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Sequências Didáticas para ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa1 Roxane Rojo IEL/UNICAMP [...] As sequências didáticas se apresentam como um material flexível, que se esgota em si mesmo em uma relativamente breve unidade de ensino (algumas aulas) que deve ser adaptada pelo professor a suas necessidades de ensino e às possibilidades de aprendizagem dos alunos, como querem os PCN. Além disso, esgotando-se em si mesma, isto é, examinando apenas um ou poucos objetos de ensino, sem propor uma progressão entre esses objetos – o que ficaria a cargo do professor, da escola ou, mais raramente, da rede de ensino – pode ser mais facilmente combinada com outros materiais e conteúdos, por ser modular. E o que são as sequências didáticas? As sequências didáticas (doravante, SD) são um dispositivo de organização didática de planos de ensino; são uma ferramenta da engenharia didática 2 (DE PIETRO; SCHNEUWLY, 2002). Elas são o resultado de um processo de transposição didática que, procedendo à modelização didática de um dado objeto de ensino, transforma-o em saber ensinável, o que possibilita o planejamento de uma unidade de ensino modular. A transposição didática (CHEVALLARD, 1985) é o movimento pelo qual passamos do saber teórico (aquele que os cientistas e teóricos elaboram) para o saber a ensinar (planejamento e materiais didáticos) e, através deste, ao saber ensinado (aquele que realmente acontece em sala de aula). Os diagramas abaixo representam o processo. 1 Fragmento adaptado do texto de ROJO, R. H. R. O papel dos materiais didáticos no ensino de línguas (materna e estrangeira). In MOITA-LOPES, L. P. da (Org.). O estado da arte da Linguística Aplicada Brasileira. A sair, no prelo. 2A noção de engenharia didática emergiu na didática das matemáticas no início dos anos 80. Tratava- se de denominar uma forma de trabalho didático: aquela que se compara ao trabalho do engenheiro que, para realizar um dado projeto, apoia-se sobre os conhecimentos científicos de seu domínio, aceita submeter-se a um controle de tipo científico, mas, ao mesmo tempo, vê-se obrigado a trabalhar sobre objetos muito mais complexos que os depurados objetos da ciência e, portanto, a lidar de maneira prática, com todos os meios de que dispõe, com problemas que a ciência não quer ou não pode encarar. (ARTIGUE, 1990, p. 282, tradução minha). A modelização didática é o processo pelo qual, na transposição didática, passamos do saber teórico ao saber a ensinar. Ela é a ferramenta da transposição didática que permite que planejemos unidades de ensino que seguem um modelo didático do objeto de ensino – no nosso caso, gêneros de discurso – e que são otimizadas, nesta abordagem, em SDs. De acordo com De Pietro e Schneuwly (2002, p. 47), ummodelo didático é o resultado de um trabalho de síntese, mais ou menos explícito, que parte de quatro fontes principais, que não são, de forma nenhuma, desligadas umas das outras: • as descrições linguísticas e semióticas de textos em gêneros discursivos capazes de evidenciar as características desses gêneros, tanto em termos de forma de composição como de estilo (teorias textuais, teorias linguísticas no sentido amplo – semânticas, sintáticas, lexicais, fonológicas etc., teorias semióticas sobre diferentes linguagens) – essa referência é altamente seletiva, em função de critérios nem sempre evidentes, mas que estão provavelmente ligados a representações implícitas do que pode ser ensinado (o que é ensinável); • os gêneros semelhantes já ensinados e que podem funcionar como ferramentas de aprendizagem para o novo objeto de ensino (o gênero em questão) – referência em parte pré-teórica e relacionada ao senso comum e à experiência vivida; • as capacidades de linguagem dos alunos para o trabalho com o gênero em leitura e produção de textos – referência ligada tanto ao conhecimento da aprendizagem dos alunos quanto às pesquisas em psicologia da linguagem e psicolinguística; e • os conhecimentos implícitos das práticas didáticas regulares (tipos de objetos comumente ensinados; possibilidades e práticas regulares de ensino de certas Teoria Planeja mento Saber prático Aula Saber teórico Profes sor Saber prático Aluno dimensões do gênero etc.) – novamente uma referência em parte pré-teórica e relacionada ao senso comum e à experiência vivida. Portanto, amodelização didática envolve tanto uma descrição e um conhecimento sobre o objeto de ensino, a partir da teoria e dos saberes práticos3, como aavaliação formativa ou diagnóstica dos saberes dos alunos sobre o objeto de ensino – o gênero em questão – e de suas capacidades de linguagem para ler e produzir textos nesses gêneros, assim como das práticas de ensino relacionadas a este objeto já efetivadas. Assim, para um autor de material didático ou um professor realizar a modelização didática de um gênero discursivo, este terá de se perguntar: • O que se sabe sobre o objeto de ensino, isto é, sobre o gênero em questão? • O que se sabe sobre o que o aluno específico a quem se dirige o ensino já sabe sobre o gênero em questão? Quais suas capacidades de leitura e produção de textos desse gênero? • Que outras atividades de ensino anteriores prepararam esse aluno para as novas aprendizagens? Os diagramas abaixo representam o processo. 3É sempre preciso lembrar que, muitas vezes, não há saberes teóricos disponíveis, no campo dos estudos linguísticos (linguística textual, análises de discurso, teorias de enunciação, retórica, dentre outros) para descrever as características de um conjunto de textos em um gênero. Nem sempre a ciência os valorizou o suficiente para descrevê-los. É o que acontece com grande parte dos gêneros orais e com os gêneros chamados por García-Canclini (2008[1989]) de “impuros”, como as HQ, os videoclipes etc. Nesses casos, temos de recorrer aos saberes práticos de seus produtores e receptores críticos, que, aliás, são sempre úteis, mesmo quando há conhecimento de natureza científica disponível. Objeto de ensino Avaliaçã o formativ a Objeto de ensino Alunos Saber teórico Profes sor Saber prático Alunos Feita a modelização didática do objeto de ensino – no nosso caso, o gênero – o modelo didático obtido é, em seguida, operacionalizado em uma sequência didática (SD) que preveja: • situações de leitura, análise e produção de textos, cuja configuração depende, entre outras coisas, do modelo didático de referência, mas também de teorias mais gerais de leitura e produção de textos, que dizem respeito aos elementos necessários para se criar boas situações de produção; • os objetivos de aprendizagem visados nos diferentes módulos de ensino, sendo que um módulo se define como um espaço-problema relativamente homogêneo, trabalhado por meio de tarefas diversas; e • as tarefas ou atividades propostas aos alunos para atingirem esses objetivos (DE PIETRO; SCHNEUWLY, 2002, p. 48). Uma sequência didática(SD) é, pois, um conjunto de atividades escolares planejadas e organizadas, de maneira sistemática4, em torno de um objeto de ensino (gêneros discursivos, no caso do ensino de Português como língua materna5). Como vimos, o procedimento inclui,necessariamente, possibilidades de avaliação formativa, isto é, de regulação dos processos de ensino e de aprendizagem. Além disso, insere-se em um projeto maior que motive os alunos a produzirem textos ou a tomarem a palavra em situações que se aproximem das que têm lugar fora da escola. Finalmente, as SD maximizam, pela diversificação das atividades e dos exercícios, as chances de cada aluno se apropriar dos instrumentos e noções propostos, respondendo, assim, às exigências de diferenciação do ensino. A partir desses princípios, uma SD se organiza conforme o diagrama a seguir, retirado de Dolz, Noverraz e Schneuwly(2004[2001], p. 98). 4Esse conjunto de atividades não necessariamente precisa se configurar como um material didático impresso. Ele pode consistir simplesmente no conjunto de atividades desenvolvidas pelo professor, com o apoio de impressos diversos (textos, instruções) configurados em suportes diversos (folhas, fichários, pastas, portfólios, xeróx de textos avulsos, mídias digitais etc.). No Brasil, entretanto, referimo-nos mais frequentemente a SDs como materiais didáticos impressos. 5O trabalho de Ferreira (2001) mostra que os LD de Inglês como língua adicional também começam a abrir espaço para a perspectiva baseada em gêneros de texto/discurso. Ela se inicia, pois, pela apresentação da situação, quevisa a expor aos alunos os objetivos da sequência de ensino, norteados por um projeto de produção de circulação efetiva e situada, mas que somente será realizado "verdadeiramente" na produção final. A apresentação da situação é, portanto, o momento em que a turma constrói uma representação da situação discursiva e da atividade de linguagem a ser executada. Ao mesmo tempo, a apresentação da situação os prepara para a produção inicial6, que pode ser considerada como uma primeira tentativa de realização do gênero que será, em seguida, trabalhado nos módulos. Em segundo lugar, a apresentação da situação visa a preparar os conteúdos (temáticos)dos textos que serão produzidos. Na apresentação da situação, é preciso que os alunos percebam a importância desses conteúdos e saibam com quais vão trabalhar e como buscá-los.Neste momento também, aspectos de conhecimento comum do(s) gênero(s)/esfera(s) serão discutidos. A fase inicial da SD permite, portanto, fornecer aos alunos todas informações necessárias para que conheçam o projeto discursivo visado e a aprendizagem de linguagem a que está relacionado. A ela se segue a produção inicial. No momento da produção inicial, os alunos elaboram um primeiro texto do gênero em questão (ou leem reflexivamente um conjunto de textos do gênero, como vimos) e, assim, revelam para si mesmos e para o professor as representações que têm desta atividade. Logo, a primeira produção é a realização prática de uma avaliação formativa e, ao mesmo tempo, enseja as primeiras aprendizagens. Para o professor, estas primeiras produções constituem momentos privilegiados de observação, que permitem refinar a SD, modulá-la e adaptá-la de maneira mais 6Que pode ser também uma atividade de leitura reflexiva de textos do gênero, por exemplo. O objetivo é sempre a avaliação diagnóstica ou formativa. precisa às capacidades reais dos alunos de uma dada turma. Permite-lhe (re)compor e/ou selecionar os módulos de ensino. Nos módulos, trata-se de trabalhar os problemas que apareceram na primeira produção/leitura e de dar aos alunos os instrumentos necessários para superá-los. O objeto de ensino (no caso, a leitura e produção oral ou escrita de textos no gênero) é, de uma certa maneira, decomposto, para abordar, um a um e separadamente, seus diversos elementos. Portanto, a composição dos módulos deve responder às questões: • Que aspectos do(s) gênero(s) e de sua leitura/produção abordar? • Como construir um módulo para trabalhar um aspecto particular? Por meio de quais textos, exercícios e atividades? Ao final dos módulos selecionados e compostos, que são em número variado, mas de cujo número depende a extensão em número de aulas da SD, virá o(a) projeto/produção final. A produção/projeto final dá aos alunos a possibilidade de colocarem em prática as noções e instrumentos elaborados separadamente nos módulos e permite também ao professor realizar uma avaliação somativa. É extremamente importante que essa produção final – individual ou colaborativa – seja colocada em efetiva circulação extraescolar. Para tanto, as ferramentas digitais, tais como redes sociais e blogs, são de muito proveito. [...] Referências Bibliográficas CHEVALLARD, Y. La transpositiondidactique. Du savoirsavantausavoirenseigné. Grenoble: La PenséeSauvage, 1985. DE PIETRO, J.-F.; SCHNEUWLY, B. Le modèle didactique du genre: Un concept de l’ingénierie didactique. Bulletin de THEODILE, 2, p. 45-67, 2002. DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: Apresentação de um procedimento. In: DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004[2001]. p. 95-128. Tradução e organização de R. H. R. Rojo e G. S. Cordeiro. ROJO, R. H. R. O papel dos materiais didáticos no ensino de línguas (materna e estrangeira). In MOITA-LOPES, L. P. da (Org.). O estado da arte da Linguística Aplicada Brasileira. A sair, no prelo.