Buscar

Os significados culturais das práticas de letramento no contexto da educação de surdos

Prévia do material em texto

OS SIGNIFICADOS CULTURAIS DAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO NO 
CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DE SURDOS 
Mônica Zavacki de Morais 
Universidade Federal de Santa Maria 
Esta pesquisa objetivou falar sobre a surdez e sobre os surdos no mundo 
contemporâneo e ampliar um estudo sobre as representações que os alunos fazem da escrita. 
O intuito principal foi realizar uma discussão a respeito das representações culturais da escrita 
de jovens surdos inseridos no 4º ciclo de uma escola de surdos. Buscou contemplar algumas 
discussões sobre a surdez e sobre os surdos e problematizar algumas questões: Qual o papel 
da escrita no contexto da escola de surdos? Qual o sentido que os surdos dão para a escrita? 
Que função social a escrita exerce sobre os estudantes surdos? 
Por isso, neste trabalho, pretendeu-se analisar quais as representações culturais do 
significado da escrita para estudantes surdos, inseridos no 4º ciclo, em uma escola de surdos, 
já que a maioria desses alunos provém de um ensino em que as diferenças não eram 
respeitadas. Parto do pressuposto de que a escrita para esses alunos, em se tratando de 
representações, é vista como “um monstro de 7 cabeças”, uma vez que esses sujeitos se 
utilizam de uma língua visuo-gestual, mas escrevem com uma língua que faz parte de uma 
categoria oral-auditiva. Nesse contexto, a escrita para a comunidade surda se constitui numa 
forma de imposição ou, quem sabe, de colonização curricular. 
O colonialismo pode ser descrito como uma relação de poder desigual entre dois ou 
mais grupos na qual “um não só controla e domina o outro como ainda tenta impor 
sua ordem cultural ao(s) grupo(s) dominado(s)” (Wrigley, 1996, p. 73). 
 
Este trabalho procura fazer uma aproximação com os chamados “Estudos Surdos”. 
Esse campo de investigação se fundamenta nos Estudos Culturais, em que a surdez é vista 
como diferença política, de identidade e de diversas representações. Como nos diz Silva: 
 A cultura é um campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, 
mas também, a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo 
de poderes (1999,p.134). 
Atualmente, os educandos já não vêm à escola em busca de uma técnica de 
alfabetização. Saber apenas ler e escrever já não representa melhoria em relação às questões 
sociais e culturais da sociedade contemporânea e letrada. Há a exigência de fazer uso social 
da leitura e da escrita em seu dia-a-dia de forma coerente, reflexiva e inventiva. A esse novo 
procedimento e contexto social desses aprendizados chamamos de letramento. “Negar a esse 
sujeito o seu letramento seria, então, negar a ele a sua vida, as suas culturas, os seus 
acontecimentos, as suas identidades, o seu porvir” (Skliar, 2002, p.08). 
Nesse contexto, caberia então perguntar: O que é então letramento? Letramento é 
prazer, é fruição, é ler em distintos ambientes, é viajar, é espairecer, é deleitar-se através da 
leitura, buscar notícia e prazer nos jornais, é usar a leitura para seguir programas, receitas, 
compras, é escrita para se nortear no mundo. 
Um sujeito letrado é capaz de passear pelo universo das letras, dando e recebendo 
informações, viajando no sentido dos documentos escritos, comprando, vendendo, 
pesquisando. Para isso não é preciso que tenha cursado a escola ou que tenha aprendido a ler. 
É preciso que tenha exercitado a leitura do mundo na trajetória de sua existência. E isso se 
consegue no cotidiano, no ambiente familiar, praticando sua religião, participando na 
comunidade, freqüentando clubes e associando-se a instituições comunitárias. 
Então, o letramento é o produto da participação em práticas sociais que usam a escrita 
como sistema característico, mesmo que o sujeito não domine perfeitamente o sistema da 
linguagem escrita. O letramento envolve outros modos peculiares e não somente o verbal, 
envolve a pintura, a escultura, a arquitetura, a dança e outras manifestações através das 
perspectivas visuais, em que podem existir a leitura e assimilação pelo “olhar”. 
O letramento envolve a alfabetização, no entanto, ela não é condição para o 
letramento, o que assinala uma diferenciação entre ser alfabetizado e ser letrado. O indivíduo 
alfabetizado é tido como aquele que adquiriu a leitura e a escrita, já o indivíduo letrado é 
concebido a partir dos usos que o indivíduo ou grupo social faz da leitura e da escrita. 
O letramento é concebido como uma cultura que se opõe à cultura da” orality”(Ong, 
1982). O termo remete a uma noção mais ampla de “cultura escrita”, a um universo 
de práticas e de representações característico de sociedades que utilizam a escrita. 
Estudar o letramento inclui analisar os usos da escrita, a divisão social dos saberes, os 
valores particulares veiculados pelo mundo letrado (Charaudeau apud Mortatti, 2004, 
p. 47). 
Para a leitura desse exemplo, o letramento deixa de ocupar um lugar excluído da 
cultura para se compor nos letramentos que interessam a uma população. São elementos 
utilizados pelas pessoas na sua vida cotidiana, cujos usos são práticos e imediatos e não um 
letramento difundido a todos e ausente de usos atrelados com suas práticas sociais. 
Os letramentos que são entendidos como fenômenos culturais compreendem um 
conjunto de atividades sociais que envolvem a língua escrita e as exigências sociais 
do uso da língua escrita. Além disso, do ponto de vista sociológico, em qualquer 
sociedade, são várias e diversas as atividades de letramento em contextos sociais 
diferenciados, atividades que assumem determinados papéis na vida de cada grupo e 
de cada indivíduo. Letramento não necessita ser associado com escolarização ou 
pedagogia. (Giordani, 2003, p.84) 
A partir de todas as reivindicações por parte dos sujeitos surdos, talvez o letramento 
possa junto vir a auxiliar no processo da representação que a escrita tem para esses, o modo 
que os espaços educativos e a consolidação dos grupos surdos e de suas produções culturais 
possam fazer a diferença, e a sua educação possa ser entendida como a educação que conhece 
e reconhece as diferenças. 
Letramentos, nesse estudo, pode ser entendido não como uma única forma de 
letramento escolar e sim como práticas sociais e culturais transmitidas por meio da língua de 
sinais (no caso dos surdos). A prática social e cultural da escrita entre os sujeitos surdos torna 
evidente nosso pensar sobre letramento como sendo as experiências vividas todos os dias, 
tanto na escola quanto nas ruas e seu contato com o mundo ouvinte, o uso e representação da 
escrita atribuída pela comunidade surda. 
“Quando a gente tem uma namorada ouvinte, e ela não sabe a 
Língua de Sinais, a gente precisa ensinar a L.S. para haver uma 
troca.”(F.A.)
1
 
Na fala desse jovem surdo, percebe-se a dimensão social, os eventos de letramento e 
suas práticas. Assim como letramento, cultura também pode ser entendida como o modo de 
vida de pessoas, de grupos sociais ou de uma nação (como os valores compartilhados por um 
grupo ou por uma sociedade). 
Sendo assim, fazendo uma aproximação dos Estudos Surdos e fundamentando-se nos 
chamados Estudos Culturais, cultura pode ser interpretada não como algo único, mas como 
uma representação da diferença. Segundo Hall (1997 p.20), “a cultura que temos determina 
uma forma de ver, de interpelar, de ser, de explicar, de compreender o mundo”. 
Um traço importante de atuação do campo dos Estudos Culturais é o compromisso de 
interagir diretamente com as práticas políticas, sociais e culturais. A cultura está preocupada 
 
1 Esta configuração em itálico, marca a narrativa dos sujeitos da pesquisa 
com a produção e o sentido das práticas, com a troca de significados entre os membros de 
uma sociedade. 
É esse caráter articulador que faz dos Estudos Culturais um campo avesso ao 
reducionismo epistemológico. Centrar nossas análises nos fenômenos culturais não 
implica reduzir tudo à cultura; significa,sim, assumir que a “cultura é uma das 
condições constitutivas de existência de toda prática social, que toda prática social 
tem uma dimensão cultural. (Veiga-Neto, 2004, pg. 53) 
No entanto há, em qualquer cultura, uma ampla variedade de significados sobre 
acontecimentos ou pessoas e várias formas de interpretá-las e significá-las. Os significados 
culturais organizam e regulam práticas sociais, influenciando nossas formas de entender e agir 
no mundo. Nessa passagem do jovem surdo, podemos vislumbrar essa questão: 
“Sozinho a gente lê, mas fica sem saber se está certo, na troca a 
gente sabe mais, a gente pesquisa, se não conhece perguntando a 
gente avança mais no conhecimento, sozinho fica confuso, a gente 
não consegue ter essa clareza. (F.A.)”. 
Nesse sentido, ver, enxergar, interpretar os fatos, é uma experiência cultural. A cultura 
é tão importante para nós, como a água é para o peixe... É uma trama de significados 
construída pelos seres humanos que lhes permite dar sentido às suas ações. É a cultura que 
nos permite pensar, interagir, é ela que configura nosso modo de ser físico. A visão de cultura 
como estratégia de sobrevivência enfatiza o aspecto tradutório da cultura como um processo 
incessante de construção de significação no âmbito da circulação de experiências, linguagens 
e símbolos diversos. 
Pode-se participar de grupos, ou de um conjunto de pessoas que compartilham 
significados (opções, valores, crenças...) pois estes constituem sentimentos e ações de 
pertença. A representação une o significado e a linguagem à cultura, sendo ela a 
representação, parte fundamental do processo pelo qual o significado é produzido e 
influenciado entre os membros de uma cultura. 
A representação é um sistema de significação. Utilizando os termos da lingüística 
estruturalista, isso quer dizer: na representação está envolvida uma relação entre um 
significado (conceito, idéia) e um significante (uma inscrição, uma marca material: 
som, letra, imagem, sinais manuais) (Silva, 1999, p. 35). 
Nesse estudo, somos interpelados pela narração dos surdos e convidados a prestar 
muita atenção para o que nos dizem, portanto, quero salientar que a posição de pesquisadora é 
traduzir o que as narrativas surdas produzem acerca das noções de letramento e cultura. São 
as histórias de vida desses sujeitos que narram e que constroem o texto deste trabalho, 
narrativas de suas histórias, dos seus envolvimentos amorosos, das amizades com seus pares. 
Jovens surdos que têm muito para nos contar das cenas vividas por eles todos os dias, tanto na 
sala de aula, quanto nas ruas, sem abandonar os desejos e sonhos que ainda os esperam. 
E nesse sentido, entender que as representações atuam na construção das identidades 
dos sujeitos e dos grupos sociais. As histórias relatadas pelos jovens surdos foram ferramentas 
principais na construção desse estudo investigativo. Para nos contar sobre suas representações 
de escrita, foi imprescindível que nos contassem suas experiências e sentimentos, elementos 
que os constituíram e que deram forma ao que nos contaram sobre a escrita. 
 “Eu acho mais importante a língua dos surdos, da comunidade 
surda, em contato com a língua de sinais,professores, educadores 
também. Ensinar a criança a se desenvolver, pare depois aprender o 
português melhor”.(D.) 
Nessa narrativa, o jovem surdo marca sua representação em relação à criança surda. 
Destaca que para que esta possa ter um melhor desenvolvimento lingüístico, cognitivo e 
social, é imprescindível sua inserção na comunidade surda desde cedo. Dessa forma, membros 
de um grupo, no caso de crianças e jovens surdos, ao compartilharem os mesmos códigos 
culturais como imagens, idéias, língua, passam a interagir com as coisas do mundo. Por essa 
razão, o conhecimento da língua de sinais, por parte de professores, é de profunda 
importância, pois somente assim, na escolarização, os processos de letramento terão o real 
valor no que se refere às atribuições de significados e dos usos que deles são feitos da escrita. 
O conhecimento prévio que o leitor surdo tem de mundo é assimilado e transmitido 
através da língua de sinais. É no uso dessa língua que se torna possível a 
compreensão do texto fazendo da leitura uma atividade caracterizada pelo 
engajamento e uso do conhecimento, em vez de uma mera recepção indiferente. “O 
letramento que é entendido como um fenômeno cultural compreende um conjunto 
de atividades sociais que envolvem a língua escrita e as exigências sociais do uso 
dessa língua” (Giordani, 2003, p. 84). 
Ler e escrever são processos socais utilizados para a comunicação entre as pessoas. Na 
medida em que as linguagens são sociais, todos estão limitados pela mesma necessidade de 
ser compreensíveis uns para com os outros, entretanto, podem ter diferenças básicas entre si. 
“Primeiro precisa pesquisar bastante o português, para depois ver 
que é preciso perguntar muito para aprender a ter leitura.” (F.A) 
Um dos aspectos que caracteriza a singularidade no processo educacional dos surdos 
pode ser entendido como bilingüismo, por tratar-sede uma proposta diferenciada de trabalho. 
Por meio da oferta de uma educação bilíngüe, que pressupõe a utilização de duas línguas no 
processo de escolarização dos alunos surdos: a língua de sinais brasileira e a língua 
portuguesa, é possível promover um deslocamento da centralidade da oralidade para a língua 
de sinais na educação desses sujeitos. É dar a essa língua uma representação que significa 
desenvolvimento cognitivo, lingüístico e social dos surdos. No entanto, isso não significa que 
a linguagem passa a ter menos importância, pelo contrário, na medida em que ela deixa de ser 
vista como articulação oral e/ou gestual mecânica, para ser considerada meio de apreensão e 
expressão, através do qual as pessoas apropriam-se do mundo tal qual lhes apresenta. 
No entanto, as implicações educacionais da surdez precisam ser consideradas. Por 
isso, faz-se necessário rediscutir o momento atual em que a atenção de muitos profissionais 
envolvidos no ensino de surdos, numa perspectiva bilíngüe, tem ficado restrito aos 
componentes lingüísticos de forma isolada. Tem-se deixado de lado o desvendamento do 
fenômeno na sua totalidade e, em conseqüência disso, diferentes posturas pedagógicas 
terminam convivendo no processo pedagógico, de forma a-crítica, reproduzindo, no cotidiano 
de sala de aula, estratégias consideradas eficazes no ensino de pessoas ouvintes ou mesmo 
práticas adaptadas aos surdos, sem uma base que dê sentido às ações engendradas no campo 
da educação de surdos. 
Os jovens surdos desta pesquisa nos contam, em seus relatos, representações de uma 
escrita sem um real valor, sabem que a mesma é importante, mas não como uma forma de 
prazer, de viajar por lugares sem precisar sair do lugar, mas sim, de leituras e de escritas 
calcadas em formalidades gramaticais distanciando os alunos da língua da vida social para 
ficarem restritos a um trabalho escolar puramente alicerçado em normas cultas e 
padronizadas. 
“Queremos ler livros de histórias, ver palestras, queremos ler muitas 
coisas para aprender, no futuro entrar na faculdade, fazer concursos, 
não podemos ter preguiça (azar do surdo).(T)” 
Ao permitir que o sujeito interprete divirta-se, seduza, sistematize, confronte, induza, 
documente, informe, oriente-se, reivindique e garanta a sua memória, o efetivo uso da escrita 
lhe dá condição diferenciada na sua relação com o mundo, um estado não necessariamente 
conquistado por aquele que apenas domina o código (Soares, 2000). Por isso, aprender a ler e 
a escrever implica não apenas o conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de 
associá-las), mas a possibilidade de usar esse conhecimento em benefício de formas de 
expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em um 
determinado contexto cultural. 
Na educação de surdos, além de um distanciamentocultural entre professor e aluno, as 
políticas para o respeito às diferenças são apoiadas em práticas normalizadoras, não há 
propostas educacionais estabelecidas. Sem a pretensão de esgotar o tema, é preciso debater as 
formas como os surdos são inventados e representados, descobrindo novas maneiras de 
entender a surdez e os surdos a partir da construção histórica, ou seja, da diferença. 
A diferença está relacionada com o que o outro é e, a identidade como eu sou, por isso, 
identidade e diferença são processos interligados. As pessoas não nascem com uma 
identidade, elas são produzidas através das relações de poder. Por isso, o letramento pode ser 
interpretado como sendo um desses processos, como um conjunto de significados que, 
conforme as experiências sociais, vão se modificando e formando novas formas de 
letramentos. Identidade e diferença são representadas a todo o momento, ou seja, quando falo 
de representação quer dizer que estou dando sentido à realidade, e esta é o resultado de nossas 
representações. 
Representação é o processo pelo qual membros de uma cultura usam a língua 
(amplamente definida como qualquer sistema que empregue signos, qualquer 
sistema significante) para produzirem significados. Esta definição já carrega a 
importante premissa de que as coisas - objetos, pessoas, eventos do mundo - não 
têm em si qualquer significado estabelecido, final ou verdadeiro. Somos nós - na 
sociedade, nas culturas humanas -que fazemos as coisas significarem, que 
significamos.Os significados, conseqüentemente, mudam sempre de uma cultura ou 
época para outra (Hall, 1997, p.61) 
Na fala dos jovens surdos, percebem-se as dimensões desses sujeitos em relação à 
representação que a escrita exerce sobre eles, como uma imposição da sociedade 
normalizadora e estreitamente ligada a padrões determinados que impõem um modo de escrita 
que é diferente do seu código lingüístico. 
“Antes não gostava do português (porque aprender o português?), 
antes não sabia porque aprender o português, agora eu sei, é 
importante para fazer concursos, magistério, faculdade, para no 
futuro ajudar as crianças” (F.V). 
Os surdos querem sim ter a leitura do mundo, ler jornais, revistas, fazer “concursos”, 
participar do mundo como eles dizem, mas sem a imposição de uma língua disciplinadora; 
língua na qual esses jovens se sentem oprimidos e por que não dizer violentados, pois não 
estão sendo respeitadas suas diferenças culturais. Traduzindo para esse espaço, pode-se dizer 
que se trata de uma representação da escrita muito mais ligada a um instrumento individual do 
que a um sistema social. 
Para tanto, volta-se aos Estudos Culturais para entender o quanto esse campo está 
relacionado com a noção de diferença, e abrangem uma gama de questões como a 
sexualidade, a mídia, a cultura e as políticas de identidade e diferença. Portanto, tratar da 
diferença, nesse espaço, significa, entre outras coisas, ressignificá-la. Significa pensar a 
diferença dentro de um campo político, no qual experiências culturais, comunitárias e práticas 
sociais são colocadas como complementares da produção dessas diferenças. A diferença não 
pode ser entendida como um estado indesejável ou impróprio. Ela se inscreve na história e é 
produzida com ela. 
A diferença é aquilo que o outro é:”ela é italiana”, “ela é branca”, “ela é 
homossexual”, “ela é velha”, “ela é mulher”.Da mesma forma que a identidade, a 
diferença é, nesta perspectiva, concebida como auto referenciada, como algo que 
remete a si própria. A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe.(Silva, 
2000,p.74) 
Na escola, a questão da diferença é abordada segundo os discursos de uma norma 
pedagógica, cultural. Norma é entendida como um conceito. Se você está abaixo deste, ou 
seja, está fora da norma, você é visto como uma ameaça, e, dentro da sala de aula, estará 
“prejudicando” os que se encontram nos padrões da normalidade. A diferença também é 
compreendida como sendo o outro da igualdade. Não se trata de opostos, mas de conceitos 
totalmente diferentes, que não servem para serem colocados como opostos quando, por 
exemplo, pensa-se em “incluir para igualar”. A diferença é o oposto de o mesmo, enquanto 
que o oposto da igualdade é o diverso. Portanto, podemos dar condições de igualdade de 
acesso e de permanência dos surdos nos diferentes espaços sociais, pois, ser diferente é sentir-
se diferente, é olhar diferente, é significar as culturas diferentes. 
“Eu gosto mais da signwriting
2
 porque é próprio do surdo, a língua 
portuguesa é própria do ouvinte, mas eu quero ensinar a signwriting 
para os ouvintes, porque eu quero ter uma troca. Por exemplo, no 
futuro enviar uma carta em signwriting e em língua portuguesa. 
Nessa relação eu até gosto do português, sem a obrigatoriedade dos 
elementos de ligação”. (F.V.) 
Seguir um modelo e dizer que este é o “certo” nesse espaço multicultural é não saber 
conviver com a diferença, é não respeitar os direitos civis, direitos humanos, direito de ser 
pertencente a outro grupo lingüístico, cultural, étnico ou religioso, é entrar na simetria dos 
movimentos dominantes, vigentes, homogêneos. F.V. é muito claro, em seu discurso. Ele não 
fala em não aprender o português, mas que, também, seria interessante o ouvinte aprender a 
“língua” do surdo. Então por que não haver uma troca de “culturas” tão próximas, e ao 
mesmo tempo tão distantes? As práticas culturais atravessam a escola para que ela possa 
pensar sobre si mesma e não simplesmente reproduzi-las em seu cotidiano. Muitas vezes, 
acolher a diversidade cultural dos alunos se apresenta como uma solidariedade “puxada” pela 
caridade, pela bondade e pelo assistencialismo. Algo que se confunde com a mera 
“tolerância”. Tal postura não basta. 
Através dos diálogos com o grupo surdo, pode-se perceber os desejos e direitos dos 
surdos em significar uma escrita, para que essa possa, na sala de aula e no decorrer da vida, 
servir como um motivo para romper com essa escrita e essa leitura que são tão fortemente 
marcadas por medo, insegurança e angústias, um constante sentimento de insatisfação, devido 
ao fraco desempenho acadêmico dos alunos em noções básicas como ler, escrever, interpretar. 
... a cultura surda como cultura no momento em que a diferença cultural dos surdos 
emerge como diferença naquela sombra do pós-colonial. Conhece-se e 
compreende-se a cultura surda como uma questão da diferença, um espaço que 
exige posições que dão uma visão do entre lugar, da diférence, da alteridade, da 
identidade. Percebe-se que o sujeito surdo está descentrado de uma cultura e possui 
uma outra cultura. Percebe-se o surdo em seu deslocamento da cultura ouvinte ou 
cultura universal e emergente na problemática da diferença cultural própria. (Perlin, 
2004, pg. 76) 
A cultura surda é multifacetada e leva em conta as diferenças, portanto são as 
conseqüências implicadas nessas diferenças que devem ser matéria de reflexão e análise ao se 
 
2 Língua de Sinais escrita. 
pensar em educação para surdos. A proposta aqui foi de pensar em uma educação possível 
para surdos, considerando as peculiaridades das experiências de vida desse sujeito . 
Através das falas dos jovens surdos, foi possível visualizar a dicotomia estabelecida 
entre o aprender a ler e escrever como uma simples obrigação instituída, do que o real 
significado que essa escrita e essa leitura irá interpelar em suas vidas, não no sentido de 
estabelecer uma oposição, mas de identificar nos discursos as representações da diferença. 
Nesse trabalho, portanto, foi possível trazer algumas ferramentas conceituais dos estudos 
surdos que permitem contemplar as questões das diferenças, pois, nesse espaço, os surdos 
puderam traduzir e, talvez, inventar que aí sobrevive um grupo recuperando sua cultura. 
As representações descritas permitiram-me entender que o ensino de uma escritatotalmente fora de um “padrão” de significação, que poderia ser descrita como uma 
colonização do português escrito, poderá provocar novamente um fracasso na vida 
educacional dos alunos surdos, tendo em vista que essa escrita nem sequer se relaciona com a 
língua de sinais, mas sim com uma língua que a ele é totalmente estranha. 
Na verdade, a diversidade é essencial aos seres humanos. Nosso convívio social, nosso 
desejo humano de convivência e trocas nos tornam singulares e complexos ao mesmo tempo. 
Se olharmos nosso passado, ele não resiste a um avô, bisavô de sangue negro, índio ou branco 
europeu. Isso está no nosso sangue e na nossa identidade. Somos singulares como pessoas, 
mas compostos de relacionamentos, miscigenações com muitas trocas biológicas e culturais. 
Isso se faz presente nos nossos traços muitas vezes negados, nos cabelos crespos ou lisos, 
combinados aos tons e matizes da pele e dos olhos. Somos do interior e da capital. Saímos do 
interior para estudar na capital. Voltamos ao interior em trocas permanentes e isso nos 
enriquece continuamente. A música de Chico Buarque nos lembra: “O meu pai era paulista, 
meu avô pernambucano, meu tataravô mineiro”. Na nossa alimentação, temos iguarias que 
vieram da senzala, da colônia, das aldeias, espaços esquecidos no nosso imaginário. A 
diversidade é, portanto, algo intrínseco a nós, algo sobre o que pensamos pouco. 
Vive-se num mundo onde novas identidades culturais e sociais surgem, se afirmam, 
extinguindo fronteiras, violando proibições e preconceitos identitários, num tempo de 
agradáveis cruzamentos de fronteiras, de um atraente processo de hibridização de identidades. 
É um privilégio, um presente, uma alegria viver num tempo como esse... 
A noção de letramento, assumida neste trabalho, relacionou-se com a usar diferentes 
formas de compreender, interpretar e extrair informações a partir de práticas culturais, as 
quais proporcionarão ao indivíduo capacidades, competências, habilidades diversas para que 
este se envolva com as variadas demandas sociais de leitura e escrita. 
Ler o mundo não é simplesmente ler as palavras que representam os seus significantes. 
Antes de mais nada, é consentir que cada ser humano possa ter o direito de ler o mundo a 
partir de seus próprios referenciais, de sua experiência de vida... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
VEIGA – NETO, Alfredo. Michel Foucault e os Estudos Culturais. In: COSTA, Marisa 
Vorraber (org.) Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, 
biologia, literatura, cinema...Porto Alegre, Ed. Universidade/ UFRGS, 2004. p. 53. 
 
GIORDANI, Liliane Ferrari. Quero escrever o que está escrito nas ruas: 
representações culturais da escrita de jovens e adultos surdos. 2003. Tese 
(Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003. 
 
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso 
tempo. In: Educação e Realidade. v.22, n.2. Porto Alegre: Universidade Federal do 
Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, jul./dez. 1997 
 
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e Letramento. São Paulo, Ed. 
UNESP, 2004. 
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos 
Culturais. Petrópolis, Ed. Vozes, 2000. 
____________. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. 
Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 1999. 
 
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 
2000. 
 
PERLIN, Gládis Teresinha. O lugar da cultura surda. In: THOMA, Adriana da Silva, 
LOPES, Maura Corcini.(org.) A invenção da surdez: cultura, alteridade, identidades 
e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul, Ed. EDUNISC, 2004. p. 74. 
WRIGLEY, Owen. A política da surdez. Washington: D.C. Gallaudet University 
Press, 1996. 
LODI, Ana Claudia B., HARRISON, Kathryn Marie P., CAMPOS, Sandra Regina L. 
de.(org.) Letramento e Minorias. Porto Alegre, Ed. Mediação, 2002.

Continue navegando