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LIÇÕESDEFILOSOFIA 10.° ANO AIRES ALMEIDA CÉLIA TEIXEIRA DESIDÉRIO MURCHO LIÇÕESDEFILOSOFIA | 10.° ANO AIRES ALM EIDA | CÉLIA TEIXEIRA | DESIDÉRIO M URCHO M AN UA LD OP RO FE SS OR www.didacticaeditora.pt Preço: 25,50 € Inclui IVA à taxa de 6%Oferta Materiais complementares: CADERNO DO ESTUDANTE (oferta ao aluno) LIVRO DE APOIO (oferta ao professor) MANUAL DIGITAL (oferta ao professor) Porquê um manual organizado por lições? Em pri meiro lugar, porque é precisamente para isso que serve um manual escolar: para lecionar. Essa foi uma das razões que nos levou a optar pela estrutura que melhor pode servir os professores na sua tarefa de ensinar. Em segundo lugar, porque um manual ser ve também para os alunos aprenderem e estuda- rem. Um manual organizado por lições facilita igualmente o estudo e a aprendizagem dos alunos. Os professores dispõem, assim, de um manual estruturado em função das suas necessidades concretas, com a planificação das aulas facilitada no que diz respeito às matérias a lecionar, à sua distribuição temporal e aos recursos a utilizar. Quanto aos alunos, dispõem de um guia simples de apoio às aulas, com as matérias arrumadas de acordo com elas, per- mitindo-lhes encontrar facilmente o que procuram. E porquê 50 lições? Este não foi um número encontrado ao acaso. Na verdade, é o número de lições (de 90 minutos) indicado no programa da disciplina. Assim, o professor tem a garantia de que, ao seguir as li- ções do manual, estará a cumprir integralmente o programa da disci- plina, obedecendo também à distribuição de horas indicada para cada tema. É certo que o programa tem algumas opções que nem todos os professores lecionam, mas isso apenas contribui para deixar espaço para cada professor usar como bem entender: promovendo o debate nas aulas, recorrendo a textos, a filmes ou a outras estratégias. Capítulo 10 Religião, Razão e Fé Lição 37 | Fideísmo: fé sem provas Lição 38 | A prova do desígnio Lição 39 | A prova cosmológica Lição 40 | A prova ontológica Lição 41 | Críticas à perspetiva religiosa A dimensão religiosa4 Opção B 178 Percurso do capítulo 10 Prova cosmológica. Prova do desígnio. Prova ontológica. Ónus da prova. Problema do mal. Fideísmo: fé sem provas. Provas da existência de Deus. Mal moral. Mal natural. Deus existe? Sim. Não. 1 O professor pode desejar esclarecer as propriedades da divindade teísta, apre- sentadas mais à frente na caixa da pág.181. Contu - do, o capítulo está escrito sem pressupor que só está em causa a divindade teís - ta. 2 O professor pode desejar discutir brevemente com os alunos o próprio con- ceito de fé. 3 O professor pode recorrer ao filme Contacto, de Ro- bert Zemeckis. Na parte final, a protagonista acre- dita em algo devido à ex- periência que teve, mas é incapaz de o provar. 4 O termo «fideísmo» deriva do termo latino «fides», que significa fé. 5 O professor pode tornar ví- vida a ideia de uma vida re ligiosa usando o filme Ba - raka, de Ron Fricke. Espaço do Professor CapítuloReligião, Razão e Fé 10 179 Lição 37 Fideísmo: fé sem provas Sem risco não há fé. A fé é precisamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade do indivíduo e a incerteza objetiva. Se eu for capaz de apreender Deus objetivamente, não acredito; mas precisamente porque não posso fazer isto, tenho de acreditar. Søren Kierkegaard Considere-se a questão de saber se há ou não oxigénio na atmosfera de Marte. Isto é algo que estabelecemos observando, fazendo experiências científicas e racioci- nando com base nelas. Caso não tenhamos provas suficientes, suspendemos o juízo, ou seja, nem acreditamos que há nem que não há oxigénio na atmosfera de Marte. Será que devemos fazer o mesmo quanto à existência de Deus? Devemos nós sus- pender o juízo quanto à sua existência, a menos que tenhamos provas? Há quem pense que não. Estas pessoas pensam que a existência de Deus1 é uma questão de fé2. Não se trata de decidir com base em provas e argumentos, mas antes de ter fé. Será razoável ter fé na existência de Deus na ausência de provas?3 Fideísmo Alguns filósofos consideram que os métodos comuns de justificação, por meio de provas e argumentos, são inadequados para justificar a fé na existência de Deus; ape- sar disso, consideram legítimo ter fé em Deus. A esta teoria chama-se fideísmo.4 Deste ponto de vista, a falta de boas razões para pensar que Deus existe não é uma boa ra- zão para deixar de ter fé. Considere-se o que acontece se tentarmos ouvir as cores. Como é evidente, a au- dição não é um meio adequado para detetar cores. Contudo, isso não significa que devemos abandonar a nossa crença nas cores; significa apenas que o sentido da au- dição é inadequado para as detetar. Do mesmo modo, o fideísta pensa que os méto- dos comuns de justificação são inadequados para detetar Deus. Isto porque Deus é uma entidade sobrenatural. Só a fé nos pode pôr em contacto com Deus; os métodos comuns de justificação não podem fazer tal coisa. O argumento da fé O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) foi um dos mais importantes defensores do fideísmo. Kierkegaard defendeu que é inadequado exigir provas e ar- gumentos a favor da existência de Deus porque, ao fazê-lo, estamos a eliminar o que há de especial na vida religiosa, que se funda na fé; ora, do seu ponto de vista, a fé é incompatível com provas e argumentos.5 1 É possível ter fé em Deus, mesmo que tenhamos pro- vas inequívocas da sua exis - tência, mas no sentido de ter confiança em Deus: con - fiar que ele não nos en- gana, nos ajuda, etc. Mas ter fé em Deus, no sentido da confiança, é diferente de ter fé de que Deus existe. 2 O problema de saber se é correto crer sem provas é desenvolvido no Capítulo 11. 3 Pascal explicitamente rejei - ta a suspensão da cren ça como uma terceira al ter - nativa viável, mas não jus- tifica adequadamente esta rejeição. Quem o faz de maneira mais plausível é William James. Veja-se o Capítulo 11. 4 Veja-se o Texto 36. Espaço do Professor PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 180 Imagine-se, por exemplo, que Deus se revelava de maneira inequívoca, ou que tí- nhamos razões inequívocas para pensar que existe. Seria possível continuar a ter fé em Deus? O fideísta responde que não. A fé religiosa é precisamente uma crença numa divindade quando não há boas razões para acreditar na sua existência; quando há boas razões para acreditar na sua existência, não só não é preciso ter, como não é se- quer possível tê-la.1 Objeção ao argumento da fé Aceitemos que faz parte da natureza da fé crer sem provas. O que queríamos saber era se é correto crer sem provas. Agora, imagine-se que não é correto crer sem provas. Nesse caso, isso significa que não é correto ter fé. Defender que é correto crer sem provas porque essa é a natureza da fé seria como defender que é correto enganar os outros porque essa é a natureza da mentira. Se não for correto enganar os outros, não é correto mentir; se não for correto crer sem provas, não é correto ter fé. Assim, a ob- jeção é que o argumento em defesa da crença sem provas é circular.2 A aposta de Pascal O matemático, físico e filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) usou um argu- mento que se tornou célebre, hoje denominado «aposta de Pascal». O argumento é o seguinte: aceitemos que não conseguimos provar que Deus existe, nem que não existe. Os vários argumentos a favor da existência de Deus não são bons, mas também não temos argumentos bons a favor da inexistência de Deus. Aceitando que há um empate da razão quanto à existência de Deus, o que será melhor fazer? Acre di tar ou não?3 Pascal defendia que temos uma boa razão para acreditar em Deus, nessa circuns- tância. Pois, se considerarmos todas as alternativas, vemos que temos tudo a ganhar se Deus existir e formos crentes, ao passo que nada perdemos de importante se for- mos crentes e Deus não existir. Por outro lado, se não acreditarmos e Deus realmente não existir, nada ganhamos de importante; mas temos tudo a perder se nãoacreditar- mos e Deus afinal existir. Logo, o mais razoável a fazer é acreditar em Deus.4 Deus existe Deus não existe Somos crentes Não somos crentes Tudo a ganhar. Tudo a perder. Nada a perder. Nada a ganhar. 1 Além disso, se Deus casti- gasse os descrentes hones - tos, não seria sumamente bom. 2 O professor pode explorar outras objeções com os alunos; por exemplo: tal- vez Deus castigue pessoas calculistas, que acreditam na sua existência só por- que fazem um cálculo do que têm mais a ganhar. Espaço do Professor CapítuloReligião, Razão e Fé 10 181 Objeção à aposta de Pascal Uma objeção à aposta de Pascal é que o argumento pressupõe que se Deus existir e não formos crentes, temos tudo a perder. Mas como sabe Pascal que isto é verda- deiro? Talvez, pelo contrário, Deus castigue as pessoas crédulas, que acreditam nele sem provas, e recompense as pessoas cuidadosas, que, na ausência de provas, não acreditam. Afinal, Deus é bondoso e não vingativo;1 por isso, não irá castigar quem não acreditar em Deus, desde que sejam boas pessoas. Assim sendo, é falso que te- nhamos tudo a perder se não acreditarmos em Deus.2 Revisão 1. O que é o fideísmo? 2. Apresente uma objeção ao argumento fideísta. 3. Formule o argumento da aposta de Pascal. Discussão 4. Será inadequado ter fé em Deus na ausência de provas? Porquê? A divindade teísta Ao longo da história da humanidade, muitas foram as divindades a que os seres hu- manos prestaram culto. As divindades da antiguidade egípcia eram diferentes das di- vindades da antiguidade grega e romana, que por sua vez eram diferentes das divinda- des chinesas e indianas. Todas estas religiões eram politeístas porque prestavam culto a várias divindades. Nas religiões monoteístas presta-se culto a uma só divindade. É o caso do cristia- nismo, do judaísmo e do islamismo. Chama-se «teísmo» à religião monoteísta que atri- bui a Deus cinco caraterísticas, entre outras: omnipotência, omnisciência, suma bon- dade, ser criador do universo e ser uma pessoa. A omnipotência é a capacidade para fazer tudo o que é logicamente possível fazer. A omnisciência é a capacidade para saber tudo o que é logicamente possível saber. A suma bondade é a perfeição moral: Deus só faz o que é correto fazer e faz tudo o que é correto fazer. Ser criador do universo significa que Deus criou o universo físico em que nos encontramos. E ser uma pessoa significa que Deus não é uma força da natu- reza, mas antes um ser capaz de agir, como nós. 1 Em contraste, o argumen to cosmológico baseia-se, não na ordem do universo, mas na sua existência. 2 Também conhecido como «argumento teleológico». 3 Outro exemplo é dado por Paley, imaginando que al- guém descobre um reló- gio numa praia deserta. 4 Recorrendo a documentá- rios científicos, o professor poderá apresentar vários outros exemplos aos alu- nos, dependendo do con- texto de turma. 5 Talvez se justifique o pro- fessor esclarecer os alunos que um artefacto é um ob- jeto criado ou produzido por alguém (por contraste com coisas naturais, como um seixo ou um trovão). Espaço do Professor PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 182 Lição 38 A prova do desígnio Quando nos damos conta do ímpeto e incrível velocidade do movimento dos céus, completando com absoluta regularidade as suas mudanças anuais e preservando toda a criação em perfeita segurança, hesitaremos em reconhecer que isto é o resultado, não apenas da racionalidade, mas de uma racionalidade eminente e divina? Cícero Tudo no universo está cuidadosamente organizado, harmonizando-se cada parte numa totalidade complexa. Há quem considere que Deus existe porque de outro modo não poderíamos explicar esta ordem.1 Esta é a base do argumento do desígnio.2 Será a ordem que observamos no universo uma boa razão para pensar que Deus existe? A versão da semelhança Imaginemos que descobrimos em Marte um objeto estranho. Quando o estudamos com cuidado, descobrimos que é muito semelhante aos nossos telemóveis. Tem várias partes interligadas entre si, permitindo fazer ligações telefónicas. Qual é a nossa con- clusão? Que está ali uma marca da presença de seres inteligentes, mesmo que nunca os tenhamos visto. Porquê? Porque esse objeto só pode ter sido criado por seres in- teligentes. Mas, de novo, porquê? Porque todos os outros objetos semelhantes a esse de que temos conhecimento nunca surgiram espontaneamente: foram sempre criados por nós. Nunca vimos surgir espontaneamente um telemóvel, nem qualquer outro objeto semelhante a um telemóvel.3 Ora, o universo também é feito de partes incrivelmente complexas, interligadas en- tre si. Por exemplo, o Sol permite a existência de vida na Terra. As plantas permitem a existência de animais herbívoros. Os herbívoros permitem a existência dos predado- res e assim por diante. E, mesmo quando observamos as partes que constituem um certo animal, podemos ver que estão organizadas de tal modo que possibilitam uma determinada função. Por exemplo, cada uma das partes que constituem os nossos olhos está organizada de tal modo que permitem a visão.4 O que isto significa é que o universo é semelhante a um artefacto:5 ambos são constituídos por muitas partes interligadas entre si, que permitem várias funções. Ora, se no caso do telemóvel concluímos que foi criado por seres inteligentes, devemos concluir o mesmo relativamente ao universo: também este foi criado por um ser inte- ligente. Esse ser inteligente é Deus. 1 Veja-se o Texto 38. 2 O professor pode estimu- lar os alunos a ler o roman - ce de Eça de Queirós, que conta no último capítulo com uma breve discussão sobre o fatalismo, relaciona - do com a discussão do de - terminismo do Capítulo 2. 3 Outro exemplo bom para estudantes é o de um bebé de seis meses que se senta ao computador e, ao brin- car com as teclas, escreve o romance todo de Eça de Queirós. 4 Veja-se o Texto 37. Espaço do Professor CapítuloReligião, Razão e Fé 10 183 Objeção à versão da semelhança Imaginemos que descobrimos outro objeto em Marte. Mas é de tal modo estranho, que não sabemos o que é, nem para que serve, se é que serve para alguma coisa. Vemos que é muito complexo, com várias partes interligadas entre si, mas é total- mente diferente de qualquer artefacto ou objeto natural que nós conheçamos. O que concluímos, neste caso? Que o objeto foi feito por seres inteligentes? Não. Ficamos sem saber se o objeto surgiu naturalmente, ou se foi feito por seres inteligentes. Isto porque não conhecemos outros objetos semelhantes. O mesmo acontece no caso do universo: é uma coisa única. Por isso, nada podemos concluir a partir da sua comple- xidade. Assim, uma objeção ao argumento anterior é que há uma diferença muito impor- tante entre os artefactos e o universo. No que respeita aos primeiros, a nossa conclu- são é correta porque já vimos vários; e, em todos esses casos, os artefactos foram fei- tos por seres inteligentes. No caso do universo, contudo, não vimos vários. Só vimos um universo. Por isso, não sabemos se foi ou não feito por seres inteligentes.1 A versão da ordem Imaginemos que estamos a olhar a formação das nuvens, num dia de verão glo- rioso. De repente, damo-nos conta de que as nuvens estão a formar letras no céu. A pouco e pouco, começamos a ler: «A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, por casa do Ramalhete ou simplesmente o Rama - lhete.»2 Ficamos muito surpreendidos. Esta é a primeira frase do romance Os Maias, de Eça de Queirós. Depois dessa frase, as nuvens formam a segunda frase do romance… e depois disso a terceira, e assim por diante sem parar, acabando por escrever todo o romance de Eça de Queirós, sem errar.3 Será este estranho fenómeno fruto do acaso? A resposta é que isso nos parece in- crivelmente improvável; tão improvável que é quase impossível. Seria uma coincidên- cia inacreditável. O que suspeitamos é que algum cientista está a fazer experiências com tecnologiasque desconhecemos. Dificilmente acreditamos que é um mero acaso. Contudo, o universo, e nós mesmos e os nossos corpos, somos ainda mais complexos do que Os Maias. Assim, uma versão do argumento do desígnio é a se- guinte: Se Deus não existe, o acaso é responsável pela ordem que observamos no uni- verso. Mas o acaso não pode ser responsável por tal ordem, tal como as nuvens não podem escrever por mero acaso Os Maias. Logo, Deus existe.4 1 Recorrendo a documentá- rios científicos, o professor pode mostrar vários exem- plos destes fenómenos no mundo natural. 2 Veja-se o Texto 38. Espaço do Professor PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 184 Objeção à versão da ordem Imaginemos que temos vários organismos num dado meio. Estes organismos ali- mentam-se e reproduzem-se. Por mero acaso, alguns nascem com uma cor esver- deada. Com essa cor, escapam mais facilmente aos predadores, escondendo-se en- tre a folhagem. Com o tempo, deixam mais descendentes esverdeados do que os outros, que morrem mais cedo devido aos predadores e por isso deixam menos des- cendentes. Depois de muito tempo, todos os descendentes daqueles organismos são verdes.1 Quando olhamos para os organismos, vemos uma ordem: os organismos são verdes para melhor escaparem aos predadores. Por isso, parece-nos que esta ordem não pode ser natural; alguém teve de a conceber e criar. Mas isso não aconteceu. Pro cessos puramente naturais e do acaso dão, ao longo de um lento processo de adaptação e ajustes sucessivos, origem à ordem. Esta é a base da teoria da evolução, de Charles Darwin (1809-1882). Esta teoria prova que em muitos casos a ordem tem origem no mero acaso.2 Assim, esta objeção põe em causa a segunda premissa do argumento do desígnio anterior, mostrando que o acaso é muitas vezes responsável pela ordem. Revisão 1. Formule a versão da semelhança do argumento do desígnio. 2. Formule a versão da ordem do argumento do desígnio. Discussão 3. Concorda com o argumento do desígnio? Porquê? 1 Os argumentos cosmoló- gicos baseiam-se na ideia de que a existência do uni- verso só pode ser expli- cada recorrendo a outra entidade, como Deus. 2 A lógica de predicados per - mite mostrar que este ar- gumento é uma falácia: da inversão dos quantificado- res. 3 O professor pode desafiar os alunos a encontrarem exem plos de acontecimen- tos ou coisas cuja existên- cia não tenha uma causa. As entidades abstratas, co - mo os números e os triângu- los, não parecem ter causa. 4 O professor pode explorar com os alunos várias ca- deias causais que condu- zem ao Big Bang, com a ajuda de documentários científicos. Espaço do Professor CapítuloReligião, Razão e Fé 10 185 Lição 39 A prova cosmológica Por mais que recuemos nos estados anteriores [do mundo], nunca encontraremos neles uma razão completa de por que existe mundo em vez de nada. […] Essa razão temos de a procurar fora do mundo. G. W. Leibniz De onde veio o mundo? Como começou a existir? Por que há mundo, em vez de nada? Há quem considere que Deus existe porque de outro modo não conseguimos explicar a existência do mundo. Haverá algo de errado nesta maneira de pensar? Versão da causa primeira A primeira versão do argumento cosmológico1 que iremos discutir parte da ideia de que se todas as coisas têm uma causa, então há uma causa para todas as coisas.2 Essa causa é Deus. Se olharmos à nossa volta, verificamos que tudo o que acontece e tudo o que existe tem sempre alguma causa. Por exemplo, a causa da nossa existência foram os nossos pais; e a causa da existência dos nossos pais foram os pais deles. A causa do planeta Terra foram vários acontecimentos anteriores que incluíam o nosso Sol. E a causa do nosso Sol foram vários outros acontecimentos anteriores. Na verdade, fica- ríamos muito surpreendidos se encontrássemos uma coisa qualquer ou um aconteci- mento que não tivesse uma causa.3 Quando continuamos a recuar, procurando as causas das coisas, chegamos ao Big Bang: o início do universo.4 Contudo, também o Big Bang tem uma causa, se aceita- mos que tudo tem uma causa. Essa causa é Deus. O argumento é então o seguinte: Tudo tem uma causa. Logo, o universo tem uma causa, que é Deus. Objeção à versão da causa primeira A principal objeção é que a conclusão contradiz a premissa do argumento. A pre- missa do argumento é que tudo tem uma causa. Com base nesta premissa, conclui-se que Deus é a causa do universo. Contudo, qual é a causa de Deus? A ideia é que Deus não tem causa alguma. Nesse caso, porém, a conclusão contradiz a premissa, que afir- mava que tudo tem uma causa. Por isso, este argumento é incoerente. dmurcho dmurcho dmurcho dmurcho dmurcho dmurcho 1 O argumento é original - men te apresentado por Lei bniz em termos de ra- zões suficientes e das no- ções de existente contin- gente e existente necessá- rio. A versão aqui apresen- tada é uma simplificação didática. Veja-se o Texto 39. 2 O professor pode organi- zar uma discussão de cada uma das hipóteses. 3 A ideia é que o Big Bang é um acontecimento contin- gente, e não necessário, ao passo que Deus é um exis- tente necessário. 4 Uma vez mais, a ideia é a de que a sequência existe con tin gentemente, e não necessariamente, ao passo que Deus existe necessaria - men te. 5 O argumento é dedutiva- mente válido. Espaço do Professor PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 186 Versão da sequência de causas A segunda versão do argumento cosmológico começa com esta pergunta simples: por que há algo em vez de nada?1 Por exemplo, por que existe a Joana, em vez de não existir? A resposta óbvia é que ela existe porque os pais dela a conceberam. Caso os pais dela não a tivessem concebido, ela não existiria. Mas isto significa que temos de perguntar agora por que existem os pais dela. E a resposta óbvia é que eles exis- tem devido aos pais deles. E assim por diante. Ora, ou esta sequência de seres responsáveis pela existência dos outros para num dado ponto ou continua para sempre. Vamos explorar estas duas hipóteses, uma de cada vez.2 Imaginemos então que a sequência de seres responsáveis pela existência dos ou- tros para num dado ponto. Que ponto poderá ser esse? Imaginemos que é o Big Bang. Poderá o Big Bang explicar por que existe a Joana? Não. Isto porque o Big Bang aconteceu, mas poderia não ter acontecido. Temos de supor que foi Deus quem criou o Big Bang, sendo responsável pela existência da Joana e de tudo o resto.3 Exploremos agora a segunda hipótese: a sequência de seres responsáveis pelos outros continua para sempre. Neste caso, conseguimos explicar a existência da Joana? Não. Porque ainda não explicámos por que razão existe essa sequência infinita de seres responsáveis pela existência uns dos outros. Afinal, essa sequência existe, mas poderia não ter existido. Por que razão existe? Uma vez mais, temos de supor que foi Deus quem criou essa sequência infinita de seres, sendo responsável pela existên- cia da Joana e de tudo o resto.4 Assim, o argumento é o seguinte: Ou a sequência de seres para no Big Bang ou continua para sempre. Se para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem o criou. Se não para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem criou essa sequên- cia infinita. Logo, em qualquer dos casos, Deus existe.5 A existência necessária de Deus Uma maneira de defender que a versão da causa primeira não é incoerente é insistir que Deus é causa de si mesmo; deste modo, a conclusão não contradiz a premissa, pois é verdade que tudo tem uma causa, incluindo Deus. Nesse caso, contudo, por que não dizer que o universo é causa de si mesmo? Se o universo puder ser causa de si mesmo, é inválido concluir que Deus existe. O que isto significa é que precisamos de outro argumento a favor da ideia de que o universo não pode ser causa de si mesmo, mas Deus pode sê-lo. Isto dá origem a outra versão do argumento cosmológico, baseada nas noções de existentes necessários e 1 Os desenvolvimentos mais sofisticados do argumento cosmológico respondem pre cisamente a estas obje- ções.2 Veja-se o Texto 40. Espaço do Professor CapítuloReligião, Razão e Fé 10 187 Duas objeções à versão da sequência de causas A primeira objeção a esta versão do argumento cosmológico rejeita a segunda pre- missa. A ideia da segunda premissa é a de que, se a sequência de seres para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem o criou. Mas por que razão temos de supor tal coisa? Talvez, pelo contrário, o Big Bang tenha surgido do nada; ou talvez seja um acontecimento necessário, algo que não poderia deixar de acontecer. A objeção a essa premissa é que pressupõe sem justificação que caso o Big Bang seja a origem de tudo, não há outra maneira de o explicar exceto recorrendo a Deus. Mas parece haver ou- tras maneiras. Logo, a premissa é pelo menos duvidosa.1 A segunda objeção rejeita a terceira premissa. Se a sequência de seres não para no Big Bang, se é infinita, temos mesmo de supor que Deus a criou? Isto pressupõe sem justificação que não há outras maneiras de explicar a sua existência. Con tudo, parece haver outras maneiras. Talvez a sequência seja eterna e seja impossível que não exista. Ou talvez tenha surgido do nada. Assim, a premissa é pelo menos duvidosa.2 Revisão 1. Formule a versão da causa primeira do argumento cosmológico. 2. Formule a versão da sequência de causas do argumento cosmológico. Discussão 3. Concorda com alguma das versões do argumento cosmológico? Porquê? existentes contingentes. Nós somos existentes contingentes, porque poderíamos não ter existido. Para explicar a existência de seres contingentes, como nós, precisamos de uma causa: nós existimos porque os nossos pais nos conceberam. Os seres necessários, contudo, não precisam desse tipo de explicação, precisamente porque não poderiam não ter existido. Assim, se Deus for um existente necessário, é verdade que, num certo sentido, é causa de si mesmo. O que significa que afinal a versão causal do argumento cosmológico não é incoerente. 1 Dos argumentos a favor e contra a existência de Deus, o único que é a priori é o ontológico. Um argumento é a priori quando recorre exclusivamente a premissas a priori, não se apoiando em qualquer informação empírica; um argumento é a posteriori se pelo menos uma das suas premissas é a posteriori, apoiando-se por isso em alguma infor- mação empírica. 2 O nome deste argumento foi dado por Kant; anterior- mente, era conhecido ape- nas como «o argumento de Ansel mo». A ideia de Kant parece ter sido que este argumento é ontológico porque parte da natureza do próprio ser hipotético que é Deus. O argumento cosmológico par te da exis - tência do universo e o ar- gumento do desígnio da ordem patente no univer - so. 3 Veja-se o Texto 41. 4 O termo de Anselmo é ape- nas «maior», mas o argu- mento torna-se mais com- preensível usando o con- ceito de grandiosidade; daí que mais tarde outros filósofos tenham usado o conceito de perfeição, nou- tras versões do argumento ontológico. Espaço do Professor PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 188 Lição 40 A prova ontológica Se aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado existisse apenas no espírito, este mesmo ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado seria algo mais grandioso do que o qual algo pode ser pensado. Mas isto é obviamente impossível. Logo, não há qualquer dúvida de que aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado existe tanto no espírito como na realidade. Santo Anselmo Não será contraditório pensar que Deus não existe? Há quem considere que sim. Se compreendermos bem o conceito de Deus, vemos que a sua inexistência é impos- sível. Do mesmo modo, se compreendemos bem o conceito de triângulo, vemos que é impossível que tenha quatro lados. Afinal, Deus é um ser perfeito. O mais perfeito que pudermos imaginar. Contudo, como poderá o ser mais perfeito que pudermos imaginar não existir? Se não existisse, não seria assim tão perfeito. Haverá algo de errado nesta maneira de pensar? O argumento ontológico1 Um dos argumentos a favor da existência de Deus é o ontológico.2 Este argumento parte do conceito de Deus com o objetivo de estabelecer a sua existência. A primeira versão influente do argumento ontológico, e uma das mais importantes, foi proposta pelo filósofo e teólogo medieval, Santo Anselmo (1033-1109). Ao refletir sobre o conceito de Deus, Santo Anselmo define-o como aquele ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado. Santo Anselmo pergunta-se então se tal ser poderia existir apenas no pensamento. E conclui que não, pois, se exis- tisse apenas no pensamento, poderíamos pensar noutro ser mais grandioso do que ele: um ser grandioso que existisse na realidade e não apenas no pensamento. Logo, Deus existe.3 Há dois aspetos importantes para compreender o argumento. O primeiro é a distinção entre existir no pensamento e existir na realidade. Algo existe no pensamento quando é pensado por nós. Mas algumas das coisas que exis- tem no pensamento não existem na realidade: é o caso do Pai Natal. Outras coisas existem no pensamento e também na realidade: é o caso de Marte. O segundo aspeto importante do argumento ontológico é a ideia de grandiosi- dade.4 Santo Anselmo define Deus como o ser mais grandioso do que o qual nada 1 Do ponto de vista de An- selmo, «Deus existe» é uma verdade necessária, tal como «Os triângulos têm três lados». E Anselmo considerava que só Deus era um existente necessá- rio: todos os outros exis- tentes eram contingentes. 2 Veja-se o Texto 42. Espaço do Professor CapítuloReligião, Razão e Fé 10 189 pode ser pensado. Mas em que sentido é um ser ou um objeto mais grandioso do que outro? Não está em causa a grandeza física, mas antes a superioridade. Por exemplo, qualquer automóvel é fisicamente maior do que um ser humano; mas os seres huma- nos são superiores aos automóveis. Os automóveis, por exemplo, são mais rápidos do que os seres humanos; mas os seres humanos sabem decidir se é melhor ir depressa ou devagar. A ideia de Santo Anselmo é que Deus é um ser de tal modo superior, que é inconcebível que exista outro que seja superior a ele.1 Objeção ao argumento ontológico A primeira pessoa a reagir ao argumento de Santo Anselmo foi o seu contemporâ- neo, o monge Gaunilo de Marmoutier (século XI). Gaunilo defendeu que se o argu- mento de Anselmo fosse bom, poderíamos provar a existência do que nos apetecer. Dado que não podemos provar a existência do que nos apetecer, o argumento onto- lógico não é bom. Por exemplo, se o argumento ontológico fosse bom, poderíamos provar a existên- cia da ilha perfeita. Bastaria definir a ilha perfeita como aquela ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma pode ser pensada. Usando um argumento parecido ao ontoló- gico, concluiríamos que tal ilha existe na realidade, pois se existisse apenas no pensa- mento não seria a ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma pode ser pensada.2 E, claro, podemos multiplicar os exemplos. Podemos definir o amigo mais gran- dioso, o país mais grandioso, o bolo de chocolate mais grandioso e até o manual de filosofia mais grandioso. Mas do facto de definirmos algo como a coisa mais grandiosa não faz essa coisa passar a existir. Do mesmo modo, também não parece correto con- cluir que Deus existe só porque o definimos como o ser mais grandioso. Revisão 1. Formule o argumento ontológico. 2. Formule a crítica ao argumento ontológico. Discussão 3. Concorda com o argumento ontológico? Porquê? 1 Apesar de atribuído a Epi- curo por David Hume e ou- tros autores, trata-se na verdade das palavras de Lactâncio (240-320 d. C.), que as atribui a Epicuro. Não sabemos se as pala- vras são realmente de Epi- curo. 2 Por exemplo, não se infere corretamente que temos boa justificação para crer na inexistência de extrater- restres só porque não te - mos boa justificação para crer que eles existem. 3 O professor pode neste passo recorrer a casos que no momento sejam objeto de discussão pública. 4 Outra questão é se é pos- sível provar proposições ne gativas de existência (por exemplo,que Deus não existe ou que não exis te éter). Espaço do Professor PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 190 Lição 41 Críticas à perspetiva religiosa Ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou pode mas não quer. Se quer mas não pode, é impotente. Se pode, mas não quer, é malévolo. Mas se ele quer e pode, de onde vem então o mal? Epicuro1 Todos os argumentos que estudámos a favor da existência de Deus enfrentam objeções importantes. Além disso, também há objeções poderosas à ideia de que é correto acreditar em Deus sem provas. Talvez possamos concluir que não temos boas justificações para pensar que Deus existe. Nesse caso, teremos boas justificações para pensar que Deus não existe?2 O ónus da prova Um ónus é um custo que temos de pagar. Por exemplo, quando compramos um li- vro, somos nós que arcamos com o ónus de o pagar, e não quem o escreveu. No caso da existência de Deus, quem tem o ónus da prova? Se for o crente, é ele quem tem de apresentar provas; quem não acredita em Deus só tem de mostrar que nenhuma dessas provas é boa. Mas se o descrente tiver o ónus da prova, não lhe basta mostrar que nenhuma das provas da existência de Deus é boa; terá de apresentar boas razões para não acreditar que Deus existe. Compare-se com o que acontece num tribunal. Quando alguém acusa a Joana de ter cometido um crime em Paris no dia 2 de abril de 2013 às 21 horas, ela não tem de provar que é inocente. Tudo o que ela ou o seu advogado de defesa têm de fazer é mostrar que as provas da acusação não são boas.3 Contudo, em alguns casos, ela pode provar a sua inocência: basta apresentar boas provas de que nesse dia e a essa hora estava em Lisboa.4 Do mesmo modo, quem não acredita em Deus talvez não tenha o ónus da prova; mas pode, mesmo assim, argumentar a seu favor. Uma maneira de o fazer baseia-se no problema do mal. 1 Ou seja, sabe tudo o que é logicamente possível saber; isto significa que Deus não sabe o que a Joana fará amanhã, porque, admitin - do que ela tem livre-arbí- trio, é logicamente impos- sível saber o que ela fará amanhã. 2 Ou seja, pode fazer tudo o que é logicamente possí- vel fazer; isto significa que Deus não pode criar seres com livre-arbítrio que nun - ca façam o mal, por exem- plo. 3 Em termos mais rigorosos, é logicamente impossível que Deus crie um mundo no qual não há mal moral e, no entanto, há livre-arbí- trio. Esta ideia é discutível, mas é a base da defesa do li vre-arbítrio. 4 É importante chamar a atenção do aluno para a ideia seguinte: para as nos - sas escolhas serem moral- mente significativas, não podemos ter uma espécie limitada de livre-arbítrio, em que pudéssemos esco- lher só coisas banais e sem muita importância. 5 Veja-se o Texto 43. Espaço do Professor CapítuloReligião, Razão e Fé 10 191 O problema do mal O problema do mal é a ideia de que o mal é incompatível com a existência de Deus. A ideia é que Deus é sumamente bom, e por isso não quer o mal. Além disso, é omnisciente,1 e por isso sabe que existe o mal. Como é também omnipotente,2 pode eliminar o mal. Assim, parece razoável pensar que se Deus existisse, não haveria mal. No entanto, o mal existe: há homicídios, doenças, guerras e roubos. Por isso, pa- rece que podemos concluir que Deus não existe: Se Deus existisse, não existiria mal. Mas o mal existe. Logo, Deus não existe. Dado que o argumento é válido e as premissas parecem verdadeiras, temos de aceitar a conclusão: afinal, Deus não existe. A defesa do livre-arbítrio As guerras, roubos e homicídios são males morais porque resultam das ações hu- manas; os terramotos, doenças e inundações são males naturais porque resultam de acontecimentos naturais. A defesa do livre-arbítrio é uma objeção à primeira premissa do argumento do mal, e aplica-se mais facilmente ao caso do mal moral. A ideia é que Deus é compatível com o mal moral. Porquê? Porque permitir o mal moral é a única maneira3 que Deus tem de possibilitar a existência de outra coisa muito importante: o livre-arbítrio humano. Deste ponto de vista, um mundo com seres dotados de livre-arbítrio, como nós, é melhor do que um mundo sem livre-arbítrio. E isto apesar de todo o mal que fazemos com o livre-arbítrio, pois, se não tivéssemos livre-arbítrio, o bem que fizéssemos não seria tão significativo. A ideia é que criar-nos com livre-arbítrio era a única maneira que Deus tinha de tornar as nossas escolhas moralmente significativas. Por exemplo, se não tivéssemos livre-arbí- trio, não poderíamos escolher entre mentir e dizer a verdade; por isso, não seria moral- mente significativo da nossa parte não mentir.4 Em conclusão, o mal moral existe porque os seres humanos têm livre-arbítrio. Deus não poderia criar seres humanos moralmente significativos a menos que lhes desse li- vre-arbítrio. Mas, a partir do momento em que temos livre-arbítrio, podemos escolher entre o bem e o mal. Infelizmente, muitas pessoas escolhem o mal.5 Fu ng o, d e Bi lly A le xa nd er . 1 Veja-se o Texto 43. Espaço do Professor PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 192 Resposta ao mal natural Imaginemos que não há mal natural. Seria esse mundo realmente melhor do que é? Há filósofos que insistem que não. E porquê? Porque não haveria coragem para en- frentar a morte e a doença, não haveria heroísmo para salvar pessoas inocentes de ter- ramotos e não daríamos o melhor de nós mesmos para curar as doenças. Assim, um mundo com mal natural permite a existência de bens que de outro modo não poderiam existir. Ao permitir o mal natural, Deus está a promover bens im- portantes e significativos que não é possível promover por outros meios. Em conclusão, deste ponto de vista, não há incompatibilidade entre Deus e o mal natural.1 Revisão 1. O que é o ónus da prova? 2. Formule o argumento do mal. 3. Formule as objeções ao argumento do mal. Discussão 4. Pensa que Deus existe? Porquê? CapítuloReligião, Razão e Fé 10 193 Texto 36 A aposta de Pascal Blaise Pascal Consideremos a questão, dizendo «Ou Deus existe, ou não existe». Mas qual das al- ternativas havemos de escolher? A razão nada pode determinar: há um caos infinito que nos divide. Uma moeda que irá sair cara ou coroa é atirada ao ar no ponto extremo desta distância infinita. Qual é a tua aposta? Se te apoias na razão, não podes decidir por nenhuma delas, nem defender qualquer dessas posições. Não acuses por isso de falsidade aqueles que fizeram a sua escolha, pois nada sabes sobre isso. «Não, eu não os culpo pela escolha que fizeram, pois tanto quem escolhe cara como quem escolhe coroa é culpado do mesmo erro, ambos estando errados: o curso correto de ação é não apostar». «Sim, mas temos de apostar. Não és um agente livre; estás ob- rigado a apostar. Qual irás então escolher? Vamos lá: dado que és obrigado a escolher, Estudo complementar Kolak, Daniel e Martin, Raymond (2002) Sabedoria sem Respostas. Trad. Célia Teixeira. Lis - boa: Temas e Debates, 2004, Cap. 6. Uma introdução imaginativa e que faz pensar sobre alguns temas centrais da filosofia da religião. Rowe, William L. (2000) Introdução à Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Lisboa: Verbo, 2011, Caps. 2-4, 6-7. Uma introdução à filosofia da religião muito completa e didá- tica. Swinburne, Richard (1996) Será Que Deus Existe? Trad. Desidério Murcho et. al. Lisboa: Gradiva, 1998. Um testemunho pessoal de um dos mais importantes filósofos contemporâ- neos da religião, numa linguagem simples. Warburton, Nigel (1992) Elementos Básicos de Filosofia. Trad. Desidério Murcho. Lisboa: Gra - diva, 1998, Cap. 1. Uma introdução muito esquemática aos principais argumentos da área. Filmes Baraka, de Ron Fricke (EUA, 1992). Um filme em busca da espiritualidade pelo poder das ima gens e da música apenas. Cloud Atlas, de Tom Tykwer e Andy & Lana Wachowski (Alemanha, 2012). O mal que uns fa- zem é a oportunidade de outros para o bem. Contacto, de Robert Zemeckis (EUA, 1997). Quando tivemos uma experiência que não pode ser comunicada, será irracional aceitá-la? Bl ai se Pas ca l. PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 194 vejamos o que te interessa menos. Podes perder duas coisas: o verdadeiro e o bem; e há duas coisas que arriscas: a tua razão e vontade, o teu conhecimento e beatitude; e a tua natureza tem duas coisas das quais escapar: o erro e a infelicidade. A tua razão não será mais profundamente afetada por escolher uma em vez da outra porque está obrigada a escolher. Isto dá conta de uma das questões. Mas que dizer da tua beatitude? Compare - mos os ganhos e perdas dizendo «Se sair cara, Deus existe». Comparemos os dois casos; se ganhares, ganhas tudo; se perderes, nada perdes. Não hesites, pois. Aposta na exis- tência de Deus.» Blaise Pascal, Pensamentos, 1669, trad. Desidério Murcho, § 343 Texto 37 A prova do desígnio Cícero Suponha-se que depois de uma eternidade de escuridão viéssemos subitamente à luz do dia, que aparência teriam os céus para nós? Tal como as coisas são, porque rotinei- ramente as vemos todos os dias e nos são familiares, os nossos espíritos ficam acostu- mados, e por isso não ficamos maravilhados, nem tentamos explicar o que está perante os nossos olhos. É como se fosse a novidade mas não a majestade da criação a levar - -nos a investigar as causas do universo. Quem consideraria um ser humano digno desse nome se, depois de observar os movimentos dos céus, as disposições prescritas das es- trelas e a conjunção e inter-relação de toda a criação, ele negasse a existência de racio- nalidade em tudo isso, afirmando que era o acaso o responsável pelas obras criadas com um grau de sabedoria tal que a nossa própria sabedoria não consegue compreender completamente? Quando observamos que o mesmo objeto – um planetário, por exem- plo, ou um relógio, ou muitas outras coisas – é posto em movimento por um meca- nismo, não temos dúvida de que a razão está por detrás de tais artefactos; assim, quando nos damos conta do ímpeto e incrível velocidade do movimento dos céus, completando com absoluta regularidade as suas mudanças anuais, e preservando toda a criação em perfeita segurança, hesitaremos em reconhecer que isto é o resultado não apenas da racionalidade, mas de uma racionalidade eminente e divina? Cícero, A Natureza dos Deuses, 45 a. C., trad. Desidério Murcho, p. 26 C íc er o. Lu z, d e A le x Br ud a. CapítuloReligião, Razão e Fé 10 195 Texto 38 Objeção à prova do desígnio David Hume Se vemos uma casa, concluímos com a maior das certezas que teve um arquiteto ou construtor, porque este é precisamente o género de efeito que vimos proceder daquele género de causa. Mas, certamente não irás afirmar que o universo se parece de tal modo com uma casa que podemos com a mesma certeza inferir uma causa similar ou que a analogia é aqui completa e perfeita. A dissemelhança é tão impressionante que o má- ximo a que podes aspirar neste ponto é a uma suposição, uma conjetura, uma presun- ção a respeito de uma causa semelhante. […] A ordem, arranjo ou ajustamento das causas finais, a menos que tenhamos verificado por intermédio da experiência que têm origem nesse princípio, não constituem por si uma prova de desígnio. Pois tanto quanto podemos saber a priori, a matéria – tal como a mente – pode conter originariamente em si a fonte ou origem da ordem; e imaginar que, devido a uma causa interna ou desconhecida, os diversos elementos se possam dis- por segundo o mais admirável arranjo não é mais difícil do que imaginar que, devido a uma causa interna desconhecida semelhante, as ideias se disponham segundo esse ar- ranjo na grande mente universal. Tem de se admitir que ambas as suposições são igual- mente possíveis. David Hume, Diálogos sobre a Religião Natural, 1779, trad. Álvaro Nunes, p. 33 Texto 39 A prova cosmológica G. W. Leibniz Suponhamos que o livro Elementos de Geometria era eterno, e que cada exemplar ti- nha sido sempre copiado de um exemplar anterior. É evidente que apesar de se poder dar uma razão para a existência do livro atual, com base no anterior, nunca se chega a uma razão completa correndo um número qualquer de livros em sucessão, em direção ao passado. Pois pode sempre perguntar-se por que razão tais livros sempre existiram; por que razão foram escritos; e por que razão foram escritos como foram. O que se diz dos livros pode igualmente dizer-se dos estados do mundo. Pois o que se segue é de al- gum modo copiado do precedente (apesar de o ser de acordo com certas leis da mu- dança). E portanto, por mais que recuemos para estados anteriores do mundo, nunca se encontra nesses estados uma razão completa para a questão de saber por que há mundo em vez de nada, nem por que razão o mundo é como é. G. W. Leibniz, «Sobre a Origem Última das Coisas», 1697, trad. Desidério Murcho, p. 149 D av id H um e. G . W . L ei bn iz . PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 196 Texto 40 Objeção à prova cosmológica David Hume Ao percorrer uma sucessão eterna de objetos, parece absurdo inquirir por uma causa geral ou primeiro Autor. Como pode uma coisa que existe desde a eternidade ter uma causa, uma vez que essa relação implica uma prioridade no tempo e um começo da existência? Além disso, numa tal cadeia ou sucessão de objetos, cada parte é causada por aquela que a precede e causa aquela que lhe sucede. Onde está, então, a dificuldade? Mas o todo, dizeis, carece de uma causa. Respondo que a união destas partes num todo, como a união de vários condados distintos num reino ou de vários membros distintos num corpo, é realizada por um mero ato arbitrário da mente e não tem qualquer influência na natureza das coisas. Se eu te tivesse mostrado as causas particulares de cada indiví- duo numa coleção de vinte partículas de matéria, consideraria muito pouco razoável que me perguntasses a seguir o que era a causa do conjunto das vinte. Isto é suficien- temente explicado ao explicar a causa das partes. David Hume, Diálogos sobre a Religião Natural, 1779, trad. Álvaro Nunes, p. 95 Texto 41 A prova ontológica Santo Anselmo Uma coisa é um objeto existir no espírito, e outra coisa é compreender que um objeto realmente existe. Assim, quando um pintor planeia com antecedência o que vai execu- tar, ele tem-no no seu espírito, mas ainda não pensa que isso existe realmente pois ainda não o executou. Contudo, depois de tê-lo efetivamente pintado, tem-no simul- taneamente no seu espírito e compreende que existe porque o fez. Mesmo o insensato, pois, é forçado a concordar que algo mais grandioso do que o qual nada pode ser pen- sado existe no espírito, dado que o compreende quando o ouve, e o que é compreen- dido está no espírito. E com certeza que aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado não pode existir apenas no espírito. Pois se existisse apenas no espírito, po- der-se-ia pensar que existia também na realidade, o que seria mais grandioso. Assim, se aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado existisse apenas no espí- rito, este mesmo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado seria algo mais grandioso do que o qual algo pode ser pensado. Mas isto é obviamente impossível. Logo, não há qualquer dúvida de que aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado existe tanto no espírito como na realidade. Santo Anselmo, Proslogion, Cap. II, 1077-78, trad. Desidério Murcho D av id H um e. Sa nt o A ns el m o. CapítuloReligião, Razão e Fé 10 197 Texto 42 Objeção à prova ontológica Gaunilo de Marmoutiers Diz-se que algures no oceano há uma ilha a que, por causa da dificuldade (ou antes, da impossibilidade) de encontrar o que não existe, foi dado o nome «Perdida». E se- gundo reza a história esta ilha é abençoada com todo o género de riquezas e deleites sem preço e em abundância, muito mais do que as Ilhas Felizes e, não tendo dono nem habitantes, é em tudo superior, na abundância de riquezas, a todas aquelas terras que os homens habitam. Ora, se alguém me disser que é assim, facilmente compreendo o que se diz, dado que não há qualquer dificuldade nisto. Mas se depoisme disserem, como se fosse uma consequência lógica disto: Não podes duvidar que esta ilha, que é mais excelente do que todas as outras terras, verdadeiramente existe algures na reali- dade, tal como não podes duvidar que existe no teu espírito; e dado que é maior a ex- celência de existir não apenas no espírito mas também na realidade, tem necessaria- mente de existir. Pois se não existisse, qualquer outra terra existente na realidade seria mais excelente do que ela, e assim esta ilha, que já concebes como mais excelente do que as outras, não seria a mais excelente. Se alguém quiser persuadir-me de que esta ilha existe realmente para lá de qualquer dúvida, irei pensar que está a brincar ou terei dificuldade em decidir qual de nós é mais insensato – eu, se concordasse com ele, ou ele, se pensar que demonstrou a existência desta ilha com alguma certeza, a não ser que me tivesse convencido primeiro de que a sua própria excelência existe no meu espírito precisamente como uma coisa que existe verdadeiramente e indubitavelmente e não apenas como uma coisa irreal ou duvidosamente real. Gaunilo de Marmoutiers, Em Defesa do Insensato, Sec. 6, 1077, trad. Desidério Murcho. A ba di a de M ar m ou tie rs . PARTE 4 A dimensão religiosa | (opção B) 198 Texto 43 A defesa do livre-arbítrio Richard Swinburne Um mundo no qual os agentes possam beneficiar-se mutuamente mas não prejudi- car-se é um mundo no qual só têm uma responsabilidade muito limitada uns pelos ou- tros. Se a minha responsabilidade por si se limitar à questão de saber se lhe darei ou não uma máquina de filmar e não lhe puder causar dor, tolher o seu desenvolvimento ou limitar a sua formação, não terei uma grande responsabilidade relativamente a si. Um deus que se limitasse a dar aos agentes esse tipo de responsabilidades limitadas pe- los seus semelhantes não teria dado muito. Deus teria reservado para si a escolha su- mamente importante quanto ao tipo de mundo a existir, permitindo apenas aos seres humanos a pequena escolha de completar os pormenores. Seria como um pai que pe- disse ao filho mais velho para olhar pelo mais novo e acrescentasse que estaria atento a tudo o que o mais velho fizesse e que interviria mal este fizesse qualquer coisa errada. […] Poderia, no entanto, sugerir-se que a ocorrência do mal moral forneceria oportunida- des adequadas para podermos praticar essas grandes ações sem ser preciso que o sofri- mento fosse causado por processos naturais. Tanto podemos mostrar coragem quando somos ameaçados por um homem armado, como quando somos ameaçados pelo can- cro; e tanto podemos ser compreensivos relativamente aos que estão em risco de mor- rer às mãos de um homem armado como em relação aos que enfrentam o cancro. Imagine, no entanto, que se elimina de uma vez todo o sofrimento mental e corpóreo causado pelas doenças, terramotos e acidentes que os seres humanos não podem evitar. Imagine que não existiriam doenças nem luto em consequência da morte prematura dos jovens. Muitos de nós teriam então uma vida de tal modo fácil que não teríamos pura e simplesmente muitas oportunidades de mostrar coragem nem, na verdade, de nos manifestarmos de maneira muito bondosa. Precisamos desses insidiosos processos de declínio e dissolução que nem o dinheiro nem o esforço podem evitar durante muito tempo para termos as oportunidades, de outro modo tão fáceis de evitar, de nos tornarmos heróis. Richard Swinburne, Será Que Deus Existe?, 1996, trad. Desidério Murcho et al., pp. 108, 119 Ri ch ar d Sw in bu rn e.
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