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Atualizado e revisado por: MARCIO RODRIGUES Professor autor/conteudista: EMERSON DA ROCHA É vedada, terminantemente, a cópia do material didático sob qualquer forma, o seu fornecimento para fotocópia ou gravação, para alunos ou terceiros, bem como o seu fornecimento para divulgação em locais públicos, telessalas ou qualquer outra forma de divulgação pública, sob pena de responsabilização civil e criminal. SUMÁRIO Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 1 . Origens do termo ética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 2 . Os valores e a existência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 3 . O pensamento platônico: a supremacia da razão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 4 . A ética na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 5 . A ética helenística: epicuristas e estoicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 6 . A ética moderna e o pragmatismo de Maquiavel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 7 . O pensamento de Nietzsche . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 7.1 Sócrates e Platão: os primeiros niilistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .74 8 . A liberdade em Sartre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 9 . Os valores no século XXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86 Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 Pág. 4 de 94 INTRODUÇÃO Caro aluno, Este nosso trabalho pretende introduzi-lo no estudo da ética. Muitas vezes, em nosso dia a dia, deparamo-nos com situações diversas nas quais somos impulsionados a tomar decisões. Também assistimos notícias diversas que nos fazem tomar uma posição (crítica ou não) a respeito de determinados assuntos. Falando desta maneira, parece que nosso estudo se pautará em problemas metafísicos, o que não é verdade. Uma rápida observação da realidade nos permite estabelecer uma relação entre a ética e as ações presentes em nosso cotidiano. Em outras palavras, a ética está intimamente relacionada às nossas ações. No entanto, devemos procurar as origens dessa palavra para verificar uma confusão que comumente se apresenta no campo da ética e no campo da moral. Afinal, ética e moral são a mesma coisa? Como veremos em nosso estudo, os dois termos possuem referências próprias, mas que o seu entendimento caminha junto, isto é, são quase sinônimas. Na literatura disponível a respeito deste assunto é possível perceber variadas interpretações a respeito de ética e moral. Umas falam em senso ético e senso moral, outras mais particularmente em moral e ética somente. Desta forma, o que nos interessa neste estudo é evidenciar como a noção deste conceito foi se alterando no curso da história da humanidade. Veremos, na história da filosofia, que o problema filosófico da ética foi concebido por vários pensadores, desde os gregos clássicos antigos até os contemporâneos mais recentes. Aristóteles, por exemplo, introduziu a concepção eudaimônica, associando-a às ações humanas, cujo objetivo final era a felicidade. Os medievais reinterpretaram as concepções antigas e as transformaram em um caminho até Deus, portanto, o fim último das ações humanas deveria ser sempre Deus. Os modernos, tentando dar uma visão mais universal do assunto, postularam a racionalidade como forma suprema de se encarar as ações cotidianas. Na contemporaneidade, por sua vez, a ética parece pulverizar-se num contexto conturbado de individualização e hedonismo. Dessa forma, o homem contemporâneo necessita de um norte, isto é, de uma direção segura para motivar suas ações e, desta maneira, conseguir “sobreviver” comunitariamente num mundo que o empurra para o individualismo. Mas como fazer? Que caminhos seguir? O que é certo e o que é errado no mundo atual? Enfim, estas e muitas outras dúvidas serão levantadas durante nosso Pág. 5 de 94 estudo. Esperamos que estas linhas gerais possam indicar quais horizontes são menos prejudiciais ao homem e seu futuro. Assim, nosso caminho será pautado a partir das principais formulações constantes na tradição filosófica e na bibliografia existente sobre o tema, tais como: objeto da ética, essência, obrigatoriedade e responsabilidade moral, determinismo e liberdade, entre outras, até mesmo as doutrinas éticas fundamentais. Não queremos elaborar um tratado sobre ética e moral, mas apenas levantar questões que contribuam para o avanço e ampliação da discussão a respeito do tema. Portanto, caro aluno, não espere encontrar respostas prontas ou um manual de ética com indicações fáceis e práticas. Você verá que todo este conteúdo encontra-se na vivência diária do homem desde que se propôs a viver em comunidade. Boa leitura e bom estudo! 1. ORIGENS DO TERMO ÉTICA Figura 1 – Nuvem de termos Fonte: https://4.bp.blogspot.com/-zAwbuA0v8oM/WQPHCkoIJXI/AAAAAAAABnw/7i77f9Q5 oc819l5TsRc36KiwmTC2WC_EgCLcB/s1600/diferencas-entre-etica-e-moral-3.jpg. Em nossos dias, diariamente, estamos assistindo na televisão ou lendo em jornais e revistas notícias sobre escândalos políticos ou mesmo notícias sobre celebridades que têm determinadas ações “estranhas” ao que padrão socialmente aceito. Também assistimos a propagandas com pedidos de doações para entidades que ajudam pessoas, seja crianças ou velhinhos, animais ou plantas, e muitos outros movimentos, associações ou ONGs que você mesmo pode enumerar. Vemos cenas de fome, guerras, mortes e as comparamos com cenas de luxo, esbanjamento e abundância. Pág. 6 de 94 Sentimos piedade de alguém que nos pede algo na rua, mas também sentimos repulsa quando algo que deveria ser destinado à coletividade é desviado para outros fins. Da mesma forma, somos sempre impelidos a tomar uma posição, a fazer um julgamento diante destas e de outras situações que se apresentam em nosso dia a dia. Nosso julgamento baseia-se na ideia de bom, justo ou correto e seu inverso. Ora, numa breve observação, percebemos que este julgamento vai nos impulsionar a uma ação (protestar ou ajudar). Enquanto comunidade, a ação pode ser individual ou coletiva. Estamos, portanto, diante de uma situação que envolve a moral. Aristóteles, em sua obra Política, assume um papel de estudioso das origens das sociedades e como o homem passa a ser “por natureza, um animal gregário”, diferentemente dos outros animais. Diz ele: Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor e o prazer, e outros animais a possuem [...], mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e, portanto, também o justo e oinjusto; característica específica do homem em comparação com os outros animais, é que somente ele tem o sentimento de bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade. (ARISTÓTELES p. 1985, p. 15). Saiba Mais Para a leitura complementar, recomendamos os livros: ARISTÓTELES. Política. Tradução, introdução e comentários de Mário da Gama Kary. Brasília: Editora UnB, 1997. Ou ARISTÓTELES. Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Ora, como “animal gregário” vivendo em comunidade, o homem passa a agir no mundo de acordo com valores apreendidos de seus antepassados e, desta forma, sua ação se dá a partir desses pressupostos que chamaremos aqui de valores morais. Esses valores podem ser classificados e hierarquizados a partir de suas noções de “justo” ou “injusto” ou ainda “bem” e “mal”. Esta classificação só pode ser feita por seres racionais, participantes de um grupo ou comunidades e que estejam inseridos num determinado tempo histórico. Simplificando: o ser humano é um ser moral Pág. 7 de 94 que avalia e classifica sua conduta e suas ações a partir de valores morais construídos dentro de um determinado tempo histórico. Assim, diante daquelas situações propostas inicialmente sobre os escândalos políticos ou doações a entidades assistenciais, somos levados a formular juízos morais a respeito das ações nossas e dos outros. Cada vez que fazemos isso, estamos elaborando uma reflexão a respeito da nossa própria conduta e da conduta alheia, isto é, dos outros. Portanto, se pudermos sintetizar, diríamos que moral é um verbo que se conjuga no singular. Mas nos propomos a formular um raciocínio a respeito de ética e moral. O que vem a ser ética? O que vem a ser moral? O que são atitudes éticas e morais? A ética surge da moral ou a moral é que dá condições para que a ética exista? Estas breves indagações motivam nossa busca pela origem do termo. Ao consultar o Dicionário de Filosofia de autoria de Nicola Abbagnano, temos duas definições para iniciar nosso estudo. Diz ele: Em geral (ética) é a ciência da conduta. Existem duas concepções fundamentais dessa ciência: primeira, a que a considera como ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzindo tanto o fim quanto os meios da natureza do homem; segunda, a que a considera como a ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta. (ABBAGNANO, 2012, p. 442). Saiba Mais Para uma leitura mais apurada e reflexiva a respeito do termo ética, recomenda-se consultar o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano (p. 442-451). Caso queira, também poderá consultar este dicionário de filosofia online, de forma mais resumida, no link http://www.filosofia.com.br/vi_dic. php?pg=7&palvr=E. Também no dicionário de filosofia que acabamos de citar é possível encontrar uma definição breve do termo moral. Diz ele: Moral. Este adjetivo tem, em primeiro lugar, os dois significados correspondentes aos do substantivo moral: primeiro atinente à doutrina ética; segundo, atinente à conduta e, portanto, suscetível de avaliação moral, especialmente de avaliação moral positiva. (ABBAGNANO, 2012, p. 795). Pág. 8 de 94 Figura 2 – Moral Fonte: jorgen mcleman / Shutterstock A partir destas duas noções iniciais, ainda não é possível dizer o que é ética e o que é moral em sua essência. Todavia, elas já nos dão algumas pistas do caminho a seguir em busca de uma definição própria: ambas falam de “conduta humana”. É por esta trilha que iremos seguir. Em uma rápida olhada na literatura existente sobre o tema, percebemos que este assunto não é novo nem consensual. Isso nos leva a perceber que a reflexão ética é uma necessidade dos tempos atuais. Embora ela esteja em variados campos do saber, é na filosofia que ela se encontra como objeto específico de estudo, seja na metaética, na ética fundamental ou mesmo na ética aplicada às atividades humanas. Mas por que ela é tão necessária em tempos atuais? A resposta é simples: a sociedade contemporânea passa por uma grave crise de valores sem precedentes na história da humanidade. Estamos diante de uma situação paradoxal: de um lado grandes avanços do individualismo e, de outro, crise de valores. Por isso sua urgência. Em outras palavras, estamos diante de uma formidável produção de bens simbólicos e materiais nunca antes vista na história da humanidade. Esta produção crescente e cada vez mais veloz nos afeta de forma a não mais podermos pensar e refletir sobre elas. Essa dinamicidade nos aponta para Pág. 9 de 94 uma mudança de paradigma, isto é, percebemos que estamos passando de um mundo “natural” para um mundo “cultural” e tecnológico. E é justamente nesse mundo cultural que se desenvolvem as ações humanas denominadas éticas. O homem é um ser que cria cultura e, a partir dela, orienta as suas ações. Portanto, o homem cria sua própria cultura, seu mundo particular, organizado através de normas também criadas que o orientam a um determinado fim que é sua autorrealização. É nesse dinamismo de sua existência que a ética e a moral vão se desenvolver. O professor Henrique Lima Vaz assim se expressa ao abordar o tema da ética no mundo contemporâneo: É do fundo desse paradoxo que se levanta a onda ética a espraiar-se hoje sobre o mundo, cobrindo todos os campos da atividade humana. Ela parece significar como que o sobressalto de nossa natureza espiritual em face das ameaças que parecem pôr em risco a própria sobrevivência das razões de viver e dos valores de vida lentamente e penosamente descobertos e afirmados ao longo desses três milênios de nossa história. (VAZ, 2015, p. 8). Parece emergir dessa urgência a reflexão ética. E nosso trabalho aqui é rememorar as origens do termo para buscar respostas a estas urgências atuais. Dessa forma, buscaremos o conceito a partir das contribuições histórias de diversos agentes, seus contextos e suas experiências, os quais constituem o que chamamos de tradição filosófica. São estes grandes “modelos” de pensamento ético, construídos no decorrer da história, que nos possibilitarão entender como a reflexão atual se apresenta. Portanto, falaremos de uma ética geral e os fundamentos que dão sustentação ao saber ético para que você, caro aluno, posteriormente, possa contribuir também com a reflexão. Ao avançarmos na busca de uma possível definição do termo ética, encontramos, no mundo atual, uma certa deterioração do termo – por isso nossa busca. Queremos voltar às origens para encontrar o “verdadeiro” sentido do termo e, a partir dele, resgatar sua densidade e aplicabilidade à realidade. Segundo o professor Lima Vaz (2015, p. 11), Um estudo sobre Ética que se pretenda filosófico deve dedicar-se preliminarmente a delinear o contorno semântico dentro do qual o termo Ética será designado e a definir Pág. 10 de 94 assim, em primeira aproximação, o objeto ao qual se aplicarão suas investigações e suas reflexões, bem como a caracterizar a natureza e a estabelecer os limites do tipo de conhecimento a ser praticado no estudo da Ética. Assim, devemos nos aventurar em dois caminhos distintos a saber: um teórico e outro histórico. Dessa forma, será possível estabelecer um caminho histórico no qual foi se desenvolvendo o sentido do termo ética e, também, identificar uma literatura existente sobre o tema. Ao voltarmos no tempo, encontramos as primeiras organizações culturais que produziram o alfabeto, e delas, a relação semântica entre a palavra e o que ela caracteriza no mundo. O termo aparece primeiramente em língua grega, caracterizada por um rico conteúdo semântico e que nos chega através de uma tradição filosófica e de seus grandes sistemas ou modelos explicativos do cosmo. Assim, comoverificamos anteriormente, ética e moral parecem andar de mãos dadas e possuir um mesmo significado. Essa designação levanta dúvidas e passa a ser um problema que deve ser resolvido. Problema este que deve ter surgido em tempos modernos, mais especificamente com os estudos kantianos. Portanto, antes de Kant temos uma variante semântica a indicar um mesmo caminho, isto é, ética e moral indicam conduta humana tanto social quanto individual. Depois de Kant, o problema parece acentuar-se nos estudos hegelianos sobre o espírito objetivo e sua dialética. De um modo geral, tomaremos os dois termos como sinônimos para iniciar nosso estudo, uma vez que, no contexto atual, seu uso inadequado assim o tem apresentado. Note que nossa intenção é demonstrar o objeto de estudo propriamente filosófico neste campo do saber, uma vez que a separação semântica se dará mais tarde nos estudos de ética propriamente dita e de política, no qual haverá uma separação entre a vida no espaço público e a vida no espaço privado. Note que falamos que o termo ética surge primeiramente na Grécia Antiga. Seu uso foi evidenciado pelos escritos de Aristóteles e designa um tipo de saber (ethike pragmateia), como indicado no Livro II da Metafísica. Esse saber estava vinculado a um exercício da virtude, isto é, um estudo sobre os costumes (ethea). Com o aprofundamento das reflexões e dos estudos, este termo passou a constituir uma das três grandes áreas do saber antigo: a lógica, a física e a ética. Assim, percebemos que, na língua grega, ethike se vincula ao ethos e que significa um conjunto de normas de um grupo social e também ao comportamento do indivíduo nesse grupo. Pág. 11 de 94 Figura 3 – Immanuel Kant Fonte: Nicku / Shutterstock Segundo o professor Lima Vaz (2015, p. 13), Na língua filosófica grega, ethike procede do substantivo ethos, que receberá duas grafias distintas, designando matizes diferentes da mesma realidade: ethos (com eta inicial) designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social, ao passo que ethos (com epsilon) refere-se à constância do comportamento do indivíduo cuja vida é regrada pelo ethos-costume. É, pois, a realidade histórico-social dos costumes e sua presença no comportamento dos indivíduos que é designada pelas duas grafias do termo ethos. Ora, partindo do pressuposto acima, podemos considerar a ética como uma ciência do ethos, isto é, a ética vai passar a designar uma casa, uma morada ou local onde se aprimoram os costumes através de uma práxis. Pág. 12 de 94 Já o termo moral, cuja tradução foi feita a partir da língua latina, diferentemente da exposição contida no Dicionário de Filosofia, vem de moralis e mos e passa a ter uma tradução semelhante ao do ethos grego. Dessa forma, ética e moral passam por uma evolução semântica em suas traduções posteriores, ambas “designando fundamentalmente o mesmo objeto, a saber, seja o costume socialmente considerado, seja o hábito do indivíduo de agir segundo o costume estabelecido pela sociedade” (VAZ, 2015, p. 14). Saiba Mais Para uma leitura mais apurada e reflexiva a respeito do termo moral, recomenda-se consultar o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano (p. 795). Caso queira também poderá consultar o Dicionário de Filosofia Eletrônico, de forma mais resumida, no link http://www.filosofia.com.br/vi_dic. php?pg=7&palvr=E Portanto, como veremos em nosso estudo, a ética e a moral passam de sinônimas a conceitos complexos, de simples ação individual e política à oposição entre a motivação e o agir humano, segundo interesses estabelecidos por uma sociedade. Em outras palavras, o termo moral passará a designar a práxis individual e o termo ética passará a designar a práxis social. Saiba Mais Para aprofundamento nesta questão, sugere-se: TAYLOR, C. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997. Dessa forma, pode-se vislumbrar uma primeira definição de ética para nosso estudo, visto que, no âmbito da práxis, o termo não encontraria tamanha extensão linguística. É a partir do ethos que se formula um pensamento racional normativo de regulação do agir humano num contexto histórico-social determinado. Portanto, temos um ethos identificado na sociedade como lei (nomos) e um ethos situado no indivíduo identificado com a virtude (areté). É neste contexto que Aristóteles apresenta duas de suas importantes obras, isto é, a Ética e a Política, como partes de um saber prático. Retomemos o que diz o professor Lima Vaz: Podemos, assim, propor uma primeira definição da Ética, de acordo com o conteúdo semântico do termo. A Ética é um saber elaborado segundo regras ou segundo uma lógica peculiar, pois o primeiro uso adjetivo do termo qualifica justamente, em Aristóteles, uma forma fundamental de conhecimento, contraposta aos conhecimentos Pág. 13 de 94 teórico e poiético. O objetivo da Ética é uma realidade que se apresenta à experiência com a mesma evidência inquestionável com que se apresenta os seres da natureza. Realidade humana por excelência, histórica, social e individual e que, com profunda intuição das suas características originais, os gregos designaram com o nome de ethos. A Ética, portanto, nominalmente definida, é a ciência do ethos. (VAZ, 2015, p. 17). A partir dessa afirmação podemos concluir que, após as reflexões dos gregos antigos, temos um objeto de estudo denominado ethos. Este objeto constitui-se num problema filosófico, cuja reflexão e sistematização do conhecimento, a tradição vinculou-o à ética e à moral. Assim, a ética nasce entre os gregos antigos como um saber vinculado a uma tradição cultural que recebe atualizações simbólicas à medida que vai se exercendo na práxis, de maneira “normativa, indicativa e prescritiva do agir humano”. Portanto, o saber ético é um saber que se vive na prática, que é pensado na experiência e no hábito dos homens durante a sua construção histórica. 2. OS VALORES E A EXISTÊNCIA Vimos anteriormente que nossas ações no mundo partem de um julgamento moral, isto é, da nossa definição particular do que é bom, justo ou correto. Dessa forma, fazendo julgamentos e ações, agimos no mundo a partir de certos “valores” apreendidos de gerações anteriores. Nos entanto, estes valores não são fechados em si, quer dizer, o que aprendemos de nossos antepassados não permanece rigidamente no tempo. Os conhecimentos de certos valores apreendidos passam por “mudanças” durante o tempo histórico. Assim, em determinado tempo histórico, o homem transforma os valores recebidos anteriormente em algo mais prático para sua conduta, atualizando-os. Em outras palavras, elegemos sempre nossas prioridades valorativas que nos impulsionam para a ação. Dessa forma, os “códigos morais” vão se “atualizando” de acordo com o tempo histórico. Esses valores ou códigos morais podem apresentar certa hierarquia para um indivíduo ou grupo conforme suas noções de bem e de mal ou de justo e injusto, em um determinado momento histórico. Simplificando, o ser humano é o único animal que consegue valorar suas ações e avaliá- las segundo critérios racionais. Pág. 14 de 94 Figura 4 – Existência Fonte: Sonpichit Salangsing / Shutterstock Como verificamos na história, as comunidades humanas constituídas e organizadas apresentam variações tanto no espaço quanto no tempo. Assim, os valores também podem apresentar-se de formas diversificadas em comunidades distintas, o que resultará em códigos morais diferentes. Daí surgem questionamentos do tipo como devo agir? Que atitudes devo praticar? Que valores devo seguir? E uma infinidade de outras perguntas que se apresentam ao sujeito pensante. Também observamos que nessas comunidades os sujeitos fazem escolhas para suas ações. Assim, escolhem, numa hierarquia de valores, comportamentos que são mais dignos ou mais “valiosos” em relação a outros comportamentos menos dignos e menos “valiosos” sob o ponto devista do grupo. São comportamentos passíveis de louvor e admiração ou o seu inverso, condenação ou censura. Em ambos, há o processo avaliativo do sujeito, isto é, o seu julgamento moral. Comecemos, pois, pelo nascimento destas ideias lá no mundo antigo, mais especificamente na Grécia. Foi lá que surgiu um tipo de pensamento chamado filosófico e que transformou toda a civilização ocidental. Mas, antes deles, habitava naquelas terras um tipo de conhecimento religioso que dava sentido à vida daquelas pessoas. Esse conhecimento baseava-se em histórias, às vezes mirabolantes e fantasiosas, que ensinavam determinadas regras de conduta, ou virtudes, aos seus ouvintes. São os famosos mitos. Portanto, falar de mitologia é falar do próprio povo grego que imaginava seus deuses a partir de suas próprias características psicológicas e emocionais. Pág. 15 de 94 O agir humano mesclava-se com o agir divino e, desta forma, propunha modelos de comportamento que deveriam ser seguidos por todos. Esses modelos pautavam-se na ética e na moral, valores construídos socialmente durante anos por uma tradição e estabelecidos como meios para se chegar a um fim, isto é, para se ter uma vida feliz ou uma vida boa. Contudo, esses valores tinham como pressupostos escolhas individuais que diziam respeito à própria existência e ao sentido que a vida lhes dava. A busca por um sentido para a vida é que levou os gregos a formular histórias de deuses poderosos que habitavam o Olimpo e que davam razões para as três perguntas basilares da humanidade: quem sou eu? Onde estou? Para onde vou? A partir destas três razões, os gregos formularam outras que estão relacionadas aos valores, isto é, às escolhas que podemos fazer para se chegar a um fim, a uma vida boa. Dessa forma, esses valores passam a ser instrumentos ou critério existenciais. Em outras palavras, quando falamos a respeito do valor da vida humana, estamos falando de algo que é próprio do ser humano, o pensar. Também é próprio do homem deliberar sobre sua própria existência e, dessa forma, as suas ações são resultados de escolhas feitas. A partir dessas escolhas é que o homem pode encontrar caminhos que lhe possibilitem viver bem consigo mesmo e em comunidade. Assim, como estamos falando de escolhas e estas envolvem valores, comecemos estudando a composição dos mitos na Grécia Antiga, mais especificamente, para nosso estudo, vamos entender o mito de Prometeu e Epimeteu. Este mito passa a compor uma questão central para nosso estudo: a ética. O mito de Prometeu e Epimeteu, relatado pelo filósofo Platão em um de seus diálogos intitulado Protágoras, fala da natureza humana e de suas limitações e da necessidade de criar valores para “completar” o que a natureza não pôde oferecer. Desse modo, percebemos que o mito é um símbolo com muitos significados, uma vez que se apresenta em forma de história que fascina. Também é possível reconhecer no mito algo relacionado à nossa própria história e aí a relação fascinante estabelecida entre o indivíduo que conta a história e a própria história. Saiba Mais O Mito de Prometeu e Epimeteu aparece numa palestra do Prof. Clóvis de Barros Filho que está disponível no link https://youtu.be/mi3wv5dgNJo (acesso em 30 jul. 2017). Este mito também pode ser encontrado nos versos do poeta Hesíodo, intitulado Teogonia. Pág. 16 de 94 Comecemos, então, pelo mito. Narra a história platônica que num diálogo entre Protágoras e Sócrates. Havia uma discussão sobre a virtude e se esta é possível ser ensinada, isto é, transmitida a outros homens através da educação. Num primeiro momento, a discussão paira sobre a impossibilidade de tal empreendimento. No entanto, enquanto os argumentos são colocados na discussão, surge a ideia de que a virtude pode sim ser ensinada. Então Sócrates pede a Protágoras que conte aos presentes, devido à sua grande experiência, como isto seria possível. Protágoras então se dispõe a argumentar sobre o assunto, mas prefere contar um mito, como forma de se fazer entender melhor. Ao narrar o mito, Protágoras assim se expressa: Houve um tempo em que só havia deuses, sem que ainda existissem criaturas mortais. Quando chegou o momento determinado pelo Destino, para que estas fossem criadas, os deuses as plasmaram nas entranhas da terra, utilizando-se de uma mistura de ferro e de fogo, acrescida dos elementos que ao fogo e à terra se associam. Ao chegar o tempo certo de tirá-los para a luz, incumbiram Prometeu e Epimeteu de provê-los do necessário e de conferir-lhes a qualidades adequadas a cada um. (PLATÃO, 2002, p. 64). Figura 5 – Deuses Fonte: intueri / Shutterstock No relato então aparece a figura do homem sendo criada pelos deuses. Seres mortais que estariam à serviço dos desígnios dos deuses, ou, nas palavras de um antigo professor de filosofia, “[...] os deuses criaram os seres mortais para acabar com o tédio que a vida sem as guerras havia trazido”. Em outras palavras, para a mitologia, os mortais são resultado de uma “brincadeira” dos deuses. Pág. 17 de 94 Saiba Mais Para se aprofundar no assunto, recomendamos a seguinte leitura: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Trad. Jaa Torrano. 6. ed. São Paulo: Iluminuras, 2006. Continuemos com a narrativa: Epimeteu, porém, pediu a Prometeu que deixasse a seu cargo a distribuição. Depois de concluída, disse ele, farás a revisão final. Tendo alcançado o seu assentimento, passou a executar o plano. Nessa tarefa, a alguns ele atribuiu força sem velocidade, dotando de velocidade os animais mais fracos; a outros deu armas; para os que deixara com natureza desarmada, imaginou diferentes meios de preservação: os que vestiu com pequeno corpo, dotou de asas, para fugirem, ou os proveu de algum refúgio subterrâneo; os corpulentos encontravam salvação nas próprias dimensões. Destarte agiu com todos, aplicando sempre o critério de compensação. Tomou essas precauções para evitar que alguma espécie viesse a desaparecer. (PLATÃO, 2002, p. 64). Desse relato, percebemos que as coisas e os animais criados pelos deuses exerciam uma função específica na terra, também recém-criada. Ao incumbir a dois semideuses esta tarefa, Zeus coloca “ordem” no mundo, isto é, procede a um ordenamento no cosmo. Porém, para o homem moderno, cuja racionalidade o eleva a um status divino, passa a ser um tanto assustador ser criado por deuses e também ser fruto de uma “brincadeira” divina. A narrativa prossegue: Depois de haver providenciado para que não se destruíssem reciprocamente, excogitou os meios de protegê-los contra as estações de Zeus, dotando-os de pelos abundantes e pele grossa, suficientes para defendê-los do frio ou adequados para tornar mais suportável o calor, ao mesmo tempo que servissem a cada um de cama natural, quando sentissem necessidade de deitar-se. Alguns dotou de cascos nos pés; outros de garras, e outros ainda de peles calosas e desprovidas de sangue. De seguida, determinou para todos eles alimentos variados, de acordo com a constituição de cada um; a este ervas do solo, a outros frutas das árvores; a terceiros, raízes, e a alguns, ainda, até mesmo outros animais como alimento, limitando, porém, a capacidade Pág. 18 de 94 de reprodução daqueles, ao mesmo tempo em que deixava prolíficas suas vítimas, para assegurar a conservação da espécie. (PLATÃO, 2002, p. 65). Note que, pela narrativa feita por Protágoras, os deuses são seres bons que tudo proveem às suas criaturas. O relato apresenta como as coisas e os animais apareceram sobre a terra e como desenvolvem, cada um à sua maneira, os métodos de subsistência, próprio de cada espécie. Até este ponto tudo parece perfeito. Cada um tem os meios necessários para manter a vida na terra, reproduzir-se e perpetuar a espécie. No entanto, na tentativa de ser justo com todos, Epimeteu distribuiu todos os dons entre as plantas e os animais. Quando Prometeu volta para verificarcomo foi o trabalho de Epimeteu, nota que falta algo: dons para os homens. Não havia mais nada para prover às criaturas, uma vez que Epimeteu tinha distribuído tudo. Sabendo disso, e temendo a ira de Zeus, Prometeu roubou o fogo do palácio de Atena e o entregou aos homens para que pudessem gerir a própria existência, caso contrário, seriam criaturas débeis e sem defesas diante das hostilidades da natureza. Vejamos como isso aconteceu no relato mítico: Como, porém, Epimeteu carecia de reflexão, despendeu, sem o perceber, todas as qualidades de que dispunha, e, tendo ficado em ser beneficiada a geração dos homens, viu-se, por fim, sem saber o que fazer com ela. Encontrando-se nessa perplexidade, chegou Prometeu para inspecionar a divisão e verificou que os animais se achavam regularmente providos de tudo; somente o homem se encontrava nu, sem calçados, nem coberturas, sem armas, e isso quando estava iminente o dia determinado para que o homem fosse levado da terra para a luz. Não sabendo Prometeu que meios excogitasse para assegurar ao homem a salvação, roubou de Hefesto e de Atena a sabedoria das artes juntamente com o fogo [...]. Assim foi dotado o homem com o conhecimento necessário para a vida, mas ficou sem possuir a sabedoria política (PLATÃO, 2002, p. 65). Portanto, partindo desse relato fica claro que a existência do homem foi obra de uma “brincadeira” divina. Mas, se observarmos bem, a narrativa possibilita entender que muitas coisas passam a fazer sentido a partir da “sabedoria” humana, isto é, da inteligência que o homem foi dotado para lidar com as circunstâncias de sua vida. Uma delas tem a ver com a criação de valores que possibilitam uma existência comum e também um objetivo comum, que é a busca pela felicidade. Sartre, mais à Pág. 19 de 94 frente no período contemporâneo vai falar que o homem é “um ser faltado”, isto é, apesar de todas as suas características, ainda lhe falta algo e é este algo que ele almeja alcançar para lhe completar. Figura 6 – Existência humana Fonte: agsandrew / Shutterstock Na narrativa mítica percebemos que a criatura dispende de alguns dons, mas lhe faltam outros. Por isso, necessita constantemente atualizar-se para melhor viver e, desta forma, encontrar o que tanto almeja, a felicidade. Também podemos fazer outras reflexões a respeito desse mito. Por exemplo, o professor Luc Ferry apresenta duas maneiras atuais de associação à narrativa mítica. A primeira associada às modernas discussões ambientais, uma vez que Epimeteu dotou todo um ecossistema com as qualidades necessárias para manutenção de cada espécie. A segunda é associada às técnicas, com as quais os homens passam a produzir bens e serviços para sua própria subsistência. Dessa forma, o dom de criar, que era atributo essencialmente divino, foi entregue aos homens para que pudesse conviver harmonicamente com as outras criaturas. Assim, passa-se a ideia de um cosmo todo harmônico e organizado. De fato, segundo o relato, é graças aos dons recebidos que o homem passa a diferenciar-se dos demais animais pela possibilidade de fabricar objetos e produzir cultura, isto é, produzir bens imateriais que dão sentido à sua existência. Entretanto, se compararmos o homem aos demais Pág. 20 de 94 animais, perceberemos que não temos todas as características adaptativas dadas a eles. Por exemplo, não temos um couro peludo para manter o calor corporal diante do frio; também não somos adaptados à fuga, à defesa ou à caça; não somos velozes (como a lebre), não temos armaduras (como a tartaruga), não temos coloração protetora (como o tigre); não temos asas (como os pássaros), enfim, não temos bicos, garras ou acuidade visual. No entanto, o que nos falta naturalmente pode-se criar artificialmente pela inteligência. Isso significa que somos seres culturais e que modificamos o “estado de natureza”. Dessa maneira, boa parte do comportamento animal está vinculada a reflexos e instintos, portanto,condutas inatas. Agora, em alguns outros animais há a presença de algo a mais, isto é, algumas reações mais reflexivas. Esta possibilidade dá ao homem o poder de criar uma linguagem simbólica, ponto este que nos diferencia dos demais animais. Portanto, através da linguagem, o homem cria cultura e, a partir dela, desenvolve modelos explicativos da realidade e de comportamentos. Esses modelos visam uma ação individual ou comunitária e são chamados de comportamentos éticos, baseados em valores criados a partir das circunstâncias em que o homem vive. E, como vimos no início deste nosso estudo, o homem cria, através de hábitos e costumes, uma série de normas que possibilitam a vida em comunidade e estas normas são a base deste nosso estudo, ou seja, a ética. Note que, muitas vezes, esses valores não se encontram escritos em nenhum lugar, mas são vivenciados pelos homens de maneira inconsciente. Portanto, para que haja valores e, por consequências, atitudes e comportamentos éticos, é necessário primeiramente que haja um sujeito consciente de si e dos outros; também é preciso que haja vontade, isto é, uma capacidade de orientar os desejos e impulsos em conformidade com as normas; também é preciso que haja responsabilidade, ou seja, reconhecer-se como autor dos atos cujos efeitos e consequências recaem sobre si e sobre os demais, e por fim, é preciso liberdade também, dando a si mesmo a possibilidade de autodeterminar-se diante das regras de conduta. Em outras palavras, o homem passa a ser um “animal político” que age em conjunto com outros homens, controlando seus impulsos e paixões e submetendo-se racionalmente às regras estabelecidas de forma autônoma, ou seja, sendo um sujeito ativo e virtuoso no trato social. Em resumo, se olharmos do ponto de ético, isto é, dos valores criados e aceitos por todos, veremos como uma cultura e uma sociedade definem para si e para os outros os conceitos que julgam ser bom ou mal, vício ou virtude e, desta maneira, aqueles valores que consideram virtuosos na medida que melhor exprimem os seus sentimentos, a sua conduta e as suas ações. Dessa forma, a virtude Pág. 21 de 94 passa a compreender não só uma coisa boa, mas algo excelente, isto é, uma maneira perfeita de ser, sentir e agir. Dessa forma, a ética passa a constituir não somente uma ação no tempo, mas visa transformar-se e adaptar-se para responder da melhor forma possível às exigências dos novos tempos, das novas sociedades e da cultura, pois somos seres históricos e também culturais que agem no tempo. Na realidade, os problemas éticos emanam exatamente das muitas possibilidades de viver a existência que compõem a natureza humana. Em outras palavras, as condições de existência para os homens são infinitas e, consequentemente, lhes trarão inúmeras crises existenciais. Dito de outro modo, você já percebeu que parte considerável do sofrimento humano tem uma ligação maior com as múltiplas possibilidades de escolha do que propriamente com as consequências de cada uma delas? Quem nunca sofreu por ter que escolher um caminho na vida e, por conseguinte, deixar de lado inúmeros outros? Por exemplo, escolher uma profissão implica deixar de lado outras. O mesmo ocorre na escolha dos parceiros nos relacionamentos, das cidades onde iremos viver, entre outras. Alguns psicólogos chegam a afirmar que existe uma energia que é gasta em cada uma das escolhas e que, em alguns casos, há uma estafa deliberativa. Ou seja, escolher o tempo todo cansa e estressa. O pensamento ético grego leva em consideração essas questões, a ideia de lugar natural, ou seja, a convicção de que cada homem tem o seu lugar no cosmos e que esse cosmos funciona dentro de uma ordem. Com isso, cada um que não se encontre dentro dessa ordem estaria prejudicando todo o funcionamento cósmico. Dito de outro modo, encontre o seu “lugar natural” no universo e seja feliz. Perceba que o espaço de cada um é dado pela natureza;sendo assim, não há possibilidade de ir contra ela, uma vez que estaria bem acima das suas forças e possibilidades. Disso decorre a noção de ordem cósmica. Manter essa ordem, ou seja, que cada um ocupe o seu lugar natural, é fundamental para garantir a felicidade de todos os homens. Pág. 22 de 94 Figura 7 – Pensamento grego Fonte: Renata Sedmakova / Shutterstock Para entender o pensamento ético dos gregos, é de fundamental importância ter claras essas noções de lugar natural e ordem cósmica. Como você percebeu, o valor nasce justamente da necessidade que os homens têm de escolher a melhor forma de vida. Ou seja, trata-se de uma ferramenta que permite a eles conduzir a própria existência. Neste curso, estamos estudando a história dos valores ocidentais, e a nossa forma de pensar tem parte considerável dos seus fundamentos no pensamento grego antigo, cristão, europeu moderno e contemporâneo. No que diz respeito ao pensamento grego, começaremos com Platão e sua visão racional-dual do cosmo, passaremos pelo pensamento aristotélico, em especial a obra Ética a Nicômaco. Num segundo momento, estudaremos pontos relevantes do pensamento cristão. Finalmente, entraremos em Nietzsche e Sartre. Na realidade, a ideia destas aulas será a de apontar caminhos do pensamento Pág. 23 de 94 ético. Evidentemente, muitos autores ficarão de fora, uma vez que não é possível, no tempo da disciplina, apresentar com profundidade todos aqueles que escreveram a respeito do tema. Mesmo assim, o nosso curso dará linhas mestras para uma melhor compreensão dos fundamentos daquilo que chamamos ética. Veja como o curso está estruturado: Figura 8 – Delimitação do problema ético Fonte: Elaborado pelo autor Acredito que este quadro ajudará a ter um olhar completo da delimitação feita do problema ético. Pág. 24 de 94 3. O PENSAMENTO PLATÔNICO: A SUPREMACIA DA RAZÃO Como vimos na leitura anterior, os conceitos éticos e morais foram se transformando em diferentes épocas e sociedades como forma de melhor responder aos problemas criados pelas relações entre os homens. Vimos também que existe uma relação entre os conceitos morais e a realidade socialmente construída e que está sujeita às mudanças ou atualizações das escolhas humanas. Em outras palavras, quando a vida social muda, provoca uma crise nos valores existentes que exigem uma reflexão e um novo aprofundamento, visando encontrar soluções para este problema. Estas reflexões trazem atualizações das práticas que substituem as anteriores. Vimos também que, na Grécia Antiga, o mito lentamente vai sendo substituído por um pensamento mais racional e, desta forma, perde um pouco a sua importância. No pensamento racional, a justificação para certas ações e comportamentos do homem passam pelo crivo do debate e da discussão, formulando novas concepções de mundo, de ações e comportamentos. Este é o caso que passamos a analisar a partir das contribuições feitas por Platão (427-347 a.C.). Para efeito de recordação, Platão pertencia a uma das mais nobres famílias atenienses, portanto, fazia parte de um grupo seleto de pessoas que tinham acesso aos mais variados bens e serviços. Assim, teve contato com Sócrates, do qual foi discípulo e a quem tinha esmerada consideração por achá-lo o mais justo e sábio dentre os homens de seu tempo. Também é fundador da Academia, sua escola filosófica, que muito contribuiu para o avanço do conhecimento humano sobre os mais variados assuntos, seja em pesquisas científicas, filosóficas ou políticas. Suas ideias transformaram toda uma cultura e todo o ocidente. Como sabemos, a maior parte do que nos chega dos estudos platônicos vincula-se ao pensamento de seu mestre e predecessor Sócrates, tanto que seus famosos escritos em forma de diálogos são feitos a partir da fala de Sócrates. A literatura existente chega a falar que “toda filosofia ocidental são notas de rodapé a Platão”. Portanto, para entendermos bem o pensamento platônico, é necessário retomar alguns pontos de seu mestre Sócrates. Vejamos o que diz o professor Lima Vaz (2015, p. 94) sobre isso: Numa perspectiva de história das ideias éticas devemos, sem dúvida, dar primazia ao Sócrates platônico, pois foi este que Aristóteles reconheceu como iniciador da Ética, título recebido por Diógenes Laércio e confirmado por Hegel, e é deste que procede a grande corrente da Ética ocidental. Pág. 25 de 94 Também sabemos que Sócrates foi o iniciador de um período que a tradição filosófica identificou como antropológico. Desta forma, diferentemente de seus antecessores, os pré-socráticos, a centralização do processo de conhecimento está no homem, e não mais na physis. Assim, um estudo mais específico sobre a ética e a moral nasce quando o homem passa a fazer perguntas para além das simples questões de costumes e hábitos. Ele busca compreender aquilo que se identificou como caráter, como consciência moral individual. Sócrates, portanto, ao indagar sobre tudo leva o homem antigo a questionar tudo também e a chegar a uma conclusão: interpretamos o mundo a partir daquilo que aprendemos com nossos antepassados. Ainda segundo Lima Vaz (2015, p. 94-95), O ensinamento ético de Sócrates, transmitido sobretudo pelos primeiros Diálogos de Platão, conhecidos justamente por “socráticos” (eles constituem a único modelo completo que nos resta dos chamados sokratikoi logoi), apresenta duas características fundamentais, uma metodológica e outra temática. A primeira, presente na forma dialógica, estilizada magistralmente por Platão, mostra-nos a formação da doutrina socrática sendo conduzida por meio de uma permanente inquisição (zetesisi), avançando por perguntas e respostas, tendo por alvo a forma lógica que Aristóteles denominará definição (horismos), mas detendo-se diante das aporias ou encruzilhadas do discurso que a discussão faz surgir. A segunda, na qual se manifesta propriamente a originalidade do ensinamento socrático, é formada pelos temas específicos que a tradição reconhecerá como aqueles que compõem para a história a figura do Sócrates moralista e de sua doutrina. Pág. 26 de 94 Figura 9 – Sócrates Fonte: markara / Shutterstock Dessa forma, o Sócrates apresentado pelo professor Lima Vaz é, de certa maneira, o indagador e o sophos. O primeiro visando obter respostas mais específicas sobre a realidade e as coisas e o segundo aquele que está em constante busca pela sabedoria. Desse modo, como vimos anteriormente, Sócrates concluir que aquilo que os gregos pensavam a respeito dos valores estava vinculado a um aprendizado sobre as virtudes, geralmente transmitidas pelos mitos, como vimos anteriormente. Portanto, os sentimentos, as ações, os comportamentos, as condutas são apreendidas socialmente e são modelados historicamente. Há uma “recompensa” para quem os segue ou há uma “punição” para quem os desrespeita. Em outras palavras, como sabemos que uma conduta é boa ou má? Como julgamos uma ação virtuosa ou viciosa? Por que se valoriza a justiça e se combate a injustiça? Dessa forma, percebemos nos escritos socráticos apresentados por Platão três grandes temas relacionados à ética socrática. São eles: as reflexões sobre o homem interior que terá origem na famosa frase conhece-te a ti mesmo, a verdadeira sabedoria e a virtude. Dessa triangulação, o professor Lima Vaz faz a seguinte afirmação: O cuidado do homem interior exige, antes de mais nada, o conhecimento de si mesmo, ou seja, o exercício de uma razão voltada prioritariamente para o próprio homem e para as “coisas humanas”. [...] Sem essa catarse preliminar, destinada a desfazer a falsa imagem que cada um constrói de si mesmo ou a evidenciar a própria ignorância Pág. 27 de 94 a respeito do que mais importa para a vida que é saber como devemos agir, a busca da definição da virtude não poderia ter lugar. (VAZ, 2015, p. 96). Note que, assim como Sócrates, nós também estamos fazendoperguntas e buscamos respostas às nossas insatisfações. No entanto, temos de buscar as essências, aquilo que é próprio de algo, aquilo que nos dá a possibilidade de conhecer algo. É o que estamos fazendo em nosso estudo, buscando a essência da ética e da moral. E nosso ponto de partida para a busca de respostas está no homem e seu comportamento, isto é, para que haja ações éticas e morais é preciso haver antes uma consciência e um sujeito ético. Dessa forma, quem sabe o que é bem não pode agir de forma contrária, e sim, agir virtuosamente. Esse tipo de conhecimento levou a ideias “[...] aparentemente paradoxais: o homem sábio é necessariamente bom, e o homem malvado é necessariamente ignorante, o sábio nunca faz o mal voluntariamente e somente o homem virtuoso é verdadeiramente feliz” (VAZ, 2015, p. 96-97). Retomando nosso estudo sobre Platão, fica fácil agora entender de onde partem suas ideias. Platão, discípulo de Sócrates, também usa um método dialético para refletir e entender o seu tempo. Nesse sentido, ao falar de ética, Platão parte de sua ideia política, isto é, é na cidade (polis) que se desenvolvem as ações morais. Desse ponto avança-se para sua teoria das ideias. Esse movimento dualista que concebe o mundo a partir de dois polos distintos: o mundo sensível e o mundo inteligível, onde encontra-se a Ideia do Bem; também abarca a sua doutrina sobre a alma, isto é, aquele princípio que anima e move o homem em direção a algo. Em Platão, a razão deve conduzir a alma, mediante a contemplação do mundo das ideias, a uma ação virtuosa. Essa contemplação conduz a uma libertação dos aspectos sensíveis e ilusórios para o que realmente é importante, isto é, as Ideias eternas ou mais especificamente a Ideia do Bem. Portanto, a estrutura do pensamento de Platão destaca-se pela valorização da razão em detrimento das paixões (sentimentos). Ora, partindo desta ideia, é possível perceber que, a todo instante, Platão tenta convencer seus interlocutores de que é melhor agir pela razão do que pelas paixões. Em outras palavras, a vida harmônica, cósmica e ajustada, para ele, é aquela que se vive pela racionalidade. Retomemos o que diz Lima Vaz a este respeito, A ideia diretriz do pensamento ético de Platão, na qual se entrecruzam a significação ética e a significação metafísica, é a ideia de ordem (taxis). É ela que permite a Pág. 28 de 94 unificação, sob a égide da teoria das Ideias, da Ética, da Política e da Cosmologia, assegurando a justa medida da arete ao indivíduo e à cidade e guiando o demiurgo na construção de um cosmos harmonioso. A ideia da ordem [...] será, portanto, uma relação análoga que Platão irá estabelecer entre as partes da alma e suas virtudes, entre alma e a cidade e entre alma e o mundo. (VAZ, 2015, p. 98). Essa forma de pensar tomou conta do pensamento ocidental de tal forma que, quando nos referimos à ação de alguém que foi correta, boa ou justa, dizemos que essa pessoa foi “racional”. Dessa forma, agir impulsionado pelos sentimentos, na visão do pensamento platônico, seria nocivo aos seres humanos e causaria desordem e desarmonia no cosmos. Por isso, a vida que vale a pena ser vivida, em Platão, é aquela que é conduzida pela razão. Sendo assim, a felicidade dos seres humanos passa pelo uso contínuo dela. Ao observar nosso cotidiano, percebemos que constantemente somos chamados a fazer escolhas que contrariam as nossas paixões. Mas, impulsionados por aquilo que chamamos de “racionalidade”, decidimos tomá-las. Por exemplo, quando o nosso despertador nos acorda pela manhã, somos tentados a ficar na cama para dormir um pouco mais, ou seja, o corpo implora pelo sono, mas a racionalidade obriga-nos a levantar. Essa decisão é só o primeiro patamar de uma série de outras que virão no decorrer do dia. Em Platão, o tema das paixões é abordado sob diversos aspectos, mas, sobretudo, na sua teoria do conhecimento. Segundo ele, a realidade é dualista, ou seja, possui duas dimensões: a primeira, o mundo sensível e da aparência; a segunda, o mundo inteligível da razão e do real. Sendo assim, os seres humanos passam toda a sua vida em uma dialética ascendente e descendente, ou seja, eles devem elevar-se ao mundo da razão e descer ao mundo sensível a fim de ajudar aqueles que não conseguiram subir. Tudo isso parece muito maluco, mas, na prática e na história, teve um efeito tremendo. Ou seja, a tese de Platão a respeito da prioridade que a razão (mundo inteligível) tem sobre os sentimentos (mundo sensível) ganhou força em parte considerável do pensamento ocidental. Pág. 29 de 94 Figura 10 – Platão Fonte: vangelis aragiannis / Shutterstock Em muitos casos, como no de Platão, os sentimentos foram sempre colocados em oposição à razão. Ou seja, há uma disputa entre razão e sentimentos pelo domínio das ações humanas. Por outro lado, relendo a literatura existente sobre Platão, é possível perceber que essa oposição razão- paixão foi, aos poucos, sendo transposta por uma outra oposição: aquela associada ao corpo e alma. Novamente a sua teoria das ideias foi colocada em prática. Agora o corpo será o local das paixões, do erro, do engano e, finalmente, com o cristianismo, do pecado e do mal, e a alma será o local da razão que poderá contemplar as Ideias eternas. Em outras palavras, o corpo vai aos poucos perdendo espaço para a razão no agir humano e, na maioria das vezes, atuar impulsionado por ele significa entrar numa zona perigosa para o homem e para a comunidade. Gostaria de usar como exemplo a letra de uma música dos compositores Arnaldo Antunes e Alice Ruiz, intitulada Socorro. Saiba Mais No YouTube há um vídeo da música Socorro. Acesse: https://youtu.be/VDz879eNKNA. Pág. 30 de 94 Acredito que a letra dessa música traduz em boa parte essa concepção de sentimento e racionalidade. Essa oposição entre corpo e alma em Platão será considerada por Nietzsche uma profunda e profana negação da vida. Dito de outro modo, de acordo com este autor, aqueles que se opõem aos instintos estão em rota de colisão com a vida. Então, o que seria uma vida boa para Platão? Como já aludimos, é aquela conduzida pela razão. Mas qual é a relação existente entre razão e felicidade? De acordo com o filósofo, o comportamento racional é o comportamento virtuoso, diferentemente da vida que é conduzida pelas paixões, a vida viciada. É por esse motivo que ele salientou a importância da razão para a vida. Dessa forma, Platão introduz uma visão dualista do mundo de modo a influenciar todo o pensamento ocidental. Nossa vida, nosso pensamento, nossa visão de mundo parte deste princípio, tanto que o percebemos em estudos e tratados posteriores relacionados ao idealismo/realismo, ao racionalismo/empirismo, à salvação/danação, ao amor/ódio e assim por diante. O pensamento dualista ganha ainda mais força com o cristianismo, como veremos mais adiante. Na realidade, certas correntes cristãs acusam a filosofia de interpretar erroneamente algumas de suas teses. Em outras palavras, na essência dessa religião não estaria o dualismo. Mesmo assim, essa é a imagem que se tem do mundo cristão: o cristianismo dualiza o mundo entre Deus, o ser perfeito, eterno e imutável que existe, sempre existiu e sempre existirá, em comparação à sua criatura, imperfeita, finita e sujeita às vicissitudes da vida. Portanto, assim como Sócrates, que busca um conhecimento essencial do homem como meio de conceber uma moral universal, encontrando na sua alma racional o fundamento das normas e costumes, Platão amplia esta visão para um racionalismo ético aprofundado pela sua doutrina dualista. Dessa forma, o corpo, por ser sede das paixões e dos desejos, tende a desviar o homem do seu caminho contemplativo da Ideia do Bem. Desse raciocínio resulta a ideia de que o indivíduo não consegue chegar à contemplação das Ideias eternas sozinho. Agindo racionalmente, o indivíduo só alcança seu objetivo vivendoem sociedade e, portanto, na polis. Ora, um indivíduo que age na polis visando o bem, sendo um bom cidadão, é também um ser virtuoso. Outro ponto evidenciado por Platão em suas reflexões e que está intimamente associado às ações éticas encontra-se numa conciliação entre liberdade e necessidade. A primeira tendo seu vínculo com a virtude e a segunda vinculando-se à razão. Ora, se observarmos bem, na literatura existente, não há uma teoria da liberdade propriamente dita nos escritos platônicos, como acontece Pág. 31 de 94 na literatura moderna, mas é a partir desta experiência que Platão irá desenvolver todo um saber ético, uma vez que é na polis que o cidadão exerce a sua liberdade, expressando-se e participando da vida democrática. Novamente o professor Lima Vaz nos ajuda a compreender o passado: Mostrando-se, pois a liberdade historicamente como constitutiva da práxis do homem grego, sua transposição ao plano da reflexão ética segundo a versão socrática faz surgir necessariamente o problema da compatibilidade lógica a se estabelecer entre essas duas proposições: ninguém é virtuoso sem ser livre e ninguém é virtuoso sem ser sábio. Como o virtuoso, ou o homem bom e justo, sendo sábio, pode ser livre? Não é excessivo dizer que toda a ética antiga irá girar em torno dessa questão, enraizada profundamente no âmago da tradição cultural dos gregos, e que receberá na Ética platônica uma primeira e, sob certo aspecto, definitiva resposta. (VAZ, 2015, p. 99). As palavras do professor Lima Vaz nos indicam um caminho a seguir em busca da resposta ao problema colocado pelos antigos. Contudo, não encontraremos na literatura platônica referências pontuais a este respeito. Devemos, portanto, buscar na teoria platônica como um todo a resposta. Por isso o conhecimento de Sócrates e da doutrina platônica se faz importante. Para efeito de aprofundamento dessa ideia de liberdade e necessidade ou sabedoria que dão ordem a um pensamento ético, prático e voltado para o exercício da cidadania, devemos consultar a discussão, no livro A República, o diálogo sobre justiça. Este é considerado o documento de fundação da ética ocidental. Pág. 32 de 94 Figura 11 – Escola de Atenas Fonte: IR Stone / Shutterstock Dessa forma, Platão busca uma definição daquilo que se concebe como justiça e isto passa a ser um valor central na tradição ética antiga. É nesse ponto que Platão desenvolve a ideia de ordem na cidade e no indivíduo que resulta num conhecimento do Bem. Partindo da experiência do uno e do múltiplo, é possível chegar a um ordenamento do todo e, desta forma, evidenciar o lugar da justiça e da prática individual e social Recorrendo às reflexões do professor Lima Vaz, encontramos a seguinte afirmativa: Sendo a práxis virtuosa ou a práxis segundo o bem, o objeto próprio do saber ético e, por conseguinte, da Ética que é seu sucedâneo em termos de razão demonstrativa, temos aí uma antropologia da práxis individual e política, uma teleologia da práxis como ontologia do Bem e uma epistemologia da ciência do Bem, primeira antecipação do que será a ciência prática de Aristóteles. Por outro lado, se aceitarmos que a práxis virtuosa é, por excelência, uma práxis livre, a filosofia da práxis na perspectiva ética que assegure sua estrutura e seus fundamentos segundo a razão, será necessariamente uma filosofia da liberdade tal como nos aparece, não obstante certos lugares comuns historiográficos, a ética platônica na República. (VAZ, 2015, p. 102). Pág. 33 de 94 Ora, se levarmos em conta que todo caminho ético traçado por Platão se inicia na liberdade e na razão, produto de suas reflexões dualistas, chegamos a uma resposta à nossa indagação primeira do problema de conciliar estas duas noções. A necessidade do Bem emerge do discurso reflexivo da razão e esta pressupõe uma liberdade dentro de um ordenamento, portanto, temos aqui diante de nós uma ética platônica da liberdade que se constrói de forma dialética, na práxis, através da razão em vista do Bem maior. Esses passos serão aprofundados, refutados ou ampliados pelo seu discípulos e seguidor Aristóteles, como veremos mais adiante. 4. A ÉTICA NA OBRA ÉTICA A NICÔMACO, DE ARISTÓTELES Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, também desenvolve um pensamento reflexivo sobre ética. Nascido em Estagira, na Macedônica, foi sem dúvida um dos mais expressivos filósofos da Grécia Antiga ao lado de seu mestre Platão. Na literatura há menção de que suas obras ultrapassam uma centena de livros sobre os mais variados temas. Entretanto, o que nos chega são apenas 47 obras contendo suas reflexões sobre temas tão importantes para a vida humana, inclusive a ética. Sua produção legou ao mundo ocidental um saber organizado, sistemático e lógico. Diferentemente de seu mestre, Aristóteles desenvolve uma ética racionalista, isto é, uma reflexão sobre as ações humanas mais próximas de um indivíduo concreto, sem a noção dualista anterior. Muitos o consideram o iniciador do estudo sobre ética, justificando tal argumento pelo fato de esta se constituir como uma ciência, isto é, como um campo do saber. Entretanto, como discípulo de Platão, absorve muito dos seus ensinamentos para formular o seu próprio. A riqueza e a profundidade do pensamento platônico é herdada e compartilhada pelo estagirita, tanto que temas e problemas levantados por aquele será, de maneira totalmente original, aprofundada por este. Seu pensamento inaugura uma “nova tradição”, isto é, uma nova maneira de se pensar e conceber o cosmos, todo ordenado e classificado, constituindo um saber, uma ciência. No campo do saber, Aristóteles trouxe importantes contribuições, tanto que as suas obras foram divididas em dois grandes grupos: de um lado há os escritos exotéricos e de outro os esotéricos. O primeiro destinado ao grande público e os segundos somente aos estudantes e professores do Liceu. Entretanto, o que nos interessa para nosso estudo sobre ética é um texto intitulado Ética a Nicômaco, no qual o estagirita apresenta um caminho para se atingir o bem último que é a felicidade Pág. 34 de 94 (eudaimonia). O estudo da literatura existente sobre este tema apresenta dois textos de autoria de Aristóteles a respeito da Ética. O primeiro seria destinado a Nicômaco (composta por dez livros) e o segundo a Eudemo (composta por sete livros). Vejamos o que o professor Adolfo Vázquez (2002, p. 272) diz sobre isso: Aristóteles se opõe ao dualismo ontológico de Platão. Para ele, a ideia não existe separada dos indivíduos concretos, que são o único existente real; a ideia existe somente nos seres individuais. Mas, no ser individual, é preciso distinguir o que é atualmente e o que tende a ser (ou seja, o ato e a potência [...]). A mudança universal é passagem incessante da potência ao ato. Existe somente um ser que é ato puro, sem potência: Deus. Também o homem deve realizar com seu esforço o que é potência, para realizar-se como ser humano. O homem é, portanto, atividade, passagem da potência ao ato. Mas qual é o fim desta atividade? Para onde tende? Com esta pergunta já se entra no terreno da moral. No texto acima percebemos que existe muitos fins, mas a pergunta que fixa é: qual é o fim último do homem? Aristóteles responde de maneira direta: todos os homens tendem para a felicidade (eudaimonia). Ora, se o fim último de cada ser humano é a felicidade, como ele faz para alcançá-la? Nesse ponto temos muitas fontes da felicidade (prazer, riqueza, bens materiais etc.), mas, segundo o estagirita, aquela que mais nos aproxima das essências é a da contemplação, isto é, uma vida teórica guiada pela razão. Em outras palavras, como a vida não se realiza de modo intermitente, isto é, às vezes sim e outras não, então só se pode atingir a felicidade através de certos modos de agir que ele classificou como virtudes. Ora, as virtudes não são inatas, mas podem ser apreendidas conformeo relato aristotélico em Ética a Nicômaco, que podemos acompanhar a seguir: Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino – por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, doente ter-se formado o seu nome [...]. Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza. (ARISTÓTELES, 1989, p. 67). Pág. 35 de 94 Figura 12 – Sócrates Fonte: Giannis Papanikos / Shutterstock Assim, segundo Lima Vaz, a ética aristotélica distingue-se da platônica pelo seu método e pelo seu objeto. Enquanto Platão abarcara o uno em sua teoria das ideias, Aristóteles prefere fazer uso de um sistema mais adequado ao uso das ciências, isto é, preferia um método mais apropriado a cada ciência que pudesse enriquecer o conhecimento sobre as mesmas, classificando-as e organizando-as. É desse modo que o autor da Metafísica irá produzir, separar e classificar os tipos de conhecimento em três grandes áreas, chamadas ciências, a saber: teoréticas (theoretikai), práticas (praktikai) e produtivas (poietikai). A ética, juntamente com a política, encontra respaldo nas ciências práticas. Já que o fim último para o qual todos tendemos é a felicidade, cabe ao homem buscá-la através do uso da razão. Dessa forma, uma vez que o homem encontra no plano contemplativo teórico as essências das coisas, ou a essência da felicidade, ele pode realizá-la de modo consciente. Ora, essa dedicação só é possível para o cidadão, tendo o homem comum (aquele que não tem como dedicar-se a uma vida contemplativa) que agir corretamente na sociedade apenas pelo hábito. Ora, agir corretamente segundo este pensador é exercer hábitos virtuosos e, portanto, mostrar que a instrução teórica serve para influenciar a ação humana. Vejamos o que Aristóteles fala sobre a virtude em sua obra Ética a Nicômaco: Pág. 36 de 94 As ações virtuosas devem ser aprazíveis em si mesmas. Mas são, além disso, boas e nobres, e possuem no mais alto grau cada um destes atributos, porquanto o homem bom sabe aquilatá-los bem; sua capacidade de julgar é tal como a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não se acham separados como na inscrição de Delos: das coisas a mais nobre é a mais justa, e a melhor é a saúde; mas a mais doce é alcançar o que amamos. (ARISTÓTELES, 1989, p. 58). Como vimos em nosso estudo até aqui, a Ética a Nicômaco é a primeira obra do Ocidente sobre ética. Ela nasce das aulas que o filósofo ministrou no Liceu, ou seja, são anotações de aulas. Essa obra não deve ser interpretada como uma composição de grandes princípios gerais a respeito da vida. Nela, existe uma preocupação com a existência material dos seres humanos, uma vez que a existência da ética somente terá algum sentido se a finalidade for a de melhorar a vida dos próprios homens. Nesse sentido, Aristóteles nos apresenta a sua ideia sobre virtude no seu texto Ética a Nicômaco, como podemos ler: A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. E assim, no que toca à sua substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania; com referência ao sumo bem e ao mais justo, é, porém, um extremo. (ARISTÓTELES, 1989, p. 73). Ora, retomemos à ideia inicial apresentada por Aristóteles: todas as coisas têm uma finalidade, ou seja, algo para o qual todas “as coisas tendem” (o bem). O mesmo ocorre com a vida do homem, ou seja, ela está estabelecida dentro de uma ordem cósmica e com uma finalidade dentro dela. Essa ordem é a mesma estabelecida pelas narrativas míticas da vitória de Zeus sobre os titãs. Também se faz necessário entender o conceito de vida boa em Aristóteles, ou seja, de eudaimonia. A tradução dessa palavra é confusa e, no decorrer da história do pensamento, causou inúmeras controvérsias. A eudaimonia seria uma vida soberana, ou seja, perfeitamente de acordo com a sua finalidade. Dito de outro modo, a vida boa é aquela na qual o ser humano encontra o bem Pág. 37 de 94 supremo. Mas o que seria o bem supremo? É o modelo de vida que vale por ela mesma, ou seja, que não é instrumental. Em outras palavras, a vida que vale a pena, para Aristóteles, é aquela em que o homem não encontre fora dela o sentido para vivê-la. Por exemplo, a vida de estudante que se prepara para o vestibular é uma vida eudaimônica? Respondo: não. Pois, nesse caso, a vida de estudos não é uma finalidade em si mesma, uma vez que a finalidade dessa ação está na meta, que é a aprovação no vestibular. As ações da vida, de acordo com Aristóteles, não podem ser instrumentais. Dito de outra maneira, as ações que não têm as suas finalidades nelas mesmas não fazem a vida valer a pena, portanto, não são eudaimônicas. Figura 13 – Ações da vida Fonte: LuckyImages / Shutterstock Voltando ao exemplo do estudante que se prepara para o vestibular. A existência dele somente valerá a pena caso não coloque o motivo do seu estudo numa situação posterior, ou seja, o estudo precisa valer pelo estudo. Vejamos como Aristóteles desenvolve o conceito de eudaimonia em sua obra Ética a Nicômaco: Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os Pág. 38 de 94 fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto [...]; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa. Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos [...]; mas também os escolhemos no interesse da felicidade. (ARISTÓTELES, 1989, p. 55). Retomemos agora aquela ideia apresentada anteriormente sobre o sumo bem. Convém esclarecer, de uma vez por todas, o que seria o sumo bem em Aristóteles. Para nosso estudo, apresentarei aqui alguns graus de bem, a saber: ir ao bem pelo bem, ir ao bem com ajuda, ir ao bem com coação e não ir ao bem. Para tal, vamos usar o exemplo do estudante. Quando falamos ir ao bem pelo bem, referimo-nos ao sujeito que faz o bem pelo bem, ou seja, sem motivação exterior. Por exemplo, o aluno que estuda por acreditar que o estudo é um bem em si mesmo. Em outras palavras, mesmo que não existisse nenhuma utilidade dele em vestibulares, concursos ou mestrados acadêmicos, ainda assim, esse estudante manteria a mesma postura. Já quando nos referimos a ir ao bem com ajuda, estamos nos referindo ao sujeito que faz o bem com algum motivo. Por exemplo, o jovem que estuda para passar no vestibular. Não deixa de ser um bem, mas não é o bem supremo. Quando dizemos ir ao bem com coação indicamos aquele indivíduo que faz o bem motivado pela obrigação. Por exemplo, é o caso do jovem que estuda impulsionado pela coação dos pais, da escola ou da sociedade. Nesse caso, não deixa de ser um bem, mas essa vida está ainda mais longe da vida boa de Aristóteles. Por fim, quando nos referimos a não ir ao bem mesmo com coação, estamos a indicar que, nesse caso, haverá para esse sujeito a punição. Dito de outro modo, se, mesmo depois de toda a coação social, o indivíduo não progride no bem, nesse caso,ele será punido pela sociedade e, quem sabe, pela própria vida. Ora, estes quatros exemplos de bem foram usados para elucidar e clarear o pensamento de Aristóteles, ou seja, jogar luz em alguns conceitos aristotélicos a fim de facilitar a sua leitura desse pensador. Em resumo, para Aristóteles, uma vida perfeitamente ajustada à ordem cósmica, ou seja, dentro da sua finalidade, terá como resultado o bem supremo – a eudaimonia. Mas como saber qual é a nossa finalidade no cosmos? A resposta do pensador a essa pergunta tem a ver com o conceito de virtude visto em parágrafos anteriores. Pág. 39 de 94 Em resumo, a virtude em Aristóteles não é a virtude cristã. Mas o que ela é para esse autor? É um talento natural atualizado, no sentido de ato e potência, na teoria aristotélica. O talento é um sintoma, ou seja, um indicar da vida. Qual é a diferença entre a virtude em Aristóteles e a virtude cristã? Esta, para os cristãos, é o uso bom que se faz dos talentos. No caso de Aristóteles, o próprio talento já é a virtude. Em outras palavras, para ele, a vida boa e ajustada é fazer aquilo que você faz bem, ao passo que, para os cristãos, o talento é um dom de Deus e, por isso, deve ser colocado a serviço dos outros. No caso de Aristóteles, não existe conotação moral nesse uso, ou seja, age moralmente bem quem usa os talentos. Para o pensador, a virtude também será vista como a justa medida entre a falta e o excesso, daí a famosa frase atribuída a ele: “A virtude está no meio termo”. Vejamos de forma resumida como Aristóteles concebe uma ética do meio-termo baseada nas virtudes a partir do quadro abaixo do professor Adriano Ferreira (2011), Quadro 1 – Ética do meio-termo baseada nas virtudes Paixão Excesso Falta Virtude Prazer Libertinagem Insensibilidade Temperança Medo Covardia Temeridade Coragem Riqueza Avareza Prodigalidade Liberalidade Fama Vaidade Humildade Magnificência Cólera Irascibilidade Indiferença Gentileza Vergonha Timidez Sem-vergonhice Modéstia Fortuna alheia Inveja Malevolência Justa apreciação Fonte: http://diogojacarezinho01.blogspot.com.br/2012/04/curso-de-etica-pos-em-filosofiagama.html Pág. 40 de 94 Figura 14 – Atividade racional Fonte: ESB Professional/ Shutterstock Aristóteles também vai colocar na atividade racional a principal finalidade da existência. Em outras palavras, quem pensa mais vive melhor, ou seja, vive bem quem pensa bem. Mas será que todos conseguem usar e desenvolver plenamente o uso da razão? Para Aristóteles, nem todos chegam ao pleno desenvolvimento das atividades naturais, e esse fato é natural, ou seja, a natureza não fez os homens iguais. Nesse caso, justificam-se as afirmações da obra A política de alguns nascerem para mandar, enquanto outros, para obedecer. Assim, a superioridade natural deve traduzir-se em superioridade política, por isso, o tema da escravidão é natural em Aristóteles. Contudo, no que tange à busca por uma vida eudaimônica, Aristóteles indica que o ideal de felicidade se realiza na polis, isto é, numa vida social e política, não podendo levar uma vida moral isoladamente. Esta, por sua vez, não é um fim em si mesma, mas condição para se alcançar a felicidade, que se realiza na prática de uma vida contemplativa. Desse modo, o professor Vazquéz nos ajuda a entender esse pensamento: Para Aristóteles, essa vida teórica que pressupõe necessariamente a vida em comum é, por um lado, acessível só a uma minoria ou elite, e de outro, implica uma estrutura social – como a da antiga Grécia – na qual a maior parte da população – os escravos – mantém-se excluída não só da vida teórica, mas da vida política. Por esta razão, a verdadeira vida moral é exclusiva de uma elite que pode realizá-la – isto é, consagrar- se a procurar a felicidade na contemplação – no âmbito de uma sociedade baseada Pág. 41 de 94 na escravidão. Dentro desse âmbito, o homem bom (o sábio) deve ser, ao mesmo tempo, um bom cidadão. (VAZQUÉZ, 2002, p. 273). Segundo Barros Filho, a igualdade é um conceito introduzido pelo cristianismo na história do pensamento ético. Para os gregos, a ideia de igualdade entre os homens chega a beirar o absurdo. Gostaria de recapitular alguns aspectos do pensamento aristotélico até aqui trabalhados. Em primeiro lugar, o conceito de eudaimonia, que alguns traduzem como felicidade ou vida plena. Depois, de acordo com Aristóteles, a virtude é atualização de uma condição natural, ou seja, o ser humano virtuoso é aquele que age em conformidade com a sua finalidade no cosmos. Dito de outra maneira, a eudaimonia somente será alcançada quando esse lugar no cosmos (lugar natural) for encontrado. É sobre o lugar natural que passo a falar agora. Figura 15 – Conceito de eudaimonia e acrasia Fonte: Elaborado pelo autor Os conceitos de lugar natural e de finalidade têm um espaço importante na compreensão do pensamento grego a respeito da ética e na teoria aristotélica. De acordo com Aristóteles, toda ação deve tender para o bem supremo, ou seja, este é o fim último das ações humanas. Nesse caso, existe a clara convicção de que o cosmos é organizado e que todos os seres devem ajustar-se perfeitamente a essa ordem. Sendo assim, todos os bens que fazemos devem ter como finalidade o bem supremo, uma vez que participam dele. Quando leciono sobre esse assunto, procuro sempre usar uma figura que poderá ajudar aos alunos a compreender melhor o tema: o Bem com “B” maiúsculo e o bem com “b” minúsculo. Em outras palavras, o Bem é o resultado final da ação humana (é singular), ao passo que existem bens (plural). O próprio Pág. 42 de 94 Aristóteles alude a esse tema no primeiro capítulo do livro I da Ética a Nicômaco. Vejamos: “Toda perícia e todo processo de investigação, do mesmo modo todo procedimento prático e toda decisão, parecem lançar-se para um certo bem. É por isso que tem sido dito acertadamente quem o bem é aquilo que tudo anseia” (ARISTÓTELES, 2009, p. 17). O que nos parece é que a visão ética de Aristóteles está fundamentada num conceito chamado teleologia, ou seja, a noção de que as coisas no universo seguem uma finalidade, inclusive os seres humanos. Aqueles que estiverem totalmente em desarmonia com a ordem cósmica estarão num estado de acrasia (akrasia), ou seja, numa condição de falta de autodomínio que os levará, consequentemente, à infelicidade. Dessa forma, podemos verificar que, em Aristóteles, o conceito de eudaimonia refere-se à vida que vale por ela mesma, ou seja, a vida feliz e em conformidade com a ordem cósmica. O conceito de virtude remonta a uma atualização de uma qualidade atribuída pela natureza ao homem. A virtude, portanto, está no meio termo. Já a sua visão teleológica indica que todas as coisas têm uma finalidade cósmica. A felicidade (eudaimonia) é alcançada na medida em que os seres humanos estão ajustados à sua finalidade. Portanto, depois de toda esta leitura, chegamos a uma conclusão um tanto desafiadora: estudar ética não é tão fácil como parece, uma vez que existem diversas fontes de pensamento. Dessa forma, poderemos perceber a evolução do conceito ou das formas de pensar a ética. Passemos agora ao estudo da ética no período medieval e, mais especificamente, no pensamento cristão. Pág. 43 de 94 5. A ÉTICA HELENÍSTICA: EPICURISTAS E ESTOICOS Figura 16 - Antal Strohmayer, O Jardim dos filósofos (1834) Fonte: https://cdn-images-1.medium.com/max/599/1*J6PPIPUsi6FMH7mlPv_YtA.jpeg Antes de entrarmos num estudo sobre a ética no período medieval na ética cristã, mais especificamente, faz-se necessário rememorar alguns conceitos a respeito de uma ética helenística, isto é, aquela desenvolvida no mundo antigo em meio à decadência da Grécia Clássica e início do Império Macedônico. E por que é necessário lembrar desse momento histórico? A resposta se mostra simples: são estes conceitos que retornarão no período medieval e serão relidos e reinterpretados pelos pensadores
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