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Immanuel Maurice Wallerstein - Após o liberalismo - em busca da reconstrução do mundo-Vozes (2002)


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~j~· -.--_ -_ = __ -_ -_ 
Immanuel Wallerstein 
nasceu em 1930. E 
historiador e cientista 
politico. Dirige o Centro 
Fernand Braude! para 
Estudos de Economia, 
Sistema Hist6rico e 
Civiliza~oes na Universidade 
de Binghamton. Leciona 
tambem na Ecole des Hautes 
Etudes em Sciences Sociales, 
em Paris. E conferencista 
inclusive em poises de lingua 
espanhola. 
Desde 1961 Wallerstein 
tem publicado livros sobre 
politico internacional. Ficou 
muito conhecido pela ideia 
que expos sistematicamente 
no livro The Modern World 
System, em 1 97 4. Esta ideia 
do sistema mundial - ou 
sistema-mundo, como alguns 
gostam de traduzir - explica 
como, atraves da hist6ria, 
certos paises foram centros 
de um sistema mundial. 
Atualmente os Estados 
Unidos ainda sao o centro. 
Ja foi a Espanha, no tempo 
da conquista. Ja foi Roma, 
no Imperio Romano. Um 
centro supoe uma periferia. 
Assim, por ocasiao do 
descobrimento da America, a 
Europa era periferia do 
mundo arabe. Em 1980, 
Wallerstein publica o 
segundo volume sobre o 
Dados Internacionais de Cataloga~ao na Publica~ao (CIP) 
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 
Wallerstein, Immanuel Maurice 
Ap6s o liberalismo: em busca da reconstruc;ao do mundo I Immanuel 
Maurice Wallerstein ; tradw;ao de Ricardo Anibal Rosen busch.- Petr6polis, 
RJ : Vozes, 2002. · 
Titulo original: After liberalism 
ISBN 85.326.2682-3 
1. Desenvolvimento economico 2. Direitos humanos 3. Liberalismo 
4. P6s-comunismo 5. Polftica mundial I. Titulo. 
01-6203 CDD-909.829 
Indices para catalogo sistematico: 
1. Liberalismo: Hist6ria mundial: Hist6ria contemporanea 909.829 
2. Hist6ria mundial: Hist6ria contemporzmea 909.829 
lmmanuei WaHerstein 
AP6S 0 LLBERALLSMO 
Em busca da reconstru~ao do mundo 
Tradu~ao de Ricardo Anibal Rosenbusch 
/.bEDITORA 
Y VOZES 
Petr6polis 
2002 
© 1995 by Immanuel Wallerstein 
Titulo original em ingles: After Liberalism 
Direitos de publica~ao em lingua portuguesa: 
Editora Vozes Ltda. 
Rua Frei Lufs, 100 
25689-900 Petr6polis, RJ 
Internet: http://www.vozes.com.br 
Brasil 
T ados os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pod era 
ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer 
meios (eletronico ou mecanico, incluindo fotoc6pia e gravac;ao) 
ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados 
sem permissao escrita da Editora. 
Editora~ao e org. literaria: Ana Kronemberger 
~b,~ _:;)q,Q5{j 
UNIDADE ••••• ~ •••••••••• 
No CHAMADA: 
... 3~·1··-~-i?j ....... . 
..... ~ ... :.~~--~ .... . 
V; ...... ~~ ....... CX: ............... .. 
TOMB0: •• ~.\-.~.~1-.~~ 
PROC.: .. ~.~~ Q~. 
C: ............. D: •• ~ ....... . 
PRt:ro ~ ~ G'O 
y ~ ............ ,.,.¥·········· 
DATA:.~9./.Q~J2§... 
N• C~D· ........................... 
ISBN 85.326.2682-3 
Este livro foi composto e impressa pela Editora Vozes Ltda. 
A Clemens Heller 
que se empenhou em tomar possfvel o 
debate inteligente sobre o futuro do mundo. 
Agrade<;o a gentil coopera<;ao dos responsaveis pela publica<;ao 
original destes textos, que autotizaram a inclusao neste livro. 
The Cold War and the Third World: The Good Old Days? Economic 
and Political Weekly, 27 de abril de 1991. 
Peace, Stability, and Legitimacy, 1990-2025/2050. G. Lundestad 
(org.), The Fall of Great Powers. Oslo: lmprensa da Universidade Escandi-
nava, 1994. 
What Hope Africa? What Hope the World? AO. Olokoshi e L Wohl-
gemuth (orgs.), A Road to Development: Africa in the 21st Century. Upsala: 
Nordiska Afrikainstitutet, 1995. 
Liberalism and the Legitimation of Nation-States: An Historical Inter-
pretation. Social Justice, v. 19, n. 1, primavera de 1992. 
The Concept of National Development, 1917-1989: Elegy and Requi-
em. American Behavioral Scientist, v. 35, n. 4/5, man;o/junho de 1992. 
Republicado com autoriza<;ao da Sage Publications, Inc. 
The End of What Modernity? Theory and Society, v. 24, 1995. 
The Insurmountable Contradictions of Liberalism: Human Rights and 
the Rights of Peoples in the Geoculture of the Modern World-System. 
South Atlantic Quarterly, v. 9, n. 4, outono de 1995. 
The Geoculture of Development, or the Transformation of Our Gee-
culture? Asian Perspective, v. 17, n. 2, outono-inverno de 1993. 
America and the World: Today, Yesterday, and Tomorrow. Theory 
and Society, v. 21, 1, fevereiro de 1992. 
Revolution as Strategy and Tactics of Transformation. A Callari et al. 
(orgs.), Marxism in thePostmodernAge. Nova York: Guilford Press, 1994. 
Marxism After the Collapse of the Communisms. Economic Review, 
Economic and Political Weekly, fevereiro-mar~o de 1992. 
The Collapse of Liberalism. R. Miliband e L Panitch (orgs.), Socialist 
Register 1992. Londres: Merlin Press, 1992. 
The Agonies of Liberalism: What Hope Progress? New Left Review, 
n. 204, mar<;o-abril de 1994. 
Sumar1o 
Introdu~ao: Ap6s o Libera/ismo?, 9 
Parte 1 - Os anos 90 e depois: podemos reconstruir?, 17 
1. A Guerra Fria eo Terceiro Mundo: os bans e velhos tempos?, 19 
2. Paz, estabilidade e legitimidade, 1990-2025/2050, 34 
3. Que esperan<;a tern a Africa? Que esperan~_;a tern o mundo?, 55 
Parte II - Constru<;ao e triunfo da ideologia liberal, 79 
4. Tres ideologias, ou apenas uma? A pseudobatalha da 
modernidade, 81 
5. 0 Liberalismo e a legitima~_;ao das Na~_;oes-Estado: uma 
interpreta<;ao hist6rica, 101 
6. 0 conceito de desenvolvimento nacional, 1917-1989: 
elegia e requiem, 116 
Parte III - Os dilemas hist6ricos dos liberais, 131 
7. 0 fim de·qual modernidade?, 133 
8. As contradi<;6es insuperaveis do liberalismo: direitos humanos e 
direitos dos povos na geocultura do sistema internacional 
moderno, 151 
9. Geocultura do desenvolvimento, ou transforma<;ao da nossa 
geocultura?, 168 
10. Os Estados Unidos e o mundo: hoje, ontem e amanha, 182 
Parte IV - A morte do socialismo, ou o capitalismo em 
perigo mortal?, 211 
11. A revolw;ao como estrategia e tatica de transforma<;ao, 213 
12. 0 marxismo ap6s o colapso dos comunismos, 222 
13. 0 colapso do liberalismo, 235 · 
14. As angustias do liberalismo: que esperanc;a tern o progresso?, 254 
lntrodu~ao 
Ap6s o liberalismo? 
A destrui~ao do Muro de Berlim e a posterior dissolu~ao da URSS 
foram comemoradas como sinais da queda dos comunismos e do co-
lapso do marxismo-leninismo como for~a ideol6gica no mundo moder-
no. lsto corresponde a verdade, sem duvida. Esses acontecimentos 
tambem foram comemorados como prova do triunfo final do liberalis-
mo como ideologia. Neste caso, estamos diante de uma interpreta~ao 
absolutamente equivocada da realidade. Muito pelo contn1rio, aqueles 
acontecimentos assinalaram ainda mais o colapso do liberalismo e nos-
so ingresso definitivo no mundo de "ap6s o liberalismo". 
Este livro tern por objeto expor essa tese. Ele e composto de ensaios 
escritos entre 1990 e 1993, num perfodo de grande confusao ideol6gi-
ca durante o qual urn otimismo generalizado, precoce e ingenuo come-
csou a dar Iugar a sentimentos dominantes de temor e desanimo inspira-
dos pela desordem no mundo que surgia. 
0 ano de 1989 ja foi amplamente estudado como final do perfodo 
1945-1989, ou seja, como o ano que evidenciou a derrota da URSS 
na Guerra Ftia. Neste livro vamos propor que e mais conveniente 
considera-lo como o fim do perfodo 1789-1989, ou seja, aquele do 
triunfo e do colapso, da ascensao e da extin<;ao final do liberalismo 
como ideologia global - o que eu chamo de geocultura - do sistema 
mundial moderno. 0 ano de 1989 marcaria, portanto, o fim de uma 
era polftico-cultural- uma era de espetacular realiza~ao tecnol6gica -
na qual os lemas da Revolu<;ao Francesa refletiam, aos olhos da maio-
ria das pessoas, a verdade hist6rica inevitavel que se concretizaria logo 
ou num futuro proximo. 
0 liberalismo nunca foi uma doutrina da esquerda; sempre foi a 
quintessencia da doutrina centrista. Seus defensores estavam certos de 
agirem com modera~ao, sabedoria e humanidade. Eles cerravam filei-
9 
ras ao mesmo tempo contra urn passado arcaico de privilegioinjustifi-
cado (que viam representado pela ideologia conservadora) e urn nive-
lamento irresponsavel que nao leva~a em conta virtude nem merito al-
gum (que viam representado pela ideologia socialista/radical). Os libe-
rais sempre procuraram definir o restante do leque politico como se 
este estivesse formado por dois extremes, entre os quais eles ficam situ-
ados. Disseram-se contraries tanto aos reacionarios quanto aos republica-
nos (ou democratas) em 1815-1848; aos fascistas e aos comunistas em 
1919-1939; aos imperialistas e nacionalistas radicais em 1945-1960; e 
aos radstas e seus.correlatos nos anos 80. 
Os liberais sempre asseveraram que o Estado liberal - reformista, 
legalista e urn tanto libertario- era o unico que podia garantir a liberda-
de. E talvez isto seja verdade para o grupo relativamente pequeno cuja 
liberdade e salvaguardada. Acontece que, infelizmente, esse grupo 
sempre foi uma minoria perpetuamente a caminho de tornar-se a tota-
lidade. Os liberais sempre afirmaram que s6 urn Estado liberal poderia 
assegurar uma ordem nao baseada na repressao. A direita criticava di-
zendo que o Estado liberal, nao querendo parecer repressive, permitia 
e de fato encorajava a desordem. Ja a esquerda sempre disse em suas 
crfticas que a ordem e que tern sido a principal preocupac;ao dos libe-
rais no poder, e que eles tern praticado uma repressao muito concreta, 
apenas parcialmente dissimulada. 
A questao nao e, mais uma vez, demonstrar OS meritos ou defeitos 
do liberalismo como base da boa sociedade. N6s precisamos, sim, em-
penhar-nos em fazer a sociologia hist6rica do liberalismo. Precisamos 
analisar claramente seu surgimento hist6rico em decorrencia da Revo-
luc;ao Francesa, sua ascensao mete6rica ao triunfo como ideologia do-
minante, primeiro em apenas alguns pafses (em bora os mais podero-
sos) e depois no sistema mundial e como sistema mundial; e, por fim, a 
sua derrocada nao menos subita nos ultimos anos. 
As origens do liberalismo, nas convulsoes polfticas desencadeadas 
pela Revoluc;ao Francesa, estao amplamente provadas na literatura. Ja 
a asserc;ao de que ele se tornou o credo fundamental da geocultura do 
sistema mundial e bern mais controversa. Embora a maioria dos analis-
tas concorde em que o liberalismo triunfou na Europa a partir de 1914, 
alguns diriam que foi entao que ele entrou em decadencia, ao passo 
que eu situo seu apogeu no perfodo p6s-1945 (ate 1968), a era da he-
gemonia dos Estados Unidos no sistema mundial. De mais a mais, mi-
10 
nha opiniao sobre o modo como o liberalism a triunfou- seus lac;os ine-
rentes com o racismo eo eurocentrismo- seria contestada por muitos. 
T odavia, eu suponho que o mais provocative seja afirmar que o co-
lapso dos comunismos nao representa a vit6ria final do liberalismo 
como ideologia, e sim urn abalo decisive na capacidade da ideologia li-
beral de continuar no seu papel hist6rico. Com certeza, os trogloditas 
da direita internacional devem estar defendendo uma versao dessa 
tese. Mas muitos deles sao cfnicos que manipulam frases de efeito, ou 
rom€mticos desesperanc;ados de uma utopia centrada na famflia que ja-
mais teve existencia hist6rica. Muitos outros estao apenas temerosos 
porque vislumbram, e nisto nao estao errados, a iminente desintegra-
c;ao da ordem mundial. 
Esta rejeic;ao ao reformismo liberal vern sendo implementada atual-
mente nos Estados Unidos sob o r6tulo do Contrato com a America, ao 
mesmo tempo em que e enfiada goela abaixo em todos os pafses do 
mundo pelos offcios do FMI. E provavel que estas polfticas abertamente 
reacionarias incitem uma reversao polftica nos Estados Unidos, como ja 
tern acontecido na Europa, porque elas, Ionge de melhorarem, pioram a 
situac;ao econ6mica da maioria da populac;ao no curto prazo. Mas essa 
reversao nao se traduzira na volta a crenc;a no reformismo liberal. Ela 
mostrara apenas que uma doutrina que combina uma fingida adulac;ao 
ao mercado com leis contra os pobres e estrangeiros- e nao e outra coisa 
o que vern sendo impingido pelos reacionarios revigorados - nao pode 
oferecer uma altemativa via vel as promessas nao cumpridas do reformis-
m a. Seja como for, minha argumentac;ao nao e a deles. Minha perspecti-
va e a daqueles que sustentam o que eu chamo, num dos ensaios, de 
"modemidade da libertac;ao". Creio que necessitamos ponderar sobre a 
hist6ria do liberalismo para ver o que podemos salvar da destruic;ao e 
como podemos lutar, nas diffceis condi<;6es e com o legado ambfguo 
que ele deixou para o mundo. 
Nao pretendo pintar urn panorama sombrio demais. Mas tambem 
nao estou prevendo urn mar de rosas. Acredito que o perfodo ap6s o li-
beralismo e de grande !uta polftica e mais transcendente do que qualquer 
outre nos ultimos cinco seculos. Eu vejo forc;as do privilegio que sabem 
muito bern que "tudo deve mudar para continuar tudo igual" e estao tra-
balhando com habilidade e inteligencia nesse sentido. Vejo forc;as deli-
bertac;ao que ficaram mesmo sem f6lego. Elas veem a futilidade hist6rica 
de urn projeto politico ao qual dedicaram 150 anos de luta- o projeto de 
transformac;ao social mediante a obtenc;ao do poder estatal em todos os 
II 
pafses. E duvidam muito que exista realmente urn projeto alternative. 
Mas o projeto anterior, a estrat~gia da esquerda internacional, fracassou 
sobretudo porque estava impregnado, imbufdo de ideologia liberal, mes-
mo em suas variantes mais pretensamente antiliberais ou "revoluciona-
rias", como o leninismo. Enquanto nao se tiver compreendido o que 
aconteceu entre 1789 e 1989, nao se podera apresentar nenhum projeto 
plausfvel de liberta~Sao no seculo XXI. 
Contudo, ainda que tivermos clareza sobre o que se passou entre 
1789 e 1989, e mesmo se admitirmos que a transi9ao dos pr6ximos 25 
a cinquenta anos sera uma epoca de desordem sistemica, desagrega-
'Sao e ferrenha !uta polftica em torno do tipo de sistema polftico que ire-
mos configurar, a pergunta que preocupa a maioria das pessoas e: 0 
que fazer agora? As pessoas estao confusas, zangadas e apreensivas 
neste momento, por vezes ate desesperadas, mas de modo algum pas-
sivas. A sensa9ao de que deverfamos agir politicamente ainda e vigoro-
sa em todos os lugares do mundo, em que pese o pressentimento igual-
mente forte de que a atividade polftica "tradicional" talvez seja inutil. 
Ja nao se pode apresentar a op9ao em termos de "reforma ou revo-
lw;ao". T emos discutido essa suposta alternativa durante mais de urn 
seculo e s6 conseguimos descobrir que, na maioria dos casos, os refor-
mistas eram, quando muito, reformistas a contragosto; os revoluciona-
rios nao passavam de reformistas urn pouco mais militantes; e as refer-
mas que eram de jato implementadas atingiam, como urn todo, menos 
do que seus defensores se propunham e menos do que seus oponentes 
receavam. Nao poderia ter sido outro o resultado das limita96es estru-
turais que nos impunha o consenso liberal predominante. 
Se, no entanto, e mais correto chamar de desintegra9ao e nao de re-
volu9ao o que quer que esteja acontecendo agora, qual deveria ser nos-
sa atitude polftica? Eu vejo apenas duas coisas a fazer, e ambas precisam 
ser feitas simultaneamente. Por urn !ado, a preocupa9ao imediata de 
quase todos e como lidar com os problemas prementes e incessantes da 
vida - os problemas materiais, sociais e culturais, morais e espirituais. 
Por outro !ado, menos gente, embora ainda muita, tern uma preocupa-
'Sao de mais Iongo prazo: a estrategia de transforma9ao. Reformistas ere-
volucionarios fracassaram neste ultimo seculo porque nao perceberam 
ate que ponto a preocupa'Sao de curto prazo e a de Iongo prazo exigiam 
a96es sirriult€meas, mas muito diferentes {e ate divergentes). 
0 Estado moderno tern sido o instrumento por excelencia dos re-
formistas para ajudar as pessoas a enfrentarem a realidade. Por certo, 
12 
esta nao tern sido a (mica fun~ao do Estado, e talvez nem sequer a prin-
cipal. Nem a a~ao orientada pelo Estado tern sido o (mico mecanisme 
de enfrentamentodos problemas. Mas o fato e que a a~ao do Estado 
tern sido urn fator inelutavel nesse processo de enfrentamento, e que as 
iniciativas de pessoas comuns visaram, justificada e inteligentemente, a 
conseguir que o Estado agisse de determinada maneira. Apesar da de-
sordem, da confusao e da desintegra~ao incessante, isto ainda se verifi-
ca. Os Estados podem agravar ou mitigar o sofrimento, mediante a alo-
cat;ao de recursos, o grau de protet;ao conferido aos direitos e as inter-
ven~6es nas relat;6es sociais entre diversos grupos. E tolice dizer que 
ninguem mais precisa se preocupar com o que seu Estado faz, e eu nao 
acredito que muita gente esteja disposta a desinteressar-se das iniciati-
vas de seu Estado. 
0 Estado pode tornar as coisas urn pouco melhores (ou urn pouco 
piores) para todos. Pode optar por ajudar as pessoas comuns a viver 
melhor ou permitir que as classes mais altas prosperem ainda mais. To-
davla, o que o Estado pode fazer e s6 isso. Ninguem duvida que essas 
coisas tern muita importancia no curto prazo, mas nao tern importancia 
alguma no Iongo prazo. Se queremos influir de maneira efetiva na tran-
sit;ao geral do sistema mundial que hoje atravessamos, para que ela 
a vance em certa dire~ao e nao em outra, o Estado nao e o principal vef-
culo de a~ao. Na verdade, ele e urn grande obstaculo. 
A impressao de que as estruturas do Estado tornaram-se (ou sem-
pre foram ?) gran des obstaculos a transformat;ao do sistema mundial, 
mesmo quando (ou talvez especialmente quando) eram controladas 
por fort;as reformistas (que se diziam fort;as "revolucionarias")' e 0 que 
esta por tras da virada macit;a contra o Estado no T erceiro Mundo, nos 
pafses que foram socialistas, e ate nos pafses do "Estado de bem-estar 
social" membros da OCDE. Nessa debandada, os Iemas do "merca-
do", impingidos com renovada agressividade por uma falange de espe-
cialistas e figuras polfticas conservadoras ocidentais, transformaram-se 
em lugar-comum passageiro. No entanto, como as polfticas estatais as-
sociadas com a bandeira do "mercado" dificultam em vez de facilitar o 
enfrentamento dos problemas, a rea~ao contra governos que priorizam 
o mercado ja come~ou em muitos pafses. Porem a reat;ao nao resulta 
em renovada confiant;a na capacidade do Estado de transformar o mun-
do. Na medida em que esta acontecendo, essa reat;ao reflete apenas a 
sensata conclusao de que ainda precisamos do Estado para ajudar as 
pessoas a superar OS problemas. Nao e portanto incoerencia que hoje 
13 
as mesmas pessoas se voltem para o Estado (em busca de ajuda para 
enfrentar a vida) mas tambem o denunciem, junto com as polfticas em 
geral, por inutH e ate perverso {no que diz respeito a reestrutura<;ao do 
mundo no sentido que elas desejariam ver). 
Em vista disso, que farao, que podem fazer essas pessoas para in-
fluir no rumo da transi<;ao? Aqui entra urn outro slogan enganoso: e a 
convoca<;ao para erguer, ampliar e reconstruir a "sociedade civil". Isto 
e igualmente futil. S6 se os Estados existirem e tiverem for<;a suficiente 
para alicer<;a-la e que pode existir algo chamado de "sociedade civil", 
que significa basicamente a organiza<;ao de cidadaos no contexto do 
Estado, para desenvolver atividades legitimadas pelo Estado e partici-
par da polftica indireta (isto e, extrapartidaria) em face do Estado. 0 de-
senvolvimento da sociedade civil foi uma ferramenta essencial a cons-
tru<;ao de Estados liberais, esteios da ordem interna e sistemica mundi-
al. Ela tam bern foi utilizada como sfmbolo arregimentador para a insta-
la<;ao de estruturas de Estado liberais onde elas ainda nao existiam. 
Mas, acima de tudo, a sociedade civil foi, historicamente, uma forma de 
se refrear o potencial de violencia destrutiva do Estado e de domesticar 
as classes perigosas. 
A constru<;ao da sociedade civil foi a atividade dos Estados da Eu-
ropa Ocidental e da America do Norte no seculo XIX. Uma vez que a 
edifica<;ao de Estados continuou a constar da pauta do sistema mundial 
nos primeiros do is ter<;os do seculo XX, ainda se poderia falar em cons-
tru<;ao de sociedades civis em muitos Estados. Mas com a decadencia 
dos Estados, a sociedade civil esta inevitavelmente em desintegra<;ao. 
Na verdade, e exatamente essa desintegra<;ao o que os liberais contem-
poraneos lamentam e os conservadores encorajam discretamente. 
Vivemos na era do "grupismo" - a forma<;ao de grupos defensivos, 
cada urn dos quais afirma uma identidade em cujo redor constr6i soli-
dariedade e !uta por sobreviver, ao !ado e em oposi<;ao a outros grupos 
semelhantes. Esses grupos enfrentam urn problema polftico: nao po-
dem virar mais urn 6rgao de ajuda as pessoas (o que e ambfguo do pon-
to de vista polftico, pois preserva a ordem preenchendo as lacunas que 
sao criadas pelo colapso do Estado) se pretendem tornar-se verdadei-
ros instrumentos de transforma<;ao. Mas para serem instrumentos de 
transforma<;ao eles devem estar seguros quanto a seus objetivos iguali-
tarios. Lutar pelos direitos do grupo em uma fase da !uta pela igualdade 
---e bern diferente de lutar pelos direitos do grupo para "sair do atraso" e 
I4 
avanc;ar ate o topo da piramide ( o que de qualquer mane ira se tornou, 
para a maioria dos grupos, urn objetivo irrealizavel). 
No decorrer da atual transic;ao mundial, e util que se trabalhe tanto 
em nfvel local como internacional, mas o trabalho feito no nfvel do 
Estado nacional tern limitada serventia. E util ten tar atingir objetivos no 
prazo muito curto ou no Iongo prazo, mas o medio prazo tornou-se ine-
ficaz porque ele implica urn sistema hist6rico estavel e eficiente. 0 fato 
de uma estrategia desse tipo nao ser de facil implementac;ao, por de-
pender de taticas necessariamente ad hoc e incertas, e que faz o perfo-
do pela frente parecer tao confuse. Se, no entanto, admitimos que vive-
mos hoje num mundo onde os valores liberais nao mais vigoram, e 
onde o sistema hist6rico existente nao tern condic;6es de garantir o nfvel 
mfnimo de seguranc;a pessoal e material necessario para ser aceito (sem 
falar em ser legitimado), podemos avanc;ar certamente com razoavel 
esperanc;a e confianc;a, mas sem garantia alguma. 
Ficou para tras o tempo dos ide6logos liberais arrogantemente au-
toconfiantes. Os conservadores ressurgiram, ap6s uma auto-hum~lha­
c;ao que durou 150 anos, propondo urn egoismo impiedoso, mascara-
do por carolices e misticismo, como substitute ideol6gico. Mas essa 
conversa nao cola mesmo. Os conservadores costumam ser presunc;o-
sos quando dominam e muito raivosos e vingativos quando ficam ex-
postos, ou mesmo quando apenas se acham seriamente ameac;ados. 
Cabe a todos os que foram exclufdos do sistema mundial atual pressio-
nar em todas as frentes. 0 objetivo central deles nao e mais a tomada 
do poder estatal. Precisam fazer algo muito mais complicado: tern de 
assegurar a criac;ao de urn novo sistema hist6rico, agindo conjuntamen-
te e ao mesmo tempo em nfvel estritamente local e precisamente glo-
bal. Isto e diffcil, mas nao impossfvel. 
PARTE 1 
Os anos go e depo1s: podemos 
recons tru1r? 
I 
A Guerra Fria e o T erceiro Mundo: os 
bons e ve[hos tempos? 
Sera que ja devemos ter saudades? Eu receio que sim. Safmos 
de uma era de hegemonia dos Estados Unidos no sistema mundial 
(1945-1990) e ingressamos numa era p6s-hegem6nica. Por mais diffcil 
que fosse a situa<;ao do en tao T erceiro Mundo nessa epoca, eu acho 
que tempos bern mais diffceis o aguardam. A epoca que acabou foi de 
esperan<;as, com frequencia frustradas, sem duvida, mas esperan<;as 
enfim. 0 que esta por vir e urn tempo de problemas, e de lutas mais car-
regadas de desespero do que de confian<;a. Usando urn antigo simbo-
lismo ocidental, que talvez seja inadequado em vista das circunstan-
cias: sera urn tempo de purgat6rio, com resultado sempre incerto. 
Eu apresentarei meus pontos de vista em duas partes: urn breve re-
sumo da era que acabamos de encerrar, e uma proje<_;ao do que penso 
que podemos prever, juntamente com urn raciocfnioquanta as alterna-
tivas hist6ricas com que nos defrontamos. 
l 
Creio que as caracterfsticas essenciais do perfodo 1945-1990 po-
dem resumir-se em quatro assevera<;6es. 
1) Os Estados Unidos eram a potencia hegem6nica num sistema 
mundial unipolar. Seu poder, baseado numa vantagem esmagadora 
de sua produtividade econ6mica a partir de 1945 e num sistema de 
alian<;as com a Europa Ocidental e o Japao, chegou ao apogeu por 
volta de 1967-73. 
19 
Parte 1- Os anos 90 e depois: podemos reconstruir? 
2) Os Estados Unidos e a URSS envolveram-se num conflito formal 
(mas nao real) sumamente estruturado e cuidadosamente contido, no 
qual a URSS agia como agente subimperialista dos Estados Unidos. 
3) 0 Terceiro Mundo imp6s sua presen~a a contragosto aos Esta-
dos Unidos, a URSS e a Europa Ocidental, reivindicando direitos com 
mais energia e antes do que os pafses do Norte previam ou desejavam. 
Sua for~a polftica, e tambem sua maior fraqueza, estavam na confian~a 
e no otimismo devotados ao duplo objetivo de autodetermina~ao e de-
senvolvimento nacional. 
4) Os anos 70 e 80 foram peri'odos de estagnac,;ao econ6mica glo-
bal, resistencia dos Estados Unidos a sua iminente decadencia e, no 
Terceiro Mundo, desencanto com a sua propria estrategia. 
Vou estender-me a respeito de cada uma destas asseverac,;6es. 
1) A esmagadora margem de vantagem econ6mica dos Estados Uni-
dos em 1945 - em produc,;§.o e produtividade - decorreu de tres fatores 
associados: a perseveranc,;a do esforc,;o nacional dos Estados Unidos, 
concentrado, a partir de 1865, na melhoria da sua capacidade de produ-
c,;ao e inovac,;ao tecnol6gica; o fato de os Estados Unidos ficarem livres de 
gastos militares expressivos, ao menos ate 1941, terem feito uma eficien-
te mobilizac,;ao belica entre 1941 e 1945 e nao sofrerem destruic,;ao de 
sua infra-estrutura durante a guerra; a enorme destruic,;ao de vidas hu-
manas e infra-estrutura em toda a Eurasia entre 1939 e 1945. 
Os Estados Unidos conseguiram institucionalizar muito rapidamen-
te essa vantagem, ou seja, criaram uma hegemonia que Ihes permitiu 
controlar ou dominar quase todas as decis6es relevantes no campo po-
lftico e econ6mico mundial durante cerca de 25 anos. A hegemonia era 
ideol6gica e ate cultural. 
Os dois principais esteios em que essa hegemonia se consolidava 
eram, de urn !ado, urn sistema de alianc,;as com os pafses importantes e 
ja industrializados e, do outro, urn Estado de bem-estar social para inte-
grar a nac,;ao, no ambito domestico. Em ambos os casos o arranjo era 
economico e ideol6gico, e nominalmente politico. 
0 incentive para a Europa Ocidental e o Japao foi a reconstruc,;ao 
econ6mica, acompanhada de urn expressive incremento na renda real 
da classe media e dos trabalhadores qualificados nos Estados Unidos. 
20 
Ap6s o liberalismo 
Isto garantiu tanto satisfat,;:ao polftica quanto urn mercado importante 
para as empresas produtivas norte-americanas. 
A embalagem ideol6gica era o compromisso de implementar inte-
gralmente, pela primeira vez, as promessas feitas dois seculos antes 
pelo liberalismo politico: sufnlgio universal e funcionamento de urn sis-
tema parlamentar. Isto foi feito no contexto deuma !uta contra o "tota-
litarismo" comunista e implicou, portanto, que os comunistas fossem 
privados do.gozo de direitos pollticos. 
A promessa polftica aparente era a participat,;:ao das na~6es da Eu-
ropa Ocidental e do Japao, como pafses, e das classes trabalhadoras, 
como estratos sociais, na tomada de decisao coletiva. Na realidade, por 
cerca de 25 anos todas as principais decis6es polfticas no sistema mun-
dial foram tomadas por uma pequena elite dos Estados Unidos. Isto foi 
chamado de lideran~a dos Estados Unidos. Os pafses da Europa Oci-
dental e o Japao eram Estados dependentes. Os movimentos da classe 
trabalhadora eram, na sua maioria, movimentos dependentes. 
2) A rela¢o entre os Estados Unidos e a URSS tambem era uma 
coisa na aparencia mas com outra realidade subjacente. Na aparencia, 
os Estados Unidos e a URSS eram inimigos ideol6gicos, travando uma 
guerra ftia iniciada nao em 1945, masja em 1917. Eles representavam 
vis6es excludentes do bern social, baseadas em interpreta<;6es inteira-
mente divergentes da realidade hist6rica. As estruturas dos dois pafses 
eram muito dfspares, e profundamente diferentes em alguns aspectos. 
Alem disso, ambos proclamavam enfaticamente o abismo ideol6gico 
que os separava e conclamavam todos os pafses e grupos a optarem 
por urn !ado ou pelo outro. Lembremos a famosa declara<;ao de John 
Foster Dulles: "A neutralidade e imoral". Uderes sovieticos manifesta-
ram-se de forma equivalente. 
Entretanto, a realidade era bern diferente. Uma linha foi trac;ada na 
Europa, mais ou menos onde as for<;as sovieticas e norte-americanas se 
encontraram ao fim da Segunda Guerra Mundial. A Leste dessa linha 
havia uma regiao reservada para o domfnio sovietico. 0 acordo entre 
os Estados Unidos e a URSS e muito conhecido e bastante simples. A 
URSS podia fazer o que bern quisesse dentro da sua zona na Europa 
Oriental (isto e, criar regimes satelites). Havia duas condic;6es operacio-
nais. A primeira, que as duas zonas manteriam absoluta paz entre paf-
ses e se absteriam de qualquer tentativa de mudar ou subverter os go-
vernos da outra zona. A segunda, que a URSS nao pretenderia nem ob-
21 
Parte l-Os anos go e depois: podemos reconstruir? 
teria ajuda dos Estados Unidos para sua reconstrw;ao economica. A 
URSS poderia pegar o que pudesse da Europa Oriental, enquanto o 
governo norte-americana concentrava seus recursos financeiros (vulto-
sos, mas nao ilimitados) na Europa Ocidental e no Japao. 
Como sabemos, este arranjo funcionou maravilhosamente bern. A 
paz na Europa foi absoluta. Jamais houve amea<;a de insurrei<;;ao co-
munista na Europa Ocidental (exceto na Grecia, onde a URSS enfra-
queceu e depois abandonou os comunistas gregos). E os Estados Uni-
dos jamais deram apoio algum as varias tentativas de Estados europeus 
orientais visando afrouxar ou eliminar o controle sovh~tico (1953, 1956, 
1968, 1980-81). 0 Plano Marshall ficou restrito a Europa Ocidental, e a 
URSS construiu urn casulo chamado de Comecon. 
Pode-se considerar a URSS uma potencia subimperialista dos Esta-
dos Unidos porque ela cumpria a fun<;ao de garantir a ordem e a estabi-
lidade dentro da sua zona em condi<;;6es que, na verdade, ajudavam a 
permitir a manuten<;;ao da hegemonia mundial norte-americana. A 
propria ferocidade da disputa ideol6gicq, afinal de contas nao muito 
significativa, era uma grande vantagem polftica para os Estados Unidos 
(como tambem, por certo, para a lideran<;;a sovietica). Veremos que a 
URSS tambem serviu de anteparo ideol6gico para os Estados Unidos 
no T erceiro Mundo. 
3) Nunca se perguntou ao Terceiro Mundo, em 1945 ou depois, se 
apreciava ou aprovava a ordem mundial estabelecida pelos Estados Uni-
dos em conluio com a URSS. E certamente nao Ihe foi atribufda uma 
posi<;;ao muito desejavel nessa ordem. Em 1945, ofereceram-lhe muito 
pouco no terrene polftico e ainda menos no campo economico. Com o 
passar dos anos, as concess6es melhoraram urn pouco, mas sempre de 
rna vontade e s6 como resultado da militancia e da impetuosidade do 
Terceiro Mundo. 
Em 1945 ninguem levava a serio o T erceiro Mundo como protago-
nista polftico no palco mundial- nem os Estados Unidos, nem a Uniao 
Sovietica, nem as antigas potencias coloniais da Europa Ocidental. Qual-
quer reclama<;;ao causava surpresa e quem reclamava era aconselhado 
a ter paciencia, apelando-se para uma versao em nfvel mundial da teo-
ria segundo a qual o bolo deve crescer primeiro para que depois sobre 
urn peda<;;o para os menos favorecidos. 
E bern verdade que os Estados Unidos tin ham urn programa para o 
Terceiro Mundo. Era o que fora anunciado por Woodrow Wilson em 
22 
Ap6s o [iberalismo 
1917 e foi chamado de. autodetermina~ao das na~6es. Na plenitude 
dos tempos, todo povo receberia finalmente seu direito politicocoletivo 
a soberania, analogo ao direito politico individual de cada cidadao ao 
sufragio. Esses direitos politicos propiciariam depois a oportunidade 
para o auto-aperfei~oamento, que ap6s 1945 ganhou o nome de de-
senvolvimento nacional. . 
0 Ieninismo, como ideologia, era supostamente a antinomia do wil-
sonismo. Na verdade, em muitos sentidos era sua encarna~ao. 0 pro-
grama wilsoniano para o T erceiro Mundo foi traduzido por Lenin para 
o jargao marxista, resultando no antiimperialismo e na constru~ao do 
socialismo. Isto refletia, obviamente, diferen~as concretas que diziam 
respeito a quem controlaria os processos polfticos na periferia do siste-
ma mundial, mas o programa em si tinha identica forma: primeiro uma 
mudan~a polftica que estabeleceria a soberania (pela primeira vez, 
mesmo, nas colonias, e pela primeira vez de jato em pafses do Terceiro 
Mundo que ja eram independentes); depois, uma mudan<;a economica 
envolvendo o estabelecimento de uma burocracia estatal eficiente, a 
melhoria dos processos produtivos ("industrializa~ao") e a cria~ao· de 
uma infra-estrutura social (especialmente na educa~ao e na saude). 0 
resultad(), prometido tanto pelos wilsonianos quanto pelos leninistas, 
era o "nivelamento", fechar a brecha entre paises ricos e pobres. 
Os pafses do Terceiro Mundo embarcaram nesse pacote wilsonia-
no-leninista. Mas eles estavam impacientes, como era compreensfvel. Ja 
que o pacote tinha duas etapas, eles, como era bern razoavel, partiram 
primeiro para a etapa inicial. Esta era a via da I uta anticolonialista nas co-
lonias e de revolu~6es polfticas analogas naqueles pafses que, muito 
apropriadamente, ja foram chamados de semicolonias. Depois de 1945, 
o T erceiro Mundo fon;ou a marcha em toda parte. Os comunistas chine-
ses entraram em Xangai. Os povos da Indochina e da Indonesia recusa-
ram-se a acolher novamente seus senhores coloniais. 0 subcontinente 
indiana proclamou-se independente de imediato. Os eglpcios expulsa-
ram a monarquia e nacionalizaram o Canal de Suez. Os argelinos rejeita-
ram a ideia de que faziam parte da Fran~a. A partir dos anos 50 uma 
mare de liberta<;ao varreu a Africa de norte a sui. Na America Latina esta-
va em marcha uma revolu~ao polftica, impulsionada sobretudo pelo tri-
unfo do Movimento 26 de julho em Cuba em 1958. E, daro, houve a 
Conferencia de Bandung em 1955. 
0 aspecto fundamental desta investida polftica maci~a e que ela foi 
desde o prindpio de origem interna e de oposi~ao ao Norte. As potencias 
23 
Parte l-Os anos 90 e depois: podemos reconstruir? 
coloniais opunham-se totalmente a essa acelera~ao do ritmo e fizeram 
tudo o que puderam para dete-la QU diminuf-la. E claro que as taticas 
usadas variaram, sendo os britfmicos muito mais flexfveis que os outros, 
enquanto os portugueses ficavam para tras. Os Estados Unidos, apesar 
de seu te6rico anticolonialismo wilsoniano, preferiram apoiar enquanto 
puderam esta desacelera~ao visada pelos europeus, mas acabaram vol-
tando-se para a descoloniza~ao para que os lfderes "moderassem" o rit-
mo. A atitude da Uniao Sovietica nao foi muito diferente. Em princfpio, o 
leninismo representava uma forma de anticolonialismo mais vigorosa e 
combativa que o wilsonismo. E por certo a URSS deu apoio material e 
politico a muitos movimentos antiimperialistas. Mas em muitas situa~6es 
decisivas ela procurou refrear ou conter o ritmo das mudan~as. Sao bern 
conhecidos seu papel na Grecia e seu conselho a Mao Tse-Tung. Em 
todo o mundo, quem tenha acompanhado de perto as lutas locais sabe 
que o apoio sovietico nunca foi preponderante, com freqilencia s6 foi 
obtido com dificuldade e, em muitos casos, a Uniao Sovietica recu-
sou-se terminantemente a oferece-lo. 
Ainda assim, como tambem sabemos, a batalha polftica essenci-
al foi vencida pelo T erceiro Mundo. Em fins da decada de 1960 a 
descoloniza<;ao (ou seu equivalente em pafses ja independentes) 
fora concretizada em quase todo o mundo. Chegava a hora da se-
gunda etapa, o desenvolvimento nacional. Todavia, bern no mo-
mento em que a segunda etapa deveria ter come~ado, o sistema 
mundial ingressou numa fase Kondratieff B. Na maioria dos lugares, a 
segunda etapa jamais seria realizada. 
4) Por volta de 1970, os Estados Unidos haviam chegado ao apogeu 
e ao limite de seu poder. A diminui<;§.o de suas reservas de ouro for~ou o 
pafs a abandonar a paridade fixa ouro-d6lar. 0 crescimento econ6mico da 
Europa Ocidental e do Japao fora tamanho que agora estes pafses alcan-
<;avam e come~avam a superar os nfveis de produtividade norte-ameri-
canos, no exato momento em que a fase Kondratieff B se iniciava. Isto e, 
a expansao global da produ<;§.o em si era a causa principal da virada re-
cessiva. 0 Vietna estava demonstrando que, alem de os Estados Unidos 
terem de aceitar sua propria convic~ao wilsoniana, mesmo que nao 
aprovassem o grupo que fazia as exigencias, o custo de nao agirem assim 
era o enfraquecimento da legitimidade do govemo norte-americano no 
ambito intemo. E a revolu~ao ocorrida no mundo em 1968 debilitou o 
consenso ideol6gico que os Estados Unidos haviam construfdo, inclusive 
a carta que guardavam na manga, o escudo sovietico. 
24 
Ap6s o liberalismo 
As duas decadas transcorridas desde entao tern sido uma colcha de 
retalhos dos Estados Unidos. Cada remendo foi eficaz porque adiou o 
esgar<_;amento, mas a trama toda acabaria ficando esfarrapada. Nixon 
foi a China, num lance brilhante, trazendo-a de volta para o concerto 
da ordem mundial. Ele interrompeu as perdas norte-americanas acei-
tando a derrota no Vietna. E, em outro lance brilhante, os Estados Uni-
dos consentiram ( e talvez ate combinaram) o aumento do prec;:o do pe-
tr6leo puxado pela Opep. A iniciativa da Opep, alardeada como evi-
dencia da militanda terceiro-mundista, teve o efeito de canalizar gran-
de parte do excedente financeiro disponfvel no mundo (e certamente 
todo o que o Terceiro Mundo tinha) para os bancos do Ocidente (mar-
mente norte-americanos) por meio dos paises produtores de petr6leo 
(que sem duvida ficaram com sua fatia). Depois, o dinheiro voltou para 
o T erceiro Mundo ( e para os parses do bloco sovh~tico) na forma de em-
prestimos que permitiram a esses pafses equilibrar temporariamente 
seus orc;:amentos, continuando a importar manufaturas ocidentais. A 
conta ia ser cobrada nos anos 80. 
Os Estados Unidos procuraram ao Iongo dos anos 70 manter todo 
mundo calma. Ofereceram aos europeus ocidentais e aos japoneses o 
trilateralismo - isto e, a promessa de serem mais consultados na elabo-
rac;:ao d~ polftica internacional. A Uniao Sovh~tica ofereceram a detente 
- isto e, a diminuic;:ao do nfvel de decibeis ideol6gico, o que foi como 
urn balsamo para a burocracia de Brejnev na esteira da onda de cho-
que de 1968. Aos norte-americanos, ofereceram tambem o alfvio das 
tensoes da Guerra Fria, uma especie de consumismo cultural que in-
clufa costumes mais liberais e ac;:ao afirmativa. E o T erceiro Mundo ga-
nhou a sfndrome p6s-Vietna, que se traduziu concretamente em gestos 
como o relat6rio da Comissao Church sabre a Cia, a Emenda Clark 
para Angola e a retirada do apoio a Somoza e ao Xa. 
No meu entender, deverfamos considerar as administrac;:oes Nixon, 
Ford e Carter como parte de uma (mica polftica que podemos chamar 
de "postura humilde" e que foi explicitada pelo Presidente Carter no 
seu famoso discurso a nac;:ao, sabre a necessidade de aceitar as limita-
c;:oes do poder dos Estados Unidos. Essa polftica parecia estar funcio-
nando razoavelmente bern ate que, mais uma vez, o T erceiro Mundo 
deixou de apoia-la. A "postura humilde" afundou na comoc;:ao inespe-
rada causada pelo Aiatola Khomeini. Nao clava para engana-lo. Com ou 
sem postura humilde, os Estados Unidos ainda eram o Sata numero urn 
(e a URSS o numero dois). 
25 
Parte l-Os anos 90 e depois: podemos reconstruir? 
A estrategia de Khomeini era muito simples. Ele nao aceitava as re-
gras do jogo - tanto as regras da ordem mundial do p6s-guerra ditadaspelos Estados Unidos, quanta as regras do sistema interno, que esta-
vam em vigor havia cinco seculos. 0 resultado pratico foi igualmente 
simples. Os Estados Unidos foram profundamente humilhados, Carter 
foi mandado para casa e Reagan chegou ao poder propondo uma pla-
taforma de rejei~ao a "postura humilde" por todos OS meios possfveis. 
A estrategia de Reagan (e Bush} foi substituir a postura humilde pelo 
falso machismo: dureza com os aliados, dureza com a Uniao Sovietica, 
dureza dentro do pals e, claro, dureza como Terceiro Mundo. 
No aspecto econ6mico, o mundo teve de pagar a conta pela colcha de 
retalhos dos anos 70: a crise da dfvida externa, evidenciada primeiro na 
Pol6nia em 1980 e oficialmente reconhecida no Mexico em 1982. 0 resul-
tado foi uma espiral econ6mica descendente em todo o T erceiro Mundo e 
nos pafses do bloco sovietico, com exce<;8.o dos paises de industrializa<;ao 
recente do Leste Asiatica, que conseguiram a~ambarcar as industrias que 
se transferiarn do centro para a periferia em razao da men or taxa de lucra-
tividade. Agora que a bomba da Opep nao' podia mais sugar uma econo-
mia mundial cambaleante, Reagan lan~va mao do keynesianismo militar 
norte-americana e de emprestimos maci<;os de seus ex-aliados, agoraseus 
rivais econ6micos, o Japao e a Europa Ocidental. Em meados da decada 
ja se percebia que essa conta venceria logo, como acontecera com os em-
prestimos ao T erceiro Mundo dos anos 70. 
Por acaso restava algum remendo? 0 primeiro a resolver que prova-
velmente nao restava nenhum foi Gorbatchev. A URSS era uma super-
potencia fundamentalmente em virtude de seu pacto especial com os 
Estados Unidos, o que era chamado de Guerra Fria. Se os Estados Uni-
dos ja nao podiam desempenhar 0 papel de potencia hegem6nica, a 
Guerra Fria nao servia para nada e a URSS corria o risco de ser tratada 
apenas como mais urn pals periferico na economia capitalista mundial. 
Gorbatchev procurou preservar a possibilidade de que a Russia/URSS se 
mantivesse como potencia mundial (ou pelo menos como pafs semiperi-
ferico forte) mediante urn programa de tres pontos: liquidar unilateral-
mente a Guerra Fria {muito bem-sucedido); livrar a URSS de seuja irre-
levante e oneroso quase-imperio na Europa Oriental (muito bem-sucedi-
do); reestruturar o Estado sovietico para que pudesse funcionar eficaz-
mente na era p6s-hegem6nica (fracassado). 
A principia, os Estados Unidos ficaram pasmos diante dessa mana-
bra, e depois decidiram ten tar disfar<;ar esse desmantelamento conscien-
Ap6s o libera[ismo 
te da ordem mundial norte-americana, proclamando-se vitoriosos. Esta 
ultima lufada de propaganda poderia ter bastado para OS Estados Uni-
dos empurrarem a situac;.:ao por mais cinco anos, nao tivesse o Terceiro 
Mundo furado o balao mais uma vez, desta feita pela pessoa de Sad-
dam Hussein. Saddam Hussein enxergou a fraqueza dos Estados Uni-
dos, denunciada sobretudo pelo colapso dos regimes comunistas do 
bloco sovietico e pela incapacidade de imporem a Israel o processo de 
acordos regionais (na Indochina, no sui da Africa, na America Centrale 
no Oriente Medio) que e urn dos elementos para a liquidac;.:ao da Guer-
ra Fria. Saddam Hussein decidiu que esse era o memento de ser auda-
cioso. Ele invadiu o Kuwait, e talvez tenha se preparado para avan<sar 
mais para o sul. 
Eu creio que quatro variaveis pesaram na avalia<sao dele. Uma foi a 
crise da dfvida mundial; Saddam Hussein sabia que nao haveria alfvio 
expressive para o T erceiro Mundo no problema da dfvida extern a. Ja 
ele ao menos tinha uma soluc;.:ao ao alcance, ou seja, apossar-se da ri-
queza acumulada pelo Kuwait. A segunda variavel foi o fato de Israel 
ter encerrado as negociac;.:6es de paz com a OLP. Seas conversas tives-
sem prosseguido, uma invasao teria prejudicado a causa palestina, que 
ainda era a questao central do sentimento popular arabe. Como as 
conversas haviam acabado, Hussein surgiria como a ultima esperanc;.:a 
dos palestinos e aproveitaria o sentimento popular arabe, como parece 
ter feito. Mas estas duas variaveis acabaram sendo pouco importantes. 
0 colapso dos comunismos foi muito mais importante. Do ponto de 
vista do Terceiro Mundo, essa realidade tinha dupla significac;.:ao. Pri-
meiro, Saddam Hussein sabia que a URSS nao o apoiaria, o que o dei-
xava livre das restric;.:6es automaticas decorrentes do arranjo entre os 
Estados Unidos e a Uniao Sovietica para resolver toda disputa que 
ameac;.:asse provocar uma escalada nuclear. E, em segundo Iugar, o co-
lapse dos comunismos era o colapso final da ideologia do desenvolvi-
mento nacional. Se nem sequer a URSS conseguira atingir esse objeti-
vo, tendo a sua disposic;.:ao o modelo leninista na sua plenitude, ceria-
mente nem o Iraque nem nenhum outro pals do T erceiro Mundo con-
seguiria chegar la com urn programa de esforc;.:o autonomo coletivo no 
contexte do sistema mundial existente. Os wilsonianos haviam perdido 
finalmente o escudo leninista, que canalizara a impaciencia doT erceiro 
Mundo para uma estrategia que, do ponto de vista das forc;.:as dominan-
tes no sistema internacional, era a menos ameac;.:adora que os pafses 
terceiro-mundistas poderiam empregar. Desiludido de toda alternativa 
Parte l-Os anos 90 e depois: podemos reconstruir7 
e convicto da fraqueza dos Estados Unidos, Saddam Hussein levou em 
considera~ao a quarta variavel.Se_invadisse, ele tinha 50% de chance 
de veneer. Mas os Estados Unidos tinham 1% de chance de perder. Fi-
cariam sem op<;oes viaveis. Se consentissem, virariam urn tigre de pa-
pel. E se resistissem, o saldo polftico da carnificina teria de ser negative 
para a posi<;ao norte-americana no Oriente Medio, na Europa, no am-
bito interne, em toda parte. 
lL 
Para onde rumamos agora? Como eu acredito que o sistema 
mundial vai a caminho de uma polariza<.;ao Norte-Sui ainda mais 
acentuada do que a atual, exporei primeiro como acho que sera a re-
estrutura<.;ao do Norte, e suas conseqiH~ncias para o Sui, para depois 
apresentar as op<_;oes polfticas que o Sui terc.~, na minha opiniao. Por 
fim, tentarei colocar isto no contexte do futuro da economia interna-
cional capitalista como taL 
Encontramo-nos atualmente no final da fase Kondratieff B que 
vern se desenvolvendo desde 1967-73. Estamos ingressando no ultimo 
mergulho, e talvez o mais drastico, analogo ao mergulho 1893-96 
da fase Kondratieff B que transcorreu entre 1873 e 1896. 0 impacto 
hade variar em diversos lugares do Norte, mas provavelmente sera 
muito forte na maioria das regi6es do Sui. Contudo a economia mun-
dial, depois deter sido abalada totalmente, vai sair desse buraco e n6s 
entraremos em outra grande fase A Esta sera alimentada no infcio, 
segundo se previu ha muito tempo, por urn novo ciclo de produtos de 
novas industrias de ponta (microchips, biogenetica etc.); os tres cen-
tres vigorosos dessa produ<;ao serao o Japao, a UE e os Estados Uni-
dos. Eles competirao acirradamente pelo controle quase monop6lico 
do mercado internacional para a sua versao tecnica desses produtos, 
e nao poderao sair todos vitoriosos. 
Fala-se muito ultimamente em uma divisao do mercado mundial 
em tres segmentos. Eu nao acredito nisso, porque nesse tipo de compe-
ti<.;ao acirrada as tres op~oes acabam reduzidas a duas. Ha muito em 
jogo e o mais fraco dos tres concorrentes procurara aliar-se a urn dos 
outros dois para nao ser esmagado de vez. Em termos de efid§nda pro-
dutiva e estabilidade financeira interna, os Estados Unidos sao e ceria-
mente serao daqui a dez anos o mais fraco dos tres. A alian<_;a natural e 
Ap6s o liberalismo 
com o Japao. Os termos da troca sao 6bvios. 0 Japao e forte hoje em 
processos produtivos e excedente de capital. Os Estados Unidos sao 
fortes em capacidade e potencial de pesquisa e desenvolvimento, no 
setor de servi<_;os em geral, em poder militar e riqueza acumulada para o 
consumo. Uma Coreia reunificada poderia somar-se ao acordo Ja-
pao-Estados Unidos, assim como o Canada. 0 Japao e os Estados Uni-
dos acrescentariamao acordo seus vfnculos na America Latina e no su-
deste da Asia. E fariam ofertas polpudas a fim de encontrar um nicho 
adequado para a China. 
A Europa vern pressentindo isto ha muito tempo. E por isso que os 
acordos de 1992 nao s6 tern avans;ado sem interrup<_;6es, como segura-
mente vao ser ampliados, agora que a Alemanha esta reunificada e 
Thatcher foi afastada. A Europa precisa formular a sua estrategia em 
detalhe: ou expansao fragmentada da UE ou confedera<_;ao abrangen-
te. A Russia e essencial, pois deve ser inclufda para a Europa ter for<sa 
face a urn entendimento Japao-Estados Unidos. A Europa se empe-
nhara em impedir a desintegra<sao da URSS e, uma vez que o Japao, a 
China e os Estados Unidos tambem temem que isso aconte<_;a, em bora 
por outros motivos, e provavel que a ex-UnU~o Sovietica agliente o 
temporal de alguma maneira. 
Na segunda etapa, os dois Nortes deverao desenvolver sua princi-
pal semiperiferia (a China para urn, a Russia para o outro) para que ela 
possa ser urn produtor coadjuvante, um mercado importante e urn for-
necedor de mao-de-obra migrante. No momento, as regi6es centrais 
estao apavoradas com a perspectiva de a Russia e a China desborda-
rem. Ja em 2005, com economia em rapido crescimento e persistente 
desacelera<;ao demografic.a, o Gastarbeitern parecera sumamente de-
sejavel, desde que seja um processo "ordenado". 
Que acontecera como outrora Terceiro Mundo? Muito pouco de 
born. E daro que haverc'i muitos enclaves ligados a urn dos dois Nor-
tes, mas a participa<;ao total do Sui na prodw;;ao e na riqueza mundiais 
despencara e, na minha previsao, assistiremos de fato a uma reversao 
das atuais curvas de evolu<sao dos indicadores sociais (isto e, educa-
<sao e saude), unico aspecto em que o Sul tern se safdo razoavelmente 
bern no periodo 1945-90. Por outro !ado, o Sul tera ficado sem o seu 
principal instrumento polftico nesse perfodo, os movimentos de liber-
ta<sao nacional. 0 CNA da Africa do Sui tera sido 0 ultimo grande mo-
vimento a alcan<;ar o poder. Todos esses movimentos cumpriram 
apenas urn dos objetivos hist6ricos - o de obterem a autodetermina-
29 
Parte 1- Os anos 90 e depois: podemos reconstruir? 
<;ao - e nenhum deles conseguiu atingir o outro, o desenvolvimento 
nacional. A fantasia passageira de que o "mercado" clara a esses paf-
ses o que a industrializa<_;ao condU:zida pelo Estado nao lhes conse-
guiu dar, nao sobrevivera a severa virada recessiva dos pr6ximos cin-
co anos. A queda de Mazowiecki prenuncia a impotencia generaliza-
da que os regimes irao experimentar. 
Diante disso, quais as op~6es disponfveis? Na verdade, elas sao va-
rias, embora nenhuma combine com a Weltanschauung que tern impe-
rado no mundo na era wilsoniana-Ieninista. Poderfamos comec;ar pela 
op~ao que assombra o Norte, por nao saber como reagir a ela. E a op~ao 
Khomeini, geralmente apresentada como a amea<;a do fundamentalis-
mo islamico, embora esta caracteriza~ao seja totalmente equivocada. 
Ela nao e urn fenomeno particularmente islamico. Nem e particularmen-
te fundamentalista, se com isto se alude a uma especie de regressao a an-
tigas praticas religiosas. 
A op~ao Khomeini e, acima de tudo, o clfmax da ira provocada 
pelos horrores do sistema internacional I)1oderno, para cujos princi-
pais beneficiaries e instigadores- o nucleo ocidental da economia in-
ternacional capitalista- ela aponta essa revolta. Ela e a den uncia con-
tra o Ocidente, inclusive- e ate especialmente- contra seus valores 
iluministas, vistas como encarna<;ao do mal. Se estas fossem apenas 
taticas, meios de mobilizac;ao popular, seria possfvellidar com elas. 
Como elas representam uma alternativa autentica, nao existe via de 
comunicac;ao ou de solu<;ao. 
Quanta podem durar explos6es desse tipo? Ate onde elas podem 
chegar? Isto e diffcil de prever. 0 Ira de Khomeini parece estar acalman-
do as paix6es, reingressando na 6rbita cultural do sistema internacional. 
Todavia, se amanha outros movimentos brotarem em outros pafses do 
Sui, muitos deles simultaneamente e dentro de urn sistema internacional 
menos estavel, sera que nao poderiam durar e avanc;ar mais? Sera que 
nao conseguiriam contribuir substancialmente para a desintegrac;ao des-
se sistema, processo do qual eles pr6prios sao a conseqi.iencia? 
A segunda op~ao e a de Sad dam Hussein. Aqui, mais uma vez, pre-
cisamos definir claramente o que essa opc;ao e. Ela nao consiste em ab-
soluta rejeic;ao aos valores do moderno sistema internacional. 0 Baath 
era urn movimento de libertac;ao nacional tfpico e absolutamente secu-
lar. A meu ver, a opc;ao Saddam Hussein nada mais e que a opc;ao Bis-
marck. E a percep<_;ao de que, uma vez que as desigualdades economi-
30 
Ap6s o liberalismo 
cas resultam de rapports de forc;as polfticas, a transformac;ao economi-
ca requer for~a militar. 0 confronto Iraque-EUA foi a primeira guerra 
Norte-Sui autentica. Todas as guerras de libertac;ao nacional {no 
Vietna, por exemplo) tinham urn objetivo limitado e muito claro: au-
todeterminac;ao. Do ponto de vista do Sui, todas essas guerras foram 
iniciadas pelo Norte e o proprio Norte poderia te-las encerrado dei-
xando de imiscuir-se no Sui. Na crise do Golfo Persico, a guerra foi 
deflagrada pelo Sui nao com a intenc;ao de conseguir a autodetermi-
nac;ao, mas para modificar a rapport de forces internacional. E isto e 
realmente muito diferente. 
E bern provavel que Saddam Hussein perca a batalha e seja destruf-
do, mas ele mostrou o caminho para uma nova opc;ao, a de criar Esta-
dos maiores, dota-los de armamento de primeiro nfvel, e nao de nfvel 
inferior, e a disposi<;ao de correr o risco de urn conflito armada. Se che-
gou a hora para esta opc;ao, qual sera a conseqi.h?ncia? Uma carnificina 
espantosa, claro, incluindo com certeza o uso de armas nude ares { e, 
muito provavelmente, qufmicas e biol6gicas). Tanto do ponto de vista 
do Norte quanta do Sui, a opc;ao Saddam Hussein e muito mais medo-
nha que a op~ao Khomeini. Talvez o leitor se pergunte se isto e tao dife-
rente assim das antigas guerras entre Norte e Sui, que foram essenciais 
a expansao hist6rica das fronteiras do moderno sistema internacional. 
A resposta e que, do ponto de vista moral, se trata do mesmo fen6me-
no. Mas e bastante diferente do ponto de vista polftico e militar. As anti-
gas guerras coloniais eram unilaterais no aspecto militar e as chances 
estavam do !ado dos agressores do Norte. Ja as novas guerras serao bi-
laterais em termos militares, e hoje o Norte nao esta tao confiante. Tal-
vez o perfodo 1945-1990 seja lembrado como de relativa paz Norte-Sui 
(apesar do Vietna, da Argelia e das diversas disputas anticoloniais), en-
tre a onda das guerras de expansao europeia e a onda de guerras Nor-
te-Sui do seculo XXI. 
A terceira opc;ao e a que eu chamo de resistencia individual medi-
ante deslocamento ffsico. Num mundo de crescente polarizac;ao Nor-
te-Sui, com a populac;ao em diminuic;ao no Norte e em expansao no 
Sui, como sera possfvel impedir a imigrac;ao ilegal em massa do Sui 
para o Norte? Eu acredito que sera impossfvel dete-la, e esta migrac;ao 
do Sui para o Norte vira acrescentar-se a migrac;ao legale ilegal prove-
niente da Russia e da China. Isto ja vern acontecendo, sem duvida. 
Contudo acredito que a dimensao do fen6meno aumentara considera-
velmente e assim transformara a estrutura social no Norte. Basta apon-
Parte 1- Os anos 90 e depois: podemos reconstruir? 
tar duas coisas. 0 Sui inserido no Norte bern pode atingir a marca de 30 
a 50% por volta de 2025. E e provavel que se tente privar essa gente de 
direitos politicos, o que significa que, ap6s duzentos anos de integra-
c;ao social das classes trabalhadoras no Norte, voltarfamos a situac;ao 
do infcio do seculo XIX: o grosso do estrato ocupacional mais baixo 
estaria privado de direitos sociais e polfticos. Esta nao e, por certo, 
uma formula para a paz social. 
0 triplo cenario de op<_;:6es para o Sui apresenta sem duvida di-
lemas polfticos para as elites governantesdo sistema internacional, 
que reagirao como se espera que reajam. Mas tambem coloca dile-
mas fundamentais para a esquerda internacional, as for<_;:as anti-siste-
ma do Norte e do Sui. 
Ja e visfvel a confusao vivida pelos movimentos da esquerda no 
Norte. Eles nao sabem como encarar Khomeini. Nao sabem como en-
carar Saddam Hussein. Jamais tiveram postura clara quanto a migra-
<;ao ilegal. Em todos os casos, eles nao quiseram oferecer apoio total 
mas nao quiseram apoiar incondicionalmente a repressao exercida 
pelo Norte. lsto fez com que a esquerda do Norte nao fosse ouvida e se 
tornasse irrelevante. Eles sentiam-se muito a vontade solidarizando-se 
com os movimentos de liberta<_;:ao nacional. Em 1968, podiam cantaro-
lar "Ho, Ho, Ho Chi Minh". Mas isso aconteceu porque o Vietminh e a 
NFL invocavam valores wilsonianos-leninistas. Com a extin<_;:ao do 
wilsonismo e do leninismo, admitindo-se que o desenvolvimento na-
cional e uma ilusao (e ate uma ilusao perniciosa), depois de termos 
desistido da estrategia basica de transforma<_;:ao visada durante OS uJti-
mos 150 anos, por acaso resta alguma safda para a esquerda do Nor-
te, a nao ser fazer remendos? 
Sera que e mais f<kil para a esquerda do Sui? Esta pronta para for-
mar nas fileiras de Khomeini ou Saddam Hussein, para investir suas 
energias na op<_;:ao da migrac;ao? Acho isso muito duvidoso. Essa 
gente tern as mesmas hesita<;6es que a esquerda do Norte. Tambem 
deseja abalar o sistema mundial e admite que todas essas opc;6es o 
abalam de fato. Mas tambem duvida que essas op<_;:6es conduzam ao 
mundo de igualdade e democracia tao defendido pela esquerda do 
Sui como pela do Norte. 
A pergunta seria e muito clara com que nos defrontamos, ao iniciar-
mos a primeira metade do seculo XXI (quando a economia capitalista in-
ternacional estara em plena e profunda crise), e se surgirao novos movi-
mentos transformadores com novas estrategias e metas. E muito possf-
32 
Ap6s o liberalismo 
vel, mas de modo algum certo que isso aconte~a. E que ninguem propos 
novas estrategias e metas que substituam as ja fenecidas estrategias wil-
sonianas-leninistas para o Terceiro Mundo, que por sua vez eram apenas 
uma extensao da estrategia do seculo XIX para a tomada do poder esta-
tal, empregada pelos movimentos socialistas e nacionalistas. 
T odavia, este e o desafio muito concreto com que se depara a es-
querda internacional. Se ela nao der uma resposta seria no curto prazo, 
o colapso da economia internacional nos pr6ximos cinqilenta anos re-
sultara simplesmente na sua substitui~ao por algo igualmente rulm. 
Seja como for, o confronto Norte-Sui estara no centro da luta polftica 
mundial de agora em diante. Portanto, ele deve ser o foco principal das 
analises de te6ricos da hist6ria social e ativistas politicos. 
2 
Paz1 estabilidade e leg1t1m1dade1 
'1990-2025/2050 
0 perfodo de 1990 a 2025/2050 sera muito provavelmente despro-
vido de paz, estabilidade e legitimidade. Isto sera consequencia, em 
parte, da perda pelos Estados Unidos de sua condi<;ao de potencia he-
gem6nica do sistema internacional. Mas o principal motivo e a crise do 
sistema internacional como tal. 
Hegemonia no sistema internacional significa, por defini<;ao, que 
existe s6 uma potencia com condi<;6es geopolfticas para impor uma 
concatenac;ao estavel da distribuic;ao social do poder. Isto implica urn 
periodo de "paz", no sentido basico de ausencia de !uta militar- nao de 
toda luta militar, mas da que envolve grandes potencias. Urn tal perfo-
do de hegemonia demanda e ao mesmo tempo gera "legitimidade", se 
esta palavra e usada para descrever o sentimento prevalecente nos 
principais protagonistas polfticos (inclusive grupos amorfos como as 
"popula<;6es" dos diversos pafses) de que a ordem social conta com a 
sua aprovac;ao ou o mundo ("a hist6ria") avanc;a continuamente e com 
rapidez em dire~ao a urn objetivo que eles aprovariam. 
Perfodos assim, de verdadeira hegemonia, nos quais nada desafia 
seriamente a capacidade de a potencia hegem6nica impor a sua vonta-
de e sua "ordem" a outras grandes potencias, tern sido relativamente 
breves na hist6ria do sistema internacional modern a. A meu ver, houve 
apenas tres exemplos: as Provfncias Unidas em meados do seculo XVII, 
o Reina Unido em meados do seculo XIX e os Estados Unidos em mea-
34 
dos do seculo XX. Essas hegemonias, assim definidas, duraram em to-
dos os casas de 25 a cinquenta anos. 1 
Quando esses perfodos terminaram, isto e, quando a potencia an-
tes hegem6nica voltou a tornar-se apenas uma grande potencia entre 
outras (ainda que continuasse par algum tempo a sera mais forte delas 
no aspecto militar), seguiu-se obviamente uma fase de menor estabili-
dade associada a seu correlate de menor legitimidade. Isto implica me-
nos paz. Neste sentido, o atual perfodo ap6s a hegemonia dos EUA nao 
difere, no essencial, daqueles que se seguiram a hegemonia britariica 
ou a holandesa em meados dos seculos XIX e XVII, respectivamente. 
Masse a isto se reduzisse a descri~ao do perfodo 1990-2025, ou 
1990-2050 ou 1990-?, mal valeria a pena estuda-lo, exceto como alga 
que diz respeito a administra~ao tecnica de uma ordem internacional 
cambaleante (que e de fato como tern sido estudado par muitos politi-
cos, diplomatas, estudiosos e jornalistas). 
No entanto, ha mais e talvez muito mais na dinamica do meio se-
culo de grande desordem social que esta come~ando. As realidades 
geopolfticas do sistema internacional nao dependem exclusivamente, 
nem sequer principalmente, da rapport de forces militar entre esse 
subconjunto privilegiado de pafses soberanos que n6s chamamos de 
grandes potencias, aqueles pafses grandes e ricos o bastante para dis-
porem da base de receita necessaria para desenvolver uma capacida-
de militar importante. 
Em primeiro Iugar, apenas alguns pafses sao ricos o bastante para 
terem essa base tributaria, sendo essa riqueza mais a fonte do que a 
consequencia de sua for~a militar, embora o processo seja par certo de 
realimenta~ao redproca. E a riqueza desses pafses em rela~ao a de ou-
tros e fun~ao tanto da sua dimensao quanta da divisao axial do traba-
lho na economia internacional capitalista. 
A economia internacional capitalista e urn sistema que envolve 
uma desigualdade hierarquica na distribui<;ao, baseada na concentra-
~ao de certos tipos de produ~ao (relativamente monop6lica e portanto 
de elevada lucratividade) em certas zonas limitadas, que desse modo e 
em consequencia disso se tornam os pontos de maior acumulac;ao de 
1. Immanuel Wallerstein, The Three Instances of Hegemony in the History of the Capitalist 
World-Economy.Jn: The Politics of the World-Economy: The States, the Movements, and the Civiliza-
tions. Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 37-46. 
35 
Parte L-Os anos 90 e depois: podemos reconstruir? 
capital. Esta concentrac;ao permite o revigoramento das estruturas esta-
tais, as quais por sua vez procuram garantir a sobrevivencia dos mono-
p6lios relatives. No entanto, como OS monop6lios sao inerentemente 
frageis, tern havido uma relocalizac;ao constante, intermitente e ilimita-
da, embora significativa, desses nucleos de concentrac;ao ao Iongo de 
toda a hist6ria do sistema internacional moderno. 
Os mecanismos de mudanc;a sao os ritmos dclicos, dos quais dois 
sao mais transcendentes. Os ciclos Kondratieff tern durac;ao aproxima-
da de cinqiienta a sessenta anos. Suas fases A sao basicamente o espa-
c;o de tempo em que se pode proteger determinados monop6lios eco-
nomicos importantes; ·as fases B sao OS perfodos de relocalizac;ao geo-
grafica da prodw;ao cujos monop6lios se exauriram, bern como o pe-
rfodo de disputa pelo controle dos futuros monop6lios. Os ciclos hege-
monicos mais prolongados envolvem uma disputa entre do is pafses im-
portantes que aspiram a sucessao da anterior potencia hegemonica, 
convertendo-se no centro principal de acumulac;ao de capital. Este e 
urn processo Iongo que, em ultima instancia, implica possuir a forc;ami-
litar necessaria para veneer uma "guerra de trinta anos". Quando fica 
institufda uma nova hegemonia, a sua manutenc;ao requer financia-
mento macic;o que acaba levando inevitavelmente a urn relative dedf-
nio da potencia hegemonica vigente e uma disputa pela sucessao. 
Esta modalidade repetida de reestruturac;ao e recentralizac;ao da 
economia capitalista internacional, lenta mas certa, tern sido muito efi-
caz. 0 processo de ascensao e queda das grandes potencias tern sido 
quase do mesmo tipo que o de ascensao e queda de empresas: os mo-
nop6lios se mantem por muito tempo, mas finalmente sao enfraqueci-
dos pelas pr6prias medidas tomadas para sustenta-los. As "falencias" 
subseqiientes tern sido mecanismos de depurac;ao, livrando o sistema 
daquelas potencias cujo dinamismo se esgotou e substituindo-as por 
sangue novo. Ao Iongo disso tudo as estruturas basicas do sistema nao 
mudaram. Cada monop6lio de poder se manteve por algum tempo 
mas, como os monop61ios economicos, foi minado pelas medidas to-
madas para sustenta-lo. 
Todos os sistemas (ffsicos, biol6gicos e sociais) dependem desses 
ritmos dclicos para restabelecer urn equilfbrio mfnimo. A economia in-
ternacional capitalista mostrou ser uma variedade resistente de sistema 
hist6rico, e tern vicejado com bastante exuberancia ja por cerca de qui-
nhentos anos, o que e muito tempo para esse tipo de sistema. Mas os 
sistemas tern tendencias seculares alem de ciclos rftmicos, e essas ten-
dencias sempre exacerbam as contradi<_;6es que todo sistema contem. 
Chega urn momenta em que as contradi<_;6es sao tao agudas que pro-
vocam flutua<_;6es cada vez maiores. Na linguagem da nova ciencia, isto 
implica o princfpio do caos (a brusca diminuic;ao daquilo que pode ser 
explicado por equac;6es deterministas), que por sua vez resulta em bi-
furcac;6es, cuja ocorrencia e certa, em bora sua dimensao seja imprevi-
sfvel por natureza. De tudo isto surge uma nova ordem sistemica. 
A questao e determinar se o sistema hist6rico em que estamos vi-
vendo, a economia internacional capitalista, ja ingressou ou esta in-
gressando numa tal epoca de "caos". Eu proponho que ponderemos 
as argumentac;6es, oferec;amos algumas hip6teses quanta as formas 
que esse "caos" poderia assumir e examinemos as linhas de ac;ao que 
se apresentam. 
Proponho nao analisar extensamente os elementos que considero 
reflexos "normais" de uma fase Kondratieff B ou de uma fase B hege-
monica; apenas vou resumi-los brevemente2. Contudo devo deixar·cla-
ro que, embora urn ciclo hegemonico seja muito mais prolongado que 
urn ciclo Kondratieff, o ponto de inflexao de urn ciclo hegemonico coin-
cide como de urn ciclo Kondratieff (mas nao com todos, clara). Neste 
caso, esse ponto ocorreu entre 1967-73. 
Os fenomenos sintomaticos de uma fase Kondratieff B normal sao: 
a desacelerac;ao do crescimento da produc;ao e provavelmente uma di-
minuic;ao na produc;ao mundial per capita; urn aumento nos fndices de 
desemprego do trabalho assalariado; urn deslocamento relative dos Iu-
eras, da atividade produtiva para ganhos provenientes de manobras fi-
nanceiras; urn aumento do endividamento publico; transferencia de in-
dustrias "mais antigas" para regi6es com salaries mais baixos; aumento 
dos gastos militares, cuja justificativa nao e realmente militar mas sim a 
da criac;ao de demanda anticfclica; queda do salario real na economia 
formal; expansao da economia informal; menor produc;ao de alimen-
tos baratos; crescente "ilegalizac;ao" da migrac;ao interzonal. 
Os fenomenos sintomaticos de que a hegemonia come<_;a a declinar 
sao: maior forc;a economica de grandes potencias "aliadas"; instabili-
dade monetaria; perda de autoridade nos mercados financeiros inter-
2. Cada um des temas aqui resumidos foi elaborado com mais extensao em muitos ensaios escritos 
nos ultimos 15 anos, varios des quais foram inclufdos em Immanuel Wallerstein, Geopolitics and Gee-
culture: Essays in a Changing World-System. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. 
37 
Parte 1- Os a nos 90 e depois: podemos reconstruir? 
nacionais com a ascensao de novos centros de decisao; crises fiscais do 
pafs hegemonico; enfraquecimento da polariza<;ao e da tensao polftica 
mundial, que eram fontes de organiza<;ao e estabilidade (neste caso, a 
Guerra Fria); men or vontade popular de sacrificar vidas pela manuten-
<;ao do poder hegemonico. 
Tudo isto me parece, como ja disse, ter sido "normal" e historica-
mente previsfvel. 0 que deveria acontecer agora, no processo dclico 
"normal", e a ascensao de estruturas substitutas. Em cinco a dez anos 
n6s deverfamos ingressar numa nova fase Kondratieff A, baseada em 
novos produtos de ponta monopolizados, concentrada em novos cena-
rios. 0 Japao eo centro mais 6bvio, sendo a Europa Ocidental o se-
gundo e os Estados Unidos o terceiro (mas talvez urn terceiro fraco). 
Tambem deverfamos assistir ao infcio de uma nova competi<;ao 
pela hegemonia. Enquanto a posi<;ao dos EUA se desmorona, lenta 
mas visivelmente, dais candidatos a sucessao deverao medir for<;as. Na 
situa<;ao atual, eles s6 poderiam ser o Japao e a Comunidade Euro-
peia. Segundo o padrao das duas ultimas sucess6es - a Inglaterra con-
tra a Fran<;a para suceder a Holanda, e os Estados Unidos contra a Ale-
manha pela sucessao da Gra-Bretanha- n6s deverfamos esperar, em 
teoria, nao imediatamente mas no curso dos pr6ximos cinquenta a 75 
anos, que a potencia maritima/aerea, o Japao, transforme a anterior 
potencia hegem6nica, os Estados Unidos, em seu parceiro subalterno, 
e comece a competir com a potencia de base terrestre, a Uniao Euro-
peia. Essa disputa deveria terminar com uma "guerra (mundial) de trin-
ta anos" e o suposto triunfo do Japao. 
Eu diria logo que nao acho que isso venha a acontecer, ou nao exa-
tamente desse jeito. Acredito que ambos os processes de reorganiza<;ao-
o do sistema muDdial de produ<;ao e o de distribui<;ao mundial do poder 
estatal- ja come<;aram, e na dire<;ao do padrao "tradicional" (ou "nor-
mal" ou previa). Mas eu prevejo que o processo sera interrompido ou 
desviado por causa da entrada em cena de novas processos ou vetores. 
Para analisarmos isto claramente, n6s precisamos, no meu enten-
der, de tres contextos temporais independentes: os pr6ximos anos, os 
seguintes 25 a trinta anos, e o perfodo posterior a este. 
A situa<_;:ao em que nos encontramos hoje, nos anos 90, e bastante 
"normal". Ainda nao eo que eu chamaria de "ca6tica", mas, antes, a 
subfase aguda fina (ou o momenta culminante) da atual fase Kondratieff 
B- comparavel a 1932-39, 1893-97, 1842-49, 1786-92 etc. As taxas 
Ap6s o Iiberalismo 
de desemprego estao altas no mundo inteiro, as taxas de lucro sao bai-
xas. Ha grande instabilidade financeira, refletindo acentuado e justifi-
cado nervosismo no mercado financeiro em razao das flutua<;6es de 
curto prazo. A maior inquieta<;ao social reflete a incapacidade polftica 
dos governos de oferecerem solu<;6es aceitaveis no curto prazo e, par-
tanto, a incapacidade de recriarem uma sensa<_;ao de seguran<;a. A bus-
ca de bodes expiat6rios internes e a mendicancia entre pafses tor-
nam-se politicamente mais atraentes quando as habituais medidas de 
ajuste parecem trazer pouco alfvio imediato. 
No decorrer desse processo, muitas empresas reduzem suas ativi-
dades, sao reestruturadas ou vao a falencia, e em muitos casos nao rea-
brem. Com isso, o fracasso de certos grupos de trabalhadores e deter-
minados empresarios sera irreversfvel. T odos os pafses serao afetados, 
embora em grau muito variavel. Quando o processo chegar ao fim, al-
guns pafses terao galgado posi<;6es e outros terao cafdo em termos de 
solidez economica. 
Em mementos como esses, muitas vezes as grandes potencias ficam 
militarmente paralisadas devido a uma combina<;ao de instabilidade po-
lftica interna, dificuldades financeiras (que tornam indesejaveis as despe-
sas militares) e aten<;ao voltada para dilemas economicos imediatos (que 
resulta em isolacionismo). A rea<;ao do mundo aoconflito armada que 
surgiu com a extin<;ao da lugoslavia e urn exemplo tfpico desse tipo de 
paralisia. E, eu insisto, isto e "normal", faz parte dos padr6es previsfveis 
do funcionamento da economia internacional capitalista. 
Logo, o normal seria que depois entrassemos num perfodo de recu-
pera<;ao. Ap6s uma fase de moderac;ao do desperdfcio (tanto do consu-
mismo suntuario como do desleixo ecol6gico) e das ineficiencias (con-
luios, excesso de pessoal por pressao sindical, rigidez burocratica), vira 
urn novo impulse, dinamico e eficiente, de novas industrias monop6li-
cas de ponta e segmentos recem-criados de consumidores que incre-
mentarao a demanda efetiva total. Em suma, renovada expansao da 
economia mundial a caminho de uma nova era de "prosperidade". 
Os tres centros, segundo ja sugerimos e se admite em geral, serao os 
Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japao. Nos dez primeiros anos 
desta proxima fase Kondratieff "A" desenrolar-se-a sem duvida uma 
forte competi<;ao entre os tres centres, cada urn tentando impor a sua 
versao do produto. Como ja provou Brian Arthur em seus trabalhos, o 
fato de uma determinada versao prevalecer pouco ou nada tern a ver 
39 
Parte l-Os anos 90 e depois: podemos reconstruir? 
com eficiencia tecnica e tudo com poder3• Poderfamos acrescentar a 
persuasao ao poder, s6 que nesta sit_ua~ao a persuasao em grande par-
te depende do poder. 
0 poder de que estamos falando e principalmente economico, mas 
e respaldado pelo poder estatal. Este e urn ciclo que se realimenta a si 
mesmo: urn pequeno poder gera urn pouco de persuasao, que cria 
mais poder, e assim por diante. Urn pais impulsiona-se ate a lideran~a e 
passa a exerce-la. Em certo momento, urn limiar e ultrapassado. Os 
produtos "Beta" ficam fora do mercado e os "VHS" ficam como mo-
nop6lio. Minha aposta e simples: o Japao tera mais "VHSs" que a 
Uniao Europeia, e empresarios norte-americanos negociarao com em-
presarios japoneses para ficarem com uma fatia do bolo. 
0 que os empresarios dos EUA conseguirao com esses acordos, 
comprometendo-se completamente nos anos entre 2000 e 2010, mais 
ou menos, e bastante 6bvio: nao ficarem totalmente de fora. 0 que 0 
Japao conseguira nao e menos 6bvio, especialmente tres coisas: 1) se 
os Estados Unidos sao urn parceiro, nao sao urn concorrente; 2) os 
Estados Unidos ainda serao a maior potencia militar, eo Japao, por 
muitas raz6es (a hist6ria recente e seus efeitos sobre a polftica interna e 
a diplomacia regional, alem das vantagens economicas do baixo nfvel 
de gastos militares), vai preferir contar com a prote~ao militar nor-
te-americana por algum tempo; 3) os Estados Unidos ainda tern a me-
Ihor estrutura de pesquisa e desenvolvimento na economia internacio-
nal, em bora esta vantagem tambem va desaparecer. As empresas japo-
nesas reduzirao seus custos aproveitando essa estrutura. 
Em face dessa grandiosa alian<;;a economica, os membros da Uniao 
Europeia deixarao de !ado todas as suas desaven<_;;as secundarias, se e 
que ja nao o fizeram ha muito tempo. A Uniao Europeia esta incorpo-
rando os pafses da EFf A (Associa<;ao Europeia de Livre Comercio), 
mas nao vai incorporar os da Europa centro-oriental (salvo, talvez, uma 
area restrita de livre comercio, possivelmente semelhante ao relaciona-
mento entre o Mexico e os Estados Unidos no Nafta). 
A Europa (ou seja, a UE) formara urn segundo mastodonte econo-
mico e sera urn concorrente de peso para o cons6rcio Japao-Estados 
3. Ver, entre outros, W. Brian Arthur, Competing Technologies, Increasing Returns, and Lock-in by 
Historical Events. Economic Journal XLIX, n. 394, man;o de 1989, p. 116-131; e W. Brian Arthur, Yu. 
M. Ermoliev eM. Kaniovski, Path-Dependent Processes and the Emergence of Macro-Structure. Euro-
pean Journal of Operation Research XXX, 1987, p. 292-303. 
40 
Ap6s o libera[ismo 
Unidos. 0 resto do mundo se relacionara de diversas maneiras com as 
duas zonas desse mundo bipolar. Do ponto de vista dos centros de po-
der economico, havera tres fatores fundamentais a serem considerados 
ao se avaliar a importancia desses outros pafses: em que medida suas 
industrias serao essenciais ou mais adequadas a opera<_;ao das cadeias 
produtivas das principais mercadorias; em que medida suas industrias 
serao essenciais ou mais adequadas a manuten<;;ao de uma demanda 
efetiva satisfatoria para os setores produtivos de maior rentabilidade; a 
medida em que determinados pafses atenderao a necessidades estrate-
gicas (localiza<;ao e/ou poder geomilitar, materias-primas basicas etc.). 
Os dois pafses que ainda nao se integraram consideravelmente ou 
o bastante nas duas redes em processo de forma<;;ao, mas cuja inclusao 
sera essencial pelas tres raz6es anteriores, serao a China para o consor-
cio Japao-Estados Unidos e a Russia para a UE. Para serem bern inte-
grados, os dois pafses terao de manter (ou, no caso da Russia, atingir 
primeiro) urn certo nfvel de estabilidade e legitimidade interna. Ainda 
nao e possfvel determinar se eles conseguirao fazer isso, talvez sendo 
ajudados pelas partes interessadas, mas eu acredito que as chances sao 
moderadamente favoraveis. 
Suponhamos que esta perspectiva seja correta: o surgimento de 
uma economia internacional bipolar com a China fazendo parte do 
polo Japao-Estados Unidos e a Russia inserida no polo da Europa. Su-
ponha-se tambem que ocorra uma nova expansao, e talvez muito gran-
de, da economia mundial a partir de 2000 e ate 2025, mais ou menos, 
com base nas novas industrias monop6licas de ponta. Que podemos 
esperar nesse contexto? Terfamos mesmo uma repeti~_;ao do perfodo 
1945-1967/73, os "trente glorieuses" de prosperidade estendida a todo 
o mundo, relativa paz e, acima de tudo, muito otimismo quanta ao fu-
turo? Eu acho que nao. 
Havera varias diferen~_;as evidentes. A primeira e mais 6bvia, a meu 
ver, e que estaremos num sistema internacional bipolar, e nao unipolar. 
A tese que considera unipolar o sistema internacional vigente entre 1945 
e 1990 nao tern ampla aceita~_;ao. Ela contradiz a postura de urn mundo 
que se autodenominava de "guerra fria" entre duas superpotencias. Mas 
dado que essa guerra fria baseava-se num acordo, feito com anuencia 
dos dois antagonistas, que visava a congelar o equilibria geopolftico, e 
dado que esse congelamento geopolftico (apesar de todas as declara~_;6es 
publicas de conflito) nunca foi realmente violado por nenhum dos anta-
gonistas, inclino-me a considera-lo urn conflito teatralizado (e portanto 
Parte l-Os anos 90 e depois: podemos reconstruir? 
sumamente limitado). Na verdade, quem cantava de galo eram os que 
exerciam o poder de decisao nos.~UA, e seus similares sovieticos devem 
ter sentido muitas vezes o peso dessa realidade. 
Janos anos de 2000 a 2025 nao acho provavel que possamos afir-
mar que o cons6rcio Japao-Estados Unidos ou a UE esteja "cantando 
de gala". 0 poder economico e geopolltico concreto de ambos estara 
muito equilibrado. Em quest6es elementares e banais como as vota-
~6es em 6rgaos internacionais, nao havera maioria automatica, nem 
sequer facil. Com certeza, essa competic;ao con tara com muito poucos 
aspectos ideol6gicos. E provavel que a sua base seja quase exclusiva-
mente o interesse material de cada urn. Nem por isto o conflito sera me-
nos acirrado; de fato, sera mais diffcil contorna-lo com remendos mera-
mente simb6licos. Na medida em que o conflito for menos politico na 
sua forma, podera tornar-se mais visceral nas suas manifestac;6es. 
A segunda diferen~a importante decorre do fato de a corrente de in-
vestimento internacional vir a concentrar-se na China e na Russia entre 
os anos 2000 e 2025, em grau comparavel a concentra~ao do investi-
mento na Europa Ocidental e no Japao entre 1945 e 1967/73. Mas isto 
significara que a quantia destinada ao resto do mundo deve ser diferente 
da de 1945-67/73. Nesse perfodo, praticamente a unica das "antigas" 
regi6es onde continuou a haver investimento foram os Estados Unidos. 
Em 2000-2025, o investimento