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IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA Imaginação e Criatividade na Infância.indb 3 01-10-2012 16:58:04 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) LEV SEMENOVITCH VYGOTSKY IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA ENSAIO DE PSICOLOGIA Tradução do russo, introdução e notas de João Pedro Fróis Imaginação e Criatividade na Infância.indb 5 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) © Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012 Título original: Voobrajenie i Tvorchestvo v Detskom Vozraste. Psikhologi- cheskii Ocherk. Moscovo: Gosizdat (1930). ( ) Título: Imaginação e Criatividade na Infância. Ensaio de Psicologia. Autor: Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934) Tradução do russo, introdução e notas de João Pedro Fróis Revisão: Alexandre Franco Capa: Cítrica Design Paginação: Mário Félix - Artes Gráficas ISBN: 978-972-576-616-3 Depósito legal: 000 000/12 1.ª edição: Outubro de 2012 Impressão e acabamento: Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda Todos os direitos reservados para Portugal por DINALIVRO Rua João Ortigão Ramos, n.º 17-A 1500-362 LISBOA PORTUGAL Tel. 217 122 210/217 107 081/84 - Fax 217 153 774 E-mail: editora@dinalivroedicoes.com info@dinalivro.com COLEÇÃO RAZÕES DE SOBRA, N.º 3 A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 6 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) ÍNDICE Introdução à obra .......................................................... 9 Capítulo 1 – Criatividade e imaginação .................... 21 Capítulo 2 – Imaginação e realidade .......................... 29 Capítulo 3 – O mecanismo da imaginação criativa... 47 Capítulo 4 – A imaginação da criança e do adolescente ...................................................... 57 Capítulo 5 – «Os tormentos da criação» .................... 69 Capítulo 6 – A criatividade literária no período escolar ........................................................................ 75 Capítulo 7 – A criatividade teatral na idade escolar ........................................................................ 115 Capítulo 8 – O desenho na idade escolar.................. 123 Bibliografia ..................................................................... 143 Índice onomástico ......................................................... 147 Apêndice ........................................................................ 149 Biografia de Lev Semenovitch Vygotsky................... 157 Nota sobre o tradutor ................................................... 159 Imaginação e Criatividade na Infância.indb 7 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) Imaginação e Criatividade na Infância.indb 8 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) INTRODUÇÃO À OBRA Robert Rieber – O que é uma teoria e para que serve? Lev Vygotsky – É um plano ou um conjunto de prin- cípios orientadores que faculta uma explicação das intenções humanas. R. R. – Compreendo, mas de onde vem a teoria? L. V. – Quer dizer, o que nos leva a teorizar? A questão é complexa, mas tornemos algo claro desde já: não nascemos com uma teoria e esta não nasceu da cabeça de Zeus. R. R. – Somos nós que a criamos, é isso? L. V. – Não exatamente. Deixa-me pôr a coisa da seguinte forma: criamos sobre ideias que existem, construindo-as para que potenciem a nossa habilidade de descoberta de respostas às questões que nos interessam. (Diálogo imaginado) O interesse de Lev Vygotsky (1896-1934) pela psicologia da arte, estética teatral e educação estética acompanhou o seu breve e intenso percurso científico. A importância que atribuiu à psicologia da criação e fruição artísticas afirmou-a, pela primeira vez, no livro Psicologia da Arte (1925), estudo apresentado com vista à titulação como investigador do Instituto de Psicologia de Moscovo. No ano seguinte publicou no livro Psicologia Pedagógica um capítulo sobre Educação Estética e em Imaginação e Criatividade na Infância.indb 9 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 10 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA 1927/1928 um artigo com o título «Psicologia Contempo- rânea e Arte» na revista Arte Soviética.1 O livro Imaginação e Criatividade na Infância (1930) e dois outros textos explicam a pensamento de Vygotsky no domínio da psicologia da imaginação criativa.2 Como encerramento deste ciclo estético escreveu o texto «Sobre o problema da Psicologia da Criatividade do Ator» (1932) que Roman Jakobson incluiria numa das suas obras.3 O livro Imaginação e Criatividade na Infância é um texto de referência dos estudos da psicologia da criativi- dade (Smolucha, 1992; Gajdamaschko, 1999; Lindkvist, 2003; Smolucha, L. & Smolucha, F., 2012).4 O ensaio está 1 A tradução deste artigo foi publicada pelo autor desta introdução no Journal of Aesthetic Education em 2011. 2 Imaginação e Criatividade do Adolescente (1931) e Imaginação e o seu Desenvolvimento na Infância (1932). Estes textos foram incluídos nas Obras Completas (Vol. I, 1982 e vol. II, 1984) editadas pela Academia das Ciências Pedagógicas (URSS) e incluídos nas Collected Works of Lev Vygotsky editadas por Robert W. Rieber e Aaron S. Carton (Plenum Press). O texto de 1931 foi incluído no The Vygotsky Reader (1994) editado por René van der Veer. 3 Texto publicado no livro de Roman Jakobson Psichologija tseni- cheskikh chuvstv aktera (Psicologia dos sentimentos de palco dos ato- res), Moscovo, 1936. Incluído nas Collected Works of Lev Vygotsky editadas por Robert W. Rieber e Aaron S. Carton. 4 Larry Smolucha e Francine Smolucha (2012), Francine Smolucha (1992), Gunila Lindkvist (2003), Natália Gajdamaschko (1999, 2005), Valéria Mukhina (1981) e Iurii Poluianov (2000) têm desen- volvido a interpretação de Lev Vygotsky sobre a imaginação criativa em várias modalidades expressivas. Outras edições do presente livro surgiram em língua russa, respetivamente em 1967, 1991 e 2004 (Vygotskaya & Lifanova 1996; Hakkarainen, 2004). A edição de 2004 foi incluída na coletânea de textos de L. Vygotsky intitulada Psicologia do Desenvolvimento da Criança, Imaginação e Criatividade na Infância.indb 10 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) INTRODUÇÃO À OBRA 11 organizado em oito pequenos capítulos. Nos primeiros cinco capítulos,o autor examina os conceitos de imagi- nação e de criatividade, a partir dos contributos teóricos de Pavel Blonsky (1884-1941) no campo da linguagem, Anatoli Bakushinsky (1883-1939) e Georg Kerschensteiner (1854-1932) na área do desenho infantil, Theodule Ribot (1839-1916) na psicologia da imaginação criadora e Lev Tolstoi (1828-1910) na pedagogia da escrita criativa, tão do agrado deste escritor. Vygotsky apresenta neste ensaio um estado da arte a partir de uma análise psicológica e pedagógica; define conceitos, desfaz alguns mitos e apresenta linhas ins- piradoras para a investigação futura com utilização de exemplos de modali dades expressivas que as crianças apreciam: o drama, o desenho, a leitura e a escrita criativa. Todos estes modos de expressão, que a criança no seu desenvolvimento elabora e a escola promove, potenciam as funções psicológicas superiores e têm um natural sig- nificado na educação da criança. Nos últimos três capítulos apresenta exemplos concretos a partir de três modalidades expressivas: a escrita, a dramatização e o desenho. As conclusões e as exemplificações que usa interessam aos destinatários originais deste ensaio – pedagogos e psicólogos. Não se pretende produzir, no espaço desta intro- dução, uma análise exaustiva sobre a imaginação e a criatividade no âmbito da Psicologia Histórico-Cultural editada pela Eksmo. Por se tratar de um ensaio de divulgação científica, segundo Vassily Davidov (1991) e Pentti Hakkarainen (2004), este texto não integrou as Obras Completas (1982-1984). São conhecidas várias traduções: japonês (1972), italiano (1973), espanhol (1982), sueco (1995) e inglês (2004). Imaginação e Criatividade na Infância.indb 11 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 12 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA de Vygotsky. Põe-se em relevo cinco domínios que o autor aborda neste texto: problematização da relação entre a imaginação e a criatividade; definição dos limites da relação entre a imaginação e a realidade; clarificação de alguns dos mecanismos psicológicos de encadeamento entre a imaginação e a criatividade; comparação da imaginação criativa na criança e no adolescente; e, por último, dos tormentos e inquietação pela qual os indiví- duos passam na concreção da imaginação. No primeiro domínio, a imaginação e a criatividade articulam-se com a expe riência individual. No seu sentido lato, a imaginação e a criatividade estão em qualquer dos âmbitos da vida dos indivíduos: nos mundos da cultura, artes, técnica e ciência. A imaginação é, pela sua natureza, antecipatória, porque possibilita ir além do apreendido dire- tamente. Neste sentido, a plasticidade cerebral e a memória orgânica são fatores decisivos dos nexos entre a capacidade imaginativa da criatividade e a sua «antevisão das coisas». Na imaginação distingue duas direções: a imagi- nação reprodutiva ligada à memória e a imaginação criativa que ultrapassa a própria memória. Na infância encontramos a alternância de uma e outra forma de imaginação concomitante ao desenvolvimento intelec- tual, estruturada a partir das relações entre quantidade e qualidade das imagens mentais. Esta alternância, raiz comum da expressão artística da criança é, para Vygotsky, evidenciada na perceção sincrética do mundo que tanto fascina o «adulto atento» ao desenvolvimento das crian- ças. Este tipo de sincre tismo, o jogo e a atividade lúdica têm um papel preparatório para o desenvolvimento do pensamento analítico, permanecendo ao longo da vida com o indivíduo. De facto, o jogo é a primeira atividade Imaginação e Criatividade na Infância.indb 12 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) INTRODUÇÃO À OBRA 13 em que a imaginação criativa surge, primeiro orientada pela perceção, a memória sensorial e o pensamento visual, depois mediada simboli camente. Para Vygotsky, a atividade criativa é realização humana, geradora do novo, quer se trate dos reflexos de algum objeto do mundo exterior ou de determinadas elaborações do cérebro e do sentir que vivem e se mani- festam apenas no próprio ser humano. A imaginação, fundamento da atividade criativa, revela-se de modo claro em todos os aspetos da vida cultural. Ela é a abertura à criação artística, científica e técnica. A cultura, a técnica e a ciência são produtos da imaginação e da criatividade: «toda a descoberta, grande ou pequena, antes de se con- cretizar e de se consolidar, esteve unida na imaginação como uma estrutura mental mediante novas combina- ções ou correlações». O outro aspeto importante para Vygotsky reside em que a criatividade tem uma origem social, veiculada através da atividade de troca simbólica entre os indivíduos, palavras, ou através do diálogo com uma «pintura» ou da leitura de um texto literário; é historicamente determinada e faz parte de um sistema de significados mais complexo que se modifica ao longo dos estádios de desenvolvimento humano. Um dos aspetos que deve ser sublinhado diz res- peito ao princípio criativo inerente ao desenvolvimento humano: ele é comum a todos os seres, é o fulcro da vida das pessoas. Com alguma frequência reconhece-se que a atividade dos poetas e dos cientistas é «naturalmente» cria- tiva; no entanto, temos dificuldade em assumir o mesmo na atividade do «homem comum». Vygotsky enfatiza a transversalidade do processo criativo aos vários grupos. Ao considerarmos a criatividade deste modo, encontramo-la Imaginação e Criatividade na Infância.indb 13 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 14 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA nessa situação na infância e noutros perío dos da vida; mas avisa que as formas de criatividade mais elaboradas, espe- cíficas, se encontram presentes apenas em grupos restritos de indivíduos e são reveladas precocemente. O segundo domínio respeita às características, ao tipo e à qualidade das conexões criadas entre a imaginação e a realidade. Qualquer imagem mental, por mais fantástica que seja, encerra sinais da realidade externa. Os traços da imaginação fundam-se nas experiências precoces do homem: a primeira forma de ligação entre a imaginação e a realidade faz-se a partir das primeiras experiências do sujeito com o «outro». É neste espaço entre a realidade interna e externa, espaço potencial de desenvolvimento, que a imaginação tem lugar. A segunda forma de ligação entre a imaginação e a realidade corporiza-se no produto final da imaginação com os elementos complexos da rea- lidade. O quadro que se organiza na nossa mente sobre um qualquer acontecimento, no qual não participámos, resulta do trabalho da nossa imaginação. A imaginação (imaginatio) é, para Vygotsky, uma cognição sensível, uma capacidade para a reprodução de impressões sensoriais, tal como Alexander Baumgarten (1714-1762) a definiu. A terceira forma de ligação entre a imaginação e a realidade é a emocional – «os psicólogos há muito notaram, que cada sentimento tem não apenas uma expressão exterior corpórea, mas também interior, que se mostra na escolha dos pensamentos, das imagens e impressões». A maior parte das imagens produzidas pela ima- ginação, quaisquer que elas sejam, realizadas nos textos literários, nas obras artísticas, estão de facto contamina das e contaminam através destalei psicológica da realidade emocional que o autor formula neste texto. Por último, a Imaginação e Criatividade na Infância.indb 14 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) INTRODUÇÃO À OBRA 15 quarta forma de ligação entre a imaginação e a realidade enfatiza que a primeira pode criar o novo, sem qualquer correspondência com a realidade, levando à formulação da pergunta: para que serve afinal a obra artística? O terceiro domínio que o autor propõe respeita à descrição do mecanismo psi cológico da imaginação criativa. Ela integra as características singulares do objeto, as suas modificações; por exemplo, o exagero ou a subestimação das situações e dos elementos do texto – a ligação de elementos imutáveis em novas imagens totais, a sistematização destas imagens, as associações e as dissociações das impressões através da perceção, a sua cristalização e corporização – «a paixão das crianças pelo exagero, tal como dos adultos, tem fundamentos internos [psicológicos] muito profundos», que ora enfatizam, ora minimizam as necessidades e aspirações de cada um de nós, alimentam-nos cognitiva e emocionalmente. O quarto domínio caracterizador da problemática da imaginação criativa diz respeito à relação entre a experiência e a criatividade na criança e no adolescente. Neste âmbito, propõe uma separação entre a imaginação plástica, que usa as impressões externas, e a imaginação emocional, que elabora a partir do próprio sujeito. Escla- recemos que «a imaginação da criança não é mais pobre nem mais rica do que a do [adolescente] ou do homem adulto», refere Vygotsky, ela modifica-se ao longo do processo do crescimento até atingir um certo tipo de maturidade, facto que deve a todo o momento estar presente na mente dos educadores. Por último, Vygotsky fala da «angústia» que quase sempre advém do ato de criação. Nem sempre o impulso para criar vai ao encontro da capacidade exigida para a Imaginação e Criatividade na Infância.indb 15 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 16 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA criação e neste processo há um sofrimento, quase sempre sentido e cons ciente, inerente à tentativa de consecução das imagens produzidas pela imaginação e à sua urgência de materialização – «Não existe no mundo sofrimento que se manifeste com tanta intensidade como o tormento da palavra; em vão, às vezes, se irrompe da boca um grito louco: inutilmente [a palavra] de amor está pronta a incen- diar a alma porque por vezes a nossa pobre linguagem é fria e miserável», disse Fiodor Dostoievsky. Neste ensaio, o desenvolvimento teórico sobre a imaginação e a criatividade foi organizado como um dos fundamentos da pedagogia da imaginação criativa. Em todos os capítulos relaciona a teorização sobre a imagina- ção e a criatividade com os exemplos das aprendizagens na área da escrita criativa, da expressão dramática e do desenho. Para Vygotsky, a pedagogia da criatividade não pode ser reduzida à activi dade educativa supletiva ou a uma qualquer moralidade, como é sugerido por alguns; ou à expressão catártica, que perpassa nos discursos daqueles, que aparentemente desejam a sua presença na escola. A pedagogia da criatividade é uma possibilidade real para o desenvolvimento cognitivo e emocional dos indivíduos. No diálogo imaginado que serve de epígrafe à intro- dução à obra Vygotsky diz que a teoria é sempre uma construção de ideias que se dispõem para nós. Foi assim que partiu à descoberta de respostas sobre um dos seus interesses maiores: a imaginação como um impulso real da criatividade. É este o desafio proposto neste ensaio. Lisboa, setembro, 2012 João Pedro Fróis Imaginação e Criatividade na Infância.indb 16 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) INTRODUÇÃO À OBRA 17 Agradecimentos Agradeço ao professor René van der Veer da Univer- sidade de Leiden a leitura do texto introdutório. A Halima Naimova coube o acompanhamento da tradução em todas as suas etapas bem como da tradução dos poemas e fragmentos literários utilizados por Vygotsky. Bibliografia DAVYDOV, V. V. (1991/1930). Posfácio. In Lev Vygotsky, Voobrajenie i tvorchestvo v detskom vozraste. Psikho- logicheskii ocherk. Kniga dlia uchitelia (Criatividade e imaginação na infância. Ensaio psicológico. Livro para professores) (3.ª edição), Moscovo: Rabotnik Prosve- cheniya. FRÓIS, J. P. (2011). «Lev Vygotsky’s contemporary psychol- ogy of art». Journal of Aesthetic Education, 45 (1), 107-117. GAJDAMASCHKO, N. (1999). «Lev Semeonovitch Vygotsky». In Mark Runco (Ed.), Enciclopedia of Creativity (Volume 2, pp. 619-697). New York: Academic Press. GAJDAMASCHKO, N. (2005). «Vygotsky on imagination: why an understanding of the imagination is an important issue for schoolteachers». Teaching Education, 16 (1), 13-22. HAKKARAINEN, P. (2004). «Editor’s introduction (Imagina- tion and creativity in childhood)». Journal of Russian and East European Psychology, 42 (1), 3-6. LINDQVIST, G. (2003). «Vygotsky’s theory of creativity». Creativity Research Journal, 15 (2/3), 245-251. MUKHINA, V. S. (1981). Izobrazitelnaia deiatelnost rebenka kak forma usvoeniia sotsialnogo opyta (A expressão plástica das Imaginação e Criatividade na Infância.indb 17 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 18 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA crianças como forma de assimilação da experiência social). Moscovo: Pedagogika. POLUIANOV, Iu. (2000). Diagnostika obshhego i khudozhest- bennogo razvitiia detei po ikh risunkam (Diagnóstico do desenvolvimento artístico das crianças a partir dos seus desenhos). Riga: Eksperiment. RIEBER, R., ROBINSON, D. (2004). The essential Vygotsky. New York: Spinger. SMOLUCHA, F. (1992). «A reconstruction of Vygotsky’s the- ory of creativity». Creativity Research Journal, 5 (1), 49-67. SMOLUCHA, L., SMOLUCHA, F. (2012). «Vygotsky’s theory of creativity. Figurative thinking allied with literal thinking». In Olivia N. Saracho (Ed.), Contemporary Perspetives on Research in Creativity in Early Childhood Education (pp. 63-85). Charlotte, North Carolina: Infor- mation Age Publishing. VYGOTSKAYA, G., LIFANOVA, T. (1996). Lev S. Vygotsky: jizn, deiatelnost, shtrikhi k portretu (Lev S. Vygotsky: vida, obra, esboços para um retrato). Moscovo: Smysl. VYGOTSKY, L. S. (1926/1999). Pedagogicheskaya psikhologiya (Psicologia educa cional). Moscovo, Rabotnik Pros- veshcheniya. VYGOTSKY, L. S. (1927/1928). «Sovremennaia psikholo- gia i iskusstvo (Psicologia contemporânea e arte)». Sovetskoie Iskusstvo (Arte Soviética), n.º 8 de 1927, 5-7 e n.º 1 de 1928, 5-7. VYGOTSKY, L. S. (1930). Voobrajenie i tvorchestvo v detskom vozraste. Psikhologicheskii ocherk (Imaginação e criati- vidade na infância. Ensaio de Psicologia). Moscovo: Gosizdat. VYGOTSKY, L. S. (1965 /1925). Psikhologia iskusstva (Psicologia da arte). Moscovo: Iskusstvo. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 18 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk ye Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) INTRODUÇÃO À OBRA 19 VYGOTSKY, L. S. (1982). Sobranie sochinenii. Voprosy teorii i istorii psikhologii (Obras completas. Questões da teoria e história da psicologia), volume I. Moscovo: Izdatelstvo Pedagogika. VYGOTSKY, L. S. (1984). Sobranie sochinenii. Problemi obshchei psikhologii (Obras completas. Problemas da psicologia geral), volume II. Moscovo: Izdatelstvo Pedagogika. VYGOTSKY, L. S. (1990). «Imagination and creativity during childhood». Soviet Psychology, 28 (1), 84-96. VYGOTSKY, L. S. (1994). «Imagination and creativity of the adolescent». In René van der Veer, Jann Valsiner, J. (Eds.) The Vygotsky Reader. Oxford: Blakwell Publishers. VYGOTSKY, L. S. (2004). Psikhologia razvitia rebionka (Psicologia do desenvolvimento da criança). Moscovo: Eksmo. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 19 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) Imaginação e Criatividade na Infância.indb 20 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) CAPÍTULO 1 CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO Qualquer ato humano que dá origem a algo novo é referido como um ato criativo, independentemente do que é criado: pode ser um objeto do mundo exterior ou uma construção da mente ou do sentimento que vive e se encontra apenas no homem. Se observarmos o compor- tamento do homem e toda a atividade que desenvolve, com facilidade reparamos que podemos distinguir dois tipos de atividade. A primeira, que podemos designar de reprodutiva ou reprodutora, está associada, de modo intrínseco, à nossa memória; a sua essência consiste no facto de o homem reproduzir ou repetir modos de com- portamento já anteriormente elaborados e produzidos ou ressuscitar traços de impressões anteriores. Quando me lembro da casa onde vivi na minha infância, ou de países distantes que visitei no passado, estou a reproduzir os traços daquelas impressões absorvidas na infância ou durante as viagens. Do mesmo modo, quando desenho a partir da natureza, escrevo ou faço algo segundo um modelo, em todas estas situações reproduzo apenas o que está perante mim, ou o que foi por mim anterior- mente assimilado e elaborado. Em todos estes casos, o denominador comum é o facto de que a minha atividade não cria nada de novo, tão-só é baseada numa repetição mais ou menos cuidadosa de alguma coisa já existente. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 21 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 22 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA Compreende-se assim facilmente a importância que tem para a vida do homem a conservação da expe riência anterior, na medida em que facilita a sua adaptação ao meio exterior, criando e elaborando hábitos regulares que se repetem em condições análogas. A base orgânica desta atividade reprodutora, ou memória, é a plasticidade da nossa substância nervosa. Designa-se por plasticidade a propriedade de uma qual- quer substância que possui a capacidade de se alterar e de conservar os vestígios dessa alteração. Assim, dire- mos que a cera é mais plástica do que a água, ou do que o ferro, porque facilmente se sujeita à transformação, conservando melhor do que a água os vestígios das suas modificações. Somente estas duas qualidades, tomadas juntas, constituem a plasticidade da nossa substância nervosa. O nosso cérebro e os nossos nervos, providos de uma enorme plasticidade, modificam com facilidade a sua estrutura delicada sob a influência destas altera- ções, ou outras ações, conservando os seus vestígios sob determinada condição: que as ações sejam suficien- temente fortes ou se repitam com bastante frequência. No cérebro ocorre algo semelhante ao que acontece com a folha de papel quando a dobramos ao meio; no lugar da dobra fica a marca da dobra – resultado da modifi- cação produzida; a marca da dobra ajuda a repetição futura dessa mesma modificação. Basta soprarmos a folha para que ela dobre no mesmo sítio, onde ficou a marca da dobra. O mesmo acontece com a marca deixada pela roda na terra mole: forma-se um trilho que fixa as modificações efetuadas pela roda ao passar na terra e que facilitará no futuro passar por ali novamente. No nosso cérebro, as Imaginação e Criatividade na Infância.indb 22 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 23 excitações nervosas fortes ou frequentemente repetidas produzem trilhos semelhantes. Deste modo, o cérebro revela-se um órgão que conserva a nossa experiência anterior e simplifica a sua repetição. No entanto, se a atividade cerebral se reduzisse apenas à conservação da expe riência passada, o homem seria uma criatura capaz de se adaptar com preponderância às condições constantes e habituais do meio exterior. Quaisquer novas e inesperadas trans- formações no meio, que não tivessem sido operadas anteriormente na experiência do homem, não seriam capazes de causar nele a necessária reação de adaptação. A par destas funções de conservação da experiência anterior, o cérebro está dotado de uma outra função não menos importante. Além da atividade reprodutora, é fácil notar no homem outro tipo de atividade que combina e cria. Quando eu, por imaginação, desenho um quadro do futuro, digamos, a vida do homem na sociedade socia- lista, ou um quadro de uma parte da vida passada e da luta do homem pré-histórico, em ambos os casos, não repito impressões vividas por mim outrora. Não resta- beleço simplesmente os traços de excitações nervosas pretéritas que chegaram ao meu cérebro; na realidade, eu nunca vi fosse o que fosse nem desse passado, nem desse futuro, e, no entanto, posso imaginá-lo, formar uma ideia, uma imagem ou um quadro. A atividade do homem que não se confina à repro- dução das experiências ou de impressões vividas, mas que cria novas imagens e ações, pertence a esta segunda função criadora ou combinatória. O cérebro não é ape- nas um órgão que se limita a conservar e reproduzir a Imaginação e Criatividade na Infância.indb 23 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 24 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA nossa experiência passada, ele é igualmente um órgão combinatório, que modifica criativamente e cria, a partir dos elementos da experiência passada, novas situações e novos comportamentos. Se a atividade do homem se reduzisse apenas à reprodução do passado, então seria uma criatura orientada somente para o passado e inca- paz de se adaptar ao futuro. É precisamente a atividade criadora do homem que desperta a sua essência que está orientada para o futuro, tornando-o criativo e modifi- cando o seu presente. À atividade criadora baseada nas capacidades com- binatórias do nosso cérebro,a psicologia chama imagi- nação ou fantasia. Em geral, não é costume entender-se os conceitos imaginação e fantasia da mesma forma que a ciência os interpreta. Na sua aceção comum, imagina- ção e fantasia designam tudo o que é irreal, o que não corresponde à realidade e, portanto, sem qualquer valor prático. De facto, a imaginação, como fundamento de toda a atividade criadora, manifesta-se de igual modo em todos os momentos da vida cultural, permitindo a criação artística, científica e tecnológica. Neste sentido, definitivamente, tudo o que nos rodeia e foi concebido pela mão do homem, todo o mundo da cultura, ao con- trário do mundo da natureza, tudo isto é o resultado da criatividade e imaginação humanas. «Toda a invenção», diz Ribot, «grande ou pequena, antes de se realizar de facto e de se fortalecer, foi conce- bida exclusivamente pela imaginação, como uma estru- tura elaborada pela mente através das novas combinações ou conexões. «[…] Não sabemos quem realizou a maior parte das invenções; preservaram-se apenas alguns dos nomes de Imaginação e Criatividade na Infância.indb 24 01-10-2012 16:58:05 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 25 grandes inventores. A imaginação é sempre revelada em todas as circunstâncias, qualquer que seja o modo como é apresentada: individualmente ou em grupo. Para que o arado, que no passado não foi mais do que um simples bocado de madeira com um cabo queimado, se transformasse, a partir deste tosco instrumento manual, no que é hoje, após uma série de modificações, descritas em manuais especializados, quem sabe avaliar quanta imaginação foi necessária? De igual modo, as chamas frágeis dos ramos resinosos dos pinheiros, que serviram de archote para o homem primitivo, servem de exemplo para uma longa linha de invenções até se chegar à ilu- minação a gás ou à iluminação elétrica. Todos os objetos do nosso quotidiano, não excluindo os mais simples e habituais, são, por assim dizer, imaginação cristalizada.» A partir daqui é fácil depreender que a nossa repre- sentação usual sobre a criatividade não corresponde ao sentido e à compreensão científica desta palavra. Na sua aceção habitual, a criatividade é privilégio e dom de seres eleitos, génios, talentos, dos que criaram grandes obras artísticas, daqueles que realizaram grandes descobertas científicas e inventaram aperfeiçoamentos importantes na área da tecnologia. Reconhecemos e admitimos de modo claro a criatividade inerente à obra de Tolstoi, de Edison e Darwin, mas aceitamos que na vida do homem comum a criatividade não existe. No entanto, como já dissemos, este tipo de conceção sobre o assunto é erróneo. Segundo a comparação de um dos cientistas russos, a eletricidade atua e manifesta-se não apenas no local onde ocorre uma grandiosa tempes- tade ou na luminosidade dos relâmpagos ofuscantes, mas também na lâmpada da lanterna de bolso; de igual modo, Imaginação e Criatividade na Infância.indb 25 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 26 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA existe criatividade não só quando se criam grandiosas obras históricas, mas sempre que o homem imagina, com- bina, altera e cria algo novo, mesmo que possa parecer insignificante quando comparado com as realizações dos génios. Se tomarmos em atenção a existência da criativi- dade coletiva, que reúne todos estes contributos por si só insignificantes da criatividade individual, compreende-se melhor como grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence precisamente ao trabalho criativo e coletivo anónimo de inventores desconhecidos. A maior parte das invenções foram realizadas por desconhecidos, como a propósito deste assunto subli- nhou Ribot. A compreensão científica deste problema obriga-nos a tratar a criatividade mais como uma regra do que como uma exceção. É certo que as manifestações superiores da criatividade são até hoje apenas acessíveis a um grupo de génios eleitos da humanidade, mas no dia a dia a criatividade constitui-se como condição necessária para a existência e tudo o que ultrapassa os limites da rotina, mesmo uma pequeníssima quantidade de novi- dade, é devida ao processo criativo humano. Se compreendermos a criatividade deste modo, então é fácil notar que os processos criativos se observam já em toda a sua intensidade na primeira infância. Uma das questões mais importantes da psicologia da educação é o problema da criatividade, do seu desenvolvimento e promoção, e do significado da atividade criativa para o desenvolvimento geral e a maturação da criança. Na primeira infância encontramos processos criativos que se manifestam sobretudo nos jogos. O rapaz que cavalga um pau imagina que monta um cavalo, a menina que brinca com a boneca imagina-se como mãe dela, a criança Imaginação e Criatividade na Infância.indb 26 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 27 que no jogo se transforma em ladrão, em soldado ou em marinheiro... todas estas crianças que brincam são exemplo genuíno e real do próprio processo criativo. É evidente que nos jogos as crianças reproduzem muito do que viram. Todos sabemos qual a importância que o papel da imitação desempenha na atividade lúdica. O jogo da criança serve com frequência apenas como reflexo daquilo que ela viu e ouviu dos mais velhos; no entanto, estes elementos da sua experiência anterior nunca se reproduzem no jogo do mesmo modo como na realidade se apresentaram. O jogo da criança não é uma simples recordação do que viveu, é antes uma reelabo- ração criativa das impressões já vividas, uma adaptação e construção, a partir dessas impressões, de uma nova realidade-resposta às suas exigências e necessidades afe- tivas. A propensão das crianças para o devaneio e para a fantasia é resultado da atividade imaginativa, tal como acontece na sua atividade lúdica. «O menino de três anos e meio», diz Ribot, «ao ver um homem a coxear na rua, diz: – Mamã, olha para a perna deste pobre coitado! Depois começou a romancear o que via: ele montava num cavalo muito alto, caiu em cima de um penhasco enorme e machucou muito a perna; é necessário encon- trar um remédio para curarmos a perna.» Neste caso, a atividade combinatória da imaginação é extraordinariamente evidente. Temos perante nós uma situação criada pela própria criança. Todos os elementos desta situação são conhecidos da criança da sua expe- riência anterior; de outro modo, não poderia ter criado tal situação. Todavia, a combinação destes elementos constitui algo de novo, resulta da atividade criativa que Imaginação e Criatividade na Infância.indb 27 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 28 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA pertence à criança e não é mera reprodução daquilo que ela teve oportunidade de observar ou de ver. A capaci- dade de elaboração e de construção a partir de elementos, de combinar os elementos velhos em novas combinações, constitui o fundamento do processo criativo. Com total razão,muitos autores assinalam que as raízes de tal combinação criativa podem também ser observadas nos jogos de alguns animais. O jogo do ani- mal é também, com frequência, resultado da imaginação motora. No entanto, tais rudimentos da imaginação nos animais não puderam, dadas as condições da sua existência, enveredar por um desenvolvimento seguro e consistente, e só o homem desenvolveu esta forma de atividade ao nível que nele hoje se apresenta. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 28 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) CAPÍTULO 2 IMAGINAÇÃO E REALIDADE Entretanto surge uma questão: como se origina esta atividade combinatória criativa? De onde surge, como é condicionada e como se subordina às leis do seu desenvolvimento? A análise psicológica desta atividade destaca a sua enorme complexidade. Ela não surge de repente, mas lenta e gradualmente, desenvolvendo-se a partir de formas elementares e simples para outras mais complexas e, em cada etapa etária do desenvolvimento, detém uma expressão particular. Cada etapa da infância é caracterizada por uma forma de atividade criativa espe- cífica. Daí em diante, esta atividade não está separada do comportamento humano, mas está na dependência direta de outras formas da nossa atividade e, em particular, está ligada à experiência acumulada. Para compreender o mecanismo psicológico da imaginação e a atividade criativa com ela conexa, o melhor é começar com a clarificação da ligação que existe entre a fantasia e a realidade no comportamento humano. Já tínhamos chamado a atenção para a ideia errónea de senso comum que estabelece uma divisória intransponível entre a realidade e a fantasia. Tentaremos agora mostrar as quatro formas fundamentais que ligam Imaginação e Criatividade na Infância.indb 29 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 30 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA a atividade imaginativa à realidade. A elucidação que propomos a seguir ajudar-nos-á a compreender a imagi- nação, não como um capricho da atividade mental, não como atividade que paira no ar, mas como uma função primordialmente necessária. A primeira forma de ligação da imaginação com a realidade consiste no facto de que qualquer criação da imaginação é elaborada a partir de elementos toma- dos da realidade e retirados da experiência anterior do homem. Seria um milagre se a imaginação pudesse surgir do nada ou tivesse origem noutras fontes para as suas criações e não na experiência passada. Só as repre- sentações religiosas e místicas sobre a natureza humana poderiam atribuir a origem dos resultados da fantasia não à nossa expe riência passada, mas a uma força exterior sobrenatural. De acordo com essas conceções, os deuses ou os espíritos incutem nas pessoas os sonhos, nos poetas a inspiração para as suas obras, ditam aos legisladores os dez mandamentos. A análise científica de algumas das mais fantásticas elaborações afastadas da realidade, por exemplo, os contos, mitos, lendas, sonhos, etc., convence- -nos de que as fantasias mais elaboradas que representam não são mais do que uma nova combinação de elementos semelhantes, de facto retirados da realidade, mas apenas submetidos à alteração ou à reelaboração pela ação da nossa imaginação. Como sabemos, a cabana (izbá) com patas de galinha não existe a não ser no conto, mas os elementos a partir dos quais o conto é elaborado foram retirados da expe- riência humana; a sua combinação dá ao conto um tom fantasioso, o que o torna na sua construção distante da Imaginação e Criatividade na Infância.indb 30 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) IMAGINAÇÃO E REALIDADE 31 realidade. Tomemos como exemplo a imagem do mundo dos contos como Púshkin o descreve: Um fio de ouro cinge o tronco Do verde roble à beira-mar: O gato sábio dia e noite Anda pelo fio a cirandar. Vai à direita – ergue um canto, Vai pela esquerda – conta um conto. Ali – prodígio – erra o silvano, Pousa nos ramos a ondina; Na vereda insondada o rasto De alimárias nunca vistas; Em pés de galinha assenta a casa Não tem porta, não tem postigo.1 Podemos, palavra a palavra, seguir todo este frag- mento e demonstrar que apenas a combinação dos elemen- tos é fantasiosa nesta narração, mas que os elementos são tomados da realidade. O carvalho, o fio de ouro, o gato, as canções, tudo isto existe na realidade, e apenas a figura do gato sábio que anda pelo fio de ouro a cirandar e conta histórias, somente esta combinação dos elementos é fan- tasiosa. O que resta das imagens da lenda, que aparecem depois, como o silvano e a ondina, ou a cabana assente em patas de galinha, apenas representa uma combinação com- plexa de elementos que sugerem a realidade. Na imagem da ondina, por exemplo, encontra-se a representação da 1 Prólogo de «Russlan e Liudmila», in Aleksandr Púchkin, O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas. Seleção, tradução e notas de Nina e Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Assírio e Alvim, 1999, p. 111. (N. T.) Imaginação e Criatividade na Infância.indb 31 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 32 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA mulher com a imagem do pássaro que pousa nos ramos das árvores; na cabana encantada, a imagem das pernas de galinha com a representação de uma cabana, etc. Deste modo, a imaginação elabora sempre a partir dos materiais captados da realidade. De facto, como se pode ver a partir do trecho citado, a imaginação pode criar novos e novos graus de combinações, misturando, em primeiro lugar, os elementos da realidade (o gato, o fio de ouro, o carvalho), combinando depois as imagens da fantasia (a ondina, o silvano), etc. Mas os elementos derradeiros, a partir dos quais são criados os elemen- tos da realidade mais distante da representação fan- tástica, mesmo esses elementos últimos, são sempre elementos da realidade. Encontra-se aqui a primeira e a mais importante lei a que se subordina a atividade imaginativa. Esta lei pode formular-se do seguinte modo: a atividade criadora da imaginação está em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, uma vez que esta experiência é a matéria-prima a partir da qual se elaboram as construções da fantasia. Quanto mais rica for a experiência humana, mais abundante será a matéria disponível para a imaginação. Assim, a razão pela qual a imaginação da criança é menos rica do que a do adulto deve-se ao facto de a sua experiência ser mais pobre. Se seguirmos a história das grandes realizações e das grandes descobertas, podemos verificar que quase sempre surgiram como resultado da enorme experiência previamente acumulada. É exatamente com esta acumu- lação da experiência que começa a imaginação. Quanto mais rica a experiência, tanto mais deverá ser rica, em circunstâncias semelhantes, a imaginação. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 32 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 012 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) IMAGINAÇÃO E REALIDADE 33 A seguir ao momento de acumulação da experiência, diz Ribot: inicia-se o período de amadurecimento (incubação). Em Newton o período de amadurecimento durou 17 anos e, no momento de estabelecer definitivamente as suas descobertas nos cálculos, foi invadido por um sentimento tão forte que foi obrigado a confiar a tarefa a outrem para a finalização das suas descobertas. O matemático Hamilton disse que o seu método de «quaterniões» lhe surgiu de repente quando atravessava a ponte de Dublin: «Nesse momento encontrei o resultado de quinze anos de trabalho». Darwin recolheu dados durante as suas viagens, observou longamente as plantas e os animais e, após a leitura do livro de Malthus, que encontrou por acaso, elucidou definitivamente os seus estudos e definiu de modo claro a sua teoria. Exemplos aná- logos podem ser encontrados abundantemente no âmbito da criação literária e artística. A conclusão pedagógica que podemos tirar daqui é a seguinte: se queremos criar bases suficientemente sólidas para a sua atividade criativa, devemos considerar a necessidade do alargamento da experiência da criança. Quanto mais a criança viu, ouviu e experimentou, mais sabe e assimila. Quanto mais elementos da realidade a criança tiver à disposição na sua experiência mais impor- tante e produtiva, em circunstâncias semelhantes, maior será a sua atividade imaginativa. A partir desta primeira forma da ligação da fantasia com a realidade, é fácil deduzir a razão por que é errada a oposição de uma em relação à outra. A atividade com- binatória do nosso cérebro surge como não constituindo Imaginação e Criatividade na Infância.indb 33 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 34 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA algo absolutamente novo em relação à sua atividade de conservação, sendo antes, de modo simples, a complexi- ficação desta. A fantasia não está em oposição à memória, apoia-se nela e apresenta os seus dados em combina- ções renovadas. A atividade combinatória do cérebro fundamenta-se no facto de ele conservar os traços das anteriores estimulações. O cérebro combina esses traços em posições diferentes daquelas em que se encontravam na realidade. A segunda forma de ligação da fantasia com a rea- lidade é diferente e mais complexa: não se realiza entre os elementos de construção fantástica e a realidade, mas entre o produto final da fantasia e determinados ele- mentos complexos da realidade. Quando eu, na base do estudo das descrições dos historiadores ou dos viajantes, imagino para mim mesmo o quadro da grande Revolução Francesa ou dos desertos em África, então, em ambas as situações o panorama obtido é o resultado da atividade criativa da minha imaginação. Ela reproduz o que foi por mim percebido nas experiências anteriores, mas cria, a partir destas experiências, novas combinações. Neste sentido, ela subordina-se inteiramente à primeira lei anteriormente descrita. E estes produtos da imaginação elaboram-se a partir destes elementos trans- formados e tomados da realidade, sendo necessário dis- por de uma grande reserva de experiência passada para podermos construir as imagens de que falamos através de tais elementos. Se eu não tivesse uma ideia da carência e da falta de água nos grandes espaços e dos animais que habitam o deserto, não conseguiria criar uma imagem sobre o deserto. Se não tivesse um conjunto de ideias e representações históricas, também não conseguiria criar Imaginação e Criatividade na Infância.indb 34 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) IMAGINAÇÃO E REALIDADE 35 na minha imaginação um quadro sobre a Revolução Francesa. A dependência da imaginação da experiência anterior é aqui revelada com enorme clareza. Porém, ao mesmo tempo, há nestas elaborações da fantasia algo de novo, que as distingue de modo essencial do trecho de Púshkin, que analisámos atrás. Quer no quadro da beira- -mar com o gato sábio, quer no caso do deserto africano que nunca vi, estes são também, na sua essência, constru- ções da imaginação, combinações fantasiosas elaboradas a partir de elementos da realidade. Contudo, o resultado da imaginação, a própria combinação destes elementos, num dos casos, não é real (conto), enquanto no outro caso a ligação destes elementos, o próprio produto da fantasia, e já não apenas os seus elementos, corresponde a um fenómeno da realidade. É exatamente esta ligação do produto final da imaginação com este ou outro fenó- meno real que representa esta segunda forma, superior, de ligação da fantasia com a realidade. Esta forma de ligação torna-se possível apenas gra- ças à experiência alheia ou à socialização. Se ninguém tivesse visto nem descrito um deserto africano e a Revo- lução Francesa, formar uma ideia adequada de deserto ou de Revolução Francesa seria uma tarefa completamente impossível. É porque a nossa imaginação trabalha, não livremente, em ambas as situações, mas sim orientada pela experiência alheia, agindo como se fosse impulsio- nada através de outros; é só graças a isto que se pode conseguir o resultado obtido na situação presente, no qual o produto da imaginação coincide com a realidade. Neste sentido, a imaginação adquire uma função muito importante no comportamento e no desen- volvimento humanos, transforma-se em meio para o Imaginação e Criatividade na Infância.indb 35 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 36 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA alargamento da experiência do homem, porque, deste modo, ele poderá imaginar o que nunca viu; poderá, a partir da descrição do outro, representar para si também a descrição daquilo que na sua própria experiência pes- soal não existiu, o que não está limitado pelo círculo e fronteiras estritas da sua própria experiência, mas pode também ir para além das suas fronteiras, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica e social de outros. Sob esta forma, a imaginação é condição absoluta- mente necessária de quase toda a atividade intelectual do homem. Quando lemos o jornal e conhecemos inúmeros acontecimentos não testemunhados diretamente, quando a criança estuda geografia ou história, quando simples- mente a partir de uma carta tomamos conhecimento do que ocorreu com outra pessoa, em todos estes casos, a nossa imaginação está ao serviço da nossa experiência. Consegue-se uma dependência dupla e recíproca da imaginação com a experiência. Se, no primeiro caso, é a imaginação que se apoia na experiência, então, no segundo, é a própria experiência que se apoia na imaginação. A terceira forma de ligação entre a imaginação e a realidade é a conjunção emocional. Esta ligação manifesta- -se de dois modos. Por um lado, todo o sentimento e emoção tende a revelar-se em determinadas imagens que lhe correspondem, como se a emoção tivesse a capacidade de escolher as impressões, os pensamentos e as imagens que estão em consonância com um determinado estado de humor e disposição que nos domina nesse preciso momento. Sabe-se que, no desgosto e na alegria, não vemos as coisas com os mesmos olhos. Os psicólogos aperceberam-se,faz tempo, de que cada sentimento não tem apenas uma expressão exterior corporal, mas Imaginação e Criatividade na Infância.indb 36 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) IMAGINAÇÃO E REALIDADE 37 igualmente uma expressão interior, que se manifesta na escolha dos pensamentos, imagens e impressões. Eles chamaram a este fenómeno a lei da expressão dupla dos sentimentos. O medo, por exemplo, não se manifesta ape- nas na palidez do rosto, no tremor, na secura da garganta, alteração do ritmo respiratório e no batimento cardíaco, mas também, além disso, no facto de todas as impressões percecionadas pelo homem nesse momento, de todos os pensamentos que lhe passam pela cabeça, se rodearem, de uma forma geral, do sentimento que o domina. Quando o ditado diz que o corvo assustado tem medo do arbusto, isso quer dizer que a influência dos nossos sentimentos tinge a perceção das coisas exteriores. Do mesmo modo que as pessoas aprenderam há muito tempo a manifestar por meio de impressões exteriores os seus estados de espírito interiores, assim as imagens da fantasia servem de expressão interior dos sentimentos. O homem assinala o desgosto e o luto com a cor negra, a alegria com o branco, a calma com o azul, a revolta com o vermelho. As imagens e fantasias concedem igualmente uma linguagem interior para as nossas emoções. Este sentimento seleciona ele- mentos isolados da realidade e combina-os de modo a que essa combinação, condicionada de dentro, corresponda à nossa disposição interior e não à lógica exterior dessas mesmas imagens. Os psicólogos chamam a esta influên- cia – o fator emocional na fantasia combinatória – lei do sinal emocional comum. A essência desta lei consiste em que as impressões e as imagens com um sinal emocional comum, que causam um efeito emocional coincidente, tendem a agregar-se entre si, apesar de não existir entre elas qualquer ligação de semelhança ou contiguidade, interior ou exterior, entre as imagens. Resulta numa obra Imaginação e Criatividade na Infância.indb 37 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 38 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA combinatória da imaginação, na base da qual estão os sentimentos comuns, ou um mesmo sinal emocional que junta elementos diferentes conexos. «As representações», diz Ribot, «acompanhadas pelas mesmas reações afetivas, associam-se posteriormente entre si, uma vez que a semelhança afetiva une e tece entre si representações diferentes. Tal distingue-se das associações por contiguidade, que consistem na repetição da experiên- cia e das associações por semelhança no sentido intelectual. As imagens combinam-se entre si, não porque tenham sido dadas anteriormente em conjunto, não porque tenhamos percebido relações de semelhança entre elas, mas porque possuem um tom afetivo comum. A alegria, tristeza, admiração, o amor, ódio, tédio, orgulho, cansaço, etc., podem tornar-se centros de gravidade aglutinadores de representações ou acontecimentos sem relação racional entre si, mas marcados com o mesmo indício emocional, a uma mesma característica, por exemplo, de alegria, tristeza, erotismo, etc. Esta forma de associação é muitas vezes representada nos sonhos ou nos devaneios, isto é, em estados da mente, em que a imaginação está em liberdade e trabalha sem regras e ao acaso. É fácil compreender que estas influências implícitas ou explícitas do fator emocio- nal devem proporcionar o surgimento de agrupamentos totalmente inesperados e constitui um campo aberto a novas combinações, uma vez que o número de imagens com marca afetiva semelhante é enorme.» Para exemplificar de uma forma simples esta combinação de imagens, detentoras de sinal emocional semelhante, temos as situações correntes de aproximação estabelecida entre duas quaisquer impressões distintas, que nada têm em comum entre si, exceto provocarem em Imaginação e Criatividade na Infância.indb 38 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) IMAGINAÇÃO E REALIDADE 39 nós estados de humor semelhantes. Quando enunciamos que o azul é frio e o vermelho é quente, então aproxima- mos a impressão de azul e de frio apenas no facto de elas causarem em nós estados de humor semelhantes. É fácil perceber que a fantasia imbuída deste fator emocional, pela lógica interna dos sentimentos, representa o mais subjetivo e íntimo tipo de imaginação. Mas existe, além disso, uma relação inversa entre a imaginação e as emoções. Se, no caso por nós descrito primeiramente, são os sentimentos que influenciam a imaginação, então, no outro caso é, pelo contrário, a ima- ginação que influencia os sentimentos. Este fenómeno poderia ser denominado lei da realidade emocional da imaginação. A essência desta lei é formulada por Ribot nos seguintes termos. «Todas as formas da imaginação criativa», diz ele, «incluem em si elementos afetivos.» Isto significa que toda a construção da fantasia, inversamente, influencia os nos- sos sentimentos e, no caso de esta construção, por si só, não corresponder à realidade, todos os sentimentos por ela desencadeados são reais, vividos verdadeiramente e integrados pelo homem que os sente. Imaginemos uma situação simples de ilusão. Ao entrar às escuras no quarto, a criança, por ilusão, toma o vestido pendurado por uma pessoa estranha ou um ladrão que entrou em sua casa. A imagem do ladrão criada pela fantasia da criança não é real, mas o medo que a criança sente, o seu susto, são de facto impressões reais para a criança. Algo semelhante sucede também com todas as elaborações fantásticas e esta lei psicológica deve explicar-nos claramente por que exercem em nós uma impressão tão forte as obras de arte criadas pela fantasia dos seus autores. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 39 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 40 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA As paixões e a sorte dos heróis imaginados, a sua feli- cidade e desgraça inquietam, preocupam e contaminam- -nos, apesar de sabermos bem que estamos em presença de acontecimentos irreais, invenções da fantasia. E isto deve-se ao facto de as emoções com as quais somos con- tagiados, a partir da leitura das páginas de um livro ou da cena de uma peça de teatro, por efeito das imagens artísticas, serem verdadeiramente reais e de as sentirmos profundamente. Frequentemente, uma simples combi- nação das impressões do exterior, como, por exemplo, a impressão que a obra musical causa na pessoa que a ouve, desperta um mundo inteiro de vivências e sentimentos. Este alargamento e aprofundamento dos sentimentos e a sua reconstrução criativa são a base psicológica da arte musical. Falta ainda falar da quarta e última forma de ligação da fantasia com a realidade. Esta última forma está, por um lado, estritamente ligada à que acabámos de descre- ver, mas, por outro lado, distingue-se dela de modo radi- cal. A essência desta última consiste em que a construção da fantasia pode representar por si algo essencialmente novo, de não existente na experiência dohomem, e qualquer coisa que não corresponde a nenhum outro objeto da realidade; mas ao encarnar uma nova forma do exterior, tomando uma forma material, esta imaginação «cristalizada», ao tornar-se objeto, começa a existir de facto no mundo e a atuar sobre os outros objetos. Tal imaginação torna-se realidade. Exemplo desta imaginação «cristalizada» ou encarnada pode ser um qualquer dispositivo técnico, máquina ou ferramenta. Resultado da imaginação combinatória do homem, estes novos objetos não correspondem a nenhum exemplo Imaginação e Criatividade na Infância.indb 40 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) IMAGINAÇÃO E REALIDADE 41 existente na natureza, mas surgem da ação mais convin- cente e da ligação prática com a realidade, uma vez que, corporizadas, tornaram-se tão reais como as outras coisas e exercem a sua ação no mundo exterior. Estes produtos da imaginação atravessaram uma história muito longa que talvez se deva sublinhar de um modo esquemático e sucinto. É possível dizer que no curso do seu desenvolvimento eles descreveram um ciclo. Os elementos a partir dos quais foram construídos foram tomados pelo homem da realidade e dentro dele, no seu pensamento, foram sujeitos a um trabalho de reconstru- ção, transformando-se em produtos da imaginação. Por fim, ao serem materializados, voltaram outra vez à realidade, mas voltaram com uma nova força ativa, transformadora dessa realidade. Este é o ciclo completo da atividade criativa. Seria erróneo supor que só no domínio da técnica, da ação prática sobre a natureza, a imaginação é capaz de cumprir este ciclo completo. Tal como no domínio da imaginação emocional, isto é, na imaginação subjetiva, é possível descrever um ciclo completo que não é difícil de observar. Acontece que, exatamente quando temos perante nós um ciclo completo traçado pela imaginação, os dois fatores – intelectual e emocional – aparecem, em igual medida, necessários para ato criativo. O sentimento e o pensamento movem a criatividade humana. «Qualquer pensamento dominante», diz Ribot, «é sustentado sobre alguma necessidade, aspiração ou desejo, isto é, por um elemento afetivo, pois seria absurdo acreditar na constância de qualquer ideia, que por hipótese existisse em puro estado intelectual, Imaginação e Criatividade na Infância.indb 41 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 42 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA com toda a sua aridez e frieza... Todo o sentimento (ou emoção) dominante deverá concentrar-se na ideia ou imagem que lhe possa dar forma e organização, sem a qual permaneceria num estado impreciso… Vemos, assim, que estes dois termos – pensamento dominante e emoção dominante – são quase iguais entre si, que um e outro incluem elementos inseparáveis e apontam para o predomínio de um ou outro.» Para nos convencermos disto, o melhor é dar um exemplo a partir da imaginação artística. Na realidade, para que serve a obra artística? Influenciará ela, no nosso mundo interior, os nossos pensamentos e sentimentos, tal como as ferramentas técnicas, relativamente ao mundo externo, ao mundo da natureza? Damos um exemplo muito simples, a partir do qual podemos esclarecer sob a forma mais elementar a ação da imaginação artística. O exemplo é tirado do conto de Aleksandr Púshkin A Filha do Capitão. Nele se descreve o encontro de Pugatchov com o herói da história, Grinev, em nome do qual é desenvolvida a narração. Grinev, oficial feito prisioneiro de Pugatchov, tenta persuadi-lo a deixar os seus companheiros e a recorrer ao perdão da imperatriz. Ele não compreende o que move Pugatchov. Pugatchov sorriu amargamente. – Não – disse ele –, é tarde para me arrepender. Para mim não haverá perdão. Continuarei como comecei. Sabe-se lá! Talvez dê resultado! Grichka Otrepiev reinou em Mos- covo, como sabes. – E sabes como acabou? Atiraram-no de uma janela, mataram-no à facada, queimaram-no, carregaram um canhão com as suas cinzas e dispararam-no! Imaginação e Criatividade na Infância.indb 42 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) IMAGINAÇÃO E REALIDADE 43 – Ouve – prosseguiu Pugatchov, com uma espécie de inspiração selvagem. – Vou-te contar uma história que em criança me contou uma velha calmuque. Um dia, uma águia perguntou ao corvo: «Diz-me, corvo pássaro, porque vives tu no mundo trezentos anos e eu só trinta e três?» «Isso, paizi- nho», respondeu-lhe o corvo, «é porque tu bebes sangue vivo e eu alimento-me de carne podre!» A águia pensou: vamos lá experimentar e alimentar-nos de igual modo. A águia e o corvo voaram juntos. Viram uma carcaça de um cavalo. Desceram e pousaram sobre ela. O corvo começou a dar bicadas e a elogiar. A águia bicou uma vez, bicou outra, bateu as asas e disse ao corvo: «Não, irmão corvo, a viver trezentos anos comendo carne putrefacta é preferível saciar-se de sangue vivo e o resto se Deus quiser!» Que tal achas da história calmuque? 2 O conto narrado por Pugatchov é produto da ima- ginação e dir-se-ia que a imaginação está completamente desligada da realidade. O corvo e a águia falantes ape- nas poderiam estar representados na fantasia da velha calmuque. Mas não é difícil identificarmos que noutro sentido esta elaboração fantástica resulta diretamente da realidade e age sobre essa mesma realidade. No entanto, esta realidade não é externa, é interna – é o mundo dos pensamentos, conceitos e sentimentos do próprio homem. Sobre estas criações é costume dizer que elas são fortes pela sua verdade interna e não externa. É fácil notar que, nas personagens da águia e do corvo, Púchkin apresentou dois tipos de pensamento e de vida, dois tipos de atitudes em relação ao mundo, o que não era possível 2 Aleksandr Púshkin, A Filha do Capitão. Lisboa: Novo Imbondeiro Editores. Tradução do russo por Manuel Seabra, p. 100. (N.T.) Imaginação e Criatividade na Infância.indb 43 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 44 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA compreender-se a partir de uma conversa fria e seca entre os dois interlocutores – a diferença entre o ponto de vista do pequeno-burguês e o ponto de vista do rebelde –, diferença que se encontra com uma completa evidência e enorme força do sentimento inscrita na consciência do narrador através do conto. O conto poderia esclarecer as relações complexas do dia a dia; as suas personagens como que iluminariam um problema do quotidiano; o que um diálogo frio e pro- saico não o poderia fazer por si só, fê-lo o conto através de uma linguagem imaginativa e emocional. Púshkin tem razão quando diz que o verso pode cortar os cora- ções com uma força desconhecida e noutro poema fala da realidade da vivência emocional causada a partir da invenção: «Sobre a imaginação lavar-me-ei em lágrimas.» Vale lembrar a influência que exerce na consciência social uma obra de arte, para que nos convençamos de que aqui a imaginação descreve o mesmo ciclo tão completo como o que é encarnado numa ferramenta material. Gogol criou o Inspetor;os atores representaram-no no teatro; o autor e os atores criaram imagens de ficção, e a própria peça, representada em cena, desnudou com tal clareza todo o terror da Rússia de então, que, com tal força, ridicularizou os pilares nos quais assentava a vida e que pareciam inabaláveis, o que todos sentiram, e mesmo o próprio czar também sentiu mais do que todos, ao assistir à estreia, que a peça comportava uma grande ameaça para aquele regime. «Hoje todos foram atingidos e eu mais do que todos», disse Nikolai na primeira representação da peça. As obras artísticas podem exercer uma influência forte na consciência social das pessoas porque possuem Imaginação e Criatividade na Infância.indb 44 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) IMAGINAÇÃO E REALIDADE 45 uma lógica interna. O narrador de qualquer obra literária, como Pugatchov por exemplo, não combina as imagens da fantasia em vão, ou sem sentido, não as acumula arbitrariamente umas sobre as outras, pela vontade do acaso, como nos sonhos ou no devaneio sem sentido. Ao contrário, elas seguem a lógica interna das imagens em desenvolvimento e esta lógica interna é condicionada pela ligação que a obra estabelece entre o seu mundo e o mundo externo. No conto sobre o corvo e a águia as imagens dispõem-se e combinam-se segundo a lei da lógica das duas forças representadas pelas personagens de Grinev e Pugatchov. Um exemplo muito curioso deste ciclo completo que uma obra literária deste tipo contém, dá-nos L. Tolstoi nas suas obras. Tolstoi descreve como lhe surgiu a imagem da Natacha no romance Guerra e Paz. «Eu peguei em Tânia», diz ele, «dialoguei com a Sónia e surgiu a Natacha.» Tânia e Sónia são a sua cunhada e a sua mulher, duas mulheres reais, cuja combinação resultou na ima- gem artística. Estes elementos tomados da realidade combinam-se a seguir, não pelo livre capricho do artista, mas segundo a lógica interna da imagem artística. Tolstoi ouviu, em certa altura, a opinião de uma das suas leitoras, que lhe disse que ele procedera de modo muito cruel com Ana Karenina, a heroína do seu romance, quando a obrigou a lançar-se para baixo das rodas do comboio em andamento. Tolstoi observou: Isto faz-me lembrar o que aconteceu com Púshkin quando disse certa vez a um dos seus amigos: – Nem imaginas a partida que a Tatiana me pregou. Casou-se! Eu não esperava nada isso dela. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 45 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 46 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA O mesmo posso eu dizer sobre a Ana Karenina. De um modo geral, os meus heróis e as minhas heroínas fazem, às vezes, coisas que eu próprio não quereria que tivessem feito. Fazem o que eles próprios deviam fazer na realidade e como acontece na vida real, não como eu quero. Encontramos este género de reconhecimento num conjunto inteiro de artistas que enfatizam a mesma lógica interna que governa a construção da imagem artística. Wundt, num excelente exemplo, expressou muito bem esta lógica da fantasia, quando disse que o pensamento sobre o casamento pode incutir o pensamento sobre o enterro (a união e a separação do noivo e da noiva), mas de modo algum o pensamento da dor de dentes. Deste modo, na obra de arte encontramos frequen- temente unidos traços distantes e sem ligação entre si; embora não sendo estranhos uns aos outros, como o pensamento sobre a dor de dentes e o pensamento sobre o casamento, ligar-se-ão segundo uma lógica interna. Imaginação e Criatividade na Infância.indb 46 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) CAPÍTULO 3 O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA Como se compreende de tudo o que foi anterior- mente dito, a imaginação é, pela sua composição, um processo muito complexo. E é exatamente essa comple- xidade que se constitui como a maior dificuldade no estudo do processo criativo e frequentemente conduz a ideias erróneas sobre a própria natureza desse processo e o seu caráter, como algo invulgar e absolutamente extraordinário. Não é nossa tarefa dar agora uma descri- ção completa do conteúdo deste processo. Isto exigiria uma análise psicológica longa, que neste momento não nos deve interessar, mas, para darmos uma ideia sobre a complexidade desta atividade, observaremos muito brevemente alguns momentos que fazem parte deste processo. Qualquer atividade imaginativa tem sempre uma história longa atrás de si. Aquilo a que chamamos criação é habitualmente apenas o ato do nascimento que ocorre em resultado de um prolongado processo interno de gestação e desenvolvimento fetal. No início deste processo, como já sabemos, encon- tramos sempre as perceções externas e internas que são o fundamento da nossa experiência. O que a criança vê e ouve constitui deste modo os primeiros pontos de apoio para a sua criatividade futura. A criança acumula Imaginação e Criatividade na Infância.indb 47 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te ) 48 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA material a partir do qual, posteriormente, irá construir as suas fantasias. Depois segue um processo complexo de transformação deste material. As partes constituintes importantes deste processo são as dissociações e associa- ções das impressões adquiridas através da perceção. Cada impressão representa um todo complexo composto por um conjunto de múltiplas partes separadas. A dissociação implica a fragmentação deste todo complexo, separando as suas partes individuais; certas partes individuais destacam-se essencialmente por comparação umas com as outras; umas são guardadas na memória, enquanto outras são esquecidas. A dissociação é, deste modo, uma condição necessária para a subsequente atividade da fantasia. Para ligar os diferentes elementos, o homem deve, antes de tudo, fragmentar a associação natural dos ele- mentos tal como inicialmente foram percebidos. Antes de criar a personagem de Natacha em Guerra e Paz, Tolstoi teve de detetar as características particulares das duas mulheres que lhe eram próximas; se não o fizesse, não as conseguiria misturar ou fundir na personagem de Nata- cha. A esta escolha de traços individuais e o abandono de outros podemos na verdade denominar dissociação. Este processo é muito importante em todo o desenvolvimento mental do homem, serve de base do pensamento abstrato e é o fundamento da formação de conceitos. Esta capacidade de realçar traços individuais de um conjunto complexo tem significado para todo o tra- balho criativo que o homem realiza sobre as impressões. No seguimento do processo de dissociação sucede-se o processo de modificação a que são sujeitos estes ele- mentos dissociados. Este processo de modificação ou de Imaginação e Criatividade na Infância.indb 48 01-10-2012 16:58:06 C op yr ig ht © D in al iv ro , L ev S em en ov itc h V yg ot sk y e Jo ão P ed ro F ró is , 2 01 2 (N en hu m a pa rte d es te li vr o po de rá s er re pr od uz id a ou d ifu nd id a el ec tro ni ca m en te )
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