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1 O DIREITO CIVIL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 1. O Personalismo Ético e a Dignidade Humana Após a Segunda Grande Guerra Mundial, em razão da consciência em defesa da humanidade provocada pela reflexão quanto às atrocidades cometidas contra os seres humanos nos campos de concentração nazistas, foi proclamada a DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos (10-12-1948), através da Assembleia Geral das Nações Unidas, tornando a defesa desses ideais a principal tarefa da ONU – Organização das Nações Unidas, a qual pactuou em consenso com diversos Estados o esforço comum mundial no sentido de tornar claro que a dignidade é inerente a todos os membros da família humana, e que todo ser humano tem direitos iguais e inalienáveis à liberdade, à justiça, e à paz. De acordo com Karl Larenz, rompe-se assim com antigo paradigma patrimonialista, o qual adotava o contrato e a propriedade como meio para efetivação dos direitos individuais, passando a firma-se o direito das pessoas na sua própria existência, pelo simples fato de se tratar 2 de pessoa humana, de onde decorre o novo paradigma, conhecido como personalismo ético. Karl Larenz (1903 a 1993). Jurista Alemão que foi professor nas duas mais importantes universidades da Alemanha: Kiel e Munique. Dedicava-se ao estudo do Direito Civil, tendo publicado diversas obras jurídicas. Entre suas obras mais importantes, além do estudo da jurisprudência e valores, trouxe o conceito de personalismo ético. Portanto, o ordenamento jurídico deslocou o foco de valores do viés individual patrimonialista, que conservava o Estado Liberal, para o viés da valorização da pessoa humana, passando o Estado Social a garantir a preservação do direito à dignidade da pessoa humana como garantia fundamental, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Na visão antiga, sob influência do iluminismo, o homem só era compreendido como um indivíduo. Para o homem exercer seus direitos privados, tinha maior relevância aquele que tivesse seu direito amparado por um contrato, pela posse ou em razão do direito de propriedade. 3 Esta nova visão do pensamento jurídico pós-Grande Guerra rompeu definitivamente com o modelo patrimonialista. Claus-Wilhelm Canaris esclarece que, a partir de então, quase todo ordenamento jurídico do mundo moderno passou a instituir a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos por meio de Constituições, organizando sua legislação hierarquicamente, passando tais valores a incidirem efeitos no Direito Privado e em toda legislação infraconstitucionalista e na jurisprudência. VOCABULÁRIO Infraconstitucional é a legislação que está abaixo da Constituição. Claus-Wilhelm Canaris (01.07.1937). Notável jurista alemão, nascido em Leignitz, que identificou as lacunas na lei. Professor e doutrinador com 16 livros publicados em diversos países, além de mais de 180 artigos científicos. Por sua destacada atuação e contribuição jurídica e filosófica com o Brasil, recebeu em 4 2012 o título de doutor honoris causa pela pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Sobre o tema sugerimos a leitura de: CANARIS, Claus-Wilhelm. A influencia dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha, p. 225. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 206-207. No personalismo ético, todo homem deve ser percebido como pessoa, ser da espécie humana, e por isto digno é de atenção do Estado Social, independentemente de estar questionando judicialmente proteção de direito contra outra pessoa ou ente privado em defesa de contratos, posse ou propriedade. A pessoa enquanto ser da espécie humana (personalismo ético) prevalece sobre o antigo paradigma do ter (patrimonialismo). Dentro dessa compreensão, emergiu como garantia fundamental a todos os cidadãos brasileiros o princípio da dignidade da pessoa humana, através do qual se contempla a 5 evolução social histórica do personalismo ético, um dos pilares básicos de nosso Estado Democrático de Direito (descrito no inciso III do artigo 1º da Carta Magna de 1988). Com a constitucionalização ocorrendo em diversos países, observa-se que as normas buscam uma natural reorganização, em razão da mudança dos seus valores fundamentais, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil; esta trajetória de emancipação humana, chamam os doutrinadores de repersonalização dos direitos civis. Desse modo, o Estado Social passou a dar maior relevância à solidariedade e à função social dos institutos (propriedade, contrato, responsabilidade civil, família e empresa) para atender melhor à tutela dos mais fracos, delimitando a autonomia privada por meio da intervenção estatal com aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas, sempre que necessário. Por força dessa influência da Constituição sobre as relações civis, o legislador passou a criar diversas outras normas infraconstitucionais específicas, que tratam com certa autonomia de questões de ordem pública envolvendo direito transindividuais (O Estatuto 6 da Criança e Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, etc.). CURIOSIDADE Teoria da eficácia horizontal ou irradiante dos direitos fundamentais. Os direitos são transindividuais por zelarem por uma classe específica de cidadãos, independentemente de exprimirem sua vontade. Por exemplo: o Ministério Público tem legitimidade para intervir quando existir interesse das crianças e adolescentes, dos idosos, dos consumidores etc. A organização dessas leis infraconstitucionais, quando apresenta conjunto complexo e capaz de lhe conceder certa autonomia, chama a doutrina de microssistema jurídico. Paulo Luiz Netto Lobo explica que esta atividade intervencionista do Estado em defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos foi responsável por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos transformadas em 7 ramos autônomos do direito, como, por exemplo: o direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito da locação de imóveis urbanos, como já citamos, o estatuto da criança e do adolescente, o direito do consumidor, os direitos autorais, entre outros. Este movimento legislativo que de certo modo provocou algum esvaziamento das matérias e do campo de incidência do Código Civil, movido pelo impulso dos novos valores sociais, na proteção dos direitos da pessoa humana, alguns juristas chamam também de descodificação do direito civil. Então, este fenômeno também citado como constitucionalização do direito civil poderia ser visto como uma elevação dos princípios fundamentais do direito civil, ao plano constitucional, condicionando-os à observância de todos os cidadãos e à aplicação, pelos tribunais, da legislação infraconstitucional. Saiba mais NETTO LOBO, Paulo Luiz. Constitucionalização do direito civil. Revista de informação legislativa. 8 Senado Federal. Brasília, ano 36, n. 141 jan./mar. 1999. Nota-se com facilidade que existe de fato um esforço para acomodar estes novos valores que se pautam na defesa da pessoa humana, o que tem provocado uma verdadeira reconstrução da regulação das relações civis, impondo uma nova leitura do Código Civil à luz da Constituição Federal de 1988. São inúmeros os nomes que podem retratar este fenômeno, entre eles: repersonalização do direito civil, despatrimonialização do direito civil, constitucionalização do direito civil. A doutrina cogita inclusive a criação de uma nova disciplina ou ramo metodológico do direito, denominada Direito Civil Constitucional, a qual estuda o direito civil à luz da Constituição Federal, tendo como eixo norteador os princípios constitucionais(a dignidade da pessoa humana, Art.1.º, inciso III; a solidariedade social, Art. 3.º, inciso I; a igualdade substancial, Arts. 3.º, inciso IV, e 5.º, caput; a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, Art. 3.º, incisos III e IV) (DE FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 19). Nessa linha, temos no elenco quatro categorias de temas da Constituição Federal que irradiam 9 efeitos sobre os direitos civis, sendo que os três primeiros se tornaram princípios constitucionais, conhecidos por: a) princípio da dignidade da pessoa humana; b) princípio da solidariedade, e c) princípio da isonomia ou igualdade. Convém informar que existe projeto no Senado Federal para erigir a erradicação da pobreza a um princípio também; quando isto ocorrer, poderemos afirmar que o Direito Civil Constitucional estuda a influência dos princípios constitucionais sobre o direito civil. Isso porque a erradicação da desigualdade social, de certo modo, já estaria sendo aplicada através da efetividade do princípio da igualdade substancial. Dignida de da Solidarieda de Social Igualdade Substanci al Erradicaçã o da Pobreza e Direito Civil Constitucional 10 Pessoa Humana (CF, Art. 1º, III) (CF, Art. 3º, I) (CF, Art, 3º, IV, Art. 5º) da Desigualda de Social (CF, Art. 3º, III e IV) Então, embora muito mais jovem que o Código Civil, a Constituição Federal de 1988 passou a influenciar diretamente toda a legislação brasileira, garantindo o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos. No direito de família, consolidou-se a família como núcleo natural e fundamental da sociedade; o princípio da isonomia (igualdade) extirpou as diferenças que haviam entre homem e mulher, entre os filhos havidos no casamento e fora dele. Por força e influência da Constituição Federal de 1988, também o direito passou a estabelecer a função social (da propriedade, do contrato etc.) como meio de controle do Estado Social, garantindo sua intervenção imediata nas relações privadas. A função social deve ser respeitada e, neste sentido, exige determinadas condutas dos sujeitos nas relações civis, sob pena de 11 invalidação do negócio jurídico. A função social permite ao juiz seguir as regras ou cláusulas gerais para resolver a questão através da equidade. No que diz respeito aos contratos, por exemplo, o Código Civil estabelece no Artigo 421 que as partes devem contratar, obedecidos a razão do contrato e os limites da sua função social. Isto quer dizer que não pode uma parte contratar em prejuízo da outra, ou da coletividade, sob pena de abuso de direito. Logo mais à frente, no Artigo 422, isto se demonstra claramente, quando o Estado impõe aos contratantes a obrigação de guardar na execução e conclusão do contrato os princípios da probidade e da boa-fé. Miguel Reale explica que a função social do contrato no Código Civil existe por derivar da Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo 5.º, incisos XXII e XXIII, descreve que o direito de propriedade atenderá sempre a sua função social. As cláusulas gerais do Código Civil, conforme já estudamos, podem ser a) restritivas; b) regulativas e c) extensivas. Ainda com estas categorias em mente, examinemos os artigos 112, 113, 114, 421, 422 e 423 do Código Civil. Tais artigos fornecem critérios interpretativos ao magistrado para que lhe permitam, ao julgar o caso concreto, 12 conservar os princípios da intencionalidade, da probidade e da boa-fé nas relações negociais. CLÁUSULAS GERAIS DO CÓDIGO CIVIL Art. Texto Palavra-chave 112 Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem. PRINCÍPIO DA INTENÇÃO 113 Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração PRINCÍPIO DA BOA -FÉ OBJETIVA E COSTUMES 114 Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. INTERPRETAÇÃO RESTRITA Negócios gratuitos, doação e renúncia 13 421 A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. FUNÇÃO SOCIAL 422 Os contratantes são obrigados a guardar assim na conclusão do contrato como em sua execução os princípios da probidade e da boa-fé. PRINCÍPIO DA PROBIDADE E DA BOA-FÉ OBJETIVA 423 Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas e contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. INTERPRETAÇÃO BENÉFICA AO MAIS FRACO A aplicação imediata pelo Judiciário dos direitos fundamentais às relações privadas, a doutrina denomina eficácia horizontal dos direitos fundamentais. VOCABULÁRIO 14 Abuso de direito: ocorre quando o titular de um direito, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, conforme descreve o Art. 187 do Código Civil. COMENTÁRIO CURIOSIDADE Personalismo Ético: Teoria inspirada no pensamento iluminista de Kant, desenvolvida por Karl Larenz, na qual a pessoa deve ser considerada o fim e não o meio, pois não possui um preço. Base fundamental para a construção do princípio da dignidade da pessoa humana adotado pela Constituição Federal de 1988 A influência dos direitos fundamentais garantidos pela C o n s t i t u i ç ã o sobre o Direito Privado recebe vários nomes sinônimos pela doutrina, tais como: constitucionalização do direito civil ou direito privado; descodicação do direito civil; repersonalização do direito privado ou dos direitos civis, despatrimonialização 15 etc. Alguns doutrinadores cogitam ainda o surgimento de um outro ramo do direito: o Direito Civil Constitucional.
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