga dos classicistas. Efectivamente, dois dos maiores helenistas da actualidade, que se têm ocupado do mito e da religião grega, e que já várias vezes citámos no decurso destas considerações, G. S. Kirk e Walter Burkert, opuseram-se também a esta nova metodologia, o primeiro nas Sather Classical Lectures de 1970, editadas sob o título de Myth. Its Meaning and Function in Ancient and Other Cultures, e o segundo em numerosas obras, especialmente na série de conferências daquela mesma série da Universidade de Berkeley, proferidas sete anos mais tarde com a designação de Structure and History in Greek Mythology and Ritual. Este último livro demonstra mais uma vez que a dimensão histórica não pode ser excluída da interpretação dos mitos, como pretende o estruturalismo. Escolhe- remos um exemplo que lá se encontra, relativo a uma das mais famosas aventuras de Ulisses, a do Ciclope Polifemo. Geralmente vista como um conto popular, com numerosíssimas versões em vários povos (em 1904 já Oskar Hackman tinha reunido e publicado cento e vinte e cinco, muitas das quais seguramente independentes da Odisseia, e que iam de Espanha até ao Cáucaso), a sua inclusão no νόστος do Rei de Ítaca tem dado lugar a muitas análises que a situam no esquema geral do Regresso do Herói. Um dos estudos mais notáveis sobre o episódio é sem dúvida o de D. L. Page, que forma o primeiro capítulo do seu livro The Homeric Odyssey22. Aí o conhecido helenista discute, em termos de construção da narrativa, a escolha da arma que Ulisses utiliza para cegar o Ciclope e assim permitir a sua fuga e a dos companheiros sobreviventes no dia seguinte: não um objecto metálico, mas o bastão do próprio Polifemo, aquecido no fogo até ao rubro. Ora, no livro há pouco referido, Burkert encontra para essa substituição uma engenhosa e convincente explicação histórica: a escolha de uma peça de madeira era um substrato do tem- po em que os metais não estavam ainda em uso, logo, um indício de uma fase da lenda originada no paleolítico23. Referimo-nos a Lévi-Strauss como uma das mais influentes figuras na apli- cação do estruturalismo aos mitos, método que depois ele veio a exemplificar predominantemente nos dos ameríndios, conforme já referimos. Outros, porém se voltaram para os mitos gregos, designadamente J. P. Vernant e M. Détienne, dois dos membros mais destacados da chamada Escola de Paris, que tem conhecido um grande êxito. Precisamente porque são muito divulgadas as suas obras, não vamos demorar-nos na respectiva apreciação. Gostaríamos apenas de apontar um exemplo do primeiro destes autores, publicado a primeira vez em 1960, e que contém uma análise estrutural do mito das Cinco Idades de Hesíodo, Trabalhos e Dias109-20124. 22 Oxford 1955. Muitos outros autores estudaram também esta aventura, entre os quais G. S. Kirk, Myth 162-171, que viu nela um exemplo de confrontação entre natura e cultura. 23 Structure and History in Greek Mythology and Ritual 33. 24 «Le mythe hésiodique des races. Essai d’analyse struturale», Revue de l’Histoire des Religions (1960) 21-54 = Mythe et Pensée chez les Grecs (Paris 1965) 19-47. 151. Enigmas Em volta do mito Neste mito, conhecido através de numerosas versões, a história da humani- dade é vista como um processo de degeneração contínua, em quatro épocas su- cessivas, cada uma das quais simbolizada por um metal ou liga metálica de valor decrescente: ouro, prata, bronze, ferro. Não assim em Hesíodo, que entre as duas últimas intercala a idade dos heróis, aumentando assim o número para cinco. Ora, na sua análise, Vernant supõe a existência de ainda mais uma, não obstante o texto grego usar um numeral ordinal cada vez que introduz a descrição das características das «raças dos homens dotados de voz, que os imortais criaram», conforme se lê logo nos primeiros versos. Sem entrar nos pormenores da inter- pretação do autor francês, diremos apenas que esta modificação arbitrária divide em duas idades a do ferro, a fim de completar três pares de opostos: aqueles que se submetem à justiça (Dike) e os que cometem desvarios, devido à sua insolência (Hybris). Também não vamos recordar a polémica suscitada por esta distorção do texto para ilustrar uma teoria. Mostraremos apenas como a reintrodução da pers- pectiva histórica na análise de um mito pode abrir melhores perspectivas na sua interpretação. É o caso do artigo publicado três anos antes por T. G. Rosenmeyer na revista Hermes25. Sustenta este helenista que o poeta tinha a noção de que antes dele tinham existido homens superiores, os que lutaram em Tebas e Tróia — ou seja, aqueles que hoje situamos na época micénica —, uma «raça divina de heróis, chamados semi-deuses, a geração anterior à nossa na terra sem limites» (159-160). Por isso interrompe a linha de decadência que havia seguido até então e lhes atribui um destino último — habitar as Ilhas dos Bem-Aventurados — que quase os equipara aos homens da Idade do Ouro. Tão-pouco nos esqueçamos de que eles tinham sido precedidos por uma raça que para tudo usava o bronze, «em bronze trabalhavam, pois não havia o negro ferro» (151). Trata-se, como entende esse autor, de reminiscências históricas sem dúvida reveladoras, e que como tal devem ser tomadas. Aliás, já um discípulo de Aristóteles, Dicearco, acreditava na fundamentação histórica deste texto26. Depois desta pequena volta pelas teorias acerca do mito, em que muitas tiveram de ser omitidas, designadamente as de alguns filósofos (como Schelling, com a sua interpretação tautegorista) e a do trifuncionalismo de Dumézil, poderá perguntar- -se se, com o contributo de tantas ciências, de que falámos no começo, estaremos em condições de definir esta manifestação do espírito humano. Poder-se-á ter como um dado adquirido a eliminação da ideia de uma men- talidade primitiva, o que, como escreveu Burkert27, foi afinal o contributo mais 25 «Hesiod and Historiography», Hermes 85 (1957) 257-285. 26 Fr. 49 Wehrli. Outros autores procuram discernir aqui a teoria do devir cíclico ou do eterno retorno, que verdadeiramente só viria a ser formulada pelos filósofos estóicos, embora alguns pre- tendam vê-la já em Heraclito. 27 «Griechische Mythologie», 184. 16 Estudos sobrE a grécia antiga válido da psicanálise. Pelo contrário, tem-se verificado que, sob as mais variadas formas, o mito existe em todas as épocas. Não esqueçamos porém que não podem colocar-se no mesmo plano os mitos só conhecidos pela transmissão oral — e que continuam a ser recolhidos na actualidade junto de povos que desconhecem a escrita — e os que chegaram até nós através de uma depurada tradição literária, como é o caso dos de origem grega. A delimitação do conceito de mito é ainda dificultada pela proximidade de outras narrativas tradicionais afins, como o conto popular, que Kirk procurou distinguir, estabelecendo que este não diz respeito a problemas profundos, vale só pelo seu interesse narrativo e geralmente as suas figuras não têm sequer nomes28. Pelo contrário, o mito deve ter um significado especial e intelectual em relação à sociedade e é um fenómeno multidimensional29. Dessa mesma característica deriva o facto de tantas doutrinas discordantes terem quase todas deixado algum contributo válido. Dessa variedade de opiniões e da necessidade de as discutir e confrontar dão ideia os numerosos congressos que se têm realizado nos últimos tempos, bem como o hábito de publicar colectâneas de trabalhos em que se abor- dam os vários aspectos que comporta e se exemplificam as diversas metodologias hoje utilizadas, como a que organizou Jan Bremmer em 1987 ou Lowell Edmunds em 199030. Todos estes factos comprovam o fascínio que este tipo de narrativas continua a exercer sobre os estudiosos. É que, como escreveu Walter Burkert, «um mito é ilógico, inverosímil ou impossível, talvez imoral, e, de qualquer modo, falso, mas ao mesmo tempo compulsivo, fascinante, profundo e digno, quando não mesmo sagrado»31. São essas características contraditórias que mantêm o gosto por este produto da mente humana em todas as épocas. Os mitos contêm e verbalizam um sem-número de experiências em situações-limite e tentam, em sucessivas aproximações, explicar o mundo e as relações com ele e dos humanos entre si. E, sobretudo, conservam sempre a atracção do enigma. 28 Myth 31-41. 29 Cf. W. Burkert, «Oriental and Greek Mythology», cit., 10-11. 30 Respectivamente, Interpretations of Greek Mythology (London 1987) e Approaches to Greek. Myth (Baltimore 1990). 31 «Mythos und Mytologie» in: Propyläen. Geschichte der Literatur (Berlin 1981) I, 11-35 [a citação é da tradução portuguesa, Mito e Mitologia (Lisboa 1991) 15]. o mito na antiguidadE CláSSiCa1* Se tivermos em atenção o motivo da capa desta obra, vemos nele um desenho que de imediato indentificamos como um símbolo: o labirinto. E, de acordo com a nossa formação específica, experimentaremos descodifícá-lo cada um à sua maneira. Uma designação de origem minóica, por conter o sufixo -nth-, dirá um linguista, discípulo de Kretschmer, embora outros duvidem. De qualquer modo, um nome já decifrado numa tabuínha de Cnossos, em Linear B, a sugerir a existência de uma deusa do Labirinto, ao lado de outro ainda, referente a um Daidaleion, que parece ser um lugar de culto -— acrescentará um especialista de Micénico. Ora, um palácio de planta extremamente complexa era mesmo o que Sir Arthur Evans começou a escavar em Cnossos, exactamente há cento e um anos. Outros menores foram depois aparecendo em Creta. E, na década anterior àquela em que estamos, uma expedição arqueológica austríaca teve a surpresa de encontrar no Egipto, na antiga Avaris (hoje, Tell el-Dab’a) frescos que representam, entre outros motivos conhecidos, o Salto do Touro e o Labirinto, claramente executados por artistas minóicos. Todos estes dados e outros ainda pertencem a uma história muito antiga, em que há episódios de luta pelo domínio dos mares, de paixões ilícitas, de seres tera- tológicos, de artífices prodigiosos que com o seu engenho superam os obstáculos naturais, mas acabam por ser vítimas da sua ousadia, enfim de toda aquela série de aventuras — tão conhecidas que não vou repeti-las aqui — às quais estão ligados os nomes de Minos, de Pasífae, de Dédalo e Ícaro, de Teseu e Ariadna. Se a talassocracia de Minos é mencionada ainda pelos grandes historiadores gregos, Heródoto e Tucídides, os outros factos e figuras são sucessivamente rela- cionados entre si principalmente por poetas e pintores, e mais tarde recolhidos por eruditos autores tardios, como Plutarco, ou pelos mitógrafos. 1 * Publicado em José Ribeiro Ferreira, ed., Labirintos do Mito, Coimbra (2004) 9-17. http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0829-7_218 Estudos sobrE a grécia antiga A própria figura de Minos é conhecida dos Poemas Homéricos como a de um legislador que, de nove em nove anos, se encontrava com Zeus, para receber nor- mas sobre as leis a estabelecer (Odisseia XIX. 178-179) e que no Hades continuava a exercer as suas funções de juiz (ibidem, XI. 568-57I)2. É sob a invocação daquele privilégio do encontro com Zeus que principia o diálogo em As Leis de Platão (624b- -625a). Por sua vez, o autor da Ilíada, ao descrever o escudo de Aquiles, evoca a figura da filha do soberano cretense e das danças para ela preparadas (XVIII. 590-592)3: Cinzelou ainda uma dança o ínclito Anfigieu, Semelhante à que outrora, na imensa Cnossos, Dédalo organizou para Ariadna de belas tranças. Por sua vez, o abandono a que Teseu votou a princesa que o salvara, depois de a levar de Creta, é contado na Odisseia (XI. 321- 325) num passo, aliás, de autenti- cidade duvidosa. E aqui entram em cena muitas outras possibilidades de exegese, que se poderiam relacionar, ora com reminiscências históricas (a supremacia cretense dos mares), ora com um primitivo teriomorfismo, ora com danças rituais, como a de Ariadna, em Cnossos, e a de Teseu com os seus companheiros, em Delos. Se esta última interpretação não anda longe da teoria do ritual, professada pela chamada Escola de Cambridge (de Cornford, Jane Harrison e outros), a primeira já tinha um nome e muitos seguidores na Antiguidade: é o Evemerismo, inaugu- rado em 300 a. C, que sustentava que por trás destas histórias estavam figuras e acontecimentos reais. Quanto à segunda, a do Zeus teriomorfo, que poderia estar subjacente ao rapto de Europa por Zeus, sob a forma de touro, e de uma união que daria origem a Minos, e a dos amores monstruosos da esposa deste, que estariam na génese do Minotauro, os dois episódios não se conjugam, como observou Wal- ter Burkert, além de que, continua ele, a religião grega só conhece divindades antropomórficas e, mesmo quando “joga” com metamorfoses dos deuses, não há identidade destes com os animais que lhes são sacrificados4. Deixando agora os mitos cretenses, acentuemos que é aquele mesmo famoso especialista que, depois de demonstrar as limitações da psicanálise, do estrutura- lismo e de outras doutrinas na interpretação do mito, o define como uma narrativa tradicional, que não pertence ao reino do inconsciente, mas ao da linguagem. Os fenómenos de importância colectiva — prossegue — como os da vida social, do 2 Sobre as dificuldades de interpretação deste passo do poema, veja-se Joseph Russo in A Com- mentary on Homer’s Odyssey (Oxford 1992) Vol. III, pp. 85-86. 3 Sobre esta dança e sobre as tentativas de interpretação dos antropónimos Dédalo e Ariadna como nomes falantes, vide Mark W. Edwards The Iliad. A Commentary, Vol. V (Cambridge 1991), p. 219. 4 Griechische Religion der archaischen und klassischen Epoche (Stuttgart 1977), p. 113. 192. O mitO na antiguidade ClássiCa ritual religioso, do medo dos fenómenos da Natureza, da experiência da doença e de outros problemas gerais da sociedade humana, transformam-se assim num fundo de experiência partilhada e verbalizada. Por isso, diz: “Mito significa contar uma história com referência suspensa, estruturada por qualquer modelo de acção basicamente humana”5. A linguagem, a comunicação verbal, tem, por conseguinte, um papel funda- mental na formulação e na transmissão dos mitos. E aqui surge uma questão, na esteira de um tema muito debatido, pode dizer-se, em toda a segunda metade do séc. XX: o da relação da oralidade com a escrita. Autores como Luc Brisson, em livro publicado há poucos anos com o significativo título Introduction à la Philosophie du Mythe. I. Sauver Les Mythes6, sustentam que os mitos continham histórias que iam sendo amoldadas “no essencial, à expectativa do público”, as quais foram subme- tidas, após o aparecimento da escrita, a uma “crítica radical”, “a dos primeiros historiadores e a dos primeiros filósofos”7. Embora não o exprima muito claramente e coloque já o uso do alfabeto grego nos começos do séc.VIII a. C, Brisson parece supor, a avaliar pela sua adesão à escola de E. A. Havelock, que só bem mais tarde as epopeias de Homero e Hesíodo teriam sido passadas à escrita. Ora não é essa a tendência actual dos melhores especialistas, como Barry Powell8. Precisamente sobre a suposta inalterabilidade dos mitos narrados pelos poetas, uma vez passados à escrita, podemos apontar um exemplo muito significativo, tanto mais que diz respeito, não a um herói menor, mas ao próprio Aquiles. É sabido que, entre os trinta e cinco epítetos que lhe são atribuídos na Ilíada, há quatro que se referem à sua destreza na corrida, e que podem traduzir-se todos por “de pés velozes”: πόδας ὠκύς, ποδώκης, ποδάρκης, πόδας ταχύς. Essa forma de superioridade física não é utilizada, contudo, no poema, para nenhum fim especial. Verifica-se mesmo que, quando ele dá três vezes a volta às muralhas de Tróia, em perseguição de Heitor, precisamente num ponto crucial da narrativa (Canto XXII), nunca consegue alcançá-lo. Este facto foi evidenciado há alguns anos por Jasper Griffin, em artigo que fez época nos estudos homéricos, chamado «The Epic Cycle and the Uniqueness of Homer»9, em que o conhecido helenista acumula exemplos, como este, para demonstrar que o autor da Ilíada, se bem que conhecesse, muitas vezes, outras versões das histórias que refere, as excluía deliberadamente da sua 5 Structure and History in Greek Mythology and Ritual (Berkeley 1979), cap. I, passim. 6 Paris 1996 (precedido da versão alemã, publicada em Darmstadt, no mesmo ano). 7 As citações são, respectivamente, de pp. 15 e 9. 8 Veja-se, por exemplo, o cap. desse especialista, “Homer and Writing” in Ian Morris and Barry Powell, eds., A New Companion to Homer (Leiden 1997), p. 3-32. 9 Jasper Griffin, “The Epic Cycle and the Uniqueness of Homer”, Journal of Hellenic Studies 97 (1977) 39-53. 20 Estudos sobrE a grécia antiga obra, manifestando assim um pendor racionalizante que o distinguia dos auto- res do Ciclo Épico. O termo de comparação, neste caso específico, vai buscá-lo a Píndaro, que, num dos muitos epinícios que ilustra com mitos de Aquiles, conta que, muito jovem ainda, já o herói combatia as feras sem cessar, e, devido a tão grande valentia e coragem, admirava-o Ártemis e a denodada Atena, porque, sem auxílio de cães nem redes dolosas, derrubava os veados, pois seus pés os ultrapassavam. Estes versos, que se lêm na III Ode Nemeia (50-53), atribuem-lhe, portanto, o miraculoso poder de exceder os veados na corrida10. De facto, a Ilíada retém apenas o epíteto distintivo “de pés velozes” (que, numa das suas formulações, ποδάρκης, é um exclusivo do herói e, portanto, um verdadeiro epíteto distintivo, e noutras é partilhado ocasionalmente com Íris, a mensageira dos deuses, e com uma ou outra figura11. Ora, da III Nemeia não se sabe a data exacta, mas Snell-Maehler colocam-na em 475 a. C, ou seja, numa época em que já não pode haver dúvidas quanto à expansão da literacia. No entanto, foi nesta ode que se conservou uma versão primitiva do mito que a Ilíada não acatara. Fosse essa ou não a data em que o epinício foi composto, não devemos esque- cer que, se os pré-socráticos como Xenófanes (no conhecido fr. 11 Diels) puseram em causa a ausência de relação entre religião e moral nos deuses de Homero e Hesíodo, e se o historiógrafo Hecateu, seu contemporâneo, afirmava que escrevia de acordo com o que lhe parecia ser a verdade, “pois as histórias dos Gregos são muitas e ridículas” (fr. la Jacoby), o poeta tebano professava, afinal, princípios semelhantes. O exemplo mais célebre deste refazer dos mitos, pondo-os de acordo com uma moral mais elevada, tem a sua mais alta expressão em passo célebre da I Ode Olímpica (35-37): Ao homem fica bem atribuir aos deuses acções belas: tanto menor será a culpa. Ó filho de Tântalo, falar-te-ei ao invés dos meus antecessores 10 Na introdução aoVol. III de G. S. Kirk, ed., The Iliad. A Commentary (Cambridge 1993), p. 44, Bryan Hainsworth encontra a razão deste epíteto na descrição da perseguição de Aquiles a Troilo nos Poemas Cíprios. Porém, tal pormenor não está documentado nos resumos de Proclo de que dispomos. Cf. W. Kullmann, Die Quellen der Ilias (Wiesbaden, 1969), pp. 291-293. 11 Quanto a Íris, é πόδας ὠκέα em II. 790, etc. Uma vez usado em relação a Orsíloco (Odisseia XIII.260), já πόδας ταχύς: é aplicado também a Meríones, a Eneias e a Antíloco (exemplos todos da Ilíada: respectivamente, XIII.249, XIII.482 e XVIII.2); ao passo que ποδώκης pode usar-se para cavalos (II.764, etc.), embora seja o Eácida o único ser humano a que é atribuído (22 ocorrências). 212. O mitO na antiguidade ClássiCa — quando o poeta se recusa a aceitar a versão tradicional, segundo a qual Pélops fora retalhado e servido em refeição oferecida aos deuses por seu pai, Tântalo. Este é que, explica ele, sendo honrado com o convívio dos deuses, “não foi capaz de dominar a sua ventura excessiva” (55-56) e roubou aos imortais a ambrósia e o néctar12. É o esquema que tantas vezes se há-de repetir: o homem excede os li- mites da sua condição e tenta igualar-se aos deuses, pelo que se torna culpado de insolência (ὕβρις), que a divindade castiga. É a noção de justa medida (μέτρον), a mesma afinal, que, cerca de um século antes, Sólon exprimira através da sentença de Delfos que lhe era atribuída: «nada em excesso» (μηδὲν ἄγαν). Estes princípios são basicamente os mesmos que vão informar a grande tra- gédia grega do séc. V a. C., a qual “reinterpretou os mitos em função dos valores da cidade”, para usar uma frase expressiva, embora redutora, do já citado Luc Brisson13, formulada na esteira de Wilheim Nestle. Que assim era relativamente a Ésquilo, prova-o o longo agon de As Rãs de Aristófanes. Que o essencial da história em si era já conhecido dos espectadores, demonstra-o, no século seguinte, um fragmento (191 Kock) de outro comediógrafo, Antífanes, ao afirmar: Sorte tem em tudo a tragédia: é um poema em que o argumento é conhecido dos espectadores, mesmo antes de alguém falar. De modo que basta o autor fazer uma alusão. Que eu diga apenas “Édipo”, e já sabem tudo o mais... E prova-o também a afirmação de Aristóteles de que, embora as peças de teatro encenassem geralmente as histórias tradicionais, casos havia, como o Anteu de Ágaton, em que tudo fora inventado “e nem por isso agrada menos” (Poética 1451b). Aliás, o facto de se usarem figuras e acontecimentos de todos conhecidos não cerceava a capacidade inovadora do dramaturgo. O pouco que nos resta do teatro grego permite-nos ver que os autores tinham liberdade para caracterizar as fi- guras, por mais conhecidas que fossem, de modos diversos e até mesmo opostos. É o que se conclui observando, por exemplo, o tratamento dado a Creonte nos três dramas de Sófocles em que intervém; ou, no mesmo autor, a caracterização de Ulisses, que, no Ájax, é defensor dos mais nobres princípios da moral heróica, 12 Se, a propósito desta atitude, podemos falar, como sustenta Antonietta Costoli, “La critica dei miti tradizionali alla corte di Ierone de Siracusa: Senofane e Pindaro”, Quaderni Urbinati di Cultura Classica 62, 2 (1999) 5-24, de um foco de irradiação da crítica do mito, a partir da corte do tirano de Siracusa, não nos parece suficientemente provado. 13 Op.cit., p. 19. 22 Estudos sobrE a grécia antiga e no Filoctetes se tornou no “fraudulento Ulisses” que o Ciclo Épico retratara. Neste domínio da inovação, parece ninguém ter ido mais longe do que Eurípides, que ousou pôr Jocasta em cena, a tentar conciliar os filhos em As Fenícias (seguindo, aliás, o modelo de Estesícoro, se na verdade é ela a personagem que fala no Papiro de Lille), e que alterou um dado fundamental na história de Antígona, apresentando- -a como já casada com Hémon. Esta é, em traços muito gerais, uma das linhas de evolução do mito, que dará os seus frutos nas Literaturas Modernas, até à mais recente actualidade. Não queremos, todavia, concluir este breve esboço sem recordar as palavras magis- trais de W. Burkert a este respeito: “É um paradoxo memorável que tenha sido precisamente do pensamento mítico que brotou a mais poderosa forma poética do mito: a tragédia ática. Se já a criação do teatro pelos Gregos representa um contributo único e até certo ponto não geralmente explicável, o facto de, para assunto deste teatro, na medida em que era sério e festivo, ser o mito que servia, quase sem excepções, pode parecer verdadeiramente surpreendente. É certo que as máscaras pertenciam há muito, ao culto do deus Diónisos, a cuja festa se ligaram também as representações de tragédias; porém o facto de nas máscaras não entrarem quaisquer seres grotescos do tempo de excepção que é o carnaval, mas sim figuras conhecidas e identificadas da mitologia familiar, esse foi o passo decisivo”14. Mas é altura de lembrar que, talvez desde o séc. VI a. C, se é exacto o que es- creveu Porfírio, já Teágenes de Régio, nove séculos antes dele, aplicara ao texto homérico a interpretação alegórica, quer no plano físico, quer no moral. Que essa interpretação começa a ser praticada pelos Sofistas, designadamente por Pródico, é facto aceite. E que daí passará aos Cínicos, aparecerá ocasionalmente em Aris- tóteles e será fundamental no Estoicismo e irá até aos Bizantinos, é igualmente reconhecido. É a chamada doutrina alegorista, a tal que, na expressão do já cita- do Luc Brisson vai “salvar os mitos”. Efectivamente, é também por essa via que, do lado do que fora o antigo Império Romano do Ocidente, o grande repositório dessas histórias, as Metamorfoses, atravessa a Idade Média, atingindo mesmo a fase do “Ovídio moralizado”, e entra triunfante no Renascimento. Em meio destas referências, foi omitida uma figura fundamental, como certa- mente já notaram todos: nada menos do que a figura de Platão, que em diversos passos da sua obra, mas sobretudo na República, faz uma crítica violenta das histó- rias que geralmente as amas e as mães contavam às crianças. Ora essas histórias, que vão desfilando ao longo dos Livros II e III, são sobretudo as de Homero e de Hesíodo e, ocasionalmente, também de outros poetas. Representam um discurso 14 “Mythos und Mythologie” in Propyläengeschichte der Literatur, I (Berlin 1980), trad. port. Mito e Mitologia (Lisboa 1991), p. 63. 232. O mitO na antiguidade ClássiCa falso, que engana sobre a natureza do divino, e que de modo algum deve ser admi- tido na cidade ideal que se pretende fundar. O mais curioso é que Platão foi, ele mesmo, um criador de mitos, modalidade que não costuma faltar nos seus diálogos mais extensos (por vezes, mais do que um). Precisamente no caso da República figuram dois, cada qual o mais célebre: a chamada Alegoria da Caverna (VII 514a-517b), destinada, como ele próprio escre- veu, a dar a conhecer o comportamento da natureza humana, conforme ela é ou não submetida à educação (VII. 514a); e o mito escatológico de Er-o-Arménio, a terminar o diálogo, que retoma a doutrina da imortalidade da alma, já defendida no Fédon, e substitui as grosseiras noções de felicidade no além, concebida como um banquete perpétuo, censuradas anteriormente no Livro II (363c-e), por uma grandiosa descrição da estrutura do Universo, e do lugar onde as almas que vão reincarnar (a doutrina da metempsicose é aqui fundamental) escolherão o seu destino. Como proclamara o híerofante (X.617e): “A responsabilidade é de quem escolhe. O deus não é culpado”. Deste modo se conciliam, portanto, responsabi- lidade e predeterminação. Aos mitos criticados, como vimos, nos Livros II e III, vêm, por conseguinte, substituir-se outros, do género dos que deverão servir para educar os habitantes da cidade ideal. São estes mitos construções que vêm aligeirar a demonstração racional, a que a discussão dialéctica se dedicara ao longo da obra. Os mitos platónicos, que, como já vimos, sãonumerosos, constituem um caso singular e têm dado matéria para múltiplos estudos. Não é aqui o lugar para seguir essa via. Quisemos apenas lembrar como o maior opositor dessa forma de transmissão do saber e experiência dos povos veio a ser o grande criador de alguns dos mais notáveis. Voltando, porém, à teoria alegorista, de que estávamos a falar, não podemos deixar de mencionar, ainda que muito brevemente, que ela perdurou, juntamente com a evemerista, até ao séc. XIX, embora já na centúria anterior, por influência de Herder, se tivesse começado a compreender que o mito era um objecto de investi- gação científica. E nesse estudo se vão empenhar as ciências que sucessivamente se vão constituindo, como a antropologia cultural, a psicologia, a sociologia. Nos finais do séc. XIX, surgem duas teorias que exerceram uma influência considerável: a do antagonismo entre espírito apolíneo e espírito dionisíaco, expresso por Nietzsche em Die Geburt der Tragödie, que, não obstante ter constituído, como lhe chamou M. Vogel, “um erro genial” continua, sobretudo entre nós, a ser considerada a forma certa de compreender a cultura grega; e a psicanálise de Freud, exposta na sua Traumdeutung, A segunda metade do séc. XX assiste — e resiste — à aplicação do estruturalismo aos mitos pela Escola de Paris, e por Lévi-Strauss em especial. O certo é que a grelha por ele construída para explicar o mito de Édipo causou tal celeuma entre os especialistas da Antiguidade que o autor preferiu passar a dedicar-se ao estudo de outros povos, nomeadamente dos Índios sul-americanos. 24 Estudos sobrE a grécia antiga Não podemos entrar em pormenores. Mas a verdade é que, se regressarmos ao desenho do labirinto, por onde começámos, poderemos concluir que é um símbolo que se aplica muito bem ao próprio mito. É que neste caso, ele oferece múltiplas entradas — tantas quantas as doutrinas que enumerámos, acrescidas das que deixámos de referir, como as dos filósofos modernos — Hegel, Cassirer, Heidegger15, principalmente — e muitas outras ainda. E o mais desanimador é que a saída tão-pouco parece ser uma só, como costuma suceder nas construções deste género. Nem pode sê-lo, porque no mito se reflecte a polifacetada variedade da experiência humana, não redutível a um modelo único. 15 Ficou célebre a discussão, realizada em Davos, entre estes dois últimos. O assunto pode ver-se em Miguel Baptista Pereira, “O regresso do mito no diálogo entre E. Cassirer e M. Heidegger”, Revista Filosófica de Coimbra 7 (1995) 3-66. o Jardim daS HESpéridES1* No Canto XIV da Ilíada, conhecido desde a Antiguidade por «O Dolo de Zeus», o deus supremo é seduzido por Hera, sua mulher, que lhe aparece adornada com os melhores dons de Afrodite, para o fazer esquecer a promessa feita a Tétis de mandar reveses aos Aqueus. Nesse famoso episódio, certamente dos mais desconcertantes para quem não tiver algumas luzes sobre a religião homérica, o par divino une- -se no cume do Monte Ida e a natureza em volta é cúmplice desse acto sagrado2: Por baixo deles, a terra divina fez crescer relva criada de fresco, lótus orvalhado, açafrão e jacinto, abundante e macio, que os protegia do solo. Foi aí que repousaram, envoltos numa nuvem, bela e dourada; gotas de orvalho caíam, fosforescentes. Esta hierogamia fica assim envolta nas forças cósmicas que num passado longínquo eram sua parte integrante. É uma remodelação de uma cena da união inicial entre Zeus e Hera, que a tradição situava em lugar indefinido, no jardim dos deuses3. Esse jardim dos deuses, dizia um genealogista que viveu talvez no séc. V a. C., Ferecides de Atenas4, era o local, junto de Atlas, onde Hera plantara os pomos de ouro que Gaia, a Terra, lhe dera como presente nupcial, onde ficaram à guarda das Hespérides e de uma serpente de grande porte. 1 * Publicado em Margem, Funchal (1957), 19-28. 2 Ilíada XIV. 346-351. Sobre o carácter burlesco que essa remodelação de um mito muito anti- go assumira, vide Walter Burkert, Mito e Mitologia (trad. port. policopiada, Faculdade de Letras de Coimbra, 1987), p.4l. 3 Schol. Eurípides, Hipólito. 749. 4 Este Ferecides veio a ser confundido com o seu homónimo Ferecides de Siros, mitólogo que terá vivido um século antes. Os fragmentos citados vêm em Jacoby, FGrH 2 F 16. http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0829-7_3 26 Estudos sobrE a grécia antiga Junto de Atlas, quer dizer para lá dos confins da Terra. As maçãs estão sim- bolicamente ligadas ao amor, e o facto de serem de ouro traduz a excelência do divino. Tudo o que é divino é longínquo, inacessível; por isso, o jardim tem de ficar além dos limites do mundo conhecido, seja para o lado dos Hiperbóreos, seja, com mais frequência, para as bandas do Ocidente, para lá do rio Oceano, que circunda toda a Terra, como já ensinava a Ilíada5. É um sítio diferente do Olimpo, a que a Odisseia retira, por uma vez, os velhos epítetos de «alvinitente», «nivoso», «de muitas escarpas», sob os quais se adivinha- vam as alturas abruptas da montanha desse nome na Tessália, caracterizando-o como um lugar de clima ideal6: ... onde se diz que fica dos deuses a eterna e segura mansão: não a abalam os ventos, nem a humedece a chuva; não se acerca dela a neve, mas um céu brilhante se abre sem nuvens. Uma luz alvinitente se derrama por cima. Aí se deleitam todo o tempo os deuses bem-aventurados. Esta definição pela negativa repete-se, com poucos dados mais, na descrição da Planura Elísia, à qual Menelau, por ser esposo de Helena, está destinado7: Mas os imortais te mandarão para a Planura Elísia, no extremo da terra, onde está o louro Radamanto. Aí se oferece aos homens uma vida mais fácil. Não neva, não há grande invernia, nem chuva. Mas as brisas do Zéfiro sopram sempre ligeiras, vindas do Oceano, para refrescar os homens. Aqui estamos perante um local não exclusivo dos deuses (pelo contrário, os homens são os seus beneficiários duas vezes referidos), com uma associação a Radamanto que aponta para a origem cretense do mito dos Campos Elísios. É uma das poucas formas de felicidade no além conhecidas pelos Gregos, que, a certa altura, irá fundir-se com outra, a das Ilhas dos Bem-Aventurados8. A Odisseia conhece outros mitos de belas terras longínquas, como a ilha de Calipso e os jardins de Alcínoo9, que descreve com aquele comprazimento no 5 Ilíada XVIII. 607-608. 6 Odisseia VI. 42-46. 7 Odisseia IV. 563-568. 8 Fundamentámos esta tese no nosso livro Concepções Homéricas de Felicidade no Além, de Homero a Platão (Coimbra, 1955). 9 Odisseia V. 43-48 e VII 112-132. 273. O jardim das Hespérides pormenor pictórico que é característico do estilo homérico, e com aquele encan- tamento pelas belezas naturais que é novidade do poema. É neste grupo dos mitos de terras longínquas, e não no dos referentes ao além feliz que, ao contrário de outros autores, entendemos que deve ser situado o do Jardim das Hespérides. A lonjura, de resto, para além de ser pressuposto da inacessibilidade, encontra- -se no próprio nome. Hespérides, ou ninfas da Hespéria e filhas de Héspero, quer dizer, ninfas do Ocidente. O local é longínquo, inacessível, mas, no entanto, de modo algum despovoa- do, pois o habitam as Hespérides, que os Poemas Homéricos desconhecem, mas que Hesíodo refere por três vezes na Teogonia, dizendo-as ora filhas da Noite (Th. 215- 216), ora de Keto (Th. 274-275), e próximas do lugar onde Atlas segura- va o vasto céu (Th. 518-520). Se o primeiro destes passos é o que fornece mais elementos descritivos: e as Hespérides, para além do ínclito Oceano, que têm cura dos formosos, áureos pomos e das árvores que dão o dourado fruto o segundo e o terceiro têm entre si de comum o epíteto das Ninfas, λιγύφωνοι «de vozes harmoniosas». A beleza da sua voz reflecte-se em dois trechos líricos de Eurí- pides10. «Canto harmonioso» era também o que a Odisseia atribuía às Sereias11, sem que, contudo, haja nada de comum entre umas e outras - ao contrário do que pensou Wilamowitz12- senão o fascínio da voz como forma de atracção pelo desconhecido. Tão-pouco nos parece, como àquele famoso helenista, que possa supor-se que eram aves13, porquanto já Hesíodo afirma que lhes compete cuidar dos áureos pomos. As Hespérides são seres míticos, já nesse mesmo poeta, que, segundo uma atribuição pouco segura, as teria nomeado numa obra perdida como Aigle, Eriteia e Hesperatusa, apelidos que se mantêm, com pequenas variantes, em Apolónio de Rodes14, já na época helenística. Este número de três, tão frequente em todos os povos, está, porém, longe de ser fixo. Pelo contrário, um estudo das muitas repre- sentações das Hespérides em pinturas de vasos mostra que varia com frequência 10 Hipp. 742-743, Ἑσπερίδων...ἀοιδῶν e H. F. 393 ὑμνωδούς τε κόρας. 11 Odisseia XII 44 e 183 (λιγυρῆι ἀοιδῆι, λιγυρὴν ἀοιδήν). 12 Der Glaube der Hellenen (Basel, 21956), I, p. 262. 13 Idem, ibidem, I, p. 262. 14 Sérvio ad Aen. IV. 484 = Hesiodi fr. dubia 360 Merkelbach-West. Alguns autores supuseram, sem razão suficiente, que os nomes deviam figurar na Teogonia, pelo que conjecturaram uma lacuna após o v. 216. Cf. M. L. West, ed., Hesiod: Theogony (Oxford, 1966), p. 228. Apolónio de Rodes, IV. 1427- 1428, chama-lhes Héspera, Eriteias e Aigle. 28 Estudos sobrE a grécia antiga e que tanto pode reduzir-se a uma como elevar-se até onze15, o que significa, a nosso ver, que elas eram imaginadas, como sucedia com qualquer grupo de Ninfas, como sendo de indefinida composição. As árvores constituem outro elemento desta paisagem mítica16. O seu fruto é de ouro, porque divino, como já vimos. A uma época racionalista, o séc. V a. C, viria a caber identificá-los com citrinos17. É curioso aqui o emprego do plural indefinidor, que irá esbater-se noutras des- crições do mesmo Jardim, limitando as árvores a uma, como sucede em Eurípides, Héracles Furioso 397. Devemos estar perante um daqueles casos em que a versão mais recente oculta a forma mais antiga do mito, se é lícito supor, como Nilsson, que se trata da árvore da vida, que já aparece no micénico anel de Nestor e que tem paralelos noutros povos antigos18. Tal equivale a dizer que alcançar estes pomos seria obter a imortalidade. Esta dedução pode também fazer-se, aliás, a partir da relação que o mito vem a manter com o ciclo de Héracles. O falar da entrada do herói neste mito obriga-nos a uma pequena digressão. Não para tentar sequer analisar esta complexa figura, sobre a qual o que é ac- tualmente considerado o melhor especialista da religião grega, o Prof. Walter Burkert, escreveu que «qualquer teoria sobre a origem grega de Hércules deve, portanto, permanecer especulativa, e reflectirá a visão geral do especialista acerca do mito»19. Referir-nos-emos tão-só à questão do cânone dos seus trabalhos, que é variável, como se sabe, e só aos poucos se estabeleceu. É tradicional supor-se que o número de doze tenha sido fixado pelo poe- ma épico perdido Heraclea, de Pisandro de Rodes, que viveu no séc. VII ou VI a. C. Outra inf luência que se aponta, e que não deve ter sido menor, é a da representação escultórica desses labores, feita nas métopas dos dois lados do Templo de Zeus em Olímpia, na primeira metade do séc. V a. C, e em grande parte conservada, a qual, ficando no ponto de concurso de multidões imensas por ocasião dos Jogos Olímpicos, não deixaria de impressionar os que acorriam 15 O respectivo inventário foi feito por Gerhard, depois por Heydeman e, mais recentemente, por Brommer. Veja-se o nosso livro Greek Vases in Portugal (Coimbra, 1962), onde estudámos o que pertence à colecção do Duque de Palmela, pp. 103-115. Pausânias V. 17.2 diz que no templo de Hera em Olímpia havia esculturas de cinco Hespérides. 16 Pomos de parte a outra interpretação antiga, que o grego possibilita, de supor que χρύσεα μῆλα são ovelhas de ouro (Agroitas 762 F 3, Diodoro Sículo IV. 27, Varrão Res Rusticae II. 1.6, Paléfaton 18 - citados por M. L. West, op. cit., p. 228. 17 Antífanes, fr. 58. Cf. M. L. West, op. cit., p. 228. 18 Cf. M. P. Nilsson, Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in Greek Religion (Lund, 21950), p. 44 e nota 37. 19 Structure and History in Greek Mythology and Ritual (Berkeley, 1979), p. 78. 293. O jardim das Hespérides àquela «parada da inteligência no local mais belo da Grécia», como lhe chamou o orador Lísias20. Ora a ida de Héracles ao extremo da Terra, para colher os pomos de ouro do Jardim das Hespérides, teria sido, segundo geralmente se supõe, o último dos seus trabalhos, como caminho, que era, para a imortalidade. Examinando de novo a questão, em livro que fez época, Nilsson coloca a formação do ciclo na época micénica, levando a sua origem até ao período minóico, com cujos ideais acerca do além condiz perfeitamente21. Os Gregos, porém, observa o mesmo especialista, que só concebiam o além como o reino das trevas de Hades, adicionaram-lhe um trabalho nessa esfera, que implicasse a conquista do domínio das sombras. Esse foi o de trazer o cão Cérbero à superfície da terra. Temos assim o modo como dois trabalhos simétricos, que acentuam a mesma ideia de imortalidade, entraram para o cânone sem conflito aparente. Pelo que toca ao mito que vimos estudando, ele enquadrava-se perfeitamen- te no esquema de procura, luta e vitória delineado por Propp. Para sublinhar a dificuldade da vitória, havia um oponente terrível na figura de uma serpente que Hesíodo já conhecia, mas não nomeara, dizendo só que «nos magnos limites guarda os pomos todos de ouro»22. Logo, a conquista dos pomos dependia do aniquilamento da serpente. Este episódio da história, já referido no épico Paniasis, figura em muitos autores, e foi ainda utilizado pelo tardio Apolónio de Rodes, que imagina os Argonautas a passar pelo local no dia seguinte àquele em que o herói matara a serpente Ládon e, em consequência, as Hespérides «com a loura cabeça entre as brancas mãos, lançavam agudos gemidos»23. Os vasos ilustrativos do mito ensinam-nos que houvera, entretanto, uma curio- sa variante da lenda: no decurso do séc. IV a. C.: ao combate sucedera uma cena pacífica, em que Héracles é representado em amena conversa com as Ninfas, que colhem os frutos, enquanto a serpente se mantém enroscada no tronco da árvore. Segundo outra variante ainda, que vai cruzar-se com a anterior, por vezes de forma contraditória, não é o «Grão Tebano» que atravessa o Oceano e vai colher as maçãs, mas Atlas, que Héracles substitui na tarefa de segurar o mundo, enquanto o gigante efectua aquele serviço. É essa versão que muitos autores seguem, bem como o escultor da correspondente métopa de Olímpia. Uma terceira variante, que relaciona esta aventura com a do gado de Ge- rião, estava talvez presente no já mencionado texto de Ferecides24, e encontra 20 Discurso em Olímpia 2. 21 Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in Greek Religion, cit., p. 628. 22 Teogonia 334-335. 23 Epopeia dos Argonautas IV. 1396-1449. Os versos traduzidos são 1406-1407. 24 FGrH 3 F 18. 30 Estudos sobrE a grécia antiga confirmação num dos novos fragmentos da Gerioneida de Estesícoro, o que recua a lenda, pelo menos, para o séc. VII-VI a. C. Efectivamente, o fr. 56 B Page, segundo a reconstituição de Lobel, deverá entender-se deste modo: passadas as ondas do mar profundo, «chegaram à tão formosa ilha onde as Hespérides possuem uma mansão toda de oiro». A este propósito, observa Page25 não ser clara nem a identidade dos viajantes, nem a ligação da ida à ilha das Hespérides com a Gerioneida. Mas, de qualquer modo, também a procura do gado de Gerião se fazia atravessando o Oceano, esse rio de correntes profundas que balizava o que se passasse para além do horizonte de experiência dos mortais. Estas lendas confluem, com grande riqueza de pormenor, nas duas mais belas descrições que temos do jardim das Hespérides, ambas de Eurípides, e ambas pertencentes a odes corais. Situa-se a mais antiga no estásimo segundo do Hipólito, após a saída deFedra a caminho do suicídio. As mulheres de Trezeno, que formam o coro, sentem aproximar-se o desfecho fatal para a sua senhora e, como tantas vezes sucede na obra do trágico de Salamina, procuram consolar-se com a evasão. Valerá a pena recordar na íntegra a primeira estrofe e antístrofe26: Quem me dera estar nas profundezas da terra inacessíveis, ou, qual pássaro alado, que um deus me colocasse entre os bandos que voam! Quem me dera elevar-me sobre a vaga marinha do Adriático, e a água das margens do Erídano, lá onde as jovens desventuradas derramam nas ondas purpúreas as suas lágrimas brilhantes de âmbar, chorando de pena por Faetonte! Ah! Se eu chegasse às margens onde crescem os pomos das Hespérides melodiosas, onde o senhor do mar purpúreo deixa de apartar o caminho aos mareantes, marcando os limites sagrados do céu que Atlas segura, onde correm nascentes de ambrósia ante o leito nupcial de Zeus, 25 No aparato crítico da sua antologia Lyrica Graeca Selecta (Oxford, 1968), ad locum. 26 Eurípides, Hipólito 732-751. 313. O jardim das Hespérides onde a terra divina, geradora de vida, faz crescer a beatitude dos deuses! No Héracles Furioso, o coro de anciãos de Tebas, desesperando do regresso do magno herói, que desapareceu há muito nas trevas, entoa um treno que é ao mesmo tempo um encómio, num canto que é o mais longo de Eurípides, com invulgares particularidades métricas e formais. Os doze trabalhos são aí sucessivamente evocados. É assim que, depois do leão de Nemeía, dos Centauros, da corça, dos cavalos de Diomedes e de Cicnos, vem o Jardim das Hespérides, logo seguido de um menos conhecido, que parece ser o de Tritão, e aproximado do de Atlas27: Chegou até às donzelas canoras, à hespérica mansão, para colher por sua mão o áureo fruto entre a folhagem da macieira, depois de matar a serpente de fulvo dorso, guardião em volta enroscado, que barrava o caminho. Desceu às profundezas marinhas, aos remos dos mortais um mar tranquilo oferecendo. Lança os braços no meio da celeste abóbada, chegado à mansão de Atlas, e segurou firme pela sua força dos deuses a sidérea morada. Em ambas as odes a cena está localizada nos confins do mundo, perto do sí- tio onde Atlas segura a esfera celeste. Presente, nas duas, o tópico de colher as maçãs de ouro. Mais pormenorizada a primeira, acrescenta ao quadro as fontes de ambrósia, isto é, «que correm sempre», «divinas» ou «imortais». A existência de águas correntes num jardim é um dado indispensável à sua beleza, sem que precisemos de recorrer à simbólica desse elemento em Bachelard... Outros textos poderiam aduzir-se, que tendiam a encontrar um suporte geo- gráfico para a terra das Hespérides. Como já vimos, o próprio nome apontava para a localização a Ocidente. E, porque assim era, a Hespéria foi sempre designando 27 Eurípides, Héracles Furioso 394-408. 32 Estudos sobrE a grécia antiga as paragens mais longínquas nessa direcção, e, consequentemente, movendo-se cada vez mais para oeste. O processo é observável num breve percurso através de alguns autores clássicos. Assim, no séc. VII-VI a. C, Mimnermo delimitou deste modo o itinerário do Sol, referin- do o extremo oriente e o extremo ocidente do universo geográfico da época arcaica28: Leva-o através das ondas o leito côncavo e encantador, forjado pelas mãos de Hefestos, ornado de ouro e alado; vai célere, a dormir sobre as águas, desde as Hespérides à terra dos Etíopes, onde estão o carro veloz e os cavalos, até chegar a Aurora, filha da manhã. Então sobe para o seu carro o filho de Hipérion. No séc. V a. C, um fragmento de Prometeu Libertado parece supor um percurso semelhante, embora mais alargado29: dos caminhos que vão do Cáucaso até às Hespérides. As descrições de terras eram um dos gostos de Ésquilo, se é que a trilogia a que pertenciam os Prometeus é da sua autoria. Entre um e outro poeta viveu Scylax, o logógrafo que por ordem de Dario escreveu um Périplo de que resta uma versão compilada no séc. IV a. C. Essa obra colocaria o Jardim das Hespérides num vale próximo de Bengazi, onde, depois de muitas terras desérticas, aparece, segundo F. Chamoux, «uma vegetação africana que o resto da Cirenaica desconhece em absoluto, e o fundo húmido das colinas colmatadas, que não faltam neste jardim calcário, abriga jardins cuja fertilidade pa- rece mais maravilhosa ainda por contraste com a secura da região circundante»30. Os poetas latinos tendem a chamar Hespéria à Península Itálica. Assim, por exemplo, num fragmento de Énio31, que soa de novo na Eneida, e por duas vezes32: Há um lugar, que os Gregos cognominam de Hespéria, terra antiga, poderosa em armas e na riqueza dos campos. 28 Fr. 12 West. 29 Fr. 326 Mette. Apud Jehan Desanges, ed., Pline: Histoire Naturelle, Livre V, lère partie (Paris, 1980), pp. 359-360. 30 Apud Jehan Desanges, op. cit., p. 360. 31 «Há um lugar que os mortais chamam Hespéria» (Fr. 20 Skutsch). 32 I. 530-533- III. 163-166. Em IV. 480-488 há uma utilização do mito das Hespérides, com intro- dução da figura de uma maga, guardiã do templo. 333. O jardim das Hespérides Cultivam-no os varões Enótrios; agora, é fama, os pósteros lhe chamaram raça itálica, do nome do seu chefe. Esta Itália é vista como ocidente em relação à Grécia, referente constante, explícito ou não, da Eneida. Mas já o contemporâneo e grande amigo de Virgílio, Horácio, se serve indiferentemente de Hespéria para designar a Península Itálica ou a Hispânica, que distingue chamando-lhe ultima33. Tornaremos a este ponto. No século seguinte, Plínio refere numerosas vezes as Hespérides, os seus jardins, as suas ilhas34, retomando a localização norte-africana, embora com variantes: em V. 31 coloca os jardins perto de Bengazi; em XIX. 63, na Mauritânia. Outros autores poderiam citar-se, mas este merece relevo especial, por ter sido uma das grandes obras de referência do Renascimento. Por isso mesmo se torna interessante, segundo julgamos, seguir o processo da localização do mito depois do incomparável alargamento de horizontes geo- gráficos trazido pelos Descobrimentos. O que vemos é que tanto João de Barros35 como Duarte Pacheco Pereira36 as levam para as ilhas fronteiras ao Cabo Verde. E o autor do Esmeraldo de Situ Orbis não hesita em se fundamentar num dos passos de Plínio há pouco citados para apoiar a sua identificação37: Pois já temos escrito do Cabo Verde e como se antiguamente se chamou Aspérido Promontório, assi devemos escrever das Ilhas que cem léguas em mar dele estão, as quais também naquela antiguidade foram chamadas As- pérides segundo diz Plínio, Da Natural História, no seu livro sexto, capítulo trinta e um, e agora a principal delas chamamos Ilha de São Tiago. Esta preocupação de se escudar nos autores clássicos para legitimar a existência de novas terras levava a curiosas flutuações, conforme julgamos ter demonstra- do para o caso de Taprobana, que ora era Ceilão, ora Samatra, mesmo em passos diversos do texto camoniano38. É precisamente o que se verifica quanto ao mito em análise. Assim, na Elegia II, que, por ser dedicada a D. António de Noronha, é datável de antes de Abril de 33 Odes 1.36.4 (Hesperia.... ab ultima). Em Odes III.6.8. e IV.5.38, a referência é à Itália. 34 E. g., V. 3-4, 19, 31, 41, 49, 63; VI. 201; XXXVII.38. 35 I.3.8. Em I,2.1, porém, confunde-as com as Ilhas Afortunadas. 36 Esmeraldo de Situ Orbis, cap. 28. Seguimos a edição de Rafael Eduardo de Azevedo Basto (Lisboa, 1892), modernizando a ortografia e a pontuação. 37 Op. cit., cap. 28. 38 Vide o nosso artigo «Sobre o texto da Ode ao Conde do Redondo», Revista Camoniana (São Paulo), II.ª Série, Vol. VI (1984-1985) 107-128, agora incluído na colectânea Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa, 1988) 83-108. 34 Estudos sobrE a grécia antiga 1553, Camões segue a tradição mauritânica, ao descrever as suas deambulações, quando estava em Ceuta39: Subo-me ao monte que Hércules Tebano do altíssimo Calpe dividiu, dando caminho
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