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ISSN 2176-1396 ASPECTOS HISTÓRICOS DAS TEORIAS DO CURRÍCULO Eduardo Felipe Hennerich Pacheco1 - PUCPR Eixo – Cultura, Currículo e Saberes Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Busca-se no presente trabalho refletir acerca dos aspectos históricos das teorias do currículo. A relevância dessa discussão é extremamente importante na análise do currículo e da prática social desempenhada pelo mesmo, dado ao fato de que o currículo faz parte integrante do dia-a-dia das escolas e das instituições de educação superior, e exercerá diretamente ou indiretamente sua influência nos sujeitos que fazem parte do processo educativo e da sociedade em geral. O problema que orientou a reflexão buscou elucidar a seguinte questão: como a estrutura curricular influencia e determina a visão de mundo e de sociedade dos sujeitos que estão inseridos nessa estrutura. E o objetivo dessa reflexão é fazer uma análise dos aspectos históricos do currículo, ou seja, como em determinados períodos históricos o currículo foi concebido e como foi influenciado pelas dimensões econômicas e culturais da sociedade. A análise se baseou em elementos teóricos-metodológicos provenientes da pesquisa bibliográfica. Na discussão, são contemplados os aspectos tradicionais, críticos e pós-críticos do currículo, em consonância com os estudos elaborados por: Eyng (2007, 2013, 2015), Gomes (2008), Sacristán (2000, 2013) e Silva (2009). A compreensão das teorias sobre o currículo é extremamente necessária, pois, a partir dessa compreensão que poderemos perceber quais as construções históricas que o currículo vivenciou e como essas estruturas influenciaram na construção da educação. Em suas considerações finais conclui-se que por intermédio da análise dos aspectos históricos das teorias do currículo, podemos indagar como as relações de poder interferem na constituição do currículo escolar, e se esse currículo acolhe ou exclui quem dele participa. Desta maneira, a compreensão acerca das teorias históricas do currículo é indispensável, pois, por meio dessa compreensão perceberemos quais são os valores e hábitos que nossos currículos induzem e perpetuam. E, somente a partir dessa reflexão, poderemos elaborar currículos verdadeiramente inclusivos. Palavras-chave: Currículo. Educação. Teorias do Currículo. 1Mestrando em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná na linha de pesquisa de História e Políticas da Educação, com sua pesquisa voltada para temas de Democratização, Acesso e Permanência na Educação Superior no Brasil. Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2014), e é especialista em Antropologia Cultural pela PUC-PR (2016). E-mail: eduardo.pva@hotmail.com. 2795 Introdução Busca-se no presente artigo discutir os aspectos históricos das teorias do currículo. A relevância dessa discussão é extremamente importante na análise do currículo e da prática social desempenhada pelo mesmo, dado ao fato de que ele faz parte integrante do dia-a-dia das escolas e das instituições de educação superior, e exercerá diretamente ou indiretamente sua influência nos sujeitos que fazem parte do processo educativo e da sociedade em geral. O problema que orientou a reflexão procurou elucidar a seguinte questão: como a estrutura curricular influencia e determina a visão de mundo e de sociedade dos sujeitos que estão inseridos nessa estrutura? E o objetivo do presente trabalho é fazer uma análise dos aspectos históricos do currículo, ou seja, como em determinados períodos históricos o currículo foi concebido e vivenciado na e pela educação. A análise da questão proposta se apoia nos argumentos teóricos da concepção histórica do currículo, com base nos estudos elaborados por: Eyng (2007, 2013, 2015), Gomes (2008), Sacristán (2000, 2013) e Silva (2009). O trabalho se organiza da seguinte maneira: primeiramente iremos conceituar o que entendemos acerca do conceito de currículo. Posteriormente, discorremos acerca dos aspectos históricos do currículo, enfatizando as concepções tradicionais, críticas e pós-críticas do currículo. Nas considerações finais apontamos a importância de conceber o papel político do currículo na construção de uma educação justa e de qualidade social. O processo metodológico do trabalho ocorreu de forma qualitativa, fazendo uso da pesquisa bibliográfica como embasamento da fundamentação teórica. A abordagem qualitativa utilizada teve como propósito referenciar as análises bibliográficas utilizadas no texto, com o intuito de dialogar com a complexidade e a singularidade presentes na sociedade contemporânea. A pesquisa qualitativa para Goldenberg (1991, p. 34) [...] não se preocupa com representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização, etc. Os pesquisadores que adotam a abordagem qualitativa opõem-se ao pressuposto que defende um modelo único de pesquisa para todas as ciências, já que as ciências sociais têm sua especificidade, o que pressupõe uma metodologia própria. Assim, os pesquisadores qualitativos recusam o modelo positivista aplicado ao estudo da vida social, uma vez que o pesquisador não pode fazer julgamentos nem permitir que seus preconceitos e crenças contaminem a pesquisa. 2796 Optou-se por utilizar a metodologia qualitativa bibliográfica, pois, atualmente qualquer pesquisa científica começa com um levantamento bibliográfico pertinente acerca da temática investigada. E ainda, de acordo com Fonseca (2002, p. 32), A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho científico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto. Existem, porém pesquisas científicas que se baseiam unicamente na pesquisa bibliográfica, procurando referências teóricas publicadas com o objetivo de recolher informações ou conhecimentos prévios sobre o problema a respeito do qual se procura a resposta. Além disso, para Santos (2000, p. 31), [...] a bibliografia constitui-se numa preciosa fonte de informações, com dados já organizados e analisados. Na atualidade, praticamente qualquer necessidade humana, conhecida ou pressentida, possui alfo escrito a seu respeito. Por isso a pesquisa com base em uma bibliográfica deve encabeçar qualquer processo de busca cientifica que se inicia. Dessa maneira, busca-se no presente artigo compreender e refletir acerca dos aspectos históricos das teorias do currículo e, por intermédio dessa compreensão analisar se os currículos escolares estão promovendo uma cultura de inclusão ou de exclusão dos estudantes e suas diversidades. O Conceito De Currículo Ao iniciarmos nossa discussão acerca dos aspectos históricos das teorias do currículo, cabe inicialmente pontuarmos o que entendemos como sendo currículo. Podemos antever a princípio da discussão, que esse conceito não é engessado em uma única definição, ao contrário, podemos identificar nos estudos de Silva (2009), Moreira e Silva (2001) e Sacristán (2000, 2013) que os autores identificam o conceito de currículo com uma gama de definições variáveis. Sabemos, entretanto, que popularmente o termo currículo é utilizado para designar o programa de uma disciplina, de um curso, ou de forma mais ampla das várias atividades educativas, através das quais, o conteúdo é desenvolvido. Sacristán (2013, p. 16) recorda que,por vezes, tentamos fazer parecer que “o currículo é algo evidente e que está aí não importa como o denominamos”. Etimologicamente o termo currículo segundo Sacristán (2013, p. 16), 2797 [...] deriva da palavra latina curriculum (cuja raiz é a mesma de cursus e currere) [...]. Em sua origem currículo significava o território demarcado e regrado do conhecimento correspondente aos conteúdos que professores e centro de educação deveria cobrir; ou seja, o plano de estudos proposto e imposto pela escola aos professores (para que o ensinassem) e aos estudantes (para que o aprendessem). No entanto, a explicação acerca do conceito de currículo que melhor objetiva essa reflexão, implica em evidenciar as diferentes dimensões que compõe o próprio currículo, seja elas sociais, econômicas, políticas ou culturais. Somente evidenciando essas características que permeiam o currículo, é que podemos compreender que diferentes forças atuam na construção do currículo e que, todos que dele participam, não o participam de maneira neutra, mas deixam sua marca, pois o currículo trata-se de um campo impregnado de ideologias, valores, forças, interesses e necessidades que, diretamente ou indiretamente, formam a visão de mundo dos sujeitos envolvidos em sua estrutura, e de certa forma, contribui para a própria formação identitária dos indivíduos que o cercam. Por isso, torna-se necessário compreender as teorias que nortearam a definição de um determinado currículo, e quais objetivos que esse currículo propõe. Essas teorias usualmente são classificadas como: Teorias tradicionais, críticas e pós-críticas, e cada uma delas traz consigo características próprias do que é feito o currículo e também do que não é feito o currículo. Teorias Tradicionais Segundo Silva (2009), a teoria tradicional de currículo busca a neutralidade, tendo como escopo principal promover a identificação dos objetivos da educação escolarizada, formando o trabalhador especializado ou, proporcionando uma educação geral e acadêmica. A teoria tradicional do currículo teve como principal teórico John Franklin Bobbitt (1876-1956) que em 1918, escreveu sobre o currículo, em um momento conturbado da história da educação nos Estados Unidos (em que, diversas forças de cunho político, econômico e cultural queriam envolver a educação de massas de acordo com suas ideologias). De acordo com Silva (2009, p. 23-24), As respostas de Bobbitt eram claramente conservadoras, embora sua intervenção buscasse transformar radicalmente o sistema educacional. Bobbitt propunha que a escola funcionasse da mesma forma que qualquer outra empresa comercial ou industrial. Tal como uma indústria, Bobbitt queria que o sistema educacional fosse capaz de especificar precisamente que resultados pretendia obter, que pudesse estabelecer métodos para obtê-los de forma precisa [...]. 2798 Baseado na teoria da administração econômica de Frederick Taylor (1856-1915), o modelo que Bobbitt preconizava, tinha como palavra de ordem a eficiência. Nesse sentido, o currículo tornava-se uma questão de gestão e organização, ocorrendo de forma mecânica e burocrática e que, segundo Eyng (2015, p. 138) operavam [...] os conceitos fundamentais de: “ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência, objetivos” (SILVA, 2007, p. 17). Tais conceitos subsidiam modelos curriculares hegemônicos, etnocêntricos e supostamente neutros. Nessa linha, os currículos são entendidos como normatização, prescrição, centrados nos conteúdos disciplinares e/ou listas de objetivos. Esses modelos difundiram a ideia de currículo como equivalente à grade curricular (EYNG, 2010). Como apontado por Eyng (2015), a tarefa dos “especialistas” do currículo era realizar um levantamento das habilidades dos indivíduos e como os currículos poderiam desenvolver essas habilidades. Posteriormente, os especialistas, deveriam criar instrumentos de “medição” dessas habilidades, conceito que usualmente denominamos de avaliação. De acordo com Silva (2009, p. 23), A atração e influência de Bobbitt devem-se provavelmente ao fato de que sua proposta parecia permitir à educação tornar-se científica. Não havia por que discutir abstratamente as finalidades últimas da educação: elas estavam dadas pela própria vida ocupacional adulta. Tudo o que era preciso fazer era pesquisar e mapear quais eram as habilidades necessárias para as diversas ocupações. A avaliação nessa perspectiva de currículo, enfatiza a capacidade de armazenamento de informações, solicitando que o aluno recite os conhecimentos memorizados. Esse modelo de avaliação tem como característica própria a burocracia, e norteia-se por princípios parciais e pontuais com a finalidade da classificação do desempenho individual e dos resultados, considerados, satisfatórios. Eyng (2015, p. 139) ressalta que desse modelo, [...] emanam as abordagens positivista e regulatória de avaliação. A abordagem positivista tem como pressuposto epistemológico a neutralidade. Acredita, portanto, que “A avaliação é científica com apoio em ciência neutra, fora das relações de poder e das particularidades que poderiam influenciar contextos” (LEITE, 2006, p. 487). A abordagem regulatória opera com pressupostos economicistas da eficiência, cujos indicadores estão fortemente definidos nas atuais políticas e práticas de avaliação em larga escala. Dessa forma, podemos resumir a questão principal das teorias tradicionais em conteúdos e objetivos qualitativos, ou seja, destacando a medida. Quem avalia os resultados obtidos é o 2799 professor que também, participa de uma cultura conservadora burocrática. No currículo tradicional, aprender “consiste em adquirir informações que preparem o sujeito intelectual e moralmente para adaptar-se à sociedade” (EYNG, 2007, p.119). A aprendizagem que é valorizada, “é a que propicia a formação de reações estereotipadas, de automatismos, denominados hábitos, geralmente isolados uns dos outros e aplicáveis, quase sempre, somente às situações idênticas em que foram adquiridos” (MIZUKAMI, 1986, p. 14). A metodologia pedagógica na abordagem curricular tradicional para Martins (apud EYNG, 2007, p. 120), “[...] recai na transmissão do conhecimento, que deve ser rigorosamente lógica, sistematizada e ordenada, daí o uso do método expositivo, que tem como centro a figura do professor”. Essa concepção de educação e de currículo gerou três grandes paradigmas educacionais que são: o paradigma tradicional, o paradigma escolanovista/humanista e o paradigma tecnicista/comportamentalista. Essas abordagens foram fortemente influenciadas pelos paradigmas da ciência principalmente pelo paradigma newtoniano-cartesiano. Essa forma de organização e de concepção de currículo vai ser predominante até a década de 1960, até o surgimento das concepções críticas de currículo. Teorias Críticas do Currículo A década de 1960 foi fortemente marcada pela emergência de inúmeros movimentos sociais e culturais que questionavam de forma explícita a sociedade e suas organizações. Nesse contexto, surgiram as primeiras teorias que questionavam o pensamento e a estrutura educacional vigente, em específico, as concepções tradicionais do currículo. As novas teorias críticas do currículo, preocuparam-se em compreender, baseados na teoria dialética-crítica de Karl Marx (1818-1883), qual era o real papel do currículo na educação. Para Silva (2009, p. 29-30), [...] as teorias críticas do currículo efetuam uma completa inversão nos fundamentos das teorias tradicionais [...]. As teorias críticas sobre o currículo, em contrate,começam por colocar em questão precisamente os pressupostos dos presentes arranjos sociais e educacionais. As teorias críticas desconfiam do status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e injustiças sociais. 2800 Baseados na teoria de Marx, novos teóricos surgiram, como é o caso de Louis Althusser (1918-1990), Pierre Félix Bourdieu (1930-2002), Jean Claude Passeron (1930), Christian Baudelot, Roger Establet e, no Brasil o educador Paulo Freire. Esses teóricos, pontuaram a necessidade que a sociedade capitalista tinha em reproduzir ideologicamente suas práticas econômicas. E, para esses autores, a escola seria o lócus ideal para que o capitalismo pudesse reproduzir essa ideologia, pois, é justamente a escola que mantêm a população em maior número e por um prolongado período de tempo. Dessa forma, segundo Silva (2009, p. 33), A escola contribui para esse processo não propriamente através do conteúdo explícito de seu currículo, mas ao espalhar, no seu funcionamento, as relações sociais do local de trabalho. As escolas dirigidas aos trabalhadores subordinados tendem a privilegiar relações sociais nas quais, ao praticar papéis subordinados, os estudantes aprendem a subordinação. Em contraste, as escolas dirigidas aos trabalhadores dos escalões superiores da escala ocupacional tendem a favorecer relações sociais nas quais os estudantes têm a oportunidade de praticar atitudes de comando e autonomia. A insatisfação com a escola excludente e seletiva foi expressa pela crítica advinda dos novos movimentos sociais. Eles denunciavam a despreocupação da educação (centrada em um currículo tradicional) com o processo de aprendizagem dos alunos, e criticavam ainda mais o esvaziamento dos conteúdos que eram repassados sem um verdadeiro significado. A alternativa vista por esses movimentos, foi encontrar alternativas de currículo, que tiveram enorme influência no modo de pensar e fazer a escola na modernidade. Por isso, Eyng (2015, p. 138) pontua que: As teorias críticas operam os conceitos fundamentais de: “ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto, resistência” (SILVA, 2007, p. 17). Tais conceitos subsidiam a compreensão de que os currículos são ideologicamente situados e inseridos nas relações de poder, especialmente nos interesses das lutas de classe. Nessa linha, os currículos são entendidos como espaço de resistência, como forma de libertação da opressão econômico-capitalista e possibilidade de emancipação a partir da conscientização (EYNG, 2010, p. 36). Para a teoria crítica do currículo, principalmente na visão de Althusser, é por meio das disciplinas e conteúdos ensinados que a ideologia dominante transmite seus princípios e reproduzem seus interesses e, além disso, segundo Silva (2009, p. 32), [...] a ideologia atua de forma discriminatória: ela inclina as pessoas das classes subordinadas à submissão e à obediência, enquanto as pessoas das classes dominantes 2801 aprendem a comandar e controlar. Essa diferenciação é garantida pelos mecanismos seletivos que fazem com que as crianças das classes dominantes sejam expelidas da escola antes de chegarem àqueles níveis onde se aprendem os hábitos e habilidades próprios das classes dominantes. Os teóricos Bowles e Gintis em seu livro intitulado “A escola capitalista na América” ressaltam, de acordo com Silva (2009, p. 33) que, A escola contribui para esse processo não propriamente através do conteúdo explícito de seu currículo, mas ao espalhar, no seu funcionamento, as relações sociais do local de trabalho. As escolas dirigidas aos trabalhadores subordinados tendem a privilegiar relações sociais nas quais, ao praticar papéis subordinados, os estudantes aprendem a subordinação. Em contraste, as escolas dirigidas aos trabalhadores dos escalões superiores da escala ocupacional tendem a favorecer relações sociais nas quais os estudantes têm a oportunidade de praticar atitudes de comando e autonomia. Nessa mesma crítica a cultura capitalista escolar, Bourdieu e Passeron (afastando-se das análises marxistas), propuseram um novo olhar acerca da reprodução social. Para os autores, a reprodução social ocorre por intermédio da cultura, pois é precisamente por meio da cultura dominante que ocorre o processo de homogeneização social, ou seja, os hábitos, valores, gostos e costumes das classes dominantes passam a ser considerados como sendo “cultura”, assim desprezam-se os hábitos, valores, gostos e costumes das classes dominadas. Esse processo para Silva (2009, p. 35), ocorre de maneira que [...] a escola não atua pela inculcação da cultura dominante às crianças e jovens das classes dominantes, mas, ao contrário, por um mecanismo que acaba por funcionar como mecanismo de exclusão. O currículo da escola está baseado na cultura dominante: ele se expressa na linguagem dominante, ele é transmitido através do código cultural dominante. As crianças das classes dominantes podem facilmente compreender esse código, pois durante toda sua vida elas estiveram imersas, o tempo todo, nesse código [...]. Em contraste, para as crianças e jovens das classes dominadas, esse código é simplesmente indecifrável. A educação atua dessa forma como sendo a responsável pela exclusão social, eliminando do processo aqueles que não conseguem compreender a linguagem e os processos culturais das classes dominantes. Essas análises da reprodução dominantes versus dominadas, proporcionadas pela cultura, trouxe o advento de outra concepção acerca do currículo, essa concepção ficou conhecida como “o movimento de reconceptualização”. Para os reconceptualistas, o currículo não poderia ser compreendido de forma burocrática e mecânica como queriam Bobbitt e Tyler. Estratégias como a hermenêutica e a 2802 fenomenologia serviram como ferramentas para explicar a importância da experiência cotidiana, pessoal e subjetiva na produção de significados sobre o conhecimento. Sobre essas estratégias utilizadas pelos reconceptualistas, Silva (2009, p. 37) esclarece que [...] do ponto de vista da fenomenologia, as categorias de aprendizagem, objetivos, medição e avaliação nada tinham a ver com os significados do “mundo da vida” através dos quais as pessoas constroem e percebem sua experiência. De acordo com a perspectiva fenomenológica, essas categorias tinham que ser “postas entre parênteses”, questionadas, para se chegar à “essência” da educação e do currículo. Nessa perspectiva, segundo Eyng (2015, p. 139) “nos pressupostos da fenomenologia, temos uma importante virada. ‘os conceitos centrais desse enfoque são a intersubjetividade, o motivo e a razão dos sujeitos’ (Leite, 2006, p. 488)”. Apesar de ter como objetivo primário incluir tanto a vertente fenomenológica como a vertente marxista, o movimento do reconceptualismo não teve muito sucesso nessa junção, pois os intelectuais marxistas não se identificaram com o aspecto subjetivo da teoria fenomenológica. Pensadores marxistas (como é o caso de Michel Whitman Apple), criticaram duramente a definição de que a escola era simplesmente uma transmissora de conhecimentos, que eram determinados por valores e conceitos capitalistas, e questionava de forma incisiva o papel do professor nesse processo. Eyng (2015, p.140) evidencia que, A abordagem crítico-marxista assume pressupostos epistemológicos da dialética, que considera o homem em sua historicidade e capacidade de influir e transformar as circunstâncias da realidade: “o conhecimento, em sua condição dialética, se produza partir da compreensão do mundo social, onde coexistem a negação e a contradição e as manifestações da consciência dos sujeitos como produto de seu ser social” (LEITE, 2006, p. 488). Caminhando nessa perspectiva crítica, outros pensadores surgiram com críticas e propostas acerca do papel da escola e da educação. Nessa linha crítica, Paulo Freire (que apesar de não ter elaborado uma teoria sobre currículo) discutiu essa questão em suas pesquisas, principalmente em “Pedagogia do Oprimido” onde propõe um novo conceito sobre educação, propõe a educação como problematizadora da realidade. Na Inglaterra Michael Young (1915-2002), propôs baseado na sociologia, uma análise do fracasso escolar de crianças das classes operárias, colocando em questão o conceito de poder e sua distribuição e como esse se relacionava com a escolha curricular de certas disciplinas por exemplo. 2803 Basil Bernstein (1924-2000), seguindo a linha sociológica de Yong, evoca a preocupação do conteúdo nos currículos, como ele está estruturalmente organizado e sua contribuição na apreensão dos códigos de classes. Essa compreensão elaborada por Bernstein vai culminar no que posteriormente foi comumente denominado de currículo oculto. Currículo Oculto Apesar de não se constituir em uma teoria propriamente dita, o currículo oculto está presente de forma marcante no cotidiano dos processos educativos. Segundo Silva (2009, p. 78) “o currículo oculto é constituído por aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazerem parte do currículo oficial, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes”, ou seja, o currículo oculto é caracterizado pelas ações implícitas que permeiam as instituições escolares. Essas ações estão presentes, não de forma planejada, ou organizadas no currículo e é nesse sentido que Sacristán (2000, p. 43) comenta que, As experiências na educação escolarizada e seus efeitos são, algumas vezes, desejadas e outras, incontroladas; obedecem a objetivos explícitos ou são expressões de proposição ou objetivos implícitos; são planejados em alguma medida ou são fruto de simples fluir da ação. Algumas são positivas em relação a uma determinada filosofia e projeto educativo e outras nem tanto ou completamente contrárias. De acordo com as teorias críticas do currículo, é o currículo oculto que “ensina, em geral, o conformismo, a obediência, o individualismo” (SILVA, 2009, p. 78) e que mantêm a ideologia dominante. Nessa perspectiva, podemos analisar os elementos que contribuem para essa prática, principalmente, quando evocamos no cotidiano escolar as relações de gênero, os rituais, as regras e regulamentos, a meritocratização entre “os mais aptos” e “os menos” capazes por exemplo. Libâneo (2012, p. 44), comentando acerca da influência que o currículo oculto exerce na educação sugere que, “embora recôndito, atua de forma poderosa nos modos de funcionar das escolas e na prática dos professores. Tanto isso é verdade, que os mesmos professores tendem a agir de forma diferente em cada escola em que trabalham”. Por essa razão, é necessário “desocultar” o currículo, para assim compreender o que esses conhecimentos e práticas sugerem, para só assim “assegurarmos a escola como espaço e garantia do direito à qualidade social” (EYNG, 2013, p. 32). 2804 Teorias Pós-Críticas As teorias do currículo que vieram após as teorias críticas, iniciadas na década de 1960 e 1970, são denominadas de “Teorias Pós-Críticas”. As teorias pós-críticas trazem em seu âmago uma concepção do currículo como sendo um currículo multiculturalista, e evidenciam as inúmeras diversidades presentes no mundo hodierno. Eyng (2015, p. 138) destaca que, As teorias pós-críticas operam os conceitos fundamentais de: “identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo” (SILVA, 2007, p. 17). Nessa linha de teorização, os currículos atuam como práticas de subjetivação, de significação e discurso produzidos nas relações de saber-poder, sendo os currículos entendidos como formas de seleção e representação da cultura, compreendendo demandas das questões de gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo. Os currículos produzem identidades heterogêneas e diversas, que num processo dialógico e ético possibilitam a emancipação a partir da cidadania ativa (EYNG, 2010, p. 37). Como apontado por Eyng (2015), o multiculturalismo aparece como uma forma de reação ao currículo hegemônico, que privilegia a cultura branca, europeia, machista e heteronormativa2, ou seja, a cultura da classe dominante. Para Silva (2009, p. 85), “o multiculturalismo é um movimento legítimo de reivindicação dos grupos culturais dominados [...] para terem suas formas culturais reconhecidas e representadas na cultura nacional”. Esse movimento de análise e luta por um currículo mais abrangente à realidade do mundo contemporâneo, fez surgir duas perspectivas de resistência: 1) a liberal ou humanista do multiculturalismo e 2) a perspectiva crítica que se divide em duas vertentes que possuem características das correntes filosóficas materialistas e pós-estruturalistas. Na linha da perspectiva liberal (ou humanista) valores como a tolerância, o respeito e a convivência harmoniosa entre as diferentes culturas são exaltados, “deve-se tolerar e respeitar a diferença porque sob a aparente diferença há uma mesma humanidade” (SILVA 2009, p. 86). No currículo crítico multiculturalista, Silva (2009, p. 89) ressalta que 2 “Por heteronormatividade, entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família (esquema pai-mãe-filho (a)(s)). Na esteira das implicações da aludida palavra, tem-se o heterossexismo compulsório, sendo que, por esse último termo, entende-se o imperativo inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às práticas heterossexuais” (FOSTER, 2001, p. 19). 2805 [...] a diferença, mais do que tolerada ou respeitada, é colocada permanentemente em questão [...]. Em termos curriculares, o multiculturalismo, nessa visão, pretende substituir o estudo das obras consideradas como de excelência da produção intelectual ocidental pelas obras consideradas intelectualmente inferiores produzidas por representantes das chamadas “minorias” – negros, mulheres, homossexuais. Com essa reflexão apontada por Silva (2009), as discussões acerca das relações de gênero e sexo começaram a ganhar espaço nesses embates teóricos. O advento dos estudos feministas, principalmente elaborados pelas teóricas estadunidenses e anglo-saxãs, contribuíram para que o predomínio da cultural patriarcal, na qual existe uma profunda desigualdade entre mulheres e homens, fosse questionado. No início essa problemática estava ligada a questão do acesso, ou seja, o acesso à educação era desigual para homens e mulheres, e dentro do próprio currículo, havia distinções entre as disciplinas que eram consideradas masculinas e as disciplinas que eram tidas como femininas. Com essas distinções, algumas profissões eram de exclusividades dos homens não oportunizando de igual maneira as mulheres. Por isso, a pedagogia feminista insistia que, O currículo existente é também claramente masculino. Ele é a expressão da cosmovisão masculina. O currículo oficial valoriza a separação entre sujeito e conhecimento, o domínio e o controle, a racionalidade e a lógica, a ciência e a técnica,o individualismo e a competição. Todas essas características refletem as experiências e os interesses masculinos, desvalorizando, em troca, as estreitas conexões entre quem conhece e o que é conhecido, a importância das ligações pessoais, a intuição e o pensamento divergente, as artes e a estética, o comunitarismo e a cooperação – características que estão, todas, ligadas às experiências das mulheres (SILVA, 2009, p. 94). Com essas questões vindas à tona pelo movimento feminista, outras questões começaram a surgir. As questões raciais e étnicas, as questões da diversidade sexual, a teoria queer, e a diversidade em geral, também ganharam forças e começaram a aparecer nas teorias pós-críticas do currículo. Para esses movimentos pós-crítico, o currículo, necessariamente, precisa conceber a diversidade como sendo fruto de questões históricas e políticas. O currículo deve ter um papel primordial na desconstrução do texto considerado como oficial, questionando os valores tidos como certos, incluindo e valorizando os valores de todos os grupos sociais, sem distinções. Pois, como salienta Gomes (2008, p. 18), 2806 A diversidade é um componente do desenvolvimento biológico e cultural da humanidade. Ela se faz presente na produção de práticas, saberes, valores, linguagens, técnicas artísticas, científicas, representações do mundo, experiências de sociabilidade e de aprendizagem. Todavia, há uma tensão nesse processo. Por mais que a diversidade seja um elemento constitutivo do processo de humanização, há uma tendência nas culturas, de um modo geral, de ressaltar como positivos e melhores os valores que lhe são próprios, gerando um certo estranhamento e, até mesmo, uma rejeição em relação ao diferente. É o que chamamos de etnocentrismo. Esse fenômeno, quando exacerbado, pode se transformar em práticas xenófobas (aversão ou ódio ao estrangeiro) e em racismo (crença na existência da superioridade e inferioridade racial). Considerações Finais Considerando as teorias apresentadas no presente texto, compreendemos o significado político que o currículo possui, e que em nenhuma hipótese ele pode ser apresentado como neutro. O currículo assume um caráter predominantemente político, e isso porque o currículo “[...] estabelece e dá sentido ao compromisso com a formação do cidadão e da pessoa humana para um tipo de sociedade; porque revela a intencionalidade da formação e os compromissos deste profissional com um tipo de sociedade” (SILVA, 2000, p. 38). Como apresentado no presente trabalho, no decorrer dos panoramas históricos do ensino à luz das perspectivas curriculares, percebemos que as ações pedagógicas e o ensino foram determinados pelas diferentes condições sociais, econômicas e culturais. Após a análise dos aspectos históricos das teorias do currículo, podemos indagar e observar como as relações de poder interferem na constituição do currículo escolar, e se esse currículo acolhe ou exclui quem dele participa. E nesse interim, concordamos com Fernandes e Freitas (2008, p. 22) quando comentam que, a escola precisa refletir, como parte de sua concepção de educação se o seu currículo favorece “à exclusão que ela pode realizar, caso afaste os estudantes da cultura, do conhecimento escolar e da própria escola, pela indução da evasão por meio de reprovação” ou a inclusão por meio de um currículo que valorize a emancipação do aluno e sua subjetividade. Não estamos advogando que a tarefa de desconstrução de currículos, que perpetuam uma visão homogênea de mundo, seja uma tarefa fácil e simplória. Ao contrário, sabemos que [...] a capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gosta dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. A incapacidade de enfrentar a pluralidade de seres humanos e a ambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, se perpetuam e reforçam: quanto mais eficazes as tendências a 2807 homogeneidades e o esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera (BAUMAN, 2001, p. 123). Por isso, a compreensão das teorias sobre currículo se fazem importantes e necessárias, pois é por intermédio dessa compreensão que poderemos perceber quais são os valores e hábitos que nossos currículos induzem, e somente a partir dessa reflexão poderemos elaborar currículos verdadeiramente inclusivos. 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