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217216 Teoria do Fato Punível Capítulo 9 exclui a culpabilidade70. A questão poderia ser assim formulada: se o ordenamento jurídico impõe ao garante comportamento conforme ao dever jurídico, então a inexigibilidade exclui o próprio tipo de injusto; se o ordenamento jurídico impõe ao garante comportamento ade- quado às suas condições pessoais, então a inexigibilidade exclui apenas a culpabilidade71. 70 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 59, VIII, 3, p. 635. 71 Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 9, IV, 3, n. 102-103, p. 170. No Brasil, TAVARES, As controvérsias acerca dos crimes omissivos, 1996, p. 100-103, considera a inexigibilidade como cláusula geral de exculpação nos delitos de omissão de ação. Capítulo 10 AntijuridicidAde e justificAção I. Teoria da antijuridicidade 1. Introdução Juridicidade e antijuridicidade são os conceitos mais gerais do ordenamento jurídico porque indicam conformidade e contradição ao Direito, respectivamente. Em Direito Penal, a antijuridicidade é representada pelo tipo de injusto, como contradição entre a ação humana (realizada ou omitida) e o ordenamento jurídico no conjunto de suas proibições e permissões: as proibições são os tipos legais, como descrição de ações realizadas ou omitidas, que indicam os elementos positivos do tipo de injusto; as permissões são as justificações legais e supralegais, como situações concretas que excluem as proibições – portanto, definem os elementos negativos do tipo de injusto. O conceito de antijuridicidade precisa ser examinado sob dois pontos de vista: primeiro, em relação ao conceito de tipicidade; segundo, em relação ao conceito de injusto. 1.1. Antijuridicidade e tipicidade. A relação entre antijuridicidade e tipicidade depende da natureza bipartida ou tripartida do conceito de fato punível: a) para o conceito bipartido de fato punível, tipicidade e antijuridicidade constituem o conceito unitário do tipo de injusto: o tipo representa os elementos positivos, as justificações representam os elementos negativos do tipo de injusto – logo, uma ação justificada é uma ação atípica porque os elementos negativos excluem os ele mentos positivos do tipo de injusto; b) para o conceito tripartido 218 219 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação de fato punível, tipicidade e antijuridicidade são conceitos autônomos na categoria do tipo de injusto, em que se relacionam como regra e exceção: a tipicidade da ação indica a antijuridicidade do fato (regra), as justificações excluem a antijuridicidade do fato (exceção)1 – logo, toda ação típica é antijurídica, exceto as ações típicas justificadas. Em regra, o legislador descreve nos tipos legais condutas con- trárias ao Direito, ou seja, ações ou omissões de ação antijurídicas, excepcionalmente permitidas nas situações concretas denominadas justificações, como a legítima defesa, o estado de necessidade etc. Inde- pendentemente da posição sobre a estrutura bipartida ou tripartida do conceito de crime, a tipicidade parece constituir a própria ratio essendi da antijuridicidade – e não simples ratio cognoscendi da antijuridici- dade. Por essa razão, a antijuridicidade da ação típica é determinada por um critério negativo: ausência de justificação. A praticidade do critério explica sua adoção generalizada: ausente justificação, está caracterizada a antijuridicidade; presente justificação, está excluída a antijuridicidade2. 1.2. Antijuridicidade e injusto. A relação da antijuridicidade com o injusto é uma relação de diferenciação no mesmo estágio do fato punível: a antijuridicidade representa uma qualidade invariável da ação típica, expressa na contradição entre a ação ou omissão de ação e o conjunto das proibições e permissões do ordenamento jurídico; ao contrário, o injusto representa a própria ação típica e antijurídica concreta, como grandeza variável ou graduável da realização não justificada de comportamentos típicos. Os conceitos de antijuridi- cidade (invariável) e de injusto (variável) estão na base da distinção entre antijuridicidade formal e antijuridicidade material: a antijuri- dicidade formal exprime a contradição do comportamento concreto com o conjunto das proibições e permissões do ordenamento jurí- 1 Ver, entre outros, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 69. 2 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 49. dico, como qualidade invariável de toda ação típica e antijurídica; a antijuridicidade material exprime a lesão injusta do bem jurídico, como dimensão graduável do tipo de injusto. Por exemplo, furto de coisa de pequeno valor possui a mesma antijuridicidade formal de furto de coisa de grande valor, assim como a realização do tipo básico de um crime tem a mesma antijuridicidade formal de suas variações privilegiadas ou qualificadas porque são ações igualmente contrárias ao Direito; mas a extensão variável da lesão de bens jurídicos em cada uma dessas hipóteses determina diferentes conteúdos de injusto e, por- tanto, diversas antijuridicidades materiais: por exemplo, furto de coisa de grande valor tem maior conteúdo de injusto que furto de coisa de pequeno valor; tipos qualificados possuem conteúdo de injusto maior que tipos básicos ou privilegiados etc. A distinção é importante por várias razões: primeiro, indica diferenças conceituais entre antijuridi- cidade (qualidade invariável que existe ou não existe na ação típica) e injusto (conteúdo variável da lesão do bem jurídico)3; segundo, por suas consequências práticas na aplicação da lei penal: a antijuridicidade abstrata (mera literalidade da lei) pode ser desconsiderada em situações específicas de inexistência ou de insuficiência do injusto concreto, como ocorre nas hipóteses de ações socialmente adequadas e, de modo especial, nos casos de delitos de bagatela abrangidos pelo princípio da insignificância – por exemplo, lesões corporais mínimas (arranhões, equimoses etc.), furto de coisas de pequeno valor, injúrias no âmbito familiar, jogos de azar com valores módicos, doações ou presentes natalinos a funcionários públicos, como carteiros, lixeiros etc.4. 1.3. Antijuridicidade e vitimologia. Além disso, modernas pesquisas vitimológicas destacam a contribuição ou influência da vítima para o fato criminoso, indicando hipóteses em que o comportamento da vítima pode descaracterizar a tipicidade ou, 3 Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 70. 4 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 4-8, p. 503-504. 220 221 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação no setor da antijuridicidade, reduzir o conteúdo de injusto da antijuridicidade material, ou excluir a própria antijuridicidade formal da ação típica5. Nessa linha, SCHUNEMANN6 destaca a perspectiva vitimológica do legislador e da jurisprudência para definir e interpretar tipos legais e hipóteses de redução do injusto ou de exclusão da antijuridicidade do fato típico: por exemplo, a tipicidade da falsificação de moeda exige fabricação de dinheiro com aparência de verdadeiro e, portanto, com potencial de viti- mização na circulação financeira, inexistente em casos de falsifica- ções grosseiras; o consentimento real do ofendido exclui a própria necessidade de proteção do bem jurídico, como é o caso de lesões corporais em cirurgias, esportes etc.; a autoexposição a perigo ou a exposição consentida a perigo de outrem impedem a atribuição do tipo objetivo; enfim, a provocação do agredido pode excluir ou, de qualquer modo, influenciar a legítima defesa contra o agressor etc.7. 1.4. Unidade e áreas neutras do Direito. Os conceitos opostos de juridicidade e de antijuridicidade relacionam-se a alguns temas gerais, como a questão da unidade do ordenamento jurídico e o problema da existência de áreas livres ou neutras no Direito. A unidade do ordenamento jurídico parece constituir axioma do pensamento jurídico moderno: a regra de que a juridicidade ou antijuridicidade de qualquer ação é válida para o Direito,em geral, excluiria hipóteses de antijuridicidades específicas, eliminando, as- sim, a possibilidade de contradições no Direito. Entretanto, autores mais antigos, como ENGISCH8, indicam que essa tese não estaria definitivamente demonstrada, e autores contemporâneos, como 5 Ver HASSEMER, Rucksichten auf das Verbrechensopfer, Klug-FS, 1983, p. 217. 6 SCHUNEMANN, Der Strafrechtliche Schutz von Privatgeheimnissen, ZStW, 90 (1978), p. 11; do mesmo, Methodologische Prolegomena zur Rechtsfindung im Besonderen Teil des Strafrechts, Bockelmann-FS, 1979, p. 117. 7 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 17, p. 508. 8 ENGISCH, Die Einheit der Rechtsordnung, 1935. GUNTHER9, por exemplo, mostram a coexistência contraditória de juridicidade e de antijuridicidade na mesma ação: o consentimento presumido de adolescente relativamente incapaz na realização de dano em objeto de sua propriedade não exclui a antijuridicidade civil e, portanto, obriga a indenizar, mas pode justificar a ação típica de dano e, portanto, excluir a antijuridicidade penal10. A existência de áreas neutras ou livres em relação à juridicidade/ antijuridicidade também é controvertida: a teoria dominante nega a existência de áreas jurídicas livres no âmbito das definições legais de crimes porque todo comportamento típico é ou antijurídico ou justi- ficado, mas estudos recentes indicam a possibilidade de uma terceira hipótese, em conflitos relacionados com situações de perigo comum ou de colisão de deveres11, por exemplo: o alpinista da parte superior corta a extensão inferior da corda, precipitando o companheiro no abismo, porque a mesma é incapaz de sustentar ambos ao mesmo tempo; o pai somente pode salvar um dos dois filhos que, simultaneamente, estão se afogando, morrendo o outro. A teoria de áreas livres ou neutras no Direito teria como funda- mento o modelo de democracia parlamentar, cuja liberdade do cidadão é originária, e não concessão do Estado: o povo é o poder constituinte do Estado, estruturado para o exercício das funções de proteção e de garantia da liberdade, da paz e do bem-estar geral12. Nessa perspectiva, pode-se reconhecer que certas áreas pré-típicas constitui riam espaços jurídicos livres, mas no âmbito do injusto não existem áreas jurídicas livres porque o comportamento típico é valorado, alternativamente, 9 GUNTHER, Strafrechtswidrigkeit und Strafunrechtsausschluss, 1983. 10 Ver, para mais detalhes, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 30-36, p. 513-516. 11 Nesse sentido, ARTHUR KAUFMANN, Rechtsfreier Raum und eigenverantwortliche Entscheidung – Dargestellt am Problem des Schwangerschaftsabbruchs, Maurach-FS, 1972, p. 327. No Brasil, ver MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (parte geral), 1998, v. I, t. II, p. 877-878. 12 Assim, HIRSCH, Strafrecht und rechtsfreier Raum, Bockelmann-FS, 1979, p. 89; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 26, p. 511. 222 223 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação (a) ou como justificado, (b) ou como antijurídico mas exculpado, (c) ou finalmente como antijurídico e culpável13. 2. Fundamento das justificações A sistematização das justificações é dificultada por dois problemas correlacionados: a) a multiplicidade dos fundamentos justificantes, representada por justificações escritas e não escritas; b) a diversidade dos setores do ordenamento jurídico de origem das justificações, não limitadas pelo Direito Penal. Existem hoje dois grupos principais de teorias sobre o fundamento das justificações: as teorias monistas e as teorias pluralistas. As teorias monistas apresentam a finalidade como princípio unitário fundamentador das justificações, sob diversas modalidades: a) a teoria do meio adequado para fins reconhecidos como justos pelo legislador, de LISZT14; b) a teoria da maior utilidade do que dano, de SAUER15; c) a teoria da ponderação do valor, de NOLL16; d) a teoria do interesse preponderante, de MEZGER17. As modernas teorias pluralistas identificam o fundamento das justificações em certos princípios sociais subjacentes: na legítima defesa, o princípio da proteção individual garante a possibilidade de fazer a defesa necessária, e o princípio da afirmação do direito autoriza a defesa mesmo na hipótese de meios alternativos de proteção, como desviar a agressão ou chamar a polícia18; no estado de ne cessidade 13 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 27-29, p. 512-513. 14 LISZT, Strafrecht, 1919, § 3. 15 SAUER, Allgemeine Strafrechtlehre, 1955. 16 NOLL, Tatbestand und Rechtswidrigkeit: die Wertabwägung als Prinzip der Rechtfertigung, ZstW, 77 (1965), p. 1. 17 MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 240 s. 18 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 41, p. 518. defensivo, os princípios da proteção e da proporcionalidade, e no estado de necessidade agressivo, os princípios da avaliação de bens e da autonomia19; no consentimento do titular do bem jurídico, o princípio da ausência de interesse na proteção do bem jurídico20 etc. 3. Conhecimento e erro nas justificações A necessidade de elementos subjetivos nas justificações de ações típicas dolosas (e na imprudência consciente), negada pela dogmática causal e seu conceito objetivo de injusto da primeira metade do século XX – e, ainda hoje, por alguns autores isolados, como SPENDEL21 –, é reconhecida pela literatura e jurisprudência contemporâneas, que discute apenas a natureza desses elementos22. As ações justificadas são constituídas de elementos subjetivos e objetivos como qualquer outra ação típica: se a unidade subjetiva e objetiva da ação determina a estrutura subjetiva e objetiva da ação típica, então a ação justificada contém, necessariamente, elementos subje- tivos e objetivos23. Existe, assim, como refere HAFT24, uma relação de simetria entre tipos legais, ou tipos de proibição, e justificações, ou tipos de permissão. Como as justificações excluem não somente o desvalor do resultado, mas o próprio desvalor da ação típica, a au- sência de elementos subjetivos nas justificações significa dolo não justificado de realização do injusto25: a mulher que, pensando atirar 19 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 41, p. 518-519. 20 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 79. 21 SPENDEL, Gegen den Verteidigungswillen als Notwehrerfordernis, Bockelmann-FS, 1979, p. 245. 22 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 31, IV, p. 328-331; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 94-100, p. 539-542. 23 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 50. 24 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 77. 25 Ver, entre outros, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 93, p. 539. 224 225 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação no marido que retornava da orgia noturna, atinge o ladrão armado tentando entrar na casa, age com dolo não justificado de homicídio – no caso, impunível por ausência de desvalor de resultado, segundo formulações modernas. Os elementos subjetivos nas justificações têm por objeto a situa ção justificante (por exemplo, a agressão atual e injusta a bem jurídico, na legítima defesa), e toda discussão consiste em saber se é suficiente o conhecimento da situação justificante ou se é necessária também a vontade de defesa, de proteção etc., em conjunto com outros estados psí- quicos, para a ação justificada: autores como KUHL, OTTO e ROXIN afirmam ser suficiente o conhecimento da situação justificante, embora com sentimentos de medo, raiva ou vingança contra o agressor26; ao contrário, autores como WELZEL, JESCHECK/WEIGEND e MAU- RACH/ZIPF exigem, além do conhecimento da situação justificante, a vontade de defesa ou de proteção, também com sentimentos de raiva ou vingança contra o agressor27. É possível admitir a suficiência do conhe cimento (ou consciência) da situação justificante, como limiar subjetivo mínimo das ações justificadas, mas a vontade (de defesa, de proteção etc.) é, sempre, a energia emocional que mobiliza a ação de defesa ou de proteção, informada pela esfera cognitiva do psiquismo individual. Por outro lado, oerro constitui fenômeno psíquico em oposição diametral ao conhecimento, como sua antítese negativa e, nas justifica- ções, igualmente tem por objeto a situação justificante, também definida como pressuposto objetivo das justificações: se a situação justificante é objeto do conhecimento nas justificações, então é, necessariamente, objeto do erro respectivo porque conhecimento e erro são fenômenos psíquicos contrários e excludentes. As principais teorias do erro sobre 26 KUHL, Strafrecht, 1997, § 6, n. 11, p. 123; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 8, n. 52, p. 107; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 93, p. 539. 27 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 14, I 3, p. 83-4; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 31, n. IV, p. 328-331; MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 25, V, ns. 24-29, p. 348. a situação justificante são a teoria limitada da culpabilidade, a teoria rigorosa da culpabilidade e a teoria das características negativas do tipo, a seguir sumariadas. A teoria limitada da culpabilidade, amplamente majoritária na dogmática contemporânea e incorporada na vigente legislação penal brasileira (art. 20, § 1º, CP), distingue entre erro de proibição, incidente sobre a natureza proibida ou permitida do fato, que pode excluir ou reduzir a culpabilidade, e erro de tipo permissivo, incidente sobre a verdade do fato, excludente do dolo. A crítica destaca a clareza político-criminal da teoria limitada da culpabilidade, que equipara o erro de tipo permissivo ao erro de tipo, sob o argumento de que o autor quer agir conforme a norma jurídica – e, nessa medida, a representa- ção do autor coincide com a representação do legislador –, mas erra sobre a verdade do fato: a representação da existência de situação jus- tificante exclui o dolo, que existiria como conhecimento da existência das circunstâncias do tipo legal e da inexistência de circunstâncias justificantes, cuja errônea admissão significa que o autor não sabe o que faz – ao contrário do erro de permissão, em que o autor sabe o que faz28. A teoria rigorosa (ou extrema) da culpabilidade considera o erro sobre a situação justificante (ou sobre pressupostos objetivos de uma causa de justificação) como erro de proibição, que exclui ou reduz a culpabilidade conforme seja inevitável ou evitável, respectivamente – e, assim, equipara erro sobre a realidade a erro sobre a juridicidade do fato29. Finalmente, a excitante teoria das características negativas do tipo30 resolve o problema do erro sobre a situação justificante como 28 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 62-68, p. 526-529. 29 Comparar WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, III f, p. 168 s.; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 63, p. 527. 30 Ver, entre outros, SCHROTH, Die Annahme und das “Fur-Möglich-Halten” von Umständem, die einen anerkannten Rechtfertigungsgrund begrunden, Arthur Kaufmann- FS, 1993, p. 595; SCHUNEMANN, Die deutschsprachige Strafrechtswissenschaft nach der Strafrechtsreform im Spiegel des Leipziger Kommentars und des Wiener Kommentars, 1. Teil: Tatbestands- und Unrechtslehere, GA, 1985, p. 341. 226 227 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação a teoria limitada da culpabilidade, mas com fundamentos diferen- tes: considera os caracteres do tipo legal como elementos positivos e as justificações como elementos negativos do tipo de injusto e, por consequência, define o erro sobre a situação justificante como erro de tipo, excludente do dolo – e, por extensão, do tipo –, se inevitável, admitindo imprudência, se evitável31 (ver Teorias sobre conhecimento do injusto e erro de proibição, adiante). 4. Efeito das justificações Ações típicas justificadas são ações conformes ao direito porque (a) excluem a antijuridicidade indicada no tipo legal (teoria triparti- da), ou (b) excluem a tipicidade da ação (teoria bipartida), com duas consequências necessárias: primeiro, uma ação justificada exclui outra ação justificada contrária, ou seja, não há justificação contra justifi- cação – exceto no estado de necessidade; segundo, o agressor deve ou suportar a ação justificada, ou escapar dela, cessando, de qualquer modo, a agressão32. II. Justificações O estudo das justificações pode ser simplificado pelo método de organizar seus elementos constitutivos nas categorias de situação justificante e de ação justificada: a) a situação justificante compreende os pressupostos objetivos das justificações – por exemplo, a agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro, na legítima 31 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 70, p. 529. 32 Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 79-80; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 104-105, p. 544. defesa; b) a ação justificada (de defesa, ou necessária, ou no exercício de direito, ou em cumprimento de dever legal ou consentida pelo titular do bem jurídico) contém elementos subjetivos e objetivos – às vezes, também, elementos normativos, como a permissibilidade da defesa, na legítima defesa. A) Legítima defesa A legítima defesa é direito de proteção individual enraizado na consciência jurídica do povo, explicada por dois princípios: a) o princípio da proteção individual para defesa de bens ou interesses e o princípio social da afirmação do direito em defesa da ordem jurídica. O princípio da proteção individual justifica ações típicas necessárias para defesa de bens jurídicos individuais contra agressões antijurídicas, atuais ou iminentes33. O princípio da afirmação do direito justifica defesas necessárias para prevenir ou repelir o injusto e preservar a or- dem jurídica, independentemente da existência de meios alternativos de proteção34 porque o direito não precisa ceder ao injusto, nem o agredido precisa fugir do agressor – excetuados casos de agressões não dolosas, de lesões insignificantes ou de ações de incapazes, próprias da legítima defesa com limitações ético-sociais35. 1. Situação justificante A situação justificante da legítima defesa caracteriza-se pela 33 Ver FRISTER, Die Notwehr im System der Notrechte, GA 1988, p. 291; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 82-84; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 1, p. 550. 34 Ver HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 2, p. 550-551; SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/51. 35 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 2, p. 550-1 e n. 49-50, p. 573-574. 228 229 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação existência de agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, assim definida na lei penal: Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. O significado dos componentes elementares do conceito de legítima defesa pode ser assim explicado: 1. Agressão é toda ação humana de violência real ou ameaçada dirigi- da contra bens jurídicos do agredido ou de terceiro36. O conceito de agressão inclui (a) a omissão de ação, porque não há exigência conceitual de um fazer ativo (se a criança está ameaçada de morrer de fome por omissão de ação atribuível à mãe, as alternativas são ou alimentar a criança, ou obrigar a mãe a alimentar a criança)37, assim como (b) a imprudência, porque o conceito de agressão não é restrito à violência dolosa (o motorista que insiste em manobras imprudentes do veículo em parque repleto de crianças deve suportar a legítima intervenção de terceiro para impedir as manobras e, se for o caso, tomar, tempo- rariamente, a chave do veículo)38; mas exclui as chamadas não ações: lesão de bens jurídicos relacionada a ataques epilépticos ou estados de inconsciência (sono, desmaio ou embriaguez comatosa) – que podem, todavia, fundamentar o estado de necessidade – porque movimentos corporais meramente causais não constituem ações humanas39. 36 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 50. 37 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 6-11, p. 553-555.38 Assim, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 32, II, 1a, p. 338. No Brasil, no mesmo sentido, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 147; em posição contrária, mas inconvincente, ZAFFARONI/ PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 330, p. 583, exigem “agressão intencional”, excluindo a “agressão culposa”, porque seria “absurdo (...) causar um dano sem proporção alguma com a magnitude do mal.” 39 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 8, p. 553-554, n. 8; em posição contrária, DREHER/TRÖNDLE, Strafgesetzbuch und Nebengesetze, 1995, § 32, n. 4; também, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 14, II 1, p. 84-85. 2. Injusta é a agressão imotivada ou não provocada pelo agredido e, nesse sentido, marcada por desvalor de ação e de resultado40, o que exclui ações conformes ao dever de cuidado ou ao risco permitido e ações justificadas – não há legítima defesa contra legítima defesa, embora se admita exculpação supralegal em determinados casos de provocação da situação justificante41. 3. Atual é a agressão em realização ou em continuação; iminente é a agressão de realização imediata – assim, a legítima defesa pressupõe agressão em realização, em continuação ou imediata42. O problema é definir os extremos desses conceitos (agressão imediata e em con- tinuação) porque o conceito de agressão em realização, situado entre aqueles limites extremos, não é problemática43. O conceito de imi- nência é definido por duas teorias: a) a teoria do começo da tentativa de JAKOBS44 pressupõe a maior proximidade possível da consuma- ção – o que pode tornar a defesa ineficaz (muito tarde) ou a eficácia da defesa pode implicar lesões mais graves do agressor; b) a teoria da fase preparatória de SCHMID HÄUSER45, com problemas na dire- ção contrária: uma agressão anunciada para o dia seguinte pode estar em fase preparatória, mas não é iminente (muito menos atual), nem constitui agressão46. Um critério intermediário proposto por KUHL e ROXIN47 define iminência como o momento final da preparação, que integra o critério da defesa eficaz, inseparável do conceito de le- gítima defesa, com o critério do desencadeamento imediato, inerente 40 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 26, n. 8-21, p. 355-360. 41 Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 14, p. 556-557. 42 Ver, entre outros, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 32, II, 1, p. 338; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, § 8, p. 97, n. 328. 43 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 21, p. 560. 44 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 12/23, p. 389-390. 45 SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/61. 46 Para a crítica dessas teorias, ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 22-23, p. 560-561. 47 KUHL, Strafrecht, 1997, § 7, n. 41; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 24-25, p. 561-562. 230 231 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação ao conceito de tentativa: a aproximação do agressor com um porrete na mão para agredir ou o movimento da mão do agressor em direção à arma não configuram, ainda, tentativa, mas o último momento da fase preparatória, suficiente para caracterizar a iminência da agressão e, assim, justificar a defesa. O conceito de agressão em continuação é mais simples: a conti- nuação da agressão ocorre no intervalo entre a consumação formal e a consumação material do tipo de injusto, como nos crimes de duração ou permanência (sequestro, violação de domicílio etc.) ou de estado (o furto, enquanto o ladrão foge com a coisa)48. 4. Direito próprio ou de outrem são os bens jurídicos, as necessi- dades ou interesses individuais ou sociais que recebem proteção do Direito. O bem jurídico distingue-se do objeto da ação precisamente como o conceito de interesse distingue-se da coisa concreta em que se realiza: a vida e a propriedade privada são bens jurídicos, enquanto o homem concreto e a coisa respectiva constituem objetos de ação49. Todos os bens jurídicos individuais são suscetíveis de legítima defesa (vida, saúde, liberdade, honra, propriedade etc.), mas existe controvér- sia quanto aos bens jurídicos sociais: a) bens jurídicos da comunidade (ordem pública, paz social, regularidade do tráfego de veículos etc.) são insuscetíveis de legítima defesa porque a ação violenta do particular produziria maior dano que utilidade e, afinal, parece inconveniente atribuir ao povo tarefas próprias da polícia50, embora alguns autores admitam a defesa do ser social ou comunitário pelo indivíduo51; b) bens jurídicos do Estado, como o patrimônio público (destruição de cabines telefônicas, danos em trens de metrô etc.), admitem legítima 48 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 28, p. 563. 49 Nesse sentido, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 72-74. 50 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 36-39, p. 566-568. No Brasil, ZAFFARONI/ PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 334, p. 588. 51 Por exemplo, MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 26, n. 12-13, p. 357; SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/80. defesa do particular – mas não a pessoa jurídica do Estado porque parece inadequado transformar o cidadão em guerreiro contra inimigos do Estado (espiões ou traidores, por exemplo)52. 2. Ação justificada A ação de defesa do agredido é a mesma unidade objetiva e subjetiva examinada como ação, em seguida como ação típica e agora como ação típica justificada (os adjetivos não modificam o substantivo). A ação justificada de legítima defesa contém elementos subjetivos, ele- mentos objetivos e, em casos especiais de legítima defesa com limitações ético-sociais, o elemento normativo da permissibilidade da defesa. 2.1. Elementos subjetivos da ação de defesa Os elementos subjetivos da legítima defesa têm por objeto a situação justificante (agressão injusta, atual ou iminente, a bem ju- rídico próprio ou de terceiro) e consistem no conhecimento da situ- ação justificante para a teoria dominante53, representada por KUHL, OTTO e ROXIN, ou no conhecimento da situação justificante e na vontade de defesa para respeitável opinião minoritária54, representada 52 Ver BLEI, Strafrecht, 1983, § 39, II, 4; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 32, II, 1b, p. 339-340; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 40-41, p. 568-569. 53 KUHL, Strafrecht, 1997, § 6, n. 11, p. 123; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 8, n. 52, p. 107; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 111-112, p. 604-605. 54 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 14, II 3, p. 83-84, n. 3; JESCHECK/ WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 31, n. IV, p. 328-331; MAURACH/ ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 25, V, ns. 24-29, p. 348-349. No Brasil, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 164, p. 193; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 145; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 335, p. 588. 232 233 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação por WELZEL, JESCHECK/WEIGEND e MAURACH/ZIPF – em qualquer hipótese, com outros componentes psíquicos e emocionais, como medo, raiva, vingança etc. O conhecimento (ou consciência) da situação justificante, como limiar subjetivo mínimo da legítima defesa, pode ser suficiente, mas a vontade de defesa, informada pelo conhecimento e condicionada pelas emoções do autor, é a energia psíquica que mobiliza a ação de defesa. A ausência do elemento subjetivo significa dolo não justificado de realização do injusto e reduz a legítima defesa à existência objetiva da situação justificante (a mulher pensa atirar no marido de retorno da orgia noturna, mas atinge o ladrão armado tentando entrar na casa), com os seguintes desdobramentos: a) a ação típica dolosa não justifica- da representa desvalor de ação atribuível à mulher, mas a existência da situação justificante elimina o desvalor do resultado e, porque o desvalor de ação não pode se converter em desvalor de resultado, a hipótese é definível como tentativa inidônea (nalegislação alemã, punível); b) o desvalor de ação do comportamento típico doloso injustificado da mulher não permite ação justificada do agressor porque o com- portamento do agressor constitui a situação justificante que exclui o desvalor do resultado na ação daquela55. 2.2. Elementos objetivos da ação de defesa Os elementos objetivos da ação justificada consistem no emprego moderado de meios de defesa necessários contra o agressor, eventual- mente examinados do ponto de vista da permissibilidade da defesa. 1. A necessidade dos meios de defesa é definida pelo poder de excluir a agressão com o menor dano possível no agressor: defesa protetora, em vez de agressiva; ameaça de violência, em vez de violência; ferir, 55 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 111-112, p. 604-605. em vez de matar56. Assim, a necessidade da defesa pode ser redefinida, do ponto de vista estático, como necessidade dos meios de defesa em face dos meios de agressão, e do ponto de vista dinâmico, como em- prego moderado dos meios de defesa necessários. A definição da defesa necessária naquela dupla direção utiliza um critério objetivo ex ante, conforme o juízo de um observador prudente57: não atirar contra o agressor, se é suficiente empurrá-lo ou fechar a porta para fazer cessar a agressão. Erros inevitáveis sobre a necessidade ou a moderação dos meios de defesa não afetam esse juízo objetivo anterior e, segundo difundida orientação político-criminal, devem ser interpretados contra o agressor: existe legítima defesa real – e não meramente putativa – no disparo da vítima contra sequestrador que empunha arma descarregada porque o juízo objetivo ex ante de um observador prudente representaria a arma carregada58. Mas a defesa necessária não exige proporcionalidade entre meios de defesa e meios de agressão – a proporcionalidade na legítima defesa não tem por objeto bens jurídicos ou correlações de dano ameaçado e produzido –, excluída pelo princípio da afirmação do direito: é legítimo apunhalar agressor para evitar uma surra violenta – até porque o direito não precisa ceder ao injusto; não obstante, a ideia de proporcionalidade entre meios de defesa e meios de agressão não pode ser inteiramente des- cartada porque desproporcionalidades extremas são incompatíveis com o conceito de necessidade da defesa: não é legítimo atirar em meninos 56 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84-85; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 42-43, p. 569- 570. 57 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 32, II, 2b, p. 343; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 46, p. 572; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 14, II 2, p. 86. 58 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 46, p. 572. 234 235 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação que furtam laranjas no quintal da casa59. BERNSMANN60, fundado no dever do Estado de proteger a vida, limita o direito de matar em legítima defesa às hipóteses de agressões contra a vida, o corpo (inclu- ídas a tortura e as privações de liberdade duradouras) e a sexualidade, com exclusão de todas as outras hipóteses: atirar no autor do furto, por exemplo, mesmo que seja o único meio de recuperar a coisa – como ainda admite a opinião dominante – não pode ser justificado pela legítima defesa. A defesa necessária pode determinar alguns efeitos indesejados, cuja justificação depende de sua adequação aos meios necessários: efeitos indesejados adequados ao meio necessário são justificados (um soco necessário pode quebrar alguns dentes do agressor); efeitos indese- jados inadequados ao meio necessário não são justificados (a morte do agressor com um tiro de advertência descuidado)61. Efeitos indesejados de dispositivos de proteção – por exemplo, a lesão de inocentes em armadilhas, cercas eletrificadas etc. – são sempre atribuíveis ao autor e, em qualquer hipótese, o emprego de mecanismos de proteção mortais é injustificável62. 2. A moderação no emprego de meios necessários é delimitada pela extensão da agressão: enquanto persistir a agressão é moderado o uso dos meios necessários; após cessada a agressão, a continuidade do uso de meios definidos como necessários torna-se imoderada, configurando excesso de legítima defesa – que pode admitir exculpação, se determi- nado por medo, susto ou perturbação. 59 Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84-86; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 47, p. 572-573. No Brasil, comparar MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 148. 60 BERSMANN, Uberlegungen zur tödlichen Notwehr bei nicht lebensbedrohlichen Angriffen, ZStW, 104 (1992), p. 326. 61 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 45, p. 571-572. 62 Assim, também, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 51, p. 575. 2.3. A permissibilidade da legítima defesa O conceito de permissibilidade da defesa define limitações ético- -sociais excludentes ou restritivas do princípio social da afirmação do direito que fundamenta – com o princípio individual da proteção de bens ou interesses – a legítima defesa. A literatura contemporânea re- conhece hipóteses de defesas necessárias não permitidas por limitações ético-sociais relacionadas ao autor da agressão, às relações de garantia entre agressor e agredido, ao comportamento do agredido e à natureza da agressão63. 1. Agressões de incapazes (crianças, adolescentes, doentes mentais ou, mesmo, bêbados sem sentido) criam para o agredido um leque de atitudes alternativas prévias, nas quais se concretizam as limitações ético-sociais da legítima defesa, válidas para os demais casos: primeiro, desviar a agressão; segundo, empregar defesas sem dano; terceiro, pe- dir socorro aos pais, professores, polícia etc.; quarto, assumir o risco de pequenos danos; quinto, se nada disso for possível, então – mas somente então – a defesa necessária pode, também, ser permitida64. 2. Agressões entre pessoas ligadas por relações de garantia fundadas na afetividade, no parentesco ou na convivência (marido e mulher, pais e filhos etc.), subordinam a legítima defesa às mesmas limita- ções ético-sociais mencionadas e, em regra, excluem resultados de morte ou de lesões graves – exceto no caso de risco de lesões sérias (a mulher usa faca para defesa contra agressão do marido com objeto contundente) ou de maus tratos físicos duradouros ou continuados (a repetição de agressões e surras do marido contra a mulher, por exemplo)65. 63 Conforme ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 53-90, p. 575-594. 64 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 57-58, p. 578. 65 Assim, GEILEN, Eingeschränkte Notwehr unter Ehegatten?, JR, 1976, p. 314; MARXEN, Die “sozialethischen” Grenzen der Notwehr, 1979; ROXIN, Strafrecht, 236 237 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação 3. Agressão provocada pelo agredido para agredir o agressor constitui agressão dolosa injustificada contra o agressor e exclui a legítima defesa – mas para respeitável opinião minoritária não exclui a legí- tima defesa, ou porque não afeta a antijuridicidade da agressão66, ou porque o direito não pode criar situações sem saída, de renúncia à vida ou integridade corporal, por um lado, e de punição, por outro lado67. Entretanto, agressão provocada pelo agredido sem finalidade de agredir o agressor condiciona a legítima defesa às limitações ético- -sociais indicadas, mas é preciso distinguir a qualidade da provocação: se constitui comportamento antijurídico, como ocorre na maioria das situações de injúria, vias de fato, violação de domicílio, dano etc., a legítima defesa é, em princípio, excluída; se constitui comportamento situado ainda no terreno jurídico, como ocorre com gozações, troças ou pilhérias lesivas de valores ético-sociais, mas de antijuridicidade menor, indefinida ou inexistente, subsiste a legítima defesa com as referidas limitações ético-sociais68. 4. Agressões irrelevantes mediante contravenções, delitos de bagatela, crimes de ação privada ou lesões de bens jurídicos sem proteção pe- nal também condicionam a legítima defesaàs limitações ético-sociais referidas, especialmente em relação à exclusão da morte ou de lesões graves no agressor, corolário da necessidade de proteção da vida e de 1997, § 15, n. 83-84, p. 591. 66 Assim, BOCKELMANN, Notwehr gegen verschuldete Angriffe, Honig-FS, 1970, p. 19; HILLENKAMP, Vorsatztat und Opferverhalten, 1981. 67 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 32, III, 2a, p. 346-347; também, SCHÖNCKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 32, n. 57. 68 Ver MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 26, n. 46, p. 368-369; OTTO, Rechtsverteidigung und Rechtsmissbrauch im Strafrecht, Wurtemberger-FS, 1977, p. 129; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 69, p. 584. No Brasil, nesse sentido, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 164, p. 192; comparar, também, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 147; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 331, p. 584-585. rejeição de desproporções extremas69 na justificação. A legítima defesa em relação a coisas mostra a extensão do dissenso ideológico na dog- mática penal: para teóricos conservadores, como SCHMIDHÄU- SER70, nenhuma avaliação materialista de bens exclui a legítima defesa, justificando a morte mesmo para proteger bagatelas; por outro lado, SCHROEDER71 afirma que a ideia de proporcionalidade na legítima defesa exclui a morte ou lesões graves na defesa de bagatelas ou de outras agressões irrelevantes. 3. Particularidades a) Legítima defesa de outrem A legítima defesa de outrem depende da vontade de defesa do agredido: só é possível legítima defesa de outrem se existe vontade de defesa do agredido. A impossibilidade de defesa contra a vontade do agredido resulta do princípio da proteção individual porque o agredido pode, por exemplo, ser contra o uso de arma de fogo contra autores de furto, temer represálias na hipótese de intervenção de terceiro (em caso de sequestro, por exemplo) ou, simplesmente, não desejar a intromissão de terceiro, como em brigas de casal (com frequência, para resolver problemas de relacionamento e reencontrar a harmonia afetiva)72. Mas a vontade presumida do agredido autoriza a defesa de outrem, independentemente da verificação negativa posterior, que não deslegitima a ação de defesa já realizada, como indica um exemplo de 69 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 79, p. 589. 70 SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/75. 71 SCHROEDER, Die Notwehr als Indikator politischer Grundanschauungen, Maurach- FS, 1972, p. 139. 72 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 99, p. 599. 238 239 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação JAKOBS73: atua legitimamente quem salva vítima já inconsciente de tentativa de homicídio matando o agressor, embora se esclareça depois que a vítima reconhecera seu filho como agressor, e antes suportaria a própria morte do que a morte do filho. b) Extensão da justificação A justificação da legítima defesa alcança exclusivamente os bens jurídicos do agressor porque o princípio da proteção individual baseia-se na correlação agressão/defesa, e o princípio da afirmação do direito realiza-se sobre o agressor, e não sobre terceiro estranho à agressão74. c) Excesso de legítima defesa O excesso intensivo de legítima defesa (uso de meio desnecessá- rio) e o excesso extensivo de legítima defesa (uso imoderado de meio necessário), bem como a legítima defesa putativa, não configuram situações de justificação, mas hipóteses de exculpação legal ou de erro de tipo permissivo, estudadas na categoria da culpabilidade (ver Culpabilidade e exculpação, adiante). B) Estado de necessidade Historicamente, o estado de necessidade tem sido pensado a partir de três diferentes pontos de vista: primeiro, como espaço livre do direito, fundado na impossibilidade do ordenamento jurídico discipli- nar conflitos determinados pelo instinto de sobrevivência; segundo, 73 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 12/63, p. 408. 74 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 106-109, p. 602-603. como justificação de conduta típica, fundada na preponderância ou equivalência do bem jurídico protegido; terceiro, como exculpação de conduta antijurídica, fundada na inexigibilidade de comportamento conforme ao direito, em hipóteses de bens jurídicos equivalentes75. Atualmente, duas teorias definem a natureza jurídica do es- tado de necessidade: a) a teoria diferenciadora disciplina o estado de necessidade segundo um sistema duplo: como justificação (para hipóteses de proteção de bem jurídico superior ao sacrificado) e como exculpação (para hipóteses de proteção de bem jurídico equivalente ao sacrificado) – teoria adotada pela legislação penal alemã, por exemplo, que define expressamente o estado de necessidade justificante (§ 34, CP) e o estado de necessidade exculpante (§ 35, CP); b) a teoria uni tária disciplina o estado de necessidade segundo um sistema único: ou como justificação, ou como exculpação – independentemente de superioridade ou equivalência do bem jurídico protegido em relação ao bem jurídico sacrificado – teoria adotada pela lei penal brasileira, que define o estado de necessidade exclusivamente como justificação, no art. 23, I, CP76. 1. Situação justificante A situação justificante do estado de necessidade caracteriza-se pela existência de perigo para o bem jurídico – definido como atual, involuntário e inevitável sem lesão de outro bem jurídico –, assim conceituada na lei penal: 75 Ver HAFT, Strafrecht, 1994, p. 88. 76 Nesse sentido, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 167, p. 195-196; HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 81; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 149; TAVARES, Direito Penal da negligência, 2003, p. 363; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 337, p. 591. 240 241 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. a) O conceito de perigo é definido pela probabilidade ou possibi- lidade de lesão do bem jurídico ameaçado77, segundo um juízo objetivo ex ante de um observador inteligente, combinado, eventualmente, com o juízo do especialista na área78, como propõe HIRSCH: o observador inteligente é representado por cidadão do círculo social do autor, com os conhecimentos e informações especiais deste; o especialista sobre perigos, por exemplo, de fogo é o bombeiro, de construções o en- genheiro, de doenças o médico etc. O perigo pode ser determinado por acontecimentos naturais, como naufrágios, incêndios, inundações, por fenômenos sociais como distúrbios civis, acidentes e, também, por outros comportamentos humanos, desde que não constituam a agressão injusta da legítima defesa79. b) A atualidade do perigo no estado de necessidade não se con- funde com a atualidade da agressão na legítima defesa: a atualidade do perigo justifica a proteção imediata – mas não exige a existência de dano imediato –, porque o adiamento da proteção ou seria impossível ou determinaria maior risco ou dano, como no aborto necessário, por exemplo, realizado no terceiro mês de gestação para evitar dano na época do parto; igualmente, pode ocorrer em perigos contínuos ou duráveis, atualizáveis em dano a qualquer momento – segundo aquele juízo objetivo ex ante –, como edifícios em ruína, doentes mentais perigosos para a comunidade (neste caso, aguardar agressões antiju- 77 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 13, p. 615; também, JAKOBS, Strafrecht, 1993, 13/12, p. 415; SCHÖNCKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 34, n. 15. 78 HIRSCH, Gefahr und Gefährlichkeit, Arthur Kaufmann-FS, 1993, p. 553. 79 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 13, p. 615 e § 19, n. 16, p. 833.rídicas para proteção justificada pela legítima defesa pode ser ineficaz ou implicar lesão maior na área dos bens jurídicos sacrificados) etc.80. c) O perigo deve ser involuntário, ou seja, não pode ser provo- cado intencionalmente pelo autor para proteção pessoal às custas da vítima, mas admite produção imprudente porque a limitação legal restringe-se à vontade própria81 e a antiga sentença quem cria perigo, morra por isso82 está ultrapassada: o barqueiro não pode impedir salva- ção de suicida arrependido em seu barco, sob argumento de culpa na produção da situação de necessidade; o motorista causador do acidente pode, justificadamente, fugir do local do fato para evitar perigo real de agressão das vítimas83. d) Enfim, o perigo deve ser inevitável de outro modo, ou seja, não pode ser evitado conforme ao direito, ou não pode ser superado sem lesão do bem jurídico sacrificado, ou, ainda melhor, que a lesão do bem jurídico é necessária para evitar o perigo84. O conceito de inevitabilidade de outro modo abrange as situações de estado de ne- cessidade defensivo e agressivo: no estado de necessidade defensivo, caracterizado pelo conflito entre o sujeito ameaçado pelo perigo e o sujeito criador do perigo, os interesses ou bens jurídicos do ameaçado prevalecem sobre interesses ou bens jurídicos do criador do perigo (A mata/danifica o cachorro de B para evitar mordida); no estado de necessidade agressivo, caracterizado pelo conflito entre bens jurídicos do sujeito ameaçado pelo perigo e bens jurídicos de sujeitos estranhos ao perigo, prevalece o interesse de proteção do perigo contra o interesse 80 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 17, p. 617. 81 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 53; nesse sentido, também, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 168, p. 196; MESTIERI, Manual de Direito Penal, 1999, p. 149; com restrições, HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 83-84; também, TAVARES, Direito Penal da negligência, 1985, p. 163. 82 BINDING, Handbuch des Strafrecht I, 1885, p. 775. 83 Assim, KUPER, Der “verschuldete” rechtfertigende Notstand, 1983, p. 32 s. 84 LENCKNER, Das Merkmal der “Nicht-anders-Abwendbarkeit” der Gefahr in den §§ 34, 35 StGB, Lackner-FS, 1987, p. 95; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 18, p. 834. 242 243 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação do titular de bens jurídicos estranhos ao perigo, cuja destruição/dano é necessária para evitar o perigo (A destrói o valioso guarda-chuva de B, para evitar a mordida do cachorro de C)85. 2. Ação justificada A ação de proteção necessária também constitui a mesma unidade subjetiva e objetiva estudada como ação, depois como ação típica e agora como ação típica justificada, igualmente compreendendo ele- mentos subjetivos, objetivos e normativos. 2.1. Elementos subjetivos da ação necessária Os elementos subjetivos do estado de necessidade têm por objeto a situação justificante (perigo atual, involuntário e inevitável de outro modo) e consistem no conhecimento da situação justificante (teoria dominante) ou no conhecimento da situação justificante e vontade de proteção do bem jurídico (teoria minoritária) – em qualquer hipótese, admitem outros componentes psíquicos e emocionais, como ambição, pagamento, busca da glória, etc.86. Assim como na legítima defesa, o conhecimento (ou consciência) da situação justificante, como limiar subjetivo mínimo do estado de necessidade, pode ser suficiente, mas a vontade de proteção, informada pelo conhecimento e condicionada pelas emoções do autor, é a energia psíquica que mobiliza a ação de proteção necessária. 85 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, C.F. Muller, 2000, n. 293 e 295, p. 95. 86 Ver, entre outros, KUHL, Strafrecht, 1997, § 8, n. 183-184, p. 303; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 91, p. 654. No Brasil, pela necessidade de consciência e vontade de proteção, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 169, p. 197; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 149; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 342, p. 597. 2.2. Elementos objetivos e normativos da ação necessária A ação de proteção do bem jurídico deve ser (a) necessária para afastar ou excluir o perigo – como se deduz da exigência de constituir o único modo de evitar o perigo – e (b) apropriada para proteger o bem jurídico com a menor lesão em bens jurídicos alheios: em outras pala- vras, o meio utilizado – ou o fato praticado – deve ser apropriado para evitar o perigo sem agressões inúteis a bens jurídicos alheios, devendo o autor (ao contrário da legítima defesa) considerar as alternativas pos- síveis para evitar o perigo, inclusive a ajuda de terceiros87. Em síntese, a evitação do perigo exige uma ação necessária determinada, que deve ser apropriada para proteger o direito ameaçado, sem lesões inúteis em bens jurídicos alheios, conforme ponderação de todas as circunstâncias concretas ligadas aos bens jurídicos em conflito, à natureza do perigo e à gravidade da pena88. 2.2.1. O critério do bem jurídico. A preponderância de certos valores em relação a outros pode ser decidida pelo critério do bem jurídico: a) a preponderância do perigo concreto em relação ao perigo abstrato ou em relação a outro perigo concreto: transportar ferido grave para hos- pital em velocidade excessiva (art. 311, CTB) ou sob a influência do álcool, ou de outra substância psicoativa que determina dependência (art. 306, CTB); b) a preponderância de valores da personalidade em relação a valores materiais: tomar chave de motorista para evitar que dirija embriagado; c) a preponderância dos bens jurídicos do corpo e da vida, perante todos os demais: quebra de sigilo médico para evitar infecção por HIV em relações sexuais ou uso da mesma seringa entre dependentes de droga. O critério do bem jurídico compreende si- tuações controvertidas, como a extração forçada de sangue do único portador do tipo sanguíneo adequado para salvar uma vida humana: 87 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 19, p. 617-8 e § 19, n. 21, p. 835. 88 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 7, p. 611-612 e n. 22, p. 619-620. 244 245 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação para um setor da doutrina, constitui injustificável lesão da dignidade humana; para outro setor, a salvação da vida humana prepondera sobre a lesão da dignidade humana, especialmente em agressões corporais pequenas e não perigosas89. 2.2.2. O critério da pena. Em certas situações, o critério da pena90 – determinante na teoria da ponderação de bens – pode ser importante, como na extração não consentida de órgãos de cadáver para salvar vida humana ou na violação de domicílio para evitar estupro etc. 2.2.3. O critério das relações autor/vítima. Situações de estado de ne- cessidade defensivo podem ser engendradas pelas relações autor/vítima: a) hipóteses de perigo criado por não ação da vítima: lesão corporal leve em vítima sob ataque epiléptico para evitar destruição de vaso valioso (mas não lesão corporal grave, como fratura ou comoção cerebral); lesão grave ou morte para proteger a vida ou saúde, como a morte da criança no ventre materno para salvar a vida da mãe – porque se ninguém é obrigado a suportar lesões sérias, e se não é possível desviar ou pedir ajuda, abre-se aquele espaço livre do direito que admite ponde- ração de vida contra vida91; b) hipóteses de legítima defesa preventiva: proprietário de bar coloca narcótico na bebida de fregueses que ouvira combinarem assalto ao estabelecimento – porque existe perigo atual (mas não existe agressão iminente para permitir legítima defesa), cuja proteção posterior ou seria impossível, ou implicaria maior risco de morte ou lesão grave dos agressores92. 2.2.4. O conflito de vida contra vida. A questão crucial do estado de necessidade refere-se à ponderação de vida contra vida, que parece não caber em fórmulas comuns porque, entre vidas emconflito, não 89 Assim, BAUMANN/MITSCH, Strafrecht, 1995, § 17, n. 78; também, JAKOBS, Strafrecht, 1993, 13/25, p. 422-423; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 43-45, p. 629-630. 90 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 23, p. 620. 91 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 68-70, p. 642-643. 92 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 73-6, p. 644-645. existem diferenças de valor ou de quantidade: a) não existe diferença de valor entre vidas diferentes que au- torize desligar aparelho de respiração/circulação artificial de paciente com menores chances de sobrevivência, para ligá-lo em outro com maiores chances; ou que permita matar paciente de pequeno tempo de sobrevivência para assegurar vida maior de outro com órgãos do cadáver daquele; ou que justifique sacrificar vidas de valor inferior (as chamadas vidas sem valor vital) em proveito de vida de maior valor: sacrificar doente mental em favor do prêmio Nobel, ancião em favor do jovem, criminoso em favor do cidadão socialmente útil93; b) não existe diferença de quantidade que permita, no conhe- cido exemplo de WELZEL, desviar um trem desgovernado da linha principal, evitando a morte de muitos, para uma linha secundária, determinando a morte de poucos94; ou admitir a morte de uma pessoa, como exigência de quadrilha para evitar a morte de vários reféns95. Situações de perigo comum extraídas da literatura podem ajudar a esclarecer a controvérsia: a) dois alpinistas ficam pendurados em corda capaz de sustentar apenas um deles – e o alpinista da posição superior corta a corda abaixo dele, precipitando o companheiro no abismo96; b) dois homens em balão defeituoso capaz de sustentar apenas um deles – e um lança o outro no espaço97; c) barco com crianças em corredeira, sob perigo de afundar por excesso de peso – e o barqueiro joga algumas crianças na água para salvar a vida das demais98; d) após 20 dias de fome e sede em jangada com pedaços de tronco do barco 93 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 29, p. 622-623. 94 WELZEL, Zum Notstandsproblem, ZStW, 63 (1951), p. 51. 95 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 30, p. 623. 96 MERKEL, Die Kollision rechtmässiger Interessen und die Schadenersatzpflicht bei rechtmässigen Handlungen, 1895. 97 NEUBECKER, Zwang und Notstand in rechtsvergleichender Darstellung, Bd. 1, 1910. 98 KLEFISCH, Die nationalsozialistische Euthanasie im Blickfeld der Rechtsprechung und Rechtslehre, MDR, 1950, p. 261. 246 247 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação naufragado, o capitão e seu imediato sacrificam a vida do já enfra- quecido grumete para sobreviver com seu sangue (o famoso caso do iate inglês Mignonette)99. 2.2.4.1. A teoria diferenciadora, que distingue entre estado de neces- sidade justificante e estado de necessidade exculpante, admite apenas exculpação nas situações descritas, afirmando ser injustificável qualquer ponderação entre vidas humanas, com os seguintes argumentos: a) uma ética racional do valor exclui cálculos avaliativos ou finalidades racionais em relação à vida humana, segundo WELZEL100; b) valores jurídicos não são valores utilitários, mas fusão de convicções morais fundamentais da cultura, conforme GALLAS101; c) matar quem mor- rerá de qualquer modo representa, do ponto de vista prático, uma arbitrária redução da vida humana, segundo KUPER102, e, do ponto de vista teórico, a morte matematicamente certa seria mera construção do pensamento porque ninguém pode conhecer, com certeza, aconte- cimentos futuros, conforme ROXIN103. Não obstante, respeitável opinião minoritária da própria teoria diferenciadora considera justificada a ação de reduzir um mal ine- vitável, com argumentos poderosos: a) primeiro, o direito não pode proibir salvar uma vida humana, se impossível salvar duas, como dizia WEBER104; b) segundo, o princípio da “usurpação de chance”, desen- volvido por OTTO, para casos semelhantes, proíbe aniquilar chances de sobrevivência de vítimas escolhidas em grupo maior – o barco com crianças em corredeira, por exemplo –, mas não se aplica a vítimas sem 99 PRÖCHEL, Die Fälle des Notstands nach anglo-amerikanischem Strafrecht, 1975, p. 61. 100 WELZEL, Monatsschrift fur Deutsches Recht, 1949, p. 375. 101 GALLAS, Pflichtenkollision als Schuldausschliessungsgrund, Mezger-FS, 1954, p. 327. 102 KUPER, Grund- und Grenzfragen der rechtfertigenden Pflichtenkollision im Strafrecht, 1979, p. 57. 103 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 34-35, p. 625. 104 WEBER, Das Notstandsproblem und seine Lösungen in den deutschen Strafgesetzentwurfen von 1919 und 1925, 1925, p. 30. chance de sobrevivência, previamente escolhidas pelo destino, como no caso da corda dos alpinistas105; c) enfim, a irracionalidade de certas situações existenciais permite qualificar todo comportamento, simul- taneamente, como certo e errado, nos quais a decisão cabe à consciência de cada um, como propõe MANGAKIS106. 2.2.4.2. A teoria unitária da lei penal brasileira, que define estado de necessidade exclusivamente como justificação, admite todos os argumentos da posição minoritária da teoria diferenciadora, com os seguintes acréscimos: a) estudos recentes admitem áreas livres do direito em conflitos relacionados com situações de perigo comum ou de colisão de deveres – portanto, não podem ser injustas ações que estariam fora da disciplina jurídica; b) admitir, na legislação brasileira, a hipótese supralegal de estado de necessidade exculpante, nos moldes da teoria diferenciadora da lei penal alemã, significa mutilar a hipótese legal do estado de necessidade justificante da teoria unitária, reduzindo o alcance de justificação legal em favor de hipotética exculpação supra- legal, em prejuízo do acusado107. 2.2.5. Cláusula de razoabilidade. A ação de proteção necessária de bem jurídico em perigo depende de condição definível como cláusula de ra zoabilidade: a não razoável exigência – ou a razoável exigibilidade – de sacrifício do bem jurídico protegido, nas circunstâncias (art. 24, CP). Art. 24, § 2º. Embora seja razoável exigir-se o sacri- fício do di rei to ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. 105 OTTO, Pflichtenkollision und Rechtswidrigkeitsurteil, 1978, p. 29. 106 MANGAKIS, Die Pflichtenkollision als Grenzsituation des Strafrechts, ZStW, 84 (1972), p. 475. 107 No sentido do texto, COSTA JÚNIOR, Comentários ao código penal I, 1989, p. 205; também, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 149-150 e 187; em posição contrária, reduzindo a justificação legal à hipótese de simples exculpação supralegal, na linha da teoria diferenciadora da lei penal alemã, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 168, p. 196; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 340, p. 594 e n. 382-383, p. 654-657. 248 249 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação O conteúdo da cláusula de razoabilidade da lei penal brasileira não se confunde com o conteúdo da cláusula de apropriação da legis- lação alemã, mas é equivalente: a não razoável exigência refere-se ao sacrifício do bem jurídico protegido e a apropriação do meio refere-se à capacidade da ação para excluir o perigo, mas os dois casos representam critérios de valoração para definir a juridicidade da ação porque exis- tem ações necessárias para proteção do bem jurídico que são injustas, como a extração forçada de rim para transplante, por exemplo, em que seria razoável exigir o sacrifício do bem jurídico ameaçado ou em que o fato praticado constitui meio inapropriado para excluir o perigo. A contrapartida da cláusula da não razoável exigência de sacrifício do bem jurídico ameaçado, para a justificação do estado de necessidade, é a razoável exigência de sacrifício do bem jurídico ameaçado, para a simples redução de pena. A crítica de que tais cláusulas seriam ociosas108 ou de que reali- zariam mera função de controle109 não parece prejudicar sua utilidade, embora alguns critérios alternativos ofereçammaior precisão, como a exigência de não lesionar a dignidade humana, por exemplo, um valor absoluto vinculante de todos os critérios110. 3. Posições especiais de dever As sociedades contemporâneas definem algumas posições espe- ciais de dever que obrigam determinados funcionários públicos ou cidadãos comuns a assumir ou suportar o perigo: a) o dever jurídico de proteção da comunidade; b) o dever jurídico fundado na produção do perigo; c) o dever jurídico resultante da posição de garante; d) 108 Assim, SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 34, n. 45. 109 Ver ESER/BURKHARDT, Strafrecht I, 1992, n. 39-46. 110 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 83-86, p. 650-651. o dever jurídico de suportar perigos somente evitáveis com danos desproporcionais a terceiros. Art. 24, § 1º. Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. 3.1. Dever jurídico de proteção à comunidade. O dever jurídico especial de proteção à comunidade incumbe a certas categorias de funcionários públicos que têm o dever legal de enfrentar o perigo, como bombeiros e policiais, mas também se estende aos magis- trados, em geral, que não estariam justificados a decidir deste ou daquele modo lesivo ao dever, sob alegação de ameaça de morte, por exemplo. Atualmente, esse dever legal de proteção à comu- nidade inclui algumas profissões liberais, como a medicina: um médico não pode deixar de atender um doente sob alegação de perigo de contágio pessoal111. Os deveres de proteção à comunida- de estão limitados aos perigos específicos da função ou profissão: por exemplo, o policial em relação aos perigos da perseguição do autor de um crime, o médico em relação ao perigo de contágio de doenças etc. Não obstante, esse dever legal pode exigir estender o perigo à família do obrigado: numa catástrofe, o policial não pode deixar de proteger a comunidade para salvar a mulher ou filhos, por exemplo112. 3.2. Dever jurídico fundado na produção do perigo. O dever ju- rídico fundado na produção do perigo é objeto de controvérsia sobre os componentes objetivos e subjetivos do comportamento113: a pro- dução do perigo deve ser objetivamente contrária ao dever (segundo a opinião dominante)114 ou deve ser objetiva e subjetivamente contrária 111 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 56-57, p. 636-637, e § 19, n. 40, p. 843. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 150. 112 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 41-43, p. 843-844, e n. 52, p. 848. 113 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 45-46, p. 845. 114 Assim, MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 34, n. 5; também, WESSELS/ BEULKE, Strafrecht, 1998, p. 126, n. 441. 250 251 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação ao dever (segundo a minoria)115. Segmento importante da literatura critica ambas posições: o dever de suportar o perigo dependeria da previsibilidade da situação de necessidade resultante da produção do perigo – afinal, a simples autoexposição a perigo não pode ser proibida116: o companheiro convidado pelo autor para passeio de barco em mar agitado morre no naufrágio do barco porque o autor se apodera da única boia do barco para se salvar. Problemas podem ocorrer nas situações em que a determinação e a exposição ao perigo relacionam-se a pessoas diferentes (o marido coloca a família em perigo e, para proteger a família, produz dano em terceiro) ou em que a pessoa protegida determina o perigo (a mulher do autor produz o perigo, e este a protege com dano a terceiro): nes- ses casos, a literatura reconhece a inexigibilidade do autor suportar o perigo – logo, o dever resultante da produção do perigo difere dos deveres legais especiais, que exigem suportar o perigo117. 3.3. Deveres jurídicos da posição de garante. Os deveres jurídicos fundados na posição de garante relacionam-se às comunidades de vida e de perigo: a) em comunidades de vida, a posição de garante do pai/marido, em catástrofes como incêndio, naufrágio ou em acidentes de trânsito, por exemplo, exige suportar pessoalmente o perigo para proteger mulher e filhos – o pai/marido não pode deixar de proteger membro da família sob alegação de perigo para a saúde ou integridade corporal próprias118, exceto hipóteses de especial gravidade do perigo; b) em comunidades de perigo, os deveres de cuidado ou vigilância do guia de expedição na selva ou 115 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 44, III, 2a, p. 485-486; SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 35, n. 20. 116 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 45-46, p. 845-846; BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1995, § 23, n. 27; HRUSCHKA, Strafrecht nach logisch-analytischer Methode, 1988, 286. 117 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 50-51, p. 847-848. 118 SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 34, n. 34. nas montanhas em relação ao grupo ou do professor em relação aos alunos exigem proteger membro do grupo ou da turma, suportando, pessoalmente, o perigo119. 3.4. Dever jurídico de suportar perigos somente evitáveis com danos desproporcionais a terceiros. O dever legal de evitar danos desproporcionais a terceiros para excluir perigos próprios pode ser assim equacionado: a) o autor não pode produzir a morte ou dano grave em inocente para evitar dano corporal reparável – contudo, parece justificada a morte de terceiro para evitar dano corporal grave ou a morte de vários para evitar a própria morte; b) situações de perigo para o corpo, como ameaça de quebrar um braço ou sofrer uma contusão séria, admitem evitação mediante dano equivalente, mas excluem matar ou aleijar; c) situações de perigo consistentes em pequena probabilidade de perder a vida podem justificar lesão, mas não a morte de terceiros120. 3.5. Limites do dever jurídico ligado às posições especiais de dever. O dever jurídico ligado às posições especiais de dever possui limites, podendo ser excluído ou reduzido por situações de conflito: a) primeiro, o dever legal de enfrentar o perigo não é absoluto, ces- sando em face de certeza ou de probabilidade de morte ou de lesão grave porque o direito não pode exigir renúncia à vida ou aceitação de graves lesões à saúde ou ao corpo121; b) segundo, conflitos de deveres de ação podem constituir, conforme a teoria dominante, hipóteses de justificação122: o pai só pode salvar 119 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 54, p. 849. 120 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 54-55, p. 849-850. 121 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 56, p. 636-637. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 150-151. 122 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 15/6-15, p. 445-449; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 101-105, p. 658-660; SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 32, n. 7; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, § 16, p. 234- 235, ns. 735-737. 252 253 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação um dos dois filhos em perigo simultâneo de afogamento, com pere- cimento do outro; o médico só pode atender um de dois pacientes em simultâneo perigo de vida, com morte do outro. A opinião de que constituiriam meros casos de exculpação123, sob alegação de que escolhas pessoais representariam arbitrário abandono de vidas huma- nas, parece inconsistente: a antijuridicidade supõe a possibilidade de comportamento jurídico alternativo e, afinal, existe diferença entre o esforço para salvar um e nenhum esforço para salvar nenhum124; c) terceiro, alguns critérios de justificação, como a relação entre os deveres, o valor do bem jurídico, a gravidade do perigo etc. podem ser decisivos: 1) a relação entre os deveres: se os deveres são desi- guais, prevalece o maior; se iguais, qualquer deles; 2) o valor do bem jurídico: em incêndio de museu, a salvação da criança, não do quadro valioso; 3) a gravidade do perigo: proteger a vítima de lesão grave, não a vítima de lesão leve; 4) relações entre dever es-pecial de garantia e dever geral de solidariedade: o pai deve salvar o filho, e não a criança alheia, na hipótese de perigo simultâneo de afogamento, pela precedência do dever de garantia; o pai deve salvar a criança alheia ferida gravemente, e não o filho ferido leve- mente, pela precedência do valor do bem jurídico ameaçado em relação ao dever de garantia125; 5) hipóteses de culpa na produção da situação de necessidade, supondo igualdade do perigo, são polêmicas: o médico pode atender primeiro o culpado e, depois, a vítima, ou vice-versa, indiferentemente126; o médico deve atender primeiro a vítima, depois o culpado127. Em qualquer caso, não há 123 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 33, V, p. 365-368; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 101. 124 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 105-106, p. 660. 125 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 109-111, p. 661-662. 126 SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 32, n. 74. 127 BLEI, Strafrecht, 1983, § 88, I, 4a. diferença qualitativa (bom/mau, novo/velho, inteligente/bobo) ou quantitativa (salvar um na direção sul, salvar dois na direção norte) entre vidas humanas. A lesão do dever jurídico de suportar o perigo determina re- dução da pena, em todas as hipóteses mencionadas, embora alguns autores excluam hipóteses de lesão de deveres jurídicos especiais, por razões de prevenção geral128 ou por ser incompatível com o princípio da culpabilidade129. C) Estrito cumprimento de dever legal O estrito cumprimento de dever legal constitui justificação exclusiva do funcionário público: compreende hipóteses de inter- venção do funcionário público na esfera privada para assegurar o cumprimento da lei ou de ordens superiores da administração pública, que podem determinar a realização justificada de tipos legais, como coação, privação de liberdade, violação de domicílio, lesão corporal etc. 1. Situação justificante A situação justificante do estrito cumprimento de dever legal é constituída pela existência de lei em sentido amplo (lei, decreto, re- gulamento etc.) ou de ordem de superior hierárquico, determinantes de dever vinculante da conduta do funcionário público ou assemelhado130. 128 É a opinião de ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 56, p. 850. 129 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 44, IV, 2, p. 488. 130 Comparar CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 55; também, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, 151-152. 254 255 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação O estrito cumprimento de dever determinado por lei exclui lesão de direitos humanos fundamentais definidos em tratados e convenções internacionais – por exemplo, homicídios dolosos para impedir fuga de presos de estabelecimento penal. O estrito cumprimento de dever fundado em ordem superior pressupõe autoridade competente para emitir a ordem, objeto lícito e forma adequada da ordem emitida, segundo os requisitos de validade dos atos administrativos. Não obstante – e como é óbvio –, admite um restrito direito de crítica do subordinado, cujo exercício é limitado exclusivamente à legalidade da ordem, excluindo razões ou argumen- tos relacionados a critérios de oportunidade, de conveniência ou de justiça da ordem. 2. Ação justificada A ação justificada pressupõe atuação do funcionário público nos estritos limites do dever criado por lei ou por ordem de superior hierárquico. Nesse sentido, rupturas dos limites do dever na aplicação da lei ou no cumprimento de ordens superiores excluem a justificação da conduta. 2.1. Ruptura dos limites do dever na aplicação da lei A ruptura dos limites do dever na aplicação da lei pelo funcio- nário público, no emprego de coação ou na privação de liberdade, por exemplo, é frequente e inevitável do ponto de vista estatístico, e pode determinar duas consequências imediatas: primeiro, excluir a justificação da conduta; segundo, permitir a legítima defesa do cida- dão agredido131. Para resolver esses problemas, a dogmática moderna 131 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 1-2, p. 667-668. desenvolveu o conceito de uma antijuridicidade especial para o funcio- nário público, cujos limites ampliados poderiam justificar ações que, dentro dos limites comuns do conceito, seriam antijurídicas132. Essa antijuridicidade especial do funcionário público teria alguns pressu- postos objetivos: a) competência material e territorial para a ação, com exclusão de ações fora das atribuições ou fora do território respectivo; b) forma prescrita em lei; c) observância dos princípios da necessidade e da proporcionalidade133 – aliás, princípios de difícil compreensão pelo funcionário público. A juridicidade da ação não seria excluída por erros normais sobre tais pressupostos objetivos, ocorridos em exame da situação conforme ao dever (por exemplo, o oficial de justiça entra na casa errada para cumprir o mandado) – portanto, somente erros graves indicadores de culpa grosseira seriam capazes de deslegitimar a ação134. Contudo, a teoria de uma antijuridicidade especial parece criti- cável: primeiro, o conceito de antijuridicidade especial está em contra- dição com a dogmática penal, que não trabalha com dois conceitos de antijuridicidade – um normal para o comum dos mortais, outro especial para o funcionário público; segundo, intervenções oficiais sem observância dos pressupostos legais não geram dever de tolerância; terceiro, a boa-fé do funcionário público não exclui a antijuridicidade da ação – assim, não faz o injusto virar justo135; quarto, o sentimento de imunidade do funcionário público ampliaria práticas ilegais ou arbitrárias do poder136; quinto, o Estado Democrático de Direito garante respeito às liberdades do cidadão, exige estrita observância da legalidade pelo funcionário público, e não atribui ao funcionário 132 Assim, LENZ, Die Diensthandlung und ihre Rechtmässigkeit in § 113 StGB, Diss. Bonn, 1987. 133 Nesse sentido, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 113. 134 LACKNER, Strafgesetezbuch mit Erläuterungen, 1995, 21a edição, § 113, n. 12. 135 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 9, p. 671. 136 Ver THIELE, Zum Rechtmässigkeitsbegriff bei § 113, Abs. 3 StGB, JR, 1975, p. 353. 256 257 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação público o privilégio de errar137. Em conclusão, pode-se dizer o seguinte: o erro inevitável do funcionário público, ocorrido em exame da situação conforme ao dever, ou seja, com o emprego do cuidado devido, exclui o dolo e a imprudência – portanto, exclui o desvalor da ação, impedindo o exercício da legítima defesa; mas o erro evitável do funcionário público não exclui o desvalor da ação e autoriza o exercício da legítima defesa, embora com as necessárias limitações ético-sociais138. 2.2. Cumprimento de ordens antijurídicas O cumprimento de ordens superiores antijurídicas é resolvido conforme as alternativas de evidência/ou de não evidência da natureza típica da ordem: a) ordens superiores ilegais de evidente natureza típica não vinculam a conduta e não devem ser cumpridas pelo su- bordinado, que responde pelo injusto praticado, se cumpre a ordem: a autoridade policial ordena ao subordinado espancar suspeito para obter confissão; o superior hierárquico determina ao subordinado embriagado dirigir veículo automotor etc.; b) ordens superiores ilegais de natureza típica oculta ou duvidosa vinculam a conduta e são obrigatórias para o subordinado, que não responde pelo injusto praticado, se cumpre a ordem: prisões processualmente admissíveis; disparo sobre sequestradores para libertar reféns; prisão de inocente fundado em forte suspeita etc.139. O cumprimento de ordens superiores ilegais obrigatórias para o subordinado (natureza típica oculta ou duvidosa) é objeto de controvérsia: a) constitui justificação, sob o argumento de que a obrigação de cumprir 137 Assim pensava JELLINEK, Verwaltungsrecht, 1931, p. 373. 138 Nesse sentido, ROXIN,
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