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1 WILLYANS MACIEL FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO FACULDADE SÃO BRAZ CURITIBA/PR 2018 2 Sumário Introdução ....................................................................................................... 03 Aula 1 – Filosofia da educação, introdução conceitual e histórica..................... 04 Aula 2 – Epistemologia e as origens do conhecimento ..................................... 18 Aula 3 – Origens da filosofia: pré-socráticos ..................................................... 30 Aula 4 – As origens da filosofia: período clássico ............................................. 41 Aula 5 – Pós-socráticos e a sofisticação da filosofia ........................................ 54 Aula 6 – Patrística e Escolástica ....................................................................... 65 Aula 7 – Filosofia moderna e a educação ......................................................... 79 Aula 8 – Filosofia da educação no cenário atual ............................................... 92 Referências..................................................................................................... 104 Currículo do professor-autor ........................................................................... 105 3 Introdução A relação entre a filosofia e a educação é longa e produtiva. A filosofia, por si mesma, surge como um esforço educativo, uma tentativa de combater a ignorância e aqueles que pretendiam aproveitar-se da ignorância alheia, divulgando métodos, ideias, conhecimentos, e fundando escolas para que outros fizessem o mesmo. A filosofia trouxe para a nossa civilização a ideia e que todos poderiam educar-se para investigar e, na medida do possível, compreender a natureza, sem depender do juízo de outros ou da explicação fantástica da Mitologia. Com isso em mente, lhe dou as boas-vindas à disciplina de Filosofia da Educação. Nesta disciplina abordaremos o nascimento da Filosofia e sua evolução ao longo da história da civilização ocidental. Daremos ênfase às características que exerceram influência na Pedagogia, bem como as possibilidades de análise e intervenção da filosofia, ou de suas ferramentas, nas práticas educativas. Para que esse processo se concretize, faremos uma introdução conceitual e histórica; passaremos pela ideia de conhecimento, sua formação e importância; contrastaremos momentos da história da filosofia com a história da civilização ocidental de modo amplo; e exploraremos o ramo específico da Filosofia da Educação. A fim de produzirmos um diálogo produtivo, complementaremos as informações por meio das videoaulas e discussões no ambiente virtual de aprendizagem (AVA). Tenha um bom estudo! Prof. Willyans Maciel 4 Aula 1 - Filosofia da educação, introdução conceitual e histórica Fonte: http://www.freepik.com/free-vector/silhouette-with-academic-icons_760403.htm Olá estudante! Seja bem-vindo à primeira aula da disciplina Filosofia da Educação. Nesta aula procuraremos responder à pergunta fundamental: “O que é Filosofia da Educação?”. Para isso, traçaremos um panorama geral das investigações em educação ao longo da história da filosofia, dividindo essas investigações de acordo com as correntes de pensamento nas quais se encaixam. Exploraremos ainda o escopo, a formação, os principais pensadores e quais são os pontos de investigação da filosofia da educação. 5 Desde que surgiu no mundo, na Grécia Antiga, a filosofia toca questões em educação. Seu primeiro esforço é uma tentativa de combater a ignorância sobre as questões da natureza e da humanidade. O que é Filosofia da Educação A filosofia da educação, como disciplina independente, é relativamente nova, não obstante, questões acerca da educação permeiam a filosofia desde o seu surgimento, com filósofos se dedicando mais ou menos a ela, dependendo do escopo de seu trabalho. Atualmente a filosofia da educação se constitui como uma disciplina academia e um ramo da investigação filosófica e pedagógica, possuindo escopo e teorias próprias. Nesse cenário, a filosofia da educação se organiza em dois ramos centrais, ou dois sentidos de aplicação do termo: Metaeducação: o estudo filosófico dos problemas da educação; Filosofia aplicada: aplicação das ferramentas da filosofia na educação. Metaeducação O termo “meta” é de origem grega e trata de algo mais fundamental, que está para além do aspecto de que se trata. Entre os exemplos de sua aplicação, temos a “metafísica” que é aquilo que está para além da física, ou filosofia primeira, como Aristóteles se referia. O termo se origina da compilação de trabalhos de Aristóteles. O editor compilou, primeiramente, os trabalhos que receberam o título de física, e depois compilou os trabalhos dedicados aos objetos abstratos e problemas de filosofia primeira, aos quais chamou de “metafísica”, ou seja, aqueles trabalhos que estão após a física. Autores como Tomás de Aquino defenderam que esta poderia ser uma divisão metodológica, após compreendidos os elementos básicos do mundo 6 físico, se poderia investigar as questões mais profundas, mas delicadas e abstratas. Vocabulário Divisão metodológica: divisão que serve à aplicação de um método, seja para realização de um trabalho teórico, seja para a aquisição de conhecimentos empíricos. Em termos de estrutura da natureza, no entanto, os conceitos presentes na metafísica eram mais fundamentais do que aqueles presentes na física. Tratavam, entre muitas outras coisas, das leis da natureza e da forma como estas leis são subordinadas à causalidade. Desta maneira, o termo “metafísica” passou a designar um trabalho que explica como uma determinada área funciona, ou deveria funcionar, por qual razão essa área existe, qual a sua função ou escopo, entre outras questões. Tocar música é a própria disciplina musical, mas explicar o que é música e por que a tocamos é um trabalho metamusical, um trabalho que não pode ser realizado, simplesmente executando uma música no instrumento. No caso da educação, a pergunta fundamental da Metaeducação seria: “O que é Educação? ”. Uma pergunta que não pode ser respondida em termos educacionais, sob o risco de circularidade. Vocabulário Circularidade: divisão que serve para a aplicação de um método, seja para realização de um trabalho teórico, seja para a aquisição de conhecimentos empíricos em uma definição ou argumentação. Trata-se do recurso a um entendimento prévio do termo que se pretende definir, ou utiliza o termo que se pretende definir na sua própria definição ou argumentação. Exemplo: professor é aquele que ensina, ensinar é o papel do professor. . 7 Filosofia aplicada Para além das ferramentas de análise que se pode utilizar, da filosofia na educação, e de um subcampo da filosofia, o aspecto que chamamos aqui de filosofia aplicada é na verdade uma intersecção teórico prática entre a filosofia e a prática educativa. Quando pensamos em qualquer área como aplicada, temos a impressão inicial de que se trata de aplicar os métodos daquela área para resolver os problemas de outra. Essa segunda área, por seu turno, se mantém passiva, recebendo a solução que vem da primeira área, para o problema que ela mesma não foi capaz de resolver. Nada poderia estar mais longe da realidade quando falamos em filosofia aplicada. A filosofia, como uma área teórica, só terá resultados práticos se combinada com o conhecimento empírico que se origina nas áreas práticas às quais elase aplica. Parece-lhe um pouco confuso? Então vamos deixar isso mais claro. Cada área do conhecimento e trabalho humanos possui seu próprio ambiente de aplicação e seus próprios métodos. Seria tolo de nossa parte, como se percebeu ao longo do século XX, pensarmos que a filosofia, sem conhecer estes métodos e ambiente de aplicação poderia solucionar problemas práticos das diferentes áreas. Muitas contribuições relevantes foram feitas no passado, mas as melhores contribuições acontecem quando o conhecimento empírico, oriundo das áreas práticas, neste caso, a educação, é absorvido e utilizado pelas áreas teóricas, neste caso, a filosofia, para gerar teorias que refletem a realidade e suas necessidades. Como veremos ao longo desta disciplina, o filósofo de gabinete está acabado. Só nos resta realizar um trabalho alinhado com a prática para gerar os novos campos de atuação da filosofia, a filosofia da educação é um destes campos. 8 Para que as ferramentas da filosofia possam ser efetivamente úteis no trabalho em educação, elas devem ser encaradas como ferramentas a serem utilizadas e analisadas de acordo com as necessidades práticas da educação. Confusões comuns Três áreas relacionadas, porém, diferentes, são geralmente confundidas, cabendo-nos fazer a distinção entre elas: Filosofia da educação: Trata-se do principal tópico que trabalhamos aqui; Teoria educacional: São as teorias que aparecem dentro da educação, sem a presença da filosofia; Filosofia educacional: a forma como se organiza, ou os valores a que uma entidade educacional adere. Teoria educacional É uma subárea da educação, não especificamente definida pela aplicação da filosofia para solucionar suas questões. Nesta subárea se utiliza conceitos e métodos próprios da educação para resolver questões pontuais pertinentes aos processos de educação e suas dificuldades. Naturalmente, a teoria educacional pode considerar aspectos da filosofia, em particular considera muitos elementos de filosofia da mente, especialmente no que concerne a forma como processamos alguns elementos da aprendizagem e conhecimento. Porém não é definida pelo uso destes elementos. Curiosidade Você sabia que a Filosofia da mente é uma subárea da filosofia que trata dos problemas ligados à mente humana, como ela se forma, qual a natureza dos estados mentais e fenômenos psicológicos? Essa subárea se conecta com as diversas ciências para oferecer as melhores interpretações dos fenômenos mentais. 9 Saiba mais Para saber mais sobre o tópico apresentado, consulte a entrada da Enciclopédia da Filosofia da Mente, disponível em: <http://www.infoescola.com/filosofia/filosofia-da-mente/>. Filosofia educacional Trata-se da forma ou método de conduzir a educação, baseado em princípios e valores selecionados de uma sociedade, escola ou indivíduo. Se, por exemplo, somos contratados para atuar em um colégio católico, sabemos que esta instituição pode direcionar a sua abordagem para os princípios católicos, em maior ou menor medida. Já um colégio que se pretende democrático, terá de levar em consideração a opinião de seus estudantes ou de seus representantes legais nos processos de formação do currículo e escolha de opções na tomada de decisão. Pode-se, dentro da filosofia da educação, formular uma filosofia educacional, mas esta necessariamente levará em consideração outros elementos, e não deve ser confundida com a filosofia da educação como um todo. Questões em filosofia da educação Como uma área ou disciplina independente, a filosofia da educação tem suas questões próprias, que vão além da mera teoria da educação e interconectam a prática educativa com as ferramentas da filosofia. Entre as diversas questões que podem ser levantadas pela Filosofia da Educação, encontramos as seguintes: A relação entre teoria e prática educacional. O que constitui a educação. 10 Os valores e normas considerados e manifestos através do processo de educação. A legitimidade da educação como uma disciplina acadêmica. Essas são as principais questões, talvez, as mais fundamentais, mas não significa que outras questões não possam ser levantadas, nem tão pouco significa que não se possa levantar questões mais práticas, envolvendo métodos de investigação e ensino específicos ou a análise filosófica de tais métodos de investigação e ensino. Cada um desses itens é aberto a interpretações e múltiplas visões, com a finalidade de promover o debate, característica fundamental das disciplinas acadêmicas e áreas do conhecimento humano. Objetos de estudo da filosofia da educação Como uma disciplina independente, é de importância crucial que a filosofia da educação defina seu objeto de estudo. Um objeto de estudo é o conteúdo acerca do qual serão formuladas as teorias ou ao qual se aplicará as ferramentas, provenientes da área teórica que procede o estudo. Poderíamos dizer, sem incorrermos em erro, que o objeto de estudo da filosofia da educação é a educação. Isto, no entanto, seria simplista demais e não esclarece satisfatoriamente a nossa curiosidade quanto a esse tema. Assim, para sermos mais específicos, dizemos que a filosofia da educação possui três objetos de estudo específicos: A própria educação. O conhecimento. Os métodos e práticas educacionais. 11 Esses três elementos compreendem todos os aspectos da educação que podem ser investigados pela filosofia da educação, desde a sua natureza geral até a prática cotidiana específica. No processo de investigação empírica e formulação de teorias pode-se utilizar, inclusive, mas não restritivamente, métodos quantitativos de coleta de dados para verificarão da eficácia de aplicação de uma teoria ou da necessidade de uso de determinado método. Vocabulário Investigação empírica: por vezes referida como “pesquisa empírica”, trata da verificação de evidências factuais na realidade. Ela tem por base a observação e a experimentação da realidade. Ambiente acadêmico Como disciplina acadêmica, a filosofia da educação geralmente aparece em departamentos de educação e não de filosofia. Naturalmente que há pesquisa em educação nos departamentos de filosofia, como sempre houve. No entanto, essa pesquisa não é dedicada exclusivamente à aplicação educacional ou à explicação da educação, com vistas à sua utilização na própria educação, como é o caso da filosofia da educação. Em filosofia da educação, o trabalho é todo direcionado para a aplicação prática, e, portanto, como já levantada anteriormente, é uma área do conhecimento humano dedicada a intersecção entre a teoria e a prática. Pesquisas em filosofia da educação podem ainda aparecer em departamentos de filosofia, no entanto, uma disciplina com este nome e escopo não é comum nos currículos de bacharelados e pós-graduações strictu sensu (mestrado e doutorado) em filosofia. O motivo é simples e possui dois aspectos: o primeiro é que as contribuições da filosofia para a educação podem vir de diversas áreas, como 12 acontece com outros ramos do conhecimento humano. Desta forma, diferentes áreas da filosofia podem formular teorias e ferramentas úteis para a educação, propositalmente ou não. O segundo, consiste em que a educação como um departamento nas universidades, deve ser livre para adotar ou recursar teorias de quaisquer áreas e mesmo mesclar estas teorias, respeitados os aspectos teóricos, de concordância e consistência entre os diferentes métodos. Ferramentas para uso na educação vem de diversas fontes, da psicologia do aprendizado, da teoria educacional, da filosofia, ciência cognitiva e diversas outras fontes. Subordinar a filosofia da educação a um departamento específico seria leva-la necessariamente ao fracasso por adesão a um modelo sistemáticoúnico, o que vai na contramão dos desenvolvimentos da própria filosofia. Histórico da filosofia da educação A história da filosofia da educação é a história da própria filosofia, uma vez que esta área, embora tome corpo a partir do período moderno, se formou ao longo da história da filosofia. A história da filosofia, por seu turno, é inseparável da história da humanidade, particularmente da civilização ocidental, de modo que precisamos analisar ambas em conjunto, seguindo os períodos históricos da disciplina e civilização. Civilização ocidental Com os conflitos entre as civilizações que se encontravam na intersecção entre Europa e Ásia, conflitos culturais, econômicos e bélicos, o mundo se dividiu entre ocidente e oriente. Especificamente ocorreu uma divisão entre Grécia e Pérsia, mas como estas eram as duas grandes nações do mundo, intelectual e politicamente, naquele período, a sua divisão significou uma reorganização geográfica e política da qual a nossa cultura e tradição é descendente. 13 Assim, surge o conceito de civilização ocidental, baseada nos princípios do mundo grego, na democracia, no conceito de república, no estudo da filosofia e no desenvolvimento das ciências e tecnologia, como as conhecemos. Histórico da filosofia da educação Como dissemos anteriormente, a história da filosofia da educação é inseparável da história da filosofia. Essa começa, portanto, na Grécia antiga especialmente com Platão, na obra A República, e se desenvolve ao longo da história da filosofia até os tempos atuais. Isto não significa que autores anteriores, como os pré-socráticos, que veremos mais adiante na disciplina, não estivessem preocupados com a educação, naturalmente que estavam. Isto significa que a obra de Platão é o primeiro marco teórico da história da filosofia da educação. Linhas de pensamento da filosofia da educação Nesta sessão elencaremos algumas linhas de pensamento que permearam a filosofia, no que concerne à educação. Essas linhas ficarão mais evidentes nas próximas aulas da disciplina, conforme nos aventurarmos pelos diversos períodos da filosofia e da civilização ocidental. Neste primeiro momento, é suficiente conhecermos as linhas e alguns aspectos de suas abordagens, para que possamos compreender melhor o seu funcionamento conforme elas aparecerem nas próximas aulas. As principais linhas incluem: Idealismo; Realismo; Escolástica; Pragmatismo; Filosofia analítica. 14 Essas linhas não estão em ordem cronológica, mas de aproximação teórica. Veremos, por exemplo, Platão e Kant na mesma linha, mesmo separados por mais de dois mil anos, enquanto Aristóteles, discípulo de Platão estará na mesma linha de pensadores do século XX, como Broudy e Adler. Idealismo O idealismo é uma posição que trata da superioridade das ideias, em termos de investigação filosófica e explicação do mundo exterior. Isto não significa questionar a existência do mundo exterior, como eventualmente é mal compreendida esta posição, mas garantir a superioridade das ideias em relação à experiência empírica, considerando o sujeito como fundamental. Entre os principais nomes desta linha se destacam: Platão (424a.C.-348a.C.); Immanuel Kant (1724-1804); Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Descartes é considerado o primeiro idealista da modernidade, embora sua classificação adequada seja racionalista, porém não é relevante em termos de filosofia da educação, por não ter formulado posicionamentos específicos nesta área. Não obstante, Descartes é um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da ciência na modernidade e do conceito de disciplina como utilizamos até hoje. Realismo O realismo se caracteriza por uma maior relevância dos métodos empíricos e pela independência da realidade em relação a nossas estruturas conceituais, pontos de vista ou crenças. 15 Nesta linha, a realidade possui sua natureza e existência garantidas independente de estarmos conscientes disto. É uma linha mais próxima da forma como trabalhamos atualmente, o que pode ser visto pela presença de pensadores contemporâneos nesta linha, o que não acontece no idealismo. Destacam-se como pensadores do realismo, relevantes para a educação: Aristoteles (384a.C.-322a.C.); Avicenna (980 -1037); Ibn Tufail (1105-1185); John Locke (1632-1704); Jean-Jacques Rousseau (1712-1778); Mortimer Jerome Adler (1901-2001); Harry S. Broudy (1905-1998). Escolástica A escolástica é uma linha da idade média, relevante pela formação de um currículo estruturado e formatação acadêmica que originou o conceito de escola atual, com estudantes, professores, organizados em classes e com um currículo de áreas de estudo específico. Os principais nomes desta linha foram: Tomás de Aquino (1225-1274) e John Milton (1608-1674). Destaca-se ainda a Patrística, que participa da fundação da escolástica e será estudada mais adiante na disciplina. Pragmatismo Linha contemporânea da filosofia, de influência majoritariamente americana e inglesa, o pragmatismo trata do êxito prático das ideias que compõem uma teoria. Aproxima-se conceitualmente ao empirismo e ao utilitarismo, procurando ser uma linha geral de aplicação de métodos comuns a estas duas linhas. 16 Entre os destaques desta linha surgida no século XIX, encontramos: John Dewey (1859-1952); William James (1871-1965); Nel Noddings (1929-); Richard Rorty (1931-2007). Filosofia analítica Figura 1.2: Bertrand Russell, ícone fundador da filosofia analítica Fonte: http://www.philosophybasics.com/photos/russell.jpg. A filosofia analítica é o ramo mais recente da filosofia, um ramo de aspiração prática e antissistemática, que procura trabalhar de modo mais próximo ao senso comum e a possibilidade de colaboração entre as diferentes áreas. Também emprega com mais ênfase os métodos da lógica, matemática e ciências naturais. 17 Entre os principais representantes desta linha temos: G.E. Moore (1873-1858); Bertrand Russell (1872-1970); Gottlob Frege (1848-1925); Richard Stanley Peters (1919-2011). Inseparável da história da filosofia e da humanidade, a filosofia da educação é hoje uma disciplina em si mesma, existindo nos departamentos de educação e tendo como escopo da educação, conhecimento e os meios de educar. Não obstante, é ainda uma aplicação dos métodos da filosofia, combinando-os com a prática educacional, para obter melhores resultados ou explicar o funcionamento e natureza da educação e seus métodos. As diferentes linhas da filosofia têm papel relevante em oferecer ferramentas e conteúdos teóricos para as atividades da filosofia da educação, que não deve se subordinar a uma área específica, mas deve coletar o que há de melhor nas áreas que podem contribuir com seu trabalho. Atividade de Aprendizagem Como uma área de intersecção teórico prática, deveria a filosofia da educação se direcionar de modo mais focado nas linhas da filosofia que apresentam elementos de empirismo? Por quê? 18 Aula 2 – Epistemologia e as origens do conhecimento Olá estudante! Seja bem-vindo à segunda aula. Nesta aula exploraremos a Epistemologia, também chamada Teoria do Conhecimento. Entenderemos o que é e para que serve a epistemologia, qual a importância do conhecimento para nossa espécie e para a formação das grandes áreas da filosofia e da educação. Exploraremos, ainda, a transmissão do conhecimento ao longo do desenvolvimento da humanidade e como esta transmissão se transforma no que hoje chamamos de educação. Desde logo, na investigação filosófica, surge a pergunta: O que é conhecimento? Esta é talvez a primeira pergunta acerca da capacidade humana de estruturar e transmitir informações de modoordenado. Não é por acaso que um dos ramos mais importantes da filosofia é a Epistemologia. Epistemologia A epistemologia é um dos mais importantes ramos da filosofia e também um dos que mais tem ligação com a educação. Trata-se de um ramo dedicado exclusivamente ao conhecimento. Seu escopo é o estudo da natureza do conhecimento, da racionalidade e justificação das crenças e dos sistemas de crenças. A epistemologia é o ramo da filosofia que se ocupa de formular as teorias sobre como o conhecimento funciona, o que ele é, e para que serve. De fato, na origem do termo, epistemologia é uma palavra composta por dois termos gregos: Episteme: conhecimento, em um sentido rigoroso, próximo do que chamaríamos de conhecimento científico; Logos: estudo do discurso. 19 Como “logos” é um termo amplo e de grande variedade de interpretação, normalmente é traduzido por “teoria” ou “ciência”, podemos ver este uso em outras áreas, como a biologia, em que a combinação das palavras “bios”, que significa “vida”, e “logos”, neste caso, usado como “ciência”, formam a “ciência da vida” ou o “estudo da vida”. Como a epistemologia precisa trabalhar com elementos pré-científicos, para questionar e sofisticar inclusive a ideia de conhecimento científico, opta-se pelo uso do termo “teoria”. Assim, a epistemologia é a Teoria do conhecimento. Importante A epistemologia não possui apenas uma teoria, mas trata de todas as teorias que, em sua formulação ou consequências, tratam de explicar ou explorar o conhecimento. Questões em epistemologia A epistemologia procura tratar da natureza, origem, limites, possibilidade, reconhecimento e relações sujeito-objeto do conhecimento. Para tanto, possui quatro áreas fundamentais, que organizam essas questões: Análise filosófica da natureza do conhecimento e como o conhecimento se relaciona com os elementos de sua definição clássica, a verdade, a crença e a justificação; Os problemas relativos ao Ceticismo, especialmente os questionamentos sobre a possibilidade de conhecimento e a possibilidade de se afirmar possuir conhecimento; Os critérios de conhecimento e justificação; O alcance, ou limites, do conhecimento e as origens da crença justificada. Essas quatro áreas fundamentais formam o conjunto de investigações da epistemologia. Nesta aula investigaremos as mais prioritárias, em particular, a 20 primeira, a análise filosófica da natureza do conhecimento, e como o conhecimento se relaciona com sua própria definição clássica. Conhecimento A definição clássica de conhecimento é “crença verdadeira justificada”. Uma definição simples em três elementos, que pretende tratar de um dos aspectos mais complexos da história da humanidade. Vocabulário Definição: uma proposição ou sentença que inclui tudo sobre o que se pretende definir e nada mais. Figura 2.1: Definição clássica de epistemologia expressa por conjuntos Fonte: Wikimedia Commons. 21 Para se compreender o que é o conhecimento em sua definição clássica, precisaremos entender esses elementos, mesmo para depois questioná-los e analisar os possíveis problemas dessa definição. Crença O primeiro elemento do conhecimento é a crença. É preciso que acreditemos no conteúdo de que dispomos para que este seja considerado conhecimento. A crença é, portanto, a expressão de fé ou confiança. Inclui a verdade, para as questões nas quais há verdade, e as opiniões que aceitamos como verdadeiras nas questões em que o conceito de verdade não cabe. Alguns aspectos da nossa vida cotidiana são puramente optativos, como as escolhas alimentares que fazemos por mero gosto. Existem verdades em alguns aspectos, mas a nossa preferência, em geral, não é pautada por esses aspectos, mas por aspectos meramente de gosto e opinião. Outros aspectos exigem a ideia e o conceito de verdade, como quando procedemos a uma investigação científica ou quando transmitimos um conteúdo a nossos estudantes. Verdade A crença de que algo é verdade não é suficiente para a verdade. Mas se algo é "conhecido" aceita-se que é verdadeiro. Isso significa dizer que podemos estar enganados acerca da verdade de algo, e neste caso não temos conhecimento efetivo sobre este algo. A rigor, não há conhecimento falso. O que é conhecido é tido como verdadeiro. Se descobrimos que nossa descoberta é falsa, não é por que tínhamos um conhecimento falso, mas sim por que não tínhamos conhecimento em absoluto. O senso comum nos dá uma pista sobre isso, quando dizemos que se alguém afirma algo falso, então essa pessoa não sabe do que fala. Indica-se assim que o conhecimento é sempre verdadeiro. 22 “Saber” é a expressão do conhecimento, ou do domínio do conhecimento, é possuir um conhecimento. Se eu digo que sei algo, digo que tenho conhecimento de, pelo menos, um item verdadeiro acerca daquilo sobre o qual eu afirmo saber algo. Caso esse item seja falso, admitimos que eu não sei, mas meramente pensava saber, ou tinha uma opinião que se provou falsa. Justificação A justificação, o terceiro elemento do conhecimento, é a explicação ou a definição aceitável de alguma maneira para a minha crença verdadeira. Não basta acreditar que algo é verdadeiro (crença verdadeira), é preciso oferecer razões para tal. Em geral, iremos questionar o porquê de algo ser verdadeiro ou o porquê de acreditarmos em algo. Isso acontece em todos os aspectos da interação humana, é parte da nossa curiosidade natural e um aspecto emprestado para a teoria do conhecimento. Para que algo seja visto como conhecimento, é preciso que sejamos capazes de justificá-lo. A ciência, em muitos aspectos, trabalha dessa forma. Assim, não basta formular teorias, antes de testá-las, na realidade é preciso passá-las pelo crivo da justificação. Se elas fizerem sentido, então podem seguir adiante para os testes empíricos. Caso não façam sentido na justificação, evitamos desperdiçar nosso tempo e recursos com uma teoria que, muito provavelmente, não ofereceria resultados satisfatórios. Gettier Problem Vamos exercitar a nossa compreensão da epistemologia, por meio de um pequeno desafio para a definição clássica de conhecimento e assim ilustrar como funciona a investigação em epistemologia. 23 Na verdade, o problema proposto por Edmundo Gettier é tudo menos um “pequeno desafio”. Gettier apontou um grande problema para a noção clássica de conhecimento e obrigou toda a comunidade acadêmica a se mobilizar na busca de uma reformulação da definição de conhecimento, ou de uma resposta adequada para Gettier. Mas, afinal, o que Gettier fez? O autor aponta uma questão aparentemente simples, de que às vezes temos uma crença, verdadeira e justificada, sem termos conhecimento de fato. Essa questão surpreendentemente simples é demonstrada pelo Gettier case, que veremos a seguir. Gettier case Dois homens, Smith e Jones, aguardam o resultado de uma entrevista de emprego. O tempo é curto e ambos foram agendados para o mesmo horário, de modo que aguardam lado a lado pela resposta de suas entrevistas. Ambos os homens têm dez moedas em seus bolsos. Smith sabe que Jones tem as 10 moedas, pois o viu contar suas moedas há algum tempo. O que Jones não sabe é que ele mesmo tem dez moedas. Uma coincidência estranha, mas perfeitamente possível. Como dito anteriormente, ambos concorrem à mesma vaga de emprego e aguardam ansiosamente pela chamada. Smith, por sua observação dos olhares, cumprimentos e a forma de agir do entrevistador, acredita que Jones será contratado. Então, Smith acredita que, aquele homem que possui dez moedas no bolsa será contratado. Podemos reformular a crença de Smith desta maneira, e o próprio Smith poderia pensar isto, o homem que tem em seu bolso dez moedas será contratado hoje. Porém,o homem que será contratado é Smith, que também tem dez moedas em seu bolso. Vejamos: 24 “O homem que tem dez moedas será contratado” é verdadeiro, pois de fato o homem contratado tem dez moedas no bolso, é justificado, podemos explicar a presença das dez moedas, e Smith acredita nesta proposição. Então Smith acredita em uma verdade justificada, que o homem que tem dez moedas será contratado, mas, ainda assim, não tem conhecimento sobre quem é o homem que será contratado, no caso ele mesmo. Esse problema mostra que a definição clássica de conhecimento não era uma definição de conhecimento, na medida em que falta algo a ser dito sobre o que é conhecimento, pois nesta situação, mesmo atendendo a todos os critérios da definição, ainda não temos conhecimento. Respostas a Gettier Uma das questões levantadas pelos autores que reagiram a Gettier foi: prever o resultado pelas razões erradas faz conhecimento? Poucos tentaram oferecer uma resposta nos termos da definição clássica, a maioria tem se esforçado para apresentar novas formulações da ideia de conhecimento. Por que o conhecimento é relevante para a educação O conhecimento é o cerne da educação. O processo de educação envolve diversos aspectos, mas o conhecimento é a base do processo. Independentemente dos problemas que possamos encontrar na definição de conhecimento, questões que ainda são e serão por muito tempo investigadas pela epistemologia, o conhecimento é fundamental para a educação. Sem o conhecimento, não temos conteúdo para transmitir aos nossos estudantes e produzir em conjunto com eles. Destarte, no que pese a preocupação com as questões da epistemologia, continuamos utilizando a definição clássica, e outras definições, em busca de novos conhecimentos. 25 Respostas às necessidades Compreender a estrutura básica do conhecimento e a forma de transmissão de conhecimento, é compreender a forma como os seres humanos atendem suas necessidades. O conhecimento está conosco desde a pré-história e trata de uma das maneiras mais fundamentais de nos relacionarmos com o mundo. Novos conhecimentos A nossa compreensão do mundo evolui através da aquisição do conhecimento, e baseados nesses conhecimentos formulamos modelos educacionais. Cada vez que a nossa espécie adquire novos conhecimentos, os modelos educacionais se expandem ou se reestruturam para absorver e transmitir esses novos conhecimentos, mantendo a humanidade a par, ou o mais possível a par dos novos desenvolvimentos conquistados. Aspectos do conhecimento Em termos educacionais, reconhecemos três aspectos do conhecimento ao longo da história da humanidade: Cumulativo; Ordenado; Surge da necessidade. A informação está disponível na natureza e a capturamos por nossos sentidos, mas para convertê-la em conhecimento precisamos atender a esses três elementos. Tais aspectos são próprios da filosofia da educação e não entram em conflito com as discussões promovidas em epistemologia. Tratam de aspectos 26 diferentes do conhecimento, neste caso, focando como o conhecimento se estrutura na nossa sociedade para atender às necessidades humanas. Ordenado e cumulativo O conhecimento difere de simples informação ao atender aos três aspectos abordados, principalmente pela ordenação. Nesta visão, conhecimento pode ser descrito como informação acumulada e ordenada. Ao acumular e ordenar o conhecimento, damos margem para: nossa capacidade construtiva, a reflexão, formular novos conhecimentos; e estrutura a partir desses conhecimentos que podem ser transmitidas a outros seres humanos, em um processo que chamamos de educação. Surge da necessidade Desde o primeiro homem a utilizar uma ferramenta, a necessidade esteve por trás das descobertas e invenções mais relevantes para a sobrevivência e prosperidade. Isso não poderia ser diferente, já que utilizamos ferramentas por necessidade, para atender às nossas demandas e às dificuldades que enfrentamos em relação ao ambiente em que vivemos. As invenções e descobertas são o resultado da soma entre a capacidade construtiva humana e a necessidade. Aqui, entende-se a capacidade construtiva não como a capacidade de desenvolver elementos materiais, mas sim a capacidade anterior a ela, que subjaz a nossa própria sobrevivência, à capacidade de construir estruturas conceituais que, por sua vez, irão possibilitar todas as construções humanas. 27 Demandas do conhecimento Ainda nos primeiros estágios da linguagem, e sem muitas possibilidades de comunicação, nossos antepassados se utilizavam de sangue de animais caçados e plantas esmagadas para realizar pinturas em rochas, as famosas pinturas rupestres. Eles buscaram registrar os eventos que podiam, em muitos casos possibilitando aos outros a compreensão de ciclos de caça, coletas, os perigos a que estavam sujeitos. Isso certamente teve impacto na capacidade de sobrevivência desses grupos. E nada mais é do que um processo de acúmulo e transmissão de conhecimento baseado nas necessidades da época. Atualmente, nossas necessidades são diferentes e se dividem entre as necessidades individuais e as coletivas. As necessidades coletivas são chamadas de “demandas sociais”, às quais buscamos responder por meio de planos e estruturas. Não obstante o funcionamento da nossa relação com o conhecimento ainda ser o mesmo, procuramos atender às nossas necessidades, seja como indivíduos, seja como sociedade, por meio da aquisição de novos conhecimentos e da sofisticação da nossa compreensão acerca do próprio conhecimento. Desenvolvimento A relação da humanidade com o conhecimento começou na pré-história e levou muito tempo para se desenvolver como um modelo educacional. Esse processo de desenvolvimento, no entanto, é de grande relevância para nosso trabalho nesta disciplina, não apenas porque o conhecimento é fundamental para a educação, mas também porque é o conteúdo de uma das principais áreas da filosofia, a Epistemologia. A principal razão para a relevância desse processo é o desenvolvimento do conhecimento das ferramentas que possibilitam o surgimento da filosofia. 28 Em um primeiro momento, falamos de pinturas rupestres em paredes e uma transmissão quase acidental de conhecimento. Mas, em algum momento, a linguagem começa a se sofisticar e a fala se desenvolve. A partir disso, a educação oral já é possível. Este desenvolvimento da linguagem combinou-se com a criação da agricultura e permitiu a fundação das primeiras comunidades fixas, bem como o efetivo início do que viria a ser a nossa civilização ocidental. A partir desse primeiro passo, em direção à civilização ocidental, o acúmulo do conhecimento tornou-se um pouco mais fácil, pela existência de uma linguagem sofisticada, permitindo uma tradição oral eficiente, graças a uma proximidade maior dos humanos que faziam uso de tal linguagem. A partir da criação da escrita, que inicia o período que efetivamente chamamos de “história”, foi possível manter registros do que ali acontecia, que serviriam a outros que viriam no futuro. Não é por acaso que esse período é o marco de fundação da história, que estabelece a transição da era pré-histórica para a era histórica, uma vez que a partir da escrita é possível realizar registros, contar a história da humanidade e educar mais facilmente as novas gerações. A escrita e a fala, por demandarem um treinamento específico, estimulam a capacidade intelectual dos seres humanos. Assim, a partir desses desenvolvimentos, faz-se possível o surgimento da mitologia, o contexto no qual irá surgir a filosofia. Conhecimento científico O último item a ser tratado, no que concerne ao conhecimento, é o conhecimento científico. É uma forma de conhecimento baseado no método científico, que se vai desenvolverum século depois. Ele é parte do escopo da epistemologia e o tipo de conhecimento que hoje identificamos como relevante para ser transmitido pela educação. 29 O conhecimento científico, baseado em evidências verificáveis, observáveis, com experimentos replicáveis e raciocínio dedutivo, coloca-se à prova da falseabilidade. Compreender o conhecimento é importante para se perceber o que faz a filosofia da educação e como a utilizamos. A epistemologia pode servir de ferramenta à educação para compreender como o conhecimento funciona e se desenvolve. Também a história do conhecimento, e sua relação com a humanidade, mostra como se deu o contexto para as origens da filosofia, que estudaremos na próxima aula. Atividade de Aprendizagem Como o progresso da concepção de conhecimento e sua formação influenciam na educação e como as ferramentas da epistemologia podem ser aplicadas em sala de aula? 30 Aula 3 - Origens da filosofia: pré-socráticos Olá estudante! Nesta aula começaremos a explorar as origens da filosofia. Entre os principais tópicos trataremos dos filósofos pré-socráticos, o que caracteriza o seu período, quais suas teorias e como se organizavam. Falaremos ainda da fase mitológica e como a filosofia emergiu desta fase. Vamos ao estudo! Com os desenvolvimentos da humanidade, em termos de conhecimento e transmissão de conhecimento, não tardou em termos cidades organizadas e começarmos a procurar uma forma de explicar o mundo. A primeira forma dessa tentativa foi a mitologia. Pré-socráticos contra a mitologia Os pré-socráticos são uma linhagem de filósofos que começa em torno de VI a.C. como uma reação à explicação mitológica do mundo, uma explicação em voga na época, de fato, o padrão da sociedade, que lançava mão de deuses e heróis para explicar os fenômenos naturais. O nome pré-socráticos implica que são aqueles filósofos anteriores ao famoso Sócrates, mestre de Platão. Essa afirmação não é totalmente precisa, pois a classificação dos filósofos pré-socráticos ou da filosofia pré-socrática não trata de uma data específica, trata-se antes de uma corrente filosófica que aborda questões em um estilo que é anterior ao apresentado por Sócrates. De fato, há filósofos considerados pré-socráticos que viveram e produziram ao mesmo tempo que Sócrates, seus contemporâneos, portanto. Há pouco registro sobre filósofos pré-socráticos após esse período, mas, em tese, seria possível. 31 Sócrates Sócrates aparece nos relatos de Platão, como principal personagem de seus diálogos, e também nos trabalhos de Aristóteles, como o mestre de Platão. Seu principal papel foi alterar o curso da filosofia para uma linha mais voltada para a ética e a política. Anti-mitologia Os filósofos pré-socráticos encabeçaram uma empreitada contra a mitologia, para estabelecer uma cultura mais racional acerca dos fenômenos da natureza. Mas o que foi a mitologia? A mitologia tratou de explicar o mundo de maneira que por trás de todos os eventos haviam causas fantásticas envolvendo, por exemplo, deuses e heróis. A mitologia foi a explicação do mundo que precedeu a ciência e a filosofia. Não podemos ignorá-la como parte do processo pelo qual a humanidade passou para chegar até o ponto em que estamos atualmente, como uma das muitas explicações do mundo ao longo dos tempos. Mesmo sendo uma explicação baseada em ideias que hoje chamaríamos de sobrenaturais, a mitologia baseia-se em uma estrutura complexa que reflete a capacidade construtiva e a racionalidade humanas. Na mitologia grega, vemos que haviam deuses, semideuses e outras entidades para todos os fenômenos conhecidos da natureza. Essas entidades eram organizadas por meio de relações entre eles, vivendo em locais específicos e tendo, ainda, uma cidadela só para eles, no monte Olimpo. Dessa maneira, embora possamos hoje chamar de uma classificação sobrenatural, por tratar de deuses e outras entidades, para os gregos o fantástico, o mitológico, eram parte do mundo, parte da forma como a natureza se organizava. 32 A relação entre os homens e seus deuses na mitologia era complexa, baseava-se na ideia de que sacríficos e orações realizados pelos humanos nutriam os deuses e, em troca, esses deuses mantinham os fenômenos da natureza em equilíbrio, trabalhando em favor da humanidade, e não de modo a prejudicá-la, em suas colheitas, pescas e outras atividades. Porém, a humanidade é curiosa, investigativa e difícil de manter sob controle. Explicações não satisfaziam a todos e não tardou que algumas falhas fossem notadas. Os deuses nem sempre respondiam ou favoreciam os humanos, em resposta a suas orações e sacrifícios. Os humanos, por seu turno, começam então a compor novas maneiras de explicar os mesmos fenômenos da natureza, maneiras que dispensavam o recurso às divindades. Objetivo O principal objetivo dos pré-socráticos foi entender o universo e os fenômenos da natureza, a partir dos elementos que a própria natureza nos dava a conhecer, eliminando assim a necessidade de recorrer a explicações baseadas nas divindades e seus heróis. Com essa abordagem, podemos dizer que os pré-socráticos foram responsáveis pelo surgimento não apenas da filosofia como a conhecemos hoje, mas também das ciências naturais, pois procuraram investigar detalhadamente as origens dos fenômenos da natureza. Tales de Mileto, o primeiro filósofo Segundo nos reporta Aristóteles, Tales de Mileto foi o primeiro individuo a merecer o título de filósofo devido a sua investigação. A investigação de Tales de Mileto tinha por objetivo promover o afastamento da visão mitológica do mundo, sobre a qual falávamos na sessão anterior. 33 Em lugar dessa explicação mitológica, Tales pretendia instituir a busca das causas primeiras, ou, no caso de sua teoria, da causa primeira única, que poderia explicar todas as coisas e fenômenos da natureza. Essa explicação seria diferente da mitologia, pois teria como base exclusiva a razão e observação da própria natureza, sem recurso a divindades, heróis ou outros seres fantásticos, mas pautando-se pela racionalidade humana, eliminando qualquer elemento que não pudesse ser por ela processado. Com isso, Tales fez mais do que instituir um novo modelo de investigação, trouxe a sabedoria para o alcance do homem comum. Se a explicação da natureza poderia ser atingida, ela poderia ser também aprendida e ensinada, de modo que agora era possível se criar escolas de filosofia. Essa inovação metodológica, científica e, por que não, educacional, levou Tales à questão de saber qual a natureza das coisas, que as faz se comportarem da maneira como se comportam, e não de outras maneiras. Especialmente, notou certa previsibilidade no comportamento dos objetos no mundo. O termo grego arché, utilizado por Tales para se referir a essa natureza das coisas, é por vezes traduzido por "princípio". Essa tradução é imprecisa, um princípio é algo anterior, algo primitivo em relação à coisa que analisamos, seja em termos lógicos ou cronológicos. A arché de Tales não é apenas primitiva em relação às coisas do mundo, mas absoluta e constituinte das coisas. Tales e os filósofos pré-socráticos de sua escola procuravam definir a substância da qual todo objeto material seria composto. De uma maneira quase romântica, poderíamos dizer que a arché é a substância que constitui os tijolos da realidade. Por esse proceder, que instaura Tales na qualidade de primeiro filósofo, ele também é considerado o primeiro cientista ocidental. O trabalho de buscar a substância constitutiva dos objetos do mundo pode ser descrito como análogo ao que os físicos nucleares fazem na atualidade. 34 Teorias pré-socráticas A primeira teoria pré-socrática é estabelecidajustamente por Tales de Mileto, que defende que tudo se origina da água, em uma tentativa de explicar a natureza a partir de uma causa primeira. A partir da água se comporiam os outros elementos e, por conseguinte, todos os componentes do mundo conhecido. Embora famoso por essa afirmação e teoria, Tales também foi o formulador de teoremas em geometria, sendo que um dos teoremas formulados que leva seu nome, o Teorema de Tales, é um importante marco na história da geometria. Quanto à explicação da natureza dos objetos do mundo, diferentes elementos cumpriram este papel de acordo com filósofos que vieram depois de Tales. A maioria trabalhou com a ideia de algum elemento, como a terra ou o ar. Anaximandro, diferindo dos demais, desenvolveu o conceito de ápeiron, o ilimitado e indefinido, como a origem de todos os objetos no mundo, inaugurando uma forma abstrata de pensar em filosofia. Vocabulário Ápeiron: termo grego que, na filosofia de Aximandro, aquilo que é indeterminado ou infinito. Mudança na escola Com o tempo, o foco da escola mudou do cosmos como um todo para o homem, mas ainda com uma abordagem de observação e estudo da natureza e suas leis. O homem é parte da natureza, então, não se pode dizer que os pré- socráticos tenham abandonado seu foco principal, como investigadores da natureza, mas apenas alguns deles expandiram o trabalho para tratar do homem, para além dos fenômenos naturais de modo geral. 35 Graças ao trabalho de Platão, Aristóteles e de alguns historiadores gregos, fragmentos e comentários foram mantidos, de modo que essa abordagem não se perdeu. Não obstante, hoje, muito do trabalho dos pré- socráticos não é conhecido, ou é conhecido apenas em parte, devido à perda de registros. Escolas pré-socráticas Com o tempo, a corrente pré-socrática se expandiu e passou a se dividir em diferentes escolas, dependendo da abordagem que se pretendia para o novo método de trabalho. Essas escolas são a expressão da variedade do conhecimento humano que já começava a se manifestar. Representam interesses específicos dentro da tradição pré-socrática e do estilo de fazer filosofia iniciado por eles. As principais escolas, das quais temos conhecimento atualmente, foram: Escola Jônica; Escola da Pluralidade; Escola Itálica; Escola Eclética; Escola Eleática. Essas escolas compunham um cenário de profícuo debate e investigação, embora não se constituíssem exatamente como escolas, no sentido contemporâneo do termo, mas como uma linha de investigação filosófica. A forma de ensino adotada era, em geral, a de mentor e aprendiz, sendo que várias dessas escolas são caracterizadas mais por essa relação, do que pela consistência das ideias entre seus membros. De fato, em diversos casos, os discípulos discordam diametralmente de seus mestres. O que, considerando o início da filosofia, pode ser entendido como 36 a expressão do aperfeiçoamento inerente àquele período de descobertas e formulações inéditas. Escola Jônica A escola Jônica é a principal escola a ser questionada quanto à sua unidade. Embora existam fortes relações de mentor e aprendiz, bem como fortes relações quanto aos temas trabalhados, em muitos aspectos, os membros dessa escola divergem enormemente. Entre os principais pensadores da escola Jônica encontramos: Tales de Mileto; Anaximandro; Anaximenes e Heráclito. Tales de Mileto é o primeiro filósofo, sobre o qual já falamos anteriormente. Anaximandro, segundo Aristóteles, é discípulo de Tales e formulador do sistema de esferas da realidade, que se organizariam de modo geométrico, explicando a natureza com base nos cinco elementos como forças primordiais, cuja colisão produziria a harmonia. Também propôs o conceito de apeiron, como uma substância abstrata que seria a base dos objetos físicos do mundo. Anaximenes, mais próximo de Tales do que de Anaximandro, embora fosse discípulo deste último, propôs o aer, o “vapor”, como fundamental. Formulou ainda uma explicação complexa da natureza dos fenômenos, como o arco-íris e os terremotos, com base no choque e alteração dos elementos, por exemplo, a falta de água em uma porção de terra levaria ao decaimento e, consequentemente, aos terremotos. Curiosidade Você sabia que Max Born, um dos maiores físicos da história, comentando sobre a ideia de que a interpretação adequada das partículas elementares da mecânica quântica é a que estabelece que elas são diferentes manifestações de uma substância primordial comum a todas as coisas? Ele propôs que déssemos a essa substância o nome de apeiron. Isso demonstra, além da boa formação de Born, o alcance e a amplitude do trabalho de Anaximandro e dos filósofos pré- socráticos em geral. 37 Aristóteles foi o primeiro a, formalmente, classificá-los como uma escola única, utilizando o termo physiologoi, expressão grega que pode ser traduzida como "aqueles que discursavam sobre a natureza", pois seu trabalho era fundamentalmente explicar o que hoje chamamos de matéria e sua natureza. Sendo physio o nosso mundo físico, natural, e logoi uma declinação de “logos”, a palavra ou estudo, esses pensadores seguiam a linha proposta por Tales: a investigação da natureza de todos os objetos que compõem o mundo físico, com base no próprio mundo físico e seus indícios. Escola da Pluralidade Diferente da escola Jônica, que tem esta denominação devido à sua localização geográfica, a escola da pluralidade recebe este nome devido à sua atuação. Os filósofos desta linha focam seus trabalhos nos pontos mais prováveis de cada escola. Analisam o que é feito em cada uma e tiram suas conclusões sobre o que parece ser, mais provavelmente, o caso. Entendiam que havia uma pluralidade de teorias e nenhuma delas havia sido capaz de se provar correta, de modo que aderir a uma teoria apenas seria ignorar a possibilidade de estar completamente errado. Assim, entendiam a aceitação dos pontos mais prováveis como uma metodologia de precaução. Os defensores ávidos de uma teoria única podem acabar por aceitar conclusões não adequadas para continuar a defender a teoria à qual aderem. Por outro lado, se focamos os aspectos mais prováveis de cada uma, não teremos apego a uma teoria e poderemos mantermo-nos honestos intelectualmente, recusando qualquer afirmação que se prove incorreta ou inadequada. Entre os principais nomes desta escola encontramos: Empédocles de Agrigento; Anaxágoras de Clazômena; Leucipo de Abdera; e Demócrito de Abdera. 38 Escola Itálica Refere-se à escola desenvolvida na península itálica, uma escola controversa. Apresentou apenas desenvolvimentos, incontestavelmente importantes, na matemática grega e aderiu a tendências místico-religiosas, procurando conciliá-las com a perspectiva científica. Essa abordagem não era muito bem vista pelos filósofos posteriores, como Aristóteles. Entre os principais nomes desta escola estão: Pitágoras, Filolau e Árquitas. Escola Eclética A escola eclética é também outra escola caracterizada não por sua região de desenvolvimento, mas por sua forma de proceder. Os filósofos que a representavam acreditavam que a adesão a uma única arché não resolvia o problema do movimento. Essa filosofia aborda a questão de como objetos parados se colocam em movimento. A posição da escola era a de que ao postular várias arché seria possível explicar as questões relativas ao movimento. Destacamos como nomes mais importantes: Arquelau e Diógenes. Escola Eleática Esta escola envolvia os filósofos da região de Eleia. Entre eles ressaltamos: Xenófanes, Parmênides de Eleia, Zenão de Eleia e Melisso de Samos. Defendiam a necessidade, a imutabilidade e a unidade do Ser. Essa escola também foi conhecida por algumas soluções práticas nada convencionais para o modelo de discussão daépoca. Particularmente, isso foi representado em uma situação de discussão conhecida como Aquiles e a tartaruga, um paradoxo proposto por Zenão, em que 39 se discutia que Aquiles jamais venceria a tartaruga, se considerássemos as medidas das distâncias e a proporção de espaço percorrido por Aquiles e pela tartaruga no mesmo período de tempo. Essa situação foi, em um dos casos, reproduzida na distância entre o grupo que discutia e um portão. Trata-se do seguinte raciocínio: Em um período de tempo determinado se percorre metade do caminho, na metade desse período se percorrerá a metade da metade e assim por diante. Ou existe um ponto de corte dessa realidade ou não seria possível chegar até o portão. Zenão, o próprio propositor do problema, resolveu a questão caminhando até o portão e, assim, constrangeu todos os colegas que participavam dessa discussão ao demonstrar que o movimento não era impossível, como parecia demonstrar o problema, mas que agora parecia fútil dada a realidade da demonstração de Zenão. O problema de Aquiles se coloca da seguinte maneira: A tartaruga larga antes de Aquiles, percorrendo metade do caminho. Então Aquiles larga e no tempo que ele percorre metade do caminho, a tartaruga já percorreu mais um pouco, estando ainda à frente de Aquiles. No tempo em que Aquiles percorre mais esse pouco, a tartaruga já percorreu mais um pouco, mas ainda em um tempo menor, mas suficiente para se manter à frente de Aquiles, e assim sucessivamente, de modo que não seria possível dizer, dentro desses critérios, que Aquiles poderia ultrapassar a tartaruga. Não obstante, é obvio que Aquiles ultrapassaria a tartaruga. Assim, os pensadores gregos da época perguntam: Como isso é possível, considerando apenas a natureza do tempo e do espaço? Esse raciocínio, mais do que render uma boa discussão a Zenão de Eleia, foi responsável pela visão de Aristóteles, que veremos mais adiante, de que o conhecimento empírico seria fundamental para a boa filosofia. 40 Nessa aula você conheceu a primeira escola de filosofia, na verdade um conjunto de diversas escolas, que nos dá uma visão de como a filosofia estabeleceu as bases para diversas ciências e para a educação. Vimos ainda que a época dos pré-socráticos foi um período de grande exploração e desenvolvimento para a história da filosofia, com lições importantes de alguns filósofos relevantes até os dias de hoje, em maior ou menor medida. Atividade de Aprendizagem Conhecendo a evolução dos primeiros passos da filosofia, disserte, em até quinze linhas, sobre como esse processo influencia na formatação da estrutura da educação que temos hoje, em relação ao senso comum. Tenha em mente que, embora possa errar eventualmente, o senso comum não é necessariamente ruim, é apenas não científico ou filosofia em si mesmo. 41 Aula 4 - As origens da filosofia: período clássico Olá estudante! Seja bem-vindo à quarta aula da disciplina de Filosofia da Educação. Nesta aula trataremos da Filosofia Grega Clássica e de seus mais importantes representantes, Sócrates, Platão e Aristóteles, além de seus métodos e de como se desenvolveu a ideia ocidental de mentoria. O período clássico da filosofia grega é o período no qual se iniciam as discussões sobre a ética, a política e diversos outros aspectos da humanidade, para além das discussões sobre a natureza dos objetos do mundo, que caracterizaram os pré-socráticos. Período clássico Quem nunca ouviu falar de um destes três filósofos, Sócrates, Platão e Aristóteles, mesmo que só de passagem? O período clássico da filosofia grega, ou como é eventualmente chamado Filosofia Clássica Grega, inicia com o surgimento da figura de Sócrates, o desenvolvimento de Platão e culmina nos trabalhos de Aristóteles. Mentoria Este período também se caracteriza pela relação de ensino entre seus principais expoentes: Sócrates, Platão e Aristóteles. Encarnam a concepção ocidental da relação de mentoria, uma relação em que o saber é construído conjuntamente. Os mentores não apenas transferem seus conhecimentos, mas ensinam seus métodos, criando nos aprendizes o interesse pela investigação e pela verificação das informações. Um modelo que influenciou, em grande medida, a forma como o mundo ocidental vê a educação. 42 Cronologia Compreendido como estando entre os pré-socráticos e pós-socráticos, esse período faz parte da fundação da filosofia como a conhecemos hoje. Por outro lado, embora o uso de períodos de tempo para essa classificação, como vimos na aula anterior, não seja totalmente adequado, haja vista que muitos filósofos pré-socráticos, na verdade, foram contemporâneos de Sócrates. A divisão entre pré e pós-socráticos trata mais do estilo de investigação, dos tópicos abordados e da forma da filosofia desenvolvida, do que do período em que se realizou o trabalho em questão. O período clássico, por sua vez, é justamente o estilo de filosofia que promoveu a divisão e para caracterizá-lo se utiliza a relevância dos três filósofos que compuseram esse período: Sócrates, Platão e Aristóteles. A cronologia desse período segue a ordem acima exposta, sendo que Sócrates foi mestre de Platão que, por sua vez, foi mestre de Aristóteles. Importante As expressões “mestre” e “mentor” são utilizadas como equivalentes, dependendo da referência utilizada, assim como o são “aprendiz” e “discípulo”. Características O período clássico foi um período de grande amadurecimento da filosofia, em que ela se desenvolveu para uma forma mais estruturada. Os principais desenvolvimentos do período incluem ética e política, para além da investigação da natureza, que foi mantida e expandida, marcando também o início do que hoje chamaríamos de divisão disciplinar, como veremos mais claramente em Aristóteles. 43 Sócrates Figura. 4.1: Sócrates Fonte: © Wikimedia Commons Platão credita a Sócrates ser o grande responsável por direcionar a filosofia para os ramos da ética e da política, tirando estes ramos das mãos exclusivas dos sofistas e homens mais envolvidos com a política. Vocabulário Sofistas: professores particulares da Grécia Antiga que pretendiam levar seus estudantes a dominar as habilidades necessárias para o bom desempenho em sociedade. Embora muitos sejam acusados de charlatanismo ou de aproveitar-se de seus estudantes, vários outros são importantes para a filosofia, como é o caso de alguns filósofos pré-socráticos, que também eram sofistas. O próprio fato de a filosofia grega ser dividida em pré-socráticos e pós- socráticos, já nos mostra a amplitude da relevância de Sócrates. 44 O problema socrático Sócrates existiu como um personagem histórico ou é apenas uma construção de Platão? E havendo existido, para além do que Platão lhe credita, qual foi a sua real posição filosófica? O problema socrático é, como chamamos, a dificuldade ao estudar-se Sócrates. Este foi o personagem principal dos diálogos platônicos, referido nos trabalhos de Xenofonte, Aristófanes e Aristóteles. De modo geral, Sócrates é considerado um personagem histórico factual. Teria vivido na Grécia Antiga, durante o século IV a.C. Não obstante, todas as fontes que tratam do filósofo são textos filosóficos ou dramáticos. Não há qualquer texto histórico que se refira à época em que Sócrates viveu e que fale de sua pessoa. Isso poderia ser visto como uma situação compreensível de um tempo antigo, em que talvez os historiadores não tenham visto a importância daquele personagem. Mas as dificuldades não param por aí, nos textos filosóficos encontramos contradições quando os comparamos. Contradições quanto às posturas e posições de Sócrates. O problema, para o estudo, é que isso torna difícil definir o que é Sócratese o que é o autor que dele fala, procurando colocar em sua autoridade teorias que lhe são próprias. Ainda é possível que Sócrates tenha mudado de posição ao longo da vida, e que autores diferentes relatem períodos diferentes de seu pensamento. Essas variações passam por questões mais filosóficas e vão até questões mais cotidianas, como quando Platão afirma que Sócrates não aceitaria dinheiro para ensinar de forma alguma. Xenofonte, também discípulo de Sócrates, afirmou que seu mestre era pago pelo ensino que ministrava. Dentro do próprio contexto de diálogos de Platão, que são considerados a fonte mais completa de informações sobre a filosofia e a vida de Sócrates, encontramos algumas contradições nas posições que Platão atribui a Sócrates, em muitos casos associadas ao desenvolvimento filosófico de Platão. 45 Assim, a tradição filosófica atual compreende que a clarificação da posição verdadeira de Sócrates como filósofo é aparentemente impossível, o que classifica o Problema de Sócrates como insolúvel em uma visão geral. Ao compararmos as fontes, no entanto, algumas conclusões podem ser extraídas acerca da posição de Sócrates e, pelo menos, oferecem uma posição consistente para compreender a importância do pensador para a filosofia ocidental. Método Socrático Talvez a criação mais importante de Sócrates, o Método Socrático é uma técnica de investigação e ensino que se vale da inquisição. Tal método é baseado em três elementos: Perguntas e respostas que levavam o interlocutor a pensar; Modo aporético de terminar (sem conclusão definitiva); Compreensão da complexidade das questões. Sem pretender persuadir o opositor, Sócrates manifesta sua oposição à retórica, como uma arte cujo objetivo seria agradar os ouvintes, e também à oratória que, segundo ele, convence os ouvintes por meios emocionais, sem recurso à lógica ou a uma prova. O Método Socrático consiste em dividir o problema a ser discutido em questões menores. Assim, essas questões, em tese, poderiam ser respondidas mais facilmente, ou, no pior dos casos, levariam o interlocutor a pensar no problema por diferentes ângulos. Ao fazer isso, poderia entender as possibilidades lógicas do problema, eliminar as contradições e, no limite, ambos os debatedores seriam levados até a solução do problema. Trata-se de um método negativo, em que se levanta uma hipótese que é questionada e se busca demonstrar que a hipótese leva a contradições. Se não 46 formos capazes de demonstrar que a hipótese é inaceitável, por levar a contradições, encontramos um candidato aceitável para a posição de verdade. Pioneirismo Além de seus desenvolvimentos metodológicos, Aristóteles credita a Sócrates ser o primeiro a buscar as definições universais para virtudes morais. Ao fazê-lo, contribuiu para as áreas da: Epistemologia, ao tratar de entender a extensão e limites do conhecimento humano; Política, ao defender a ideia de um governante ideal, o rei filósofo; Ética, ao escolher o foco na virtude como a melhor forma de viver. Crítica à democracia e morte Sócrates foi acusado de criticar a democracia, ao formular sua visão acerca da política e propor a ideia de um rei filósofo. Oficialmente, foi considerado culpado de corromper a mente dos jovens de Atenas com suas ideias heréticas. Adicionalmente, foi acusado de não acreditar nos deuses do Estado. Porém, alguns estudos consideram que a motivação para a prisão e condenação de Sócrates, que resultou em sua execução por ingestão do veneno cicuta, tenha mais relação com a referida crítica à democracia ateniense, em um período em que Atenas lentamente se recuperava de uma humilhante situação imposta por Esparta. Sócrates apresentado por Cícero Cícero apresenta e elogia o legado de Sócrates, afirmando que ele trouxe a filosofia para o alcance humano, introduziu o pensar filosófico no seio das 47 cidades e apresentou a necessidade de que todos examinem a vida, a moral, o bem e o mal. Independentemente das complicações advindas do estudo da figura de Sócrates, o fato é que a sua influência foi relevante não apenas, como afirma Cícero, para o povo de Atenas, mas para toda a humanidade. Platão Figura 4.2: Platão Fonte: © Wikimedia Commons O discípulo de Sócrates, Platão, procura continuar o trabalho de seu mestre, sendo distinguido por três características: 48 Transmitiu os ensinamentos e reflexões de Sócrates através de diálogos; Utiliza longas alegorias para explicar suas posições; Leva o interlocutor até a conclusão. Platão foi o fundador da escola chamada Academia de Atenas, sua relevância na história da filosofia é, em parte, explicada pelo fato de que sua obra sobreviveu quase intacta por mais de 2.400 anos, diferente da grande maioria de seus contemporâneos. Outro aspecto dessa preservação está no fato de Platão ser o responsável por nos permitir acesso ao pensamento de muitos filósofos, anteriores e contemporâneos, da Grécia Antiga. Entre eles destacamos: Sócrates, Heráclito, Parmênides e Pitágoras. Naturalmente, esse levantamento dos filósofos gregos influenciou o pensamento de Platão e, especialmente, o de Pitágoras. O discípulo de Sócrates ainda introduziu o método de diálogo e com sua obra “A República” fundou o que veio a ser um dos mais relevantes ramos da filosofia, a filosofia política ocidental. Em seus diálogos tratou, por meio de seus personagens, de temas em praticamente todas as áreas da vida humana, seja pública ou privada. Entre os principais temas abordados, encontramos: arte, política, sexualidade, religião, medicina, justiça, vício e virtude, sofrimento e prazer, crime e castigo, natureza humana, amor e sabedoria, entre muitos outros. Platão e o tema da filosofia Uma característica marcante de Platão foi sua consciência sobre o modo como a filosofia deveria ser compreendida e desenvolvida, o que o filósofo poderia esperar atingir com ela e qual deveria ser seu escopo. Pode-se dizer que Platão foi o inventor do tema da filosofia, descreveu a filosofia como um exame rigoroso e sistemático dos assuntos éticos, metafísicos, políticos e epistemológicos, alcançado por meio de um método distintivo. 49 Racionalismo e realismo As posições de Platão são descritas da seguinte forma: Racionalista: definiu o raciocínio como uma operação mental discursiva que deveria ser pautada pela lógica, utilizando-se de proposições para extrair conclusões; Realista: no que concerne à existência de universais, as formas ideais de todas as coisas; Idealista: seu realismo sobre os universais o comprometia com sua teoria das ideias; Dualista: postulava a existência de duas substâncias que seriam irredutíveis uma à outra. Assim, Platão contribuiu para a formação de muitas das teorias presentes no debate filosófico. Amplitude de temas Para além da ética e política, desenvolvidas por Sócrates, Platão contribuiu para ampliar a atuação da filosofia, tornando-se um ícone da metafísica com a sua Teoria das Ideias. Também conhecida como Teoria das Formas, a Teoria das Ideias é uma formulação abstrata, de acordo com a qual as formas não materiais são as que possuem o tipo mais fundamental de realidade. Essas formas seriam substâncias imutáveis, mesmo sem possuir uma existência física, que dariam estabilidade ao mundo. O mundo material seria secundário a essas formas e, mais do que isto, seria dependente delas. Mito da caverna Em sua mais famosa alegoria, o mito da caverna ou alegoria da caverna, Platão tratou de descrever a procura dos homens pela conexão metafísica entre 50 o mundo mutável e as formas imutáveis, ou seja, a busca de aquisição do conhecimento sobre o mundo. Esse processo apresenta algumas dificuldades inerentes,como a busca de algo que nunca vimos, e a dificuldade de se formular sozinho uma ideia que ultrapassa o mundo físico que conhecemos. Ainda explorou a dificuldade de se levar outros ao conhecimento, pois este movimento envolve dor e abandono de uma situação que, por pior que seja, parece cômoda ao indivíduo. Essa alegoria é, muitas vezes, vista como uma associação com a educação em todos os tempos. Curiosidade Você sabia que a alegoria da caverna é uma das mais longas explicações de Platão? Para saber mais sobre a forma e as consequências dessas explicações, pesquise em: <http://www.infoescola.com/filosofia/alegoria-da-caverna/>. Legado Ao estudar Platão, autores contemporâneos consideram que a adesão às ideias do filósofo é uma tendência natural para matemáticos, uma vez que sua posição levanta questões sobre a realidade dos objetos matemáticos, como foi discutida por autores como Sir Bertrand Russell, A. N. Whitehead, Gottlob Frege, Georg Cantor, Kurt Gödel, entre outros. Também em física, desde Galileu Galilei até Werner Heisenberg, Stephen Hawking, Roger Penrose, entre outros, encontramos uma grande tradição platônica. 51 Aristóteles Figura 4.3: Aristóteles Fonte: © Flickr Conhecido em alguns departamentos de filosofia como “o homem mais sensato da história da filosofia”, Aristóteles começa seus estudos com Isócrates, mas depois muda-se para Atenas para estudar com Platão. É considerado o pai das ciências e um dos fundadores da ideia de disciplinas científicas e acadêmicas, tal como as conhecemos hoje. Aristóteles viveu no século V a.C., além de discípulo de Platão foi preceptor de Alexandre Magno, sendo que sua influência e trabalho se estenderam por todas as áreas da filosofia e da ciência conhecidas à época. Corpus Aristotelicum O conjunto da obra de Aristóteles versa sobre temas que vão da lógica e da física, até a ética e poesia. Inclui ainda trabalhos em retórica, metafísica e política. De toda sua obra, apenas 29 trabalhos sobreviveram ao tempo, mas este pequeno volume já é suficiente para influenciar toda a história da filosofia, além de ser muito mais do que deixaram os pré-socráticos. 52 Esse conjunto de obras, que chamamos de Corpus Aristotelicum, chegou até nós pelo trabalho dos compiladores da era escolástica, que estudaremos mais adiante. Por meio dessas compilações, organiza-se também o processo de estudo da obra de Aristóteles, que se inicia pela física e passa depois para a metafísica. A compilação de trabalhos da obra conhecida como Física, formou o padrão de interpretação do mundo até que novas descobertas foram realizadas no Iluminismo e a Mecânica Clássica foi formulada. Filosofia como análise Aristóteles funda o conceito de filosofia como análise e valoriza o raciocínio analítico. Entre os principais elementos de sua visão filosófica estão: causalidade, argumentação, lógica e método. O filósofo formula também o Princípio de Não Contradição, segundo o qual a contradição seria impossível na realidade, e tentar provar a existência de contradição seria admitir o direito de exigir uma prova. Isso significa que exigir uma prova supõe que o contraditório é falso e, portanto, que a contradição não é o caso, o que prova o Princípio de Não Contradição. A hipótese do éter, uma substância que deveria compor a abóboda celeste e se mantém influente até o século XIX, é um dos principais elementos da física aristotélica. Em termos de causalidade, o autor sugeriu que existem quatro tipos de causa que explicam todas as coisas: Causa material Causa formal Causa eficiente Causa final 53 A lógica formal moderna incluiu os estudos em lógica de Aristóteles, a partir do final do século XIX. Ética e moral Aristóteles foi o autor da obra Ética a Nicômaco, além de alguns tratados sobre ética e moral, constituindo-se em um marco do estudo e desenvolvimento da ética como disciplina. A obra Ética a Nicômaco, baseada no pai de Aristóteles, Nicômaco, traz uma visão acerca das práticas virtuosas, como sendo o único caminho para o ser humano se desenvolver de forma plena e atingir a felicidade. O período clássico é de grande relevância para a filosofia da educação. Apresenta métodos e conceitos que vão dar base a toda a ciência e filosofia ocidental, auxiliando-nos a compreender as origens das disciplinas ao longo da história. Contribui, ainda, com alguns métodos e técnicas que funcionam até hoje. Ainda no referido período, começa a fundação do que viriam a ser as disciplinas científicas e, por consequência, as disciplinas acadêmicas, que hoje chamamos de matérias escolares. Atividade de Aprendizagem Considerando os desenvolvimentos de Sócrates, Platão e Aristóteles, como você vê a aplicação das ferramentas da filosofia clássica na educação atual? Sua resposta deve incluir uma rápida análise dessas ferramentas que, de alguma maneira, ainda são úteis nos dias de hoje e das que estão completamente obsoletas. 54 Aula 5 - Pós-socráticos e a sofisticação da filosofia Olá estudante! Seja bem-vindo à quinta aula da disciplina de Filosofia da Educação. Nesta aula estudaremos as três correntes da filosofia pós-socrática: Ceticismo, Epicuristas e Estoicos, bem como a sofisticação e influência dessas correntes na filosofia. Após os desenvolvimentos promovidos por Sócrates, era impossível que a filosofia retornasse a discussões mais simples. Com a adição dos temas propostos por Platão e Aristóteles, embora este último não fosse tão popular entre os pós-socráticos, o debate em filosofia assumiu grandes proporções e se tornou mais complexo, tornando-se uma profícua área de investigação. Sócrates Como vimos em aulas anteriores, Sócrates foi tão influente que dividiu não apenas o que veio antes de si, mas o que veio depois, estabelecendo a divisão básica da filosofia grega em pré-Socráticos e pós-Socráticos. Pós-socráticos Esta corrente filosófica volta-se mais para a política e a ética, seguindo a linha desenvolvida no tempo de Sócrates, formando um maior corpo filosófico e maior volume de discussões e correntes na filosofia. O período pós-socrático é composto por três correntes particulares: Ceticismo, Epicurismo e Estoicismo. Haviam outras correntes em voga, mas essas são as mais relevantes e se destacam na formação da filosofia. 55 Ceticismo A escola cética focou em questionar se a razão seria capaz de chegar à verdade sobre todas as coisas. Diferindo da história anterior da filosofia, na qual não se encontra um questionamento direto sobre a capacidade da razão de atingir o conhecimento, a escola cética levantou essa possibilidade. O objetivo dessa escola não era afirmar que o conhecimento não era possível, mas mostrar que, em muitos casos, o proceder dos filósofos era dogmático e pouco pautado por razões factuais, sendo em muitos casos inclusive negado pela realidade. A questão dos céticos não é dizer que o conhecimento humano não pode atingir certas coisas, mas questionar se podemos justificar a aquisição de determinados conhecimentos que temos como certos. Procedimento cético O procedimento cético era simples, mas muito difícil de ser adotado pelas correntes ávidas por encontrar verdades absolutas. Trata-se de evitar fazer afirmações categóricas acerca da verdade. Os céticos também costumavam apontar a falta de evidências empíricas para as afirmações de outras escolas. Por isso, podem ser considerados a primeira escola empirista. O Empirismo, embora não totalmente formulado na época, é uma posição em filosofia que aceita a experiência como base para a análise da natureza, procurando rejeitar as doutrinas dogmáticas. Vocabulário Evidência empírica: é uma expressão usada para significar um conjunto de fatos
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