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490905 i6u · ou ·<·}As Decis6es ..•. · Hist6ricas ... do seculo ·.Vinte e Um. 1/JEDITORA Y VOZES >7993Z9/FE Utopistica, titulo estranho, cujo conteudo o proprio autor explica. Utopistica e uma avalia9ao profunda das altemativas historicas, e 0 exercicio de nosso juizo para examinar a racionalidade substantiva de possiveis sistemas historicos alternatives. E uma avalia<;ao sobria, racional e realista dos sistemas sociais humanos, em que condi9oes eles poderil . existir e as areas que estao abertas a criatividade humana. Nao o rosto de urn futuro perfeito, mas o rosto de urn futuro com melhoras verossimeis e possiveis. E urn exercicio que ocorre simultaneamente na ciencia, na politica e na moral. A utopistica tern a ver com a conciliac;ao daquilo que a ciencia, a moral e a politica afirmam ser nossos objetivos ultimos. Algumas referencias sobre I. Wallerstein: • "Lucido, bern informado e com muitos insights inovadores" (New York Times). • "Wallerstein faz uso de sua erudiyaO historica e de SeUS incriveis conhecimentos f:-""' .· . E - i1 iJN I DAD : •• •• ·•• ••••••• !iNo CHAMA·D·.·A: H '} Q J..!n .>·~ 9QS j-··!.'?.:~!/::11..; .... -~ ····· ~- .... :l;.\..1. ~ 5.0..U.. -·· ...... . ·v· ~a .. ········· ~~~~~~~-~~ PROC.: .. ~~~- ~: ........... 0: --~--~· PR~QO~~<S~ ..••. DA1A: .~4.1.~1~~-· . ~' :> ' COD. TITULO: .?JJ .. ta.::t ABPDEA AB AB AB A.ssocia<;Oo llra~leira para a Pro!e¢o dos Direitos Editoriais • Autorais RESPEIH 0 AUT OR NAo FA<,:A CoPIA - Dados Intemacionais de Cataloga~ao na Publica«;ao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Wallerstein, Immanuel Utopfstica, ou, As decis6es hist6ricas do seculo vinte e urn I Immanuel Wallerstein ; tradw;:ao de Vera Lucia Mello Joscelyne.- Petr6polis, RJ: Vozes, 2003. ISBN 85.326.2912-1 Titulo original : Utopistics : Or, Historical Choices of the Twenty-first Century. Bibliografia. 1. Polftica mundial - 1989 - Previs6es 2. Seculo 21 - Previsoes L Tftulo. II. Titulo: As decisoes hist6ricas do seculo vinte e urn. 03-3913 CDD-303.490905 indices para catalogo sistematico: 1. Previs6es : seculo 21 : Sociologia 2. Seculo 21 : Previs6es : Sociologia 303.490905 303.490905 Immanuel Wallerstein Utopfstica ou As decis6es hist6ricas do seculo vinte e um Tradu~ao de Vera Lucia Mello Joscelyne A EDITORA Y VOZES Petr6polis 2003 © 1998 by Immanuel Wallerstein Tftulo original ingles: Utopistics, or, Historical·Choices of the Twenty-first Century Direitos de publica~ao em lingua portuguesa 2003, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luis, 100 25689-900 Petr6polis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra podera ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletronico ou mecanico, incluindo fotoc6pia e grava~ao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissao escrita da Editora. Este livro e uma versao revisada de uma serie de Conferencias intitulada Sir Douglas Robb que teve Iugar nos dias 16, 22 e 23 de outubro de 1997, na Universidade de Auckland, na Nova Zelandia. Agrade~o a Universidade porter me convidado a dar essas conferencias e permitido que eu desenvolvesse os argumentos deste ensaio. Parte do capitulo 2 aparece em urn artigo publicado no Canadian] ournal of Sociology em 1998. Editorafao e org. literaria: Ana Kronemberger ISBN 85.326.2912-1 (edi~ao brasileira) ISBN 1.56584.457-2 (edi~ao americana) Este livre foi composto e impressa pela Editora Vozes Ltda. Sumario 1. 0 fracasso dos sonhos ou o parafso perdido?, 7 2. A diffcil transi~ao ou o inferno na Terra?, 49 3. Urn mundo substantivamente racional, ou sera possivel recuperar o paraiso?, 87 1 0 fracasso dos sonhos ou o paraiso perdido? Utopias? "Utopfstica"? Sera isso apenas umjogo 7 de palavras? Acho que nao. Utopia, como sabemos, foi uma palavra inventada por Sir Thomas More e significa literalmente "em Iugar nenhum". 0 verda- deiro problema com todas as utopias de que tenho ciencia e nao s6 0 fato de que, ate 0 momento, elas nunca existiram em Iugar algum, mas tambem o fato de que eu, e muitas outras pessoas, temos a sensa- <_;ao de que elas sao sonhos paradisfacos que nunca poderiam existir na Terra1• As utopias tern fun~6es religiosas e, algumas vezes, pod em ser, mecanismos de mobiliza~ao polftica. No entanto, em termos po- lfticos, elas tern uma certa tendencia a ricochetear. Pois, sendo geradoras de ilus6es elas, inevitavelmen- te, tambem geram desilus6es. Alem disso, as utopias podem ser usadas - e o foram, muitas vezes - como justificativas para terrfveis injusti~as. Na verdade, o que menos nos faz falta nos dias que correm sao no- vas vis6es ut6picas. 0 que quero dizer com a palavra "utopfstica", uma palavra substitutiva que inventei, e algo bastante diferente. "Utopfstica" e uma avalia~ao profunda das alternativas hist6ricas, o exerdcio de nosso jufzo para examinar a racionalidade substantiva de possfveis sis- temas hist6ricos alternativos. E uma avalia~ao s6bria, racional e realista dos sistemas sociais humanos, em que condi~6es eles podem existir, e as areas que estao abertas a criatividade humana. Nao o rosto de urn fu- turo perfeito ( e inevitavel) e sim o rosto de urn futu- .R ro cujas melhoras sejam verossfmeis e que seja histo- v ricamente possfvel (embora Ionge de ser inevitavel). Assim, e urn exerdcio que ocorre simultaneamente na ciencia, na polftica e na moralidade. Se uma forte conexao entre ciencia, polftica e moralidade ja nao -~. Analisei a fun~ao social e as limitag6es das utopias em Marxisms as Uto- pias: Evolving Ideologies, in: Unthinking Social Science: The Limits of Ninete- enth-Century Paradigms (Cambridge: Polity Press, 1991), p. 170-84. Este artigo compara os conceitos de utopia de More, Engels e Mannheim. parece fazer parte do espfrito da ciencia moderna, apelo para aquilo que Durkheim disse a respeito da ciencia: "Ora, sea ciencia nao pode nos ajudar a esco- lher o melhor objetivo, como podera nos indicar o melhor caminho para chegar aquele objetivo? PQ_r._ que ela deveria recomendar que escolhessemos o ca- minho mais rapido a preferencia do mais economi- co, o mais certo em vez do mais simples, ou vice-ver- sa? Se ela nao e capaz de nos guiar na defini~ao de nossos fins mais elevados, tera ainda menos poder para determinar aqueles fins secundarios e subordi- nados a que chamamos de meios"2~ E claro que nossos c6digos morais tambem tern a presun~ao de nos oferecer orienta~ao com rela~ao a nossos melhores objetivos. E a polltica tern que ver com a realiza~ao terrestre desses objetivos, ou pelo menos e isso o que ela alega. A utopistica, no entanto, tern que ver com a concilia~ao daquilo que a ciencia, a moralidade e a polftica afirmam ser nossos objetivos- nossos objetivos finais, nao aqueles fins secundarios e subordinados a que chamamos de meios. Nao ha du- () vida de que esses ultimos tambem tern sua importan- ·' cia, mas eles constituem os problemas continuos da vida normal de urn sistema hist6rico. Definir nossos objetivos finais e algo que nos parece bastante diffcil de realizar eficazmente. E e unicamente em momen- 2. Emile Durkheim, The Rules of Sociological Method (Nova lorque: Free Press, 1982), p. 86. tos de bifurca~ao sistemica, de transi~ao hist6rica, que a possibilidade se torna real. E e tambem nesses me- mentos, naquilo que chamo de TempoEspa~o trans- formacionaP, que a utop£stica se torna nao s6 mera- mente relevante mas tambem nossa preocupa~ao principal. Estamos, agora, em urn destes momentos. A discussao revolve necessariamente ao redor do conceito de racionalidade substantiva, urn conceito proposto por Max Weber em contraposi~ao ao con- ceito de racionalidade formal. Para Weber, a ideia de racionalidade substantiva e a escolha de fins que se- jam considerados "valores ultimos" (wertende Postula-te). Ele nos diz que o conceito e "cheio de ambigliida- des'' e que "ha urn numero infinite de possiveis esca- las de valor para esse tipo de racionalidade". Neste sentido, ele acrescenta, "o conceito 'substantivo' [ ... ] e urn conceito abstrato, generico"4• Esses valores, como nos diz a expressao original de Weber em ale- mao, sao "postulados", e a respeito de postulados ob- viamente podemos discordar. 0 mais provavel, alias, e que deles discordemos. Dessa forma, nossas prefe- 3. Veja minha discussao do tema em The Invention of TimeSpace Realities: Towards an Understanding of our Historical Systems, in: Unthinking Social Science: The Limits of Nineteenth-Century Paradigms (Cambridge: Polity Press, 1991 ), p. 135-48. 4. Max Weber, Economy and Society, Nova torque: Bedminster Press, 1968, I, p. 85-86. Veja uma outra discussao de sse conceito que fiz em Social Scien- ce and Contemporary Society: The Vanishing Guarantees of Rationality, International Sociology, XI, 1 ° de mar~o de 1996, p. 7-26. rencias morais nos encaminham diretamente para as lutas polfticas. Em que momenta, en tao, a ciencia entra na est6- ria? Como e que o conhecimento social pode nos ajudar a tomar essas decis6es morais e polfticas? Na arena polftica, usando essa frase em seu sentido mais amplo, ninguem simplesmente declara suas escolhas polfticas. Pelo menos no mundo moderno, todos n6s temos que pedir apoio para nossos argumentos nao s6 aqueles que compartilham nossos interesses e preferencias imediatas mas tambem a urn grupo muito mais amplo de pessoas. E e isso que gera a legi- timidade. Legitimidade e resultado de urn processo de Iongo prazo que tern, como elemento central, urn tipo espedfico de persuasao: envolve convencer aque- las pessoas que parecem nao estar se dando muito bern no curto prazo de que sua vida ira melhorar, ou ate ficar muito melhor, em urn prazo urn pouco maior, precisamente devido a estrutura do sistema e que, por essa razao, elas devem apoiar a continua~ao do funcionamento do sistema e seu processo decis6- rio. Essa perda de legitimidade e que, a meu ver, e urn dos fatores principais para a crise sistemica em que nos encontramos atualmente. Recriar urn tipo de ordem social nao significa apenas construir urn sistema alternative mas tambem, e em grandissima parte, legitimar o sistema construido. E possfvel legitimar sistemas - e ate certo ponto ainda o fazemos - recorrendo a autoridade ou aver- I clades mfsticas. No entanto, nos dias atuais, tambem legitimamos sistemas - e provavelmente com maior freqiiencia- atraves dos chamados argumentos ra- cionais. Esses argumentos sao propagados atraves do discurso cientffico, e sua validade e j ustificada pelo respeito que se tern ao conhecimento cientffico. No entanto, e claro que nem tudo 0 que OS cientistas afir- mam ser verdade e necessariamente correto. E existe ainda maior duvida quanto a validade das dedu~6es a que as pessoas na arena poHtica dizem chegar por meio daquilo que elas creem - ou fingem crer - ter sido demonstrado cientificamente. A validade do nos- so saber coletivo e, particularmente, as conclus6es que dele podemos tirar sobre nossos sistemas hist6- ricos sao, assim, uma questao central na luta sobre aquilo que constitui racionalidade substantiva. Par- tanto, a utopistica envolve uma reconsidera~ao pro- funda das estruturas do conhecimento e daquilo que realmente sabemos a respeito da maneira como o mun- do social funciona. Desde o momenta em que come~amos a ter so- nhos - grandes sonhos, sonhos polfticos - tambem tivemos decep~6es. A Revolu~ao Francesa mobili- zou muitos milh6es de pessoas e surpreendeu a to- dos aqueles que dela participaram. Parecia o desper- tar de uma nova era. E nao muito pouco tempo de- pois, urn de seus mais antigos admiradores, William Wordsworth, escreveu seu amargo requiem, os Prelu- dios, pelos estragos terrfveis que a Revolu~ao tinha infligido. Por outro lado, a Revolu~ao Russa, que co- me~ou como Os dez dias que abalaram o mundo, uma gera~ao mais tarde, passou a ser, para muitos, 0 Deus que fracassou. E essa est6ria, tao 6bvia no caso das pic(- neiras revolu~6es francesa e russa, vern se repetindo continuamente com rela~ao a muitos outros aconte- cimentos polfticos a que chamamos de "revolu~6es" no mundo moderno. Para pensadores conservadores, a partir de Bur- ke e De Maistre, isso e reflexo daquilo que ocorre inevitavelmente como resultado da engenharia so- cial. E dizem eles que quanto maior for a ambi~ao, maior o dano. 0 ponto central do conservadorismo como ideologia moderna e a convic~ao de que os riscos de uma intromissao coletiva e consciente nas estruturas sociais existentes, que evolufram lenta e historicamente, sao muito elevados. No melhordos casos, argumentam eles, a realiza~ao de mudan~as e possfvel, desde que estas sejam primeiramente ava- liadas com muita cautela e que sejam consideradas absolutamente necessarias. E mesmo assim, e preci- so que sejam introduzidas com enorme cuidado e muito gradativamente. Nessa doutrina conservado- ra, misturam-se as duvidas teol6gicas sobre a corre- ~ao da interven~ao humana no mundo de Deus com urn ceticismo sobre a capacidade que o ser hu- mano tern de ser sabio ou, melhor ainda, a capacida- de humana de tomar decis6es coletivas que sejam bern pensadas e sabias. 1 Ll ' I Nao hi duvida de que existem boas raz6es hist6- ricas para esse tipo de ceticismo. E e po~sfvel enten- der como pessoas inteligentes e bem-intencionadas podem chegar a conclusao de que, de urn modo ge- ral, e melhor ir devagar com mudan~as polfticas, para evitar que as coisas possam ficar ainda piores do que estao no momenta. 0 problema com esse tipo de conservadorismo honesto e que ele repre- senta a posi~ao (e os interesses) daqueles que, neste momenta, estao em uma boa situa~ao tanto em ter- mos de sua posi~ao socioeconomica como em todas as outras quest6es relacionadas com qualidade de vida. No entanto, para todos aqueles em situa~6es piores, e especialmente para aqueles cuja situa~ao e realmente terrfvel, a (mica coisa que essa posi~ao conservadora cleixa e uma mera recomenda~ao de que sejam pacientes, pois sua situa~ao pode vir a ser amenizada por algum tipo de caridade imediata. No entanto, como, segundo a propria doutrina conser- vadora, essa paciencia exigida nao tern, em urn certo sentido, quaisquer limites de tempo especificados ( e conservadores geralmente tern o costume de falar sobre a inevitabilidade da hierarquia social e, par- tanto, tambem de aceitar uma permanente desi- gualdade social), ela oferece, para a maioria da po- pula~ao mundial, apenas a esperan~a de que uma me- lhoria infima possa vir a se concretizar em suas vi- das, e de que, ate mesmo nas vidas de seus filhos, muito pouco poderi ser concretizado. As origens das chamadas sublevac;6es revolucio- narias no mundo moderno sao uma questao dificil e polemica e, quanto a mim, estou disposto a admitir que elas nao representaram, na maior parte das vezes, rebeli6es espontaneas das massas oprimidas buscan- do transformar o mundo e sim uma oportunidade que foi aproveitada- pelo menos inicialmente- por grupos espedficos, em epocas de colapso da ordem do Estado (urn colapso para o qual esses grupos s6 contribuiram ocasionalmente). Mas entre todas es- sas revoluc;6es postas em movimento, as mais dura- douras foram as que lograram atrair urn apoio popu- lar consideravel. Acho que a explicac;ao para este apoio post hoc e simples. A paciencia, que OS pensadores conservadores recomendam que os menos privile- giados devam manifestar, nunca foi aceita entusiasti- camente, ou profundamente, ou de uma forma mais ampla por esses menos privilegiados. Alem disso, a fe que esses grupos subalternos tern, na verdade, na sa- bedoria das estruturas tradicionais e em seus lideres sempre foi bastante limitada. Pelo contrario, esses grupos menos privilegiados foram vitimas da autori- dade, tendendo a considera-la comoinevitavel no pior dos casos, ou, no melhor, como algo diffcil de influenciar e mais ainda de destruir. 0 que as suble- vac;6es revolucionirias oferecem as populac;6es que dizem representar e cujo apoio morale politico bus- cam, e urn rompimento de expectativas sociais, uma introduc;ao repentina da esperanc;a (ate mesmo de urn a grande esperanc;a) de que tudo ( ou pelo menos 16» t < muita coisa) possa realmente ser mudado, e mudado rapidamente, na dire~ao de uma maior igualdade hu- mana e da democratiza~ao. Se nao compreendermos que e essa esperan~a, para si mesmos e para seus fi- lhos, que faz com que as Madames Lafarge deste mundo possam tricotar enquanto os aristocratas es- tio sendo guilhotinados, naopodemos sequer come- ~ar a compreender a hist6ria polltica dos ultimos du- zentos anos do sistema mundial moderno. Isso nao quer dizer que as pessoas comuns tenham aplaudido o Terror ou os Gulags. Algumas o fizeram, mas muitas nao. Algumas deram urn apoio conscien- teaos Terrores; algumas deram seu apoio as revolu- . ~6esapesardos Terrores; e muitas se convenceram de que naoestavam cientes dos Terrores. Porem aver- dade e que elas realmente apoiaram as revolu~oes, pelo menos por bastante tempo, e se isso ocorreu foi porque as revolu~6es geravam a esperan~a em situa- ~6es que, em sua ausencia, pareciam totalmente de- sesperadoras, e desesperadoras nao meramente antes das revolu~6es mas, provavelmente, tambem ap6s qualquer tipo de contra-revolu~ao. E bern verdade que todos os tipos de revolu~ao deterioram por raz6es tanto externas quanto inter- nas. Externamente elas sao combatidas, e combatidas com ferocidade. Internamente, todas degeneraram. Os que ocuparam o poder foram ficando cada vez mais desunidos, em parte sobre questoes taticas mas em maior parte devido a competi~ao pelo poder. As revolU<;6es come~am a devorar seus filhos, e come- ~am a mostrar sua face desagradavel, e com isso co- me~am a perder muito do apoio que tinham adquiri- do originalmente. Hoje em dia existe uma aceita~ao geral - embora nao universal - de que a Revolu~ao Francesa nao foi uma revolu~ao burguesa e de que a Revolu~ao Russa nao foi uma revolu~ao proletaria. E o que foramen- tao? Sera que sequer foram revolu~6es? A resposta vai depender daquilo que entendemos por revolu- ~ao (polftica e/ou social). 0 proprio conceito de un:a revolu~ao moderna pressup6e a relevancia absoluta que OS limites do Estado tern para a analise e para a a~ao e sua autonomia relativa em evolu~ao. Presume que os Estados no mundo moderno podem ser clas- sificados como feudais, capitalistas, socialistas ou qual- quer outra coisa. Disso se deduz, entao, que pode- mos falar de disjun~6es que marcam a transforma~ao da estrutura de qualquer Estado espedfico e chamar essas disjun~6es de revolu~6es. E tambem se deduz, en tao, que podemos intencionalmente provocar ( ou tentar provocar) essas disjun~6es. Isso e essencialmente o que queremos dizer quando falamos de revolu~6es e de atividade revolu- cionaria. E bern verdade que sempre houve uma grande discordancia quando se tenta definir quais sao os criterios que distinguem a chamada mudan~a polftica comum (mesmo que seja por meios violen- tos) da chamada verdadeira mudan~a revolucionaria. Mas essas discordancias nao afetam o modelo basico de ambas facetas desse argumento, ou seja, aquele que afirma que transforma~6es basicas podem ocor- rer no nfvel do Estado, e que, com efeito (para mui- tos ou ate mesmo para a maioria dos analistas), mu- dan~as desse tipo s6 pod em ocorrer no nfvel do Esta- do. Eu irei lhes oferecer urn modelo diferente, que afirma que nao existiram quaisquer revolu~6es nos Estados que perfazem o sistema mundial moderno, e que elas nao poderiam mesmo ter ocorrido, se, para nos, revolu~6es significam uma mudan~a que trans- forma o modo de funcionar de urn Estado e a estru- tura social que sustenta aquele Estado que presumi- velmente passou por uma revolu~ao. Afirmarei tam- bern que, apesar disso, as chamadas revol u~6es fo- ra_rnelementos extremamente importantes na evolu- ~aC>hist6rica do sistema mundial moderno, porque elasrealmente mudaram parametres importantes so- brecomo o sistema mundial como urn todo vern evo- luindo. E finalmente, afirmarei que, como conse- qiiencia dessa mudan~a de enfase, nem as ilus6es nem as desilus6es foramjustificaveis; e, nao o sendo, nao podem ser consideradas atitudes sensatas a se- rem adotadas frente a esses eventos polfticos. 0 sistema mundial moderno, que e a economia mundial capitalista, vern existindo desde o seculo de- zesseis. Ela foi criada originalmente em uma unica parte do globo, primariamente grande parte da Euro- pa e algumas partes do Hemisferio Ocidental. Even- tualmente expandiu-se, por uma dinamica interna, e gradualmente incorporou outras regi6es do globo a sua estrutura. S6 na ultima metade do seculo dezeno- ve e que o sistema mundial moderno passou a ser geo- graficamente global; e os cantos mais rec6nditos e as 1 regi6es mais remotas do globo s6 foram efetivamente integrados na segunda metade do seculo vinte. A cria<;ao das estruturas estatais ( chamadas Esta- dos soberanos mas operando dentro das restri<;6es de urn sistema interestatal) foi parte essencial da cria<;ao de urn a economia mundial capitalista e urn elemento necessario para sua estrutura<;ao. A evolu<;ao das e~ truturas estatais, sua capacidade de se fortalecerem internamente e com rela<;ao aos demais Estados no sistema mundial foram urn reflexo da evolu<;ao do sistema mundial moderno como urn todo integral. Os Estados nunca foram exatamente entidades auto- no mas e sim meramente urn importante aspecto ins- titucional do sistema mundial. Tinham poder, mas nao era urn poder ilimitado e, e claro, alguns Estados tinham mais poder que outros. Assim, era o sistema mundial como urn todo, e nao os Estados individual- mente, que poderia ser caracterizado como tendo urn modo de produ<;ao. 0 sistema mundial moder- no era, e ainda e, urn sistema capitalista, isto e, urn sistema que opera com base na primazia de uma acu- mula<;ao permanente de capital, por meio da trans- forma<;ao de tudo em mercadorias. Os Estados que pertencem ao sistema sao insti- tui<;6es desse sistema e, com isso, sejam quais forem suas formas espedficas, estao sempre, de alguma ma- neira, tendo que reagir a primazia dess~ fmpeto ca- pitalista. Portanto, se, quando falamos em revolu- ~ao, estamos querendo dizer que urn Estado ante- riormente feudal passou a ser capitalista, ou que urn Estado anteriormente capitalista passou a ser socia- lista, isso nao tern qualquer significado operacional; e, com efeito, uma descri~ao enganosa da realidade. E bern verdade que existem muitos tipos possfveis de regimes polfticos, e nao ha duvida de que, para as pessoas, e extremamente importante a natureza do regime do pais espedfico em que vivem. Mas essas diferen~as nunca alteraram o fato essencial de que todos esses regimes sempre foram elementos funcio- nais do sistema mundial moderno, isto e, da eco- nomia mundial capitalista. Nem poderiam ter feito qualquer diferen~a ate este momento. Ja posso ouvir as obje~6es. Ja as ouvi muitas ve- zes. Como e possfvel afirmar que OS antigos Estados socialistas ( ou ate mesmo aqueles que continuam a ser governados por partidos marxista-leninistas) eram (ou sao) capitalistas? Como e possfvel afirmar que Estados ainda governados por hierarquias tradi- cionais sao capitalistas? Nao fa~o essas afirma~6es porque nao acho que Estados possam ter tais atribui- ~6es. 0 que afirmo e que esses Estados estao locali- zados dentro de urn sistema mundial cuja opera~ao tern como base uma 16gica capitalista e que se as es- truturas polfticas desses Estados, ou os empreendi- mentos estatais, ou as burocracias estatais procura- rem tomar decis6es em termos de alguma outra 16gi- ca (e, e claro, muitas vezes o fazem), irao pagar urn pre<;o muito caro por isso. Em conseqiiencia;o14 elesmudarao seu modus operandi, ou perderao o podef o~ a capacidade de influenciar o sistema. Eu sugeriria que essa e uma clara li<;ao que podemos aprender do chamado colapso dos Comunismos, embora eu nao aceite que tenha sido s6 depois que os partidos co- munistas deixaram o poder que o primado da lei do valor come<_;ou a operar de forma efetiva naquelas re- gi6es. Creio que ela ja estava operando nessas bases muito tempo antes. Uma das obje<_;6es mais comuns que ouvimos com rela<_;ao a esse tipo de caracteriza<;ao dos chama- dos regimes socialistas e que ela pode ser verdadeira, mas que nao precisaria ser verdadeira. Essa e a visao segundo a qual esses regimes eram impuros, inade- quadamente socialistas, ate mesmo traidores do so- nho. Tampouco aceito essa afirma<_;ao. A maioria dos revolucionarios tern a inten<_;ao de serem revolu- cionarios, certamente no infcio de seus esfor<;os. A maioria dos regimes revolucionarios realmente tern a inten<;ao de mudar o mundo. Eles nao vend em seus ideais. Eles apenas descobrem que, como individuos e como regimes, estao limitados e for<_;ados pelas es- truturas do sistema mundial a se comportarem de determinadas maneiras e dentro de certos parame- tros. E que, se nao o fizerem, perderao toda a capaci- 21 22 dade de serem atores importantes no sistema mun- dial. E, com isso, eles subjugam suas intep~6es as rea- lidades, se nao inicialmente, pelo menos com o cor- rer do tempo. Trata-se, ao fim e ao cabo, de compreender como funcionam os sistemas de qualquer especie. Os siste- mas tern fronteiras, mesmo que estas sejam mutan- tes. Os sistemas tern regras, mesmo que estas evo- luam. E os sistemas tern mecanismos internos para faze-los voltar ao equilfbrio e, gra~as a estes mecanis-: mos, o que ocorre e que mesmo oscila~6es relativa- mente grandes- sejam elas intencionais ou acidentais - que os desviem dos padr6es esperados tendem a produzir apenas mudan~as relativamente pequenas e . de medio prazo. Isso nao significa que OS sistemas se- jam estaticos, muito pelo contrario. Eles possuem contradi~6es internas e, ao tentar lidar com essas contradi~6es, manifestam tendencias seculares. E no decorrer de urn perfodo relativamente Iongo, os sis- temas conseqiientemente vao se distanciando do equi- libria e, quando isso ocorre, nao podem mais sobre- viver em sua forma original. Atingem pontos de bi- furca~ao e sao, conseqiientemente, transformados em outros sistemas ou sucedidos por eles. A questao essencial e distinguir entre a vida nor- male continua de urn sistema e seus dois momentos de transforma~ao: em seu come~o e em seu fim. As revolu~6es francesa e russa e todas as outras que esta- mos discutindo ocorreram dentro da vida normal e continua da economia mundial capitalista. Embora elas tivessem representado oscila~6es relativamente grandes com rela~ao aos padr6es esperados, apesar disso, tiveram como resultado mudan~as relativamen- te pequenas e de medio prazo. 0 entusiasmo pelas revolu~6es, demonstrado por algumas pessoas, e a enorme hostilidade, demonstrada por outras, foram parte dos mecanismos do sistema. 0 fato de que os entusiasmos eram cumulativos era urn desses meca- nismos; o fato de que os entusiasmos deram Iugar a desilus6es foi outro deles. As revolu~6es nunca fun- cionaram exatamente nem como esperavam seus pro- ponentes nem como temiam seus oponentes. Isso nao significa que elas tenham sido irrelevantes. Com efeito, a repeti~ao do padrao desse tipo de subleva- ~ao foi urn elemento importantfssimo para o esta- belecimento de certas tendencias seculares no siste- ma, tendencias seculares cujo impacto s6 estamos sentindo hoje, a partir de 1945 e mais ainda depois de 1989. A maioria das ilus6es e desilus6es sobre as revolu- f)~> L.:} ~6es frances a e russa ( e a maior parte do que foi escrito sobre elas) envolvem o imp acto que elas tiveram na Fran~a e na Russia e o debate sobre os meritos daquilo que realmente ocorreu emprega a ret6rica de vis6es profundamente opostas. Eu adoto uma visao de longue duree sobre o impacto interno, uma visao semelhante aquela adotada por Tocqueville. Se compararmos es- ses paises em urn momento vinte anos antes da revo- 24 lu~ao e, em outro, vinte anos apos o mom en to em que geralmente se considera que ela terminou,, nao e assim tao obvio que as mudan~as que vemos sao maiores que aquelas encontradas em pafses comparaveis que nao tiveram uma chamada revolu~ao. No entanto, isso claramente nao seria verdade se examinassemos o sis- tema mundial como urn todo. Podemos rastrear mu- dan~as de grande vulto na geocultura do sistema mundial como resultado dessas duas revolu~6es, mu- dan~as que se refletem nas tendencias seculares do sis- tema mundial como urn todo. E isso e verdade -em- bora possam dizer que as revolu~6es "fracassaram"- no sentido de que os governos revolucionarios (e os sucessores imediatos que afirmavam ser seus herdei- ros ou eram considerados como tais) foram derruba- dos por uma contra-revolu~ao. Todos nos sabemos as reivindica~6es dos revolu- cionarios franceses. Opunham-se ao privilegio here- ditario. Afirmavam a igualdade moral e jurfdica de todas as pessoas. Insistiam na importancia central do conceito de cidadania, isto e, na participa~ao como membro de uma comunidade chamada na~ao, que oferecia, em princfpio, direitos participativos iguais na arena politica (pelo me nos para todos os hom ens adultos). Nao hi duvida de que essas demandas eram a expressao de uma pressao muito maior do que aque- la meramente exercida pelas pessoas que fizeram a Revolu~ao Francesa. Mas foi a Revolu~ao Francesa - pela sua propria violencia, entusiasmo e alcance - que fez com que essas demandas parecessem surgir do reino marginal de ideias impossiveis e penetrar no cenario dos elementos normais, ate mesmo 6b- vios, de qualquer sistema politico. 0 fato de que es- sas demandas foram a seguir disseminadas, sem du'-<~ vida de uma maneira bastante ambigua, pelas tenta- tivas napoleonicas de conquistar o mundo, contri- buiu bastante para que elas se enraizassem na men- talidade popular. A significancia da transforma~ao pode ser observa- da depois de 1815, ap6s a Restaura~ao na Fran~a. Entr~ 1815 e 1848, os conceitos basicos da Revolu~ao Fran- cesa continuaram a abrir caminho para serem incluf- dos na categoria de pressuposi~6es generalizadas so- bre aquila que era aceito como premissas legftimas de a~ao politica. Na verdade, foram tres os conceitos que obtiveram esse tipo de legitimidade. 0 primeiro dizia que a mudan~a polftica era continua e normal e nao excepcional e necessariamente ilegftima. 0 segundo era que a soberania reside no povo e nao em urn go- vernante ou em urn corpo aristocratico corporativo. 0 terceiro era que o povo que reside em urn Estado constitui uma na~ao, da qual sao cidadaos. E bern verdade que nenhum desses tres conceitos foram aceitos como legftimos pelas autoridades esta- tais na era p6s-napoleonica, pelo menos em urn pri- meiro momenta. Com efeito, a ideologia da Santa Alian~a estava explicitamente oposta a esses concei- tos, e espedfica e vigorosamente declarousua ilegiti- 25 26 midade, e ate mesmo sua imoralidade. Os conceitos, no entanto, eram poderosos o suficien~e para exigir urn repudio clara e 16gico e nao apenas a supressao violenta que, por si s6, ja era uma admissao de seu poder. Foi assim, entao, que a ideologia conservado- ra, que foi formulada como uma forma de rejei~ao a Revolu~ao Francesa, estimulou, por sua vez, o de- senvolvimento da ideologia liberal que, embora am- bivalente com rela~ao a partes da Revolu~ao France- sa, na verdade, endossava seus conceitos basicos. A realidade e que a Revolu~ao Francesa abriu a caixa de Pandora e fez surgirem as aspira~6es, expec- tativas e esperan~as populares que todas as autorida- des constitufdas - tanto conservadoras como liberais - tiveram dificuldade de canter. Essencialmente, os conservadores e os liberais diferiam com rela~aoa suas estrategias basicas sobre como canter insurrei- ~6es populares potenciais. Os conservadores aposta- vam em urn fortalecimento da autoridade das insti- tui~6es tradicionais e de lideres simb6licos, perce- bendo o dano que mudan~as na legisla~ao poderiam infligir na ordem social. Assim, a monarquia, a Igreja, as pessoas ilustres locais e as famflias patriarcais eram os grupos escolhidos para serem arregimentados. Por sua vez, os liberais argumentavam essencial- mente que, em termos hist6ricos, era demasiado tarde para que essas institui~6es funcionassem bern, fosse como governo ou para acalmar o descontentamento popular. Defendiam que os prindpios te6ricos reivin- dicados pelas for~as populares - normalidade da mu- dan~a, soberania popular e cidadania - deveriam ser concedidos mas queriam que as mudan~as que pu- dessem ocorrer fossem gerenciadas sob sua egide. Seu programa para esse gerenciamento era a implementa..;, ~ao gradual desses prindpios sob o controle de espe- cialistas que iriam analisar de uma maneira racional o ritmo e a tecnica necessirios para garantir que a mu- dan~a seria gradual e nao deslocaria do poder as famf- lias e os grupos governantes. Em suma, os liberais queriam uma mudan~a que fosse controlada e conce- deram apenas o suficiente para que pudessem conti- nuar a manter a maior parte daquilo que tinham. Ape- sar disso, os liberais achavam que alguma mudan~a era necessaria- e sem demora -, enquanto que os conser- vadores tendiam a deixar que sua cautela se sobrepu- sesse a capacidade de avaliar corretamente a inquieta- ~ao e.xistente, ou ate mesmo a contar com a~6es re- pressivas para conter essa inquieta~ao. Essa luta entre conservadores e liberais das mino- rias governantes ocorreu em todos os Estados mais importantes do sistema mundial entre 1815 e 1848. A est6ria daqueles anos e a de uma constante intensi- fica~ao da insatisfa~ao popular de virias maneiras e em varios lugares. Ainda assim, aquilo a que poderfa- mos dar o nome de revolu~ao mundial ( ou do siste- ma mundial) de 1848 foi totalmente inesperada e urn choque para todos que estavam no poder. Antes de tudo, ela mostrou que, ao contrario do que se acredi- 2'7 28 tava possfvel anteriormente, dois grupos populares foram capazes de se mobilizar seriamente. Esses gru- pos eram, por urn lado, os trabalhadores 'urbanos in- dustriais e, por outro, as nacionalidades/na~6es opri- midas. As insurrei~6es come~aram na Fran~a como uma revolta social e rapidamente se espalharam para outros pafses, muitas vezes como uma rebeliao em nfvel nacional. Parecia sera Revolu~ao Francesa co- me~ando uma vez mais, mas desta feita nao s6 contra os conservadores (ou seja, os porta-vozes dos antigos regimes) mas tam bern contra os ide6logos liberais. · As revolu~6es de 1848 constitufram, portanto, o mo- menta de emergencia de uma terceira ideologia, uma ideologia de esquerda que rompeu os la~os com aqui- la que era entao considerado urn liberalismo centris- ta e se estabeleceu em oposi~ao tanto a esse liberalis- mo como ao conservadorismo de direita. Essa ideo- logia de esquerda teve varios nomes mas, de um modo geral, come~ou a ser chamada de socialismo. Devemos considerar a revolu~ao mundial de 1848 em do is momentos cronol6gicos: os acontecimentos e conseqiiencias imediatas e os efeitos de Iongo pra- zo. Como urn conjunto de eventos que se estende- ram porum perfodo de varios anos, poderfamos di- zer que ela foi como uma fenix. Flamejou muito ra- pidamente, e queimou-se quase com a mesma rapi- dez. 0 perfodo mais radical na Fran~a, por exemplo, durou apenas quatro meses. Essas revoltas ( e mesmo as me nos radicais) foram debeladas com uma for~a contra a qual os elementos radicais nao puderam se opor. Ainda assim, parece claro que os que estavam no poder ficaram bastante assustados com essas re- voltas e seu temor teve como conseqiiencia uma uniao das fon;as conservadoras e liberais em defesa da ordem estabelecida. Em retrospecto, parece ter havido urn acordo tacito entre os conservadores e os liberais. Os conservadores fariam o que quisessem em curto prazo: a reafirma<_;ao da autoridade repres- siva e, em particular, a proscri<_;ao de todos os ele- mentos radicais. No medio prazo, no entanto, seria a vontade dos liberais que predominaria: a institui<_;ao eventual de uma serie de reformas racionais, gradati- vas, nao s6 com o apoio dos conservadores mas tam- bern em uma situa<_;ao em que os conservadores com- petiam com os liberais para tentar supera-los em seu proprio jogo. Os socialistas, proponentes da terceira ideologia, foram tao afetados por 1848 como o foram os con- servadores e os liberais. Enquanto que os proto-socia- listas anteriores ao perfodo de 1848 estavam sobretu- do envolvidos ou com insurgencias conspirat6rias (Carbonari, Blanqui) ou com uma forma de estrate- gia que envolvia uma retirada ut6pica (Owen, Cabet e muitas outras variantes), os fracassos de 1848 (o fato, por -exemplo, de que as revoltas espontaneas nao tiveram nenhum efeito polftico significative) foi como uma chuveirada fria de realismo polftico na es- querda. Voltaram-se, entao, para a propria organiza- 29 ~ao, uma estrategia que, no final das contas, poderia somente se tornar uma teoria de a~ao polftica em es- tagios. Sabemos que estigio os socialistas estavam pondo em funcionamento na segunda metade dose- culo dezenove. No primeiro estigio, a inten~ao era procurar obter o poder em cada urn dos Estados so- beranos; no segundo, a ideia era transformar a socie- dade nacional pelo uso do poder do Estado. Ainda: mais tarde, o campo socialista se dividiria com rela- ~ao as titicas do primeiro estigio- se iriam obter o poder do Estado atraves da urna eleitoral ou por meio de uma insurrei~ao planejada ( divisao que pas- sari a a sera diferen~a te6rica entre a Segunda eaTer- ceira Internacionais). 0 que devemos enfatizar com rela~ao a estrategia socialista da busca organizada do poder do Estado e que, no Iongo prazo, ela nao era assim tao diferente da estrategia liberal de mudan~a racional gerenciada por especialistas. A unica diferen~a era que OS espe- cialistas faziam parte da estrutura partidaria e nao da burocracia. Portanto, no perfodo pos-1848, surgi- ram dois modelos bern claros. Por urn lado, tfnha- mos uma trfade de ideologias - conservadores, libe- rais, socialistas- competindo politicamente em qua- se todas as partes. Por outro, o liberalismo centrista tornou-se a ideologia predominante em todo o mun- do, precisamente porque os programas, tanto dos conservadores, como dos socialistas, come~aram a se transformar em meras variantes do tema liberal la- tente de uma reforma gerenciada. Os dois modelos permaneceram validos nao s6 ate 1917 mas ate 1968. Com isso em vista, podemos argumentar que o efeito de Iongo prazo da Revolu~ao Francesa foi que, ao legitimar urn conjunto de conceitos que anterior- mente tinham sido marginais, ela deu origem a urn trio de ideologias cuja preocupa~ao central era como canter uma pressao popular por mudan~a, agora ja legitimada. Por sua vez, esse conflito politico entre as tres ideologias teve como resultado que uma das tres - o liberalismo centrista- tornar-se-ia predominante e seria capaz de se impor como a geocultura do siste:_ rna mundial, e assim estabelecer os parametros se- gundo os quais todas as a~6es sociais iriam ocorrer por mais de urn seculo. A evolu~ao total pode ser considerada como uma dialetica de processos. 0 desencadear de paix6es po- pulares e, em particular, a legitima~ao de objetivos popu- lares, for~ou os grupos governantes a fazer concess6es importantes no medio prazo atraves do programa de liberalismo. Desses os mais importantes foram o su- fragio (que acabou por se tornar universal) e uma re- distribui~ao de renda parcial (o estado do bem-estar). Essas concess6es foram o resultado da pressao popu- lar alimentada pela esperan~a e por expectativas, mas as pr6prias concess6es refor~aramessas esperan~as e expectativas. No fim do arco-fris liberal parecia estar a visao da sociedade democritica. Mas essa mesma es- peran~a, essas mesmas expectativas fizeram com que r i 32 as camadas populares ficassem muito mais pacientes e menos predispostas a insurrei~ao. Em su~a, as con- cess6es liberais conduziram a uma democratiza~ao re- lativamente significativa das estruturas sociopolfticas (provavelmente o objetivo da Revolu~ao Frantesa), mas tambem a uma redu~ao das press6es por mudan- ~as mais fundamentais (provavelmente a aspira~ao da- queles que se opunham a Revolu~ao Francesa). Nesse sentido, o liberalismo como ideologia foi extrema- mente bem-sucedido na manuten~ao da ordem poli- tica subjacente da economia mundial capitalista. Mas, nesse mesmo sentido, a Revolu~ao Francesa tambem deixou sua marca na estrutura~ao e nas tendencias se- culares do sistema mundial moderno. 0 seculo dezenove nao foi somente 0 seculo das demandas populares pela democratiza~ao e da pre- dominancia emergente da ideologia liberal como meio mais eficaz de conter essas demandas populares. Foi tambem a epoca da emergencia do nacionalismo/et- nicidade, do racismo, e do machismo como temas basicos subjacentes da geocultura. Nao e que as pai- x6es e as praticas em que se baseavam esses temas ti- vessem sido conhecidas pela primeira vez naquele seculo; 0 que ocorreu e que foi nessa epoca que elas se tornaram, pela primeira vez, explkitas, partes teo- rizadas da geocultura, adquirindo, portanto, urn sig- nificado novo e muito mais perigoso. A primeira vista, todos os tres temas parecem con- tradizer diretamente o liberalismo e, portanto, pare- ciam negar a predominancia declarada da ideologia liberal. Mas, na verdade, elas acabaram estabele- cendo urn relacionamento simbi6tico com o libera- lismo. 0 nacionalismo tern, inerentemente, as duas faces de Jano. Ele e o protesto dos oprimidos contta OS opressores. Mas ele e tambem 0 instrumento que os opressores usam contra os oprimidos. Isso foi as- sim no mundo todo. Mas o que e que da ao naciona- lismo essa propriedade? E essencialmente sua cone- rio com a cidadania. A cidadania foi inventada como urn conceito de inclusao do povo nos processes poli- ticos. Mas aquilo que inclui tambem exclui. A cida- dania confere privilegios, e os privilegios sao protegi- dos quando nao incluem a todos. 0 que a cidadania fez foi transferir a exclusao de uma pessoa atraves de uma evidente barreira de classe, e excluf-la atraves de uma barreira nacional e oculta. Essa dupla caracterfstica do nacionalismo- inclu- sao e exclusao- e crucial para 0 objetivo liberal de ge- renciar a mudan~a social, de oferecer concess6es que acalmam mas que nao desfazem o sistema capitalista basico. A inclusao de todos, verdadeiramente de to- dos, teria impossibilitado manter a acumula~ao per- manente de capital, porque espalharia a mais-valia entre muitos, com pouco para cada urn. Por outro lado, se nao houvesse nenhuma inclusao, ou seja, se fosse mantido integralmente 0 ancien regime, teria im- possibilitado a manuten~ao da acumula~ao perma- nente de capital, porque teria despertado a ira popu- lar e destrufdo a carapa~a polftica do sistema. 0 ca- minho intermediirio da cidadania- a inclusao deal- guns e a exclusao de outros - serviu precisamente para acalmar as-camadas mais perigosas dos paises das zonas mais importantes, as classes trabalhadoras e, ao mesmo tempo, ainda excluir da divisao da mais-valia e dos processes decis6rios politicos a vasta maioria das popula~6es mundiais. Por essa razao, o nacionalismo das na~6es podero- sas (tais como a Inglaterra/Gra-Bretanha e Fran~a) aju- dou a preservar o status quo global. Mas o mesmo pa- pel foi desempenhado pelo nacionalismo das na~6es oprimidas, que, no seculo dezenove, ainda significava principalmente o nacionalismo das chamadas na~6es hist6ricas europeias oprimidas e sua transforma~ao de etnias em Estados. Neste caso, nacionalismo signifi- cava a inclusao das classes medias destes Estados e, ate certo ponto, tambem das classes trabalhadoras urba- nas na divisao do bolo. Na medida em que essas na- ~6es obtiveram soberania politica em pequenos gru- pos de cada vez, sua inclusao nao gerou urn problema maior do que a extensao do sufragio nas na~6es ji so- beranas e poderosas, e foi perfeitamente compativel com o programa global do liberalismo. E claro que o nacionalismo e urn conceito que intrinsecamente nao tern limites geogrificos, e isso iria causar alguns pro- blemas posteriores, como veremos. Nacionalismo, etnia e racismo, por sua vez, sem- pre estiveram entrela~ados. 0 racismo, a teoriza~ao explfcita da superioridade da ra~a branca, ou dos aria- nos, floresceu durante o seculo dezenove no norte e oeste da Europa e tam bern nos pafses de outras regi6es dominados por colonos europeus. Qual era a mensa- gem essencial? Era que a inclusao na polftica liberal exigia uma especie de supercidadania, uma cidadania de Estados poderosos que, em uma coletividade, ex- clufam os povos do resto do mundo, inclusive aque- les que, tendo se originado etnicamente do resto do mundo, eram agora residentes naquelas na~6es pode- rosas, bern assim como os povos indfgenas nos pafses ocupados por colonos brancos. Nacionalismo e racis- rpo se somaram para gerar uma j ustificativa ideol6gica para o imperialismo, e nao havia qualquer constrangi- mento em expressar essas opini6es abertamente. 0 machismo tambem era parte desse quadro. 0 que o machismo envolveu, como uma ideologia ex- plfcita, foi a cria~ao e a santifica~ao do conceito da dona-de-casa. As mulheres sempre trabalharam, e a maioria dos domicflios tinha sido historicamente pa- triarcal. Mas o que ocorreu no seculo dezenove foi algo novo. Representou uma seria tentativa de excluir as mulheres daquilo que seria definido, arbitrariamen- te, como trabalho que produzia renda. A dona-de-casa foi colocada como parceira do provedor masculino da familia com uma unica renda. 0 resultado nao foi tanto que as mulheres passaram a trabalhar mais ou em tarefas mais diffceis, mas que seu trabalho passou a ser sistematicamente desvalorizado. 35 36 Qual poderia ser o objetivo disso? E preciso Iem- brar que tudo isso estava ocorrendo em uma epoca em que havia press6es populares das classes trabalha- doras por inclusao- polftica, economica e social- e urn esfor~o por parte das classes governantes para aplacar essas demandas oferecendo-lhes uma inclu- sao limitada e, ao mesmo tempo, r:etendo a maior parte dos seus pr6prios privilegios atraves da limita- ~ao do alcance da inclusao. A cria~ao do conceito de dona-de-casa contribuiu para a realiza~ao desse obje- tivo de tres maneiras. Em primeiro Iugar, ele encobriu a quantidade exa- ta de mais-valia que estava realmente sendo redistri- bufda para as classes trabalhadoras. Poderia parecer que o provedor masculino tivesse passado a ter uma renda maior com a exclusao das mulheres e crian~as que resultava na diminui~ao de oferta no mercado de trabalho; mas, na verdade, a dona-de-casa estava subsidiando parte desses salarios para a renda fami- liar. Com isso, e bastante provavel que a verdadeira renda familiar total nao estivesse acompanhando, de forma alguma, o aumento nos n1veis de acumu- la~ao de capital. Assim, em termos materiais, o re- sultado pode ter sido urn truque, negando com uma das maos 0 que estava sendo oferecido as classes pe- rigosas com a outra. 0 segundo efeito foi sociopsicol6gico. Quanto maior o numero de grupos exclufdos, mais valoriza- da era a inclusao. As mulheres brancas foram sim- plesmente adicionadas, como grupos exclufdos, ao mundo de pessoas nao-brancas e nao ha duvida de que isso fez com que, nos Estados poderosos, tanto o sufrigio como o trabalho assalariado masculines pa- recessem muito mais satisfat6rios, ou pelo menos fez com que o status dos trabalhadores masculinos pare- cesse menos humilhante (com a conseqilente redu- ~ao de seu potencial ardorrevolucionario). Finalmente, nao nos esque~amos de que uma das caracterfsticas principals dos Estados liberais consti- tufdos no seculo dezenove era a presen~a do servi<_;o militar como urn corolario da cidadania (em alguns pafses obrigat6rio em qualquer epoca, em outros s6 em epocas de guerra). A pouca atra~ao que esse tipo de servi~o despertava foi claramente contrabalan~ada pela proposi~ao de que o servi~o militar era urn atri- buto essencial dos cidadaos do sexo masculino, urn machismo patri6tico. E bastante provavel que OS exer- citos em massa mobilizados de todos os lados duran- te a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais nao te- riam sido recrutados tao facilmente sem esse ele- mento ideol6gico. A ideologia liberal propunha que fossem protegi- dos os considerados direitos humanos basicos, mas, na pdtica, essa proposta sempre se referia a uma mi- noria da popula~ao mundial. Nos antigos regimes, a camada privilegiada era composta de urn grupo mui- to pequeno. Os Estados liberais declararam que, se- gundo os ideais da Revolu~ao Francesa, os privile- 38 gios seriam abolidos. 0 que realmente queriam di- zer com isso e que privilegios ( ou pelo me nos alguns privilegios) seriam agora estendidos para urn' grupo maior chamado de cidadaos, mas esse ainda era urn grupo que inclufa apenas uma minoria. A combi- na\ao do nacionalismo, do racismo e do machismo existia para definir as fronteiras que separavam os in- clufdos dos exclufdos. A Revolu\aO Russa assinalou outro momento de- cisivo nessa est6ria. Mas esse momenta decisivo nao foi nem aquele que seus defensores nem aquele que seus oponentes afirmavam ser. 0 bolchevismo foi originalmente uma denuncia dos movimentos socia- listas por terem se transformado em avatares da ideo- logia liberal. A solu\ao que· propunha tinha como base a reafirma~ao da fe socialista atraves da cria- ~ao de urn partido com quadros comprometidos com uma revolu~ao verdadeiramente anti-sistemica. ARe- volu~ao Russa, como sabemos, nao foi o resultado de uma insurrei~ao planejada pelos bolcheviques e sim do fato de que os bolcheviques estavam mais bern or- ganizados e, portanto, puderam se. aproveitar da rup- tura total da ordem politica na Russia, que foi causa- cia por uma combina~ao de serias derrotas militares com a fome generalizada de toda a popula~ao. Sabe- mos tambem que, ao tomarem o poder, os bolchevi- ques esperavam uma revolu~ao imediata na Alema- nha, uma expectativa coerente com sua posi~ao teo- rica e que eles julgavam necessaria para expandir sua propria capacidade de continuar sua revolu~ao por todo o pafs. A revolu~ao alema nunca ocorreu, e os bolchevi- ques tiveram que se adaptar a realidade. 0 resultado foi socialismo em urn pais - o stalinismo, os gulags, mais tarde Kruschev e Gorbachev, e eventualmente o fim da URSS e do Partido Comunista da Uniao So- vietica em 1991. Nesse sentido, a Revolu~ao Russa, como a Revolu~ao Francesa, parece ter fracassado, ja que se formos capazes de comparar a Russia de vinte anos antes da revolu~ao e a de vinte anos ap6s o seu fim, ha bastante duvida de que poderemos afirrr1ar que mais coisas mudaram la do que em pafses compa- raveis que nao tiveram a experiencia de uma revolu- ~ao. Ainda assim, eu gostaria de argumentar que aRe- volu~ao Russa teve, sim, urn efeito profunda na geo- cultura, mas de uma maneira bastante diferente da- quela que a teoria bolchevique havia enfatizado. A mensagem da Revolu~ao Russa teve efeitos di- ferentes no mundo das na~6es poderosas, aquilo que sumariamente poderfamos chamar de mundo pan-eu- 3 g ropeu, e tambem no mundo nao-europeu. Parece nao haver muita duvida, em retrospecto, de que a amea~a de uma posi~ao mais militante das classes trabalhadoras nas na~6es poderosas, amea~a que pa- recia ser simbolizada pelo movimento comunista mun- dial, provocou uma rea~ao aguda por parte das classes dominantes daqueles paises. 0 resultado disso foi que as concess6es do pacote liberal para acalmar as classes trabalhadoras nos pafses pan-europeus tive- ram que ser consideravelmente ampliadas. Isso con- duziu, sobretudo, a uma expansao importante do com- ponente do estado de bem-estar daquele pacote, es- pecialmente no perfodo p6s-1945, quando o poderio polftico e militar sovietico parecia estar tao maior. E muito pouco provavel que urn mundo sem a Re- volu~ao Russa tivesse visto o tipo de keynesianismo pan-europeu que n6s experimentamos. No en tanto, por maior que fosse a importancia desse resultado e, a meu ver, ele foi bastante impor- tante, ela foi tenue se comparada ao impacto que a Revolu~ao Russa teve no mundo nao-europeu. 0 mundo nao-europeu nao era parte da visao bolche- vique original, e quando o Sultao Galiev tentou fa- zer com que isso ocorresse, foi expurgado. Ainda assim, a partir do Congresso Baku de 1920, os bol- cheviques come~aram a refletir mais seriamente so- bre essa popularidade inesperada da Revolu~ao Rus- sa no mundo extra-europeu e a tentar canalizar a energia polftica dela resultante- alias, podemos acres- centar que sem sucesso. 0 que realmente ocorreu foi que o esfor~o bol- chevique chegou tarde demais no mundo euro- peu. As classes perigosas pan-europeias ja tinham sido quase que totalmente domesticadas pelo com- promisso liberal e a amea~a bolchevique s6 refor~ou aquele processo ao fortalecer o poder de barganha das classes trabalhadoras pan-europeias. Enquanto isso, o germe do nacionalismo tinha se expandido para mais alem das fronteiras das "na~6es hist6ricas" pan-europeias. No infcio do seculo vinte, ja tinha- mos movimentos e revoltas nacionalistas nao s6 nas tres estruturas imperiais que ainda existiam dentro das fronteiras europeias- Austria-Hungria, Russia e o Imperio Otomano - mas tinhamos tambem o co- me<;o de serios movimentos nacionalistas na Asia (por exemplo, na China, na India e nas Filipinas), no Oriente Medio (Afeganistao, Persia, Egito), naAfri- ca (negros sul-africanos) e naAmerica Latina (como, por exemplo, no Mexico). A li~ao da Revolu<;ao Russa para todos esses mo- vimentos foi que urn pafs nao-europeu (como a Rus- sia estava sendo definida por todos esses movimen- tos) poderia, sim, libertar-se do controle europeu e alcan~ar a industrializa~ao eo poderio militar (espe- cialmente 6bvio depois da Segunda Guerra Mun- dial). Enquanto que a Revolu~ao Francesa infundiu esperan<;a, expectativas e aspira~6es cada vez maio- res nas classes perigosas do mundo pan-europeu, a Revolu<;ao Russa infundiu esperan<;a, expectativas e maiores aspira~oes nas classes perigosas do mundo extra-europeu. Esse movimento do seculo vinte teve o mesmo impacto ambfguo do movimento analogo do seculo dezenove. A mobiliza<;ao daquilo que veio a ser cha- mado de movimentos nacionais de libera~ao na Asia, Africa e America Latina significou que a ideologia li- 42 beral tinha que se tornar global em sua aplica~ao e que era precise dar urn conteudo global a suas con- cess6es. 0 liberalismo global adotou a forma da au- todetermina~ao das na~6es ( descoloniza~ao) e o pro- jete do desenvolvimento economico das na~6es sub- desenvolvidas ( uma versao do estado de bem-estar global). De algumas maneiras, esse programa foi tao significative e tao bem-sucedido quanta o programa pan-europeu do seculo dezenove. Da mesma manei- ra como o sufrigio universal passou a ser norma, o mesmo ocorreu com o fim da coloniza~ao formal em todos os pafses . .E assim como as classes trabalhado- ras pan-europeias pareceram renunciar definitiva- mente a ideias de insurrei~ao, os Estados nao-euro- peus pareceram renunciar a qualquer ideia de uma guerra civil global. Em suma, o objetivo liberal de, de alguma maneira, conseguir alguma ordem politica atraves de concess6es restritas que nao sacrificassem a prioridade basica da acumula~ao permanente de ca- pital parece ter side realizado. Isso parecia verdade ate a revolu~ao mundial de 1968, que desempenhou urn papel comparivel a de 1848 em termos de seu impactona geocultura. A revolu- ~ao mundial de 1968 representou uma combina~ao dramitica de apoteose e muta~ao do espfrito daRe- volu~ao Russa, assim como a de 1848 tinha represen- tado a apoteose e a muta~ao do espfrito da Revolu~ao Frances a. Mas foi uma muta~ao em dire~ao contriria. Pois, enquanto a revolu~ao mundial de 1848 tinha le- vado a instala~ao do liberalismo como sustenta~ao da geocultura do sistema mundial, a revolu~ao mundial de 1968 levou ao destronamento do liberalismo des- se mesmo papel. Antes de tudo, os participantes das revoltas de 1968 criticavam tanto os leninistas por terem se tor- nado avatares do liberalismo quanta os leninistas ti- nham criticado os social-democratas. Alem disso, eles adotaram como alvo precisamente o papel dominante do liberalismo na geocultura e buscaram, de todas as maneiras possfveis, arrancar o liberalismo dessa po- si~ao. A revolu~ao de 1968, assim como a de 1848, deve ser analisada em duas etapas: os acontecimentos imediatos e as conseqiiencias, e os efeitos de Iongo prazo. Como urn conjunto de eventos que ocorre- ram durante urn perfodo de varios anos, poderfa- mos dizer, tambem nesse caso, que ela foi como uma fenix. Inflamou-se muito rapidamente ( e, e claro, de uma forma mais global do que em 1848), e quei- mou-se quase com a mesma velocidade. Mas, no Ion- go prazo, seus efeitos abalaram o sistema. 0 destronamento do liberalismo como a meta- linguagem auto-evidente do sistema mundial provo- cou a libera~ao tanto dos conservadores como dos ra- dicais da ideologia liberal. 0 mundo voltou para uma verdadeira divisao ideol6gica trfplice. A direita polfti- ca, reanimada, que, as vezes, era denominada de neo- conservadora e, outras (de uma maneira urn tanto ou quanto ambfgua), de neoliberal, passou a representar 43 urn conservadorismo social muito tradicional- o pa- pel central sociomoral da Igreja, dos notiveis }ocais e da comunidade e do domicilio patriarcal - a que se acrescentava uma posi($iO extremamente contriria ao estado de bem-estar (ambas posi($6es que teriam sido bastante congenitas com os conservadores pre- 1848) combinavam de uma maneira urn pouco des- confortivel com uma ret6rica ingenua sobre lais- sez-faire que poderia ter chocado seus precursores conservadores. 0 papel do centro liberal foi ocupado principalmente pelos partidos que ainda se denomi- navam social-democratas, e que, na maioria das ve- zes, renunciaram a todos os vestfgios remanescentes de sua oposi($iO hist6rica ao capitalismo como siste- ma e abra($aram abertamente a tradi($iO Benthami- ta-Millsiana de uma reforma gerenciada por especia- listas, aliada a uma amena economia "social". E OS radicais? As tres decadas que se seguiram are- volU($iO de 1968 foram decadas de crescente desbarata- mento. Embora as virias seitas maofstas do infcio da decada de 1970 dessem enfase a 1968 como sendo a apoteose- e nao uma muta($iO- de 1917, elas desapa- receram muito rapidamente. Os chamados movimen- tos daN ova Esquerda, por outro lado, estavam mais in- teressados em muta($io. Como movimentos, no entan- to, eles logo se envolveram em fortes lutas intemas, di- vidindo-se entre aqueles que buscavam novas transfor- ma($6es apocallpticas e os que estavam primordialmen- te interessados na revisao das pautas reformistas das po- lfticas do Estado. A tendencia foi que esses ultimos pre,:. valecessem mais cedo ou mais tarde. Concentrar-nos apenas nas polfticas internas dos "novas" movimentos p6s-1968, no entanto, seria co- mo se vfssemos apenas as arvores, sem ver a floresta. N as tres decadas que se seguiram a 1968, a coisa mais importante que ocorreu foi o fim do apoio popular aos movimentos anti-sistemicos tradicionais (a cha- mada Esquerda Antiga) em todas as partes do mun- do, on de quer que estivessem no poder, o que, na de- cada de 1970, era realmente uma grande parte do mundo. Em grande parte da Asia e da Africa eram os movimentos de liberar;ao nacional que governavam. Em grande parte da America Latina, governos popu- listas tinham tornado o poder. No chamado bloco socialista, eram os partidos marxista-leninistas que governavam, nos varios pafses. E na Europa Ociden- tal, na America do Norte e na Australasia, os Estados estavam sendo principalmente governados por parti- dos de uma tradir;ao social-democrata (considerando os democratas do New Deal nos Estados U nidos como uma variante dessa tradi<;ao ). 0 elemento principal que levou ao afastamento popular desses partidos foi a desilusao, uma sensa<;ao de que esses partidos tinham tido sua oportunidade hist6rica, que tinham obtido apoio com base em uma estrategia de duas etapas para transformar o mundo (tomar o poder do Estado, depois transforma-lo), e que nao tinham cumprido sua promessa hist6rica. 46 Havia tambem uma sensa~ao bastante profunda, em muitas das grandes arenas do mundo, de que a bre- cha entre os ricos e os pobres, ou entre os que se da- vam bern e os que sofriam, em vez de ter diminufdo, tinha, na verdade, aumentado. E isso depois de urn a ~ois seculos de luta permanente. Foi mais que urn desaponto tempor:irio com o desempenho de uma equipe governamental espedfica. Era uma perda de fe e de esperan~a. Culminou com o desmantelamen- to espetacular ( e virtual mente sem derramamento de sangue) dos Comunismos na Europa Central e do Les- te e na antiga Uniao Sovietica. A perda de esperan~a manifestava-se como uma seria duvida de que a polariza~ao do sistema mundial vigente pudesse, de alguma forma, corrigir-se a si propria ou que pudesse ser efetivamente modificada pela a~ao reformista do Estado. Era, portanto, uma perda da cren~a na capacidade das estruturas estatais de realizarem o objetivo primordial de melhorar o bem-estar publico. 0 resultado foi urn sentimento amorfo e generalizado contra o Estado em geral, de urn tipo totalmente desconhecido no Iongo perfodo entre 1789 e 1968. Foi urn sentimento debilitante que despertou medo e inseguran~a. 0 sentimento antiestatal do povo era ambivalen- te. Por urn lado, envolvia uma deslegitima~ao das es- truturas estatais, e urn voltar-se para as institui- ~6es nao-estatais de solidariedade moral e auto-aju- da pragmatica. 0 renovado movimento conservador buscou usar esse sentimento para desfazer as provi- soes do estado de bem-estar e encontrou muita resis- tencia por parte das camadas populares que procura- vam manter os beneffcios adquiridos e se opunham a medidas que iriam, na realidade, diminuir, ainda mais, suas rendas reais. Em todos os pafses em que as agendas neoliberais foram seguidas com demasiada intensidade, surgiram rea~6es eleitorais, algumas ve- zes bastante dramaticas, e isso em todas as partes do mundo. Mas tais rea~6es eleitorais foram prima- riamente medidas defensivas temporarias e nao mo .. mentos triunfais de uma renovada transforma~ao so- cial. Nao havia entusiasmo. A ausencia de esperan~a e de fe permanece difusa e d.ustica. Longe de representar o triunfo do liberalismo, e menos ainda do conservadorismo renovado, essa rea- ~ao difusa contra o Estado, ao deslegitimar as estrutu- ras estatais, solapou uma coluna essencial do sistema mundial moderno, o sistema dos Estados, uma co luna sem a qual a acumula~ao permanente de capital nao e possfvel. A celebra~ao ideol6gica da chamada globali- za~ao e, na realidade, o canto do cisne de nosso siste- ma hist6rico. Entramos na crise desse sistema. A per- dade esperan~a eo medo que a acompanha sao ambos partes da causa e o sintoma principal dessa crise. A era de desenvolvimento nacional como urn ob- jetivo plausfvel terminou. A expectativa de que po- derfamos realizar os objetivos ou da Revolu~ao Fran- cesa ou da Revolu~ao Russa atraves de alguma mu- 47 48 dan~a realizada por aqueles que controlam as estru- turas estatais depara-se agora com urn ceticismo ge- neralizado que a hist6ria demonstrou que tinha ba- ses na realidade. No en tanto, o fato de que a maior parte das pessoas ja nao esti otimista sobreo futuro e, portanto, essencialmente paciente sobre o presen- te, nao significa que essas mesmas pessoas tenham abandonado suas aspira~6es de uma sociedade boa, de urn mundo melhor do que aquele que conhecem. Esse desejo por urn mundo melhor continua forte como sempre, o que faz com que essa perda de espe- ran~a e de fe seja ainda mais desesperadora. Isso nos garante que estamos entrando em uma transi~ao his- t6rica. Isso nos garante tambem que ela vai adotar a forma de uma epoca de dificuldades, urn perfodo ne- gro que durari enquanto a transi~ao durar. 2 A dificil transiGao ou o inferno na Terra? Estamos passando por uma transi~ao em que nos- so atual sistema mundial, a economia mundial capi- talista, estara se transformando em urn outro sistema - ou em outros sistemas- mundiais. Nao sabemos se essa mudan~a sera para melhor ou para pior. E nao saberemos ate que cheguemos la, urn processo que pode demorar ainda uns cinqi.ienta anos a partir do momenta em que estamos. Sabemos, no entanto, que este perfodo de transi~ao sera urn perfodo diffcil para todos os que o vivenciarem. Sera diffcil para os 49 50 poderosos; e sera dificil para as pessoas comuns. Sera urn perfodo de conflitos e de tumultos mais inten- sos, e muitos 0 verao como urn colapso dos sistemas morais. E em bora possa parecer paradoxa!, sera tam- bern urn perlodo no qual o "livre-arbltrio" estara em seu nfvel maximo - e 0 que quero dizer com isso e -que tanto a a~ao individual quanto a coletiva pode- rao ter urn maior impacto na estrutura~ao futura do mundo do que puderam ter em epocas mais "normais"' isto e, no decorrer de urn sistema hist6rico. Primei- ramente, voltar-me-ei para as dificuldades que os poderosos terao que enfrentar; e, a seguir, aquelas que terao que ser enfrentadas pelas pessoas comuns. Comecemos com aquilo que hoje parece ser o ele- mento mais forte do sistema mundial moderno, mas que, na verdade, eo seu elo mais fragil: a continua viabilidade do modo de produ~ao capitalista. 0 capi- talismo e urn sistema que permite e valida a acumu- la~ao permanente de capital e que tern sido extrema- mente bem-sucedido nessa tarefa nos ultimos qua- trocentos ou quinhentos anos. E claro, a fim de man- ter urn sistema assim, os capitalistas ( ou pelo menos alguns capitalistas) precisam fazer grandes lucros em seus investimentos. Gerar grandes lucros nao e uma coisa assim tao facil quanto se pensa. Em primeiro Iugar, a competi~ao e hostil a que se fa~a grandes lu- cros, ja que para se superarem uns aos outros os competidores tendem a empurrar os pre~os para bai- xo e, portanto, tambem as margens de lucro. Qua}quer produto CUSta X para ser produzido e e vendido a urn pre~o y. Y-x eo lucro. Segue-se que quanto mais alto for y, e quanto menor for x, maior sera o lucro. Mas ate que ponto e possfvel para uma empresa capitalista controlar ox ou o y? A resposta e que o controle e possfvel ate urn certo ponto, mas nao totalmente. Essa parcialidade do controle cria di- lemas basicos para os capitalistas em suas opera~oes individuais ou coletivas. Outra forma de expressar o problema e dizer que a "mad' que determina a oferta e a demanda, 0 custo e 0 pre~o, nao e nem invisfvel nem totalmente visfvel, e sim esta localizada ern urn mundo sombrio intermediario, aquilo que Fernand Braudel chama de "zonas opacas" do capitalismo. Como afirma a teoria capitalista, o pre~o eo pri- meiro a ser afetado pela for~a da competi~ao. Se- gue-se que quanto maior for a monopoliza~ao da- quele mercado a que determinados produtores tern acesso, maior sera o pre~o que pode ser estabelecido pelo vendedor, dentro dos limites permitidos pela elasticidade da demanda. Obviamente, entao, qual- quer capitalista individual prefere aumentar sua par- ticipa~ao no mercado, nao s6 porque isso aumenta seu lucro total (na taxa atual de lucro) mas tambem porque isso aumenta a taxa de lucro futuro. E, igual- mente 6bvio, o grau de monopoliza~ao de urn deter- minado mercado que urn capitalista individual qual- quer pode obter depende, em grande parte, da a~ao do Estado, que pode legitimar o monop6lio exigindo 51 52 que ele exista, ou oferecendo licen~as e patentes que protejam monop6lios. Essa a~ao estatal pode ser di- reta (e, portanto, definida como polftica) oti pode ser de Iongo prazo e indireta. Urn exemplo do ultimo tipo seriam os esfor~os para impor o uso de uma lin- guagem ou moeda espedfica no mercado mundial. A~6es deste tipo sao algumas vezes designadas pelos analistas como efeitos culturais, mas sua origem na a~ao estatal pode ser facilmente descoberta com urn pouco de esfor~o. Em suma, e dentro de alguns limites, os pre~os sao principalmente constructos polfticos que se origi- nam do fato de que nenhum Estado sozinho pode controlar totalmente o mercado mundial. Isso sig- nifica que existe uma faixa economica socialmente construfda ( embora bastante ampla) dentro da qual os pre~os sao mais ou menos for~ados a permanecer. Por essa razao, os Estados tern grande relevancia para os capitalistas em sua tentativa de aumentar o y, ou seja, seus pre~os de venda. No entanto, nao equal- quer Estado que tern essa importancia. Os que tern maior influencia sao, obviamente, aqueles com uma certa posi~ao e conex6es. Os capitalistas japoneses depend em primordialmente do Estado japones, mas nao exclusivamente. Podem tambem depender (nor- malmente em menor grau) do Estado indonesia e do Estado norte-americana, por exemplo. A finalidade e dupla. Todos os capitalistas precisam de algum Esta- do ou de alguns Estados. E seus competidores po- dem depender de urn grupo diferente de Estados. A geopolftica, portanto, nao e urn elemento a ser igno- rado quando se trata de determinar ate que nivel pro- dutores particulares podem ou nao aumentar seus pre~os de vendas de forma significativa. Os teoricos do capitalismo, tradicionalmente, e seguindo a linha de Adam Smith, reclamam da "in- terferencia" dos Estados nos mercados, e sempre afir- maram que essa interferencia tern afetado as taxas\de lucro de forma negativa. Como os empresarios capi- talistas virtualmente nunca deram muita aten~ao a essa teo ria em sua pratica ( exceto quando argumen- tavam que essa teo ria poderia afetar competidores di- retos negativamente), acho que podemos dizer com seguran~a que a afirma~ao de que o laissez-faire ilimi- tado e urn pilar que sustenta 0 capitalismo e simples- mente uma forma de enganar os tolos. Os pre~os de venda sao, no entanto, uma fun~ao de duas coisas: nao so o grau de monopoliza~ao de urn possfvel mercado, mas tambem a demanda efetiva da- quele mercado. E isso cria urn outro dilema para os 53 capitalistas- a tensao entre os salarios que eles pagam, que aumentam o consumo no mundo todo, e os sala- ries que eles niio pagam, que aumentam sua propria poupan~a e investimentos. Quanto maior o consu- mo, maior a demanda efetiva em urn dado momento; quanto maior forem a poupan~a e os investimentos, maior a acumula~ao de capital. Em parte, trata-se de uma diferen~a de espa~o de tempo entre objetivos. E 54 trata-se, em parte, dos interesses de urn grupo de capi- talistas contra urn outro grupo em urn momento de- terminado. Nao ha duvida de que isso e urn problema muito antigo, mas tornou-se muito mais intenso hoje em dia pela maneira como interfere com os custos de prodw;;ao. A demanda efetiva e, em ultima instancia, uma fun~ao do gasto total com soldos e salarios, ja que, na extremidade final de cada cadeia de produtos e preciso que existam consumidores individuais. Por isso, e simultanea e paradoxalmente verdadeiro que quanto maior for a conta total com salarios, tanto maior serao os lucros potenciais; e quanto menor for a conta total com salarios, maiores serao os lucros imediatos. A primeira afirma~ao e verdadeira a respeito da econo- mia mundial como urn todo, a segunda a respeito das empresas individuais. Voltemo-nos agora para ox, os custos da produ- ~ao. Podemosdividir esses custos em tres principais divis6es gerais: a conta dos salarios, a conta dos im- pastos, e a compra de maquinas e insumos. 0 custo de maquinaria e insumos, e claro, leva OS produtores a buscarem tecnologias que reduzam esses custos. Mas isso tambem coloca determinados grupos de produtores capitalistas contra todos os demais. Quan- to mais baixo foro y ( o pre~o) dos outros, mais baixos serao OS conjuntos determinados de X dos produto- res. Isso explica parte da atividade polftica de qual- quer grupo de produtores, que tendem a agir contra as a~6es estatais que tenham como resultado urn au- mento nos pre~os de vendas de outros grupos de produtores. A redu~ao do custo dos insumos, no en- tanto, pode nao produzir lucros mais altos, ja que, devido a competi~ao do mercado, pode meramente reduzir o pre~o das vendas, deixando a margem de lucro constante ou quase constante. Os produtores capitalistas, portanto, gastam mui- ta energia tentando reduzir a conta dos salirios e a conta dos impostos. Uma vez mais temos que consi- derar isso urn dilema. Se a conta de salarios for quase zero, nao hi duvida de que a margem de lucro im~ diata se elevaria muito, mas 0 impacto de medio ter- mo na demanda efetiva seria desastroso. 0 mesmo se aplica no caso da conta de impostos. Os impostos sao pagamentos por servi~os de que os produtores preci- sam, inclusive os esfor~os dos Estados para garantir a monopoliza~ao parcial dos mercados para determi- nados grupos de produtores. Assim urn fndice de impostos que fosse demasiado baixo tambem teria resultados negativos. Por outro lado, cada aumento na conta dos salarios e na conta dos impostos inter- vern com a margem de lucro. E urn caso de Cila e Caribdis, e cada produtor tern que navegar o melhor que pode. Com efeito, isso e uma especie de campo de provas para o sucesso entre capitalistas, urn jogo no qual o mais astuto e/ou o que tenha melhor cone- x6es polfticas sera 0 vencedor. 0 que nos interessa aqui nao sao os mecanismos que os capitalistas utilizam em suas manobras para te- 55 56 rem mais sucesso que os demais neste jogo diffcil, e sim quais foram as tendencias hist6ricas de urn modo geral. Nos ultimos dez a vinte anos, vimos uma inves- tida ideol6gica massiva e violenta que pretendeu re'- duzir a conta dos salarios e a conta dos impastos pelo mundo a fora; e porque essa investida pareceu ter tan- to sucesso, nao chegamos a perceber a realidade de que a recente queda dos salarios e impastos foi de cur- to prazo e pequena se comparada com o seu aumento hist6rico, global e permanente. E, mais importante, as raz6es para essa queda foram estruturais. A parte da mais-valia que e transferida para OS empregados individuais na forma de soldos e sala- ries, que estejam acima dos custos de reprodu~ao socialmente definidos, e 0 resultado da luta de clas- ses, que ocorre nos locais de trabalho e na arena polf- tica. Esquematicamente, e assim que isso funciona: urn grupo de trabalhadores de urn determinado Iu- gar se organiza, ou no local de trabalho ou na arena polftica ou, mais provavelmente, em ambos e, com isso, faz com que o custo que o produtor teria se se recusasse a dar aumentos reais de salarios venha a ser, no final, mais oneroso para ele, pelo menos no curto prazo, do que se aceitasse dar esses aumentos. E cla- ro, urn aumento na conta de salarios e tambem urn aumento na demanda efetiva e, portanto, e uma van- tagem para alguns grupos de produtores, mas nao necessariamente para aquele grupo especffico que esta fornecendo o aumento de salarios. Quando esse aumento come~a a ficar demasiado caro para urn de- terminado grupo de produtores, e eles nao conse- guem combate-lo eficientemente na arena polftica local, pod em buscar uma sol u~ao transferindo parte de sua produ~ao, ou toda ela, para areas onde tradi- cionalmente os salarios sejam mais baixos, o que sig- nifica que, por alguma razao, os trabalhadores naquela regiao sao politicamente mais frageis. :E preciso que o custo da mao-de-obra na area para a qual a produ15ao foi transferida seja significati- vamente mais baixo,ja que o produtor estara pagan- do nao somente os custos da transferencia de local (urn custo unico) mas quase certamente custos ope- racionais mais altos (urn custo permanente). E por essa razao que esse tipo de transferencia, que ocorre especialmente em epocas de depressao dclicas, tende primeiramente a buscar areas mais pr6xirnas, onde os trabalhadores sejam politicamente mais frageis, eventualrnente atingindo as areas onde esses ulti- rnos estao totalrnente fragilizados. Historicarnente, os grupos mais frageis de trabalhadores sao aque- les trazidos pela primeira vez para zonas de produ- ~ao urbanas ( ou, pelo menos, para zonas de produ~ao mais plenamente monetizadas) vindos de zonas ru- rais ou menos monetizadas. As raz6es para sua fra- queza polftica inicial sao tanto culturais quanto eco- nomicas. Culturalmente, ocorre uma certa desorien- ta~ao e desorganiza15a0 devido a migra~ao ffsica da for15a de trabalho, mais urn certo grau de inexperien- 58 cia por parte dela com rela~ao a polftica local disponf- vel, ou pelo menos uma fa1ta de influencia polftica local. Economicamente, salarios na zona de produ- ~ao urbana que estejam em urn nfvel extremamente baixo se comparados com os pad roes mundiais, mui- tas vezes representam, nessa arena local, uma renda maior que aquela que tinha estado disponfvel no am- biente rural anterior, ou, pelo menos, que tinha esta- do politicamente disponfvel. Nenhuma dessas condi~6es para a fragilidade po- litica (a cultural e a economica) e duradoura por na- tureza. Podemos presumir que, no passado, qual- quer grupo espedfico de trabalhadores em uma si- tua~ao semelhante pode superar essas fragilidades em urn perfodo entre trinta a cinqiienta anos, e e provavel que hoje em dia isso possa ser realizado em urn nu- mero menor de anos. Isso significa que, do ponto de vista do reposicionamento de produtores, a vanta- gem da mudan~a e bastante tempod.ria e que, se eles. quiserem man te-la, e preciso que pensem em termos de repetidas mudan~as de medio prazo. Com efeito, essa foi uma das est6rias principais do sistema mun- dial capitalista durante quinhentos anos. Mas a curva que designa a porcentagem do globo onde ainda exis- tem possfveis zonas de reposicionamento esta atingin- ····•· do uma assfntota, como tantas curvas que sao dese.., · nhadas para representar tendencias em urn sistema. 0 fato e que essas zonas estao acabando no planeta. Isso e chamado de "desruraliza~ao" do mundo, que, alias, esta progredindo em urn ritmo estonteante. E a medida que o numero dessas zonas diminui, o po- der de barganha dos trabalhadores aumenta no mun- do todo, registrando-se uma tendencia global de au- menta dos gastos com salarios. Se os pre~os dos pro..: dutos pudessem expandir-se infinitamente, nao ha- veria muita preocupa~ao. Mas eles nao o sao, devido aos limites impastos pela competi~ao e a capacidade que os Estados tern de impor a monopoliza~ao. 0 custo da mao-de-obra e muitas vezes discutido em termos de alguma coisa chamada de eficiencia de produ~ao. Mas o que e eficiencia? Em parte, e uma tecnologia melhor, mas e tambem, em igual parte, 0 -desejo do trabalhador de desempenhar bern as tare- fas e a uma velocidade razoavelmente rapida. Mas quao rapida deve ser essa velocidade? 0 taylorismo como doutrina pregava que essa velocidade deveria sertao rapida quanta fisiologicamente possivel. Mas isso presume que essa velocidade maxima nao causa dano ao organismo. No entanto, na medida em que ela o faz, estamos comprando velocidade de curto praz;o como esgotamento de Iongo prazo da capaci- dade de o organismo sobreviver. Mesmo pensando erri.um custo econ6mico estritamente de curto prazo edo ponto de vista do empregador, a velocidade ma- Xill}a em uma hora pode nao ser a velocidade 6tima no decorrer de uma semana ou de urn mes. A essa al- tura, no entanto,
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