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OS SIGNIFICADOS CULTURAIS DAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DE SURDOS Mônica Zavacki de Morais Universidade Federal de Santa Maria Esta pesquisa objetivou falar sobre a surdez e sobre os surdos no mundo contemporâneo e ampliar um estudo sobre as representações que os alunos fazem da escrita. O intuito principal foi realizar uma discussão a respeito das representações culturais da escrita de jovens surdos inseridos no 4º ciclo de uma escola de surdos. Buscou contemplar algumas discussões sobre a surdez e sobre os surdos e problematizar algumas questões: Qual o papel da escrita no contexto da escola de surdos? Qual o sentido que os surdos dão para a escrita? Que função social a escrita exerce sobre os estudantes surdos? Por isso, neste trabalho, pretendeu-se analisar quais as representações culturais do significado da escrita para estudantes surdos, inseridos no 4º ciclo, em uma escola de surdos, já que a maioria desses alunos provém de um ensino em que as diferenças não eram respeitadas. Parto do pressuposto de que a escrita para esses alunos, em se tratando de representações, é vista como “um monstro de 7 cabeças”, uma vez que esses sujeitos se utilizam de uma língua visuo-gestual, mas escrevem com uma língua que faz parte de uma categoria oral-auditiva. Nesse contexto, a escrita para a comunidade surda se constitui numa forma de imposição ou, quem sabe, de colonização curricular. O colonialismo pode ser descrito como uma relação de poder desigual entre dois ou mais grupos na qual “um não só controla e domina o outro como ainda tenta impor sua ordem cultural ao(s) grupo(s) dominado(s)” (Wrigley, 1996, p. 73). Este trabalho procura fazer uma aproximação com os chamados “Estudos Surdos”. Esse campo de investigação se fundamenta nos Estudos Culturais, em que a surdez é vista como diferença política, de identidade e de diversas representações. Como nos diz Silva: A cultura é um campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, mas também, a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo de poderes (1999,p.134). Atualmente, os educandos já não vêm à escola em busca de uma técnica de alfabetização. Saber apenas ler e escrever já não representa melhoria em relação às questões sociais e culturais da sociedade contemporânea e letrada. Há a exigência de fazer uso social da leitura e da escrita em seu dia-a-dia de forma coerente, reflexiva e inventiva. A esse novo procedimento e contexto social desses aprendizados chamamos de letramento. “Negar a esse sujeito o seu letramento seria, então, negar a ele a sua vida, as suas culturas, os seus acontecimentos, as suas identidades, o seu porvir” (Skliar, 2002, p.08). Nesse contexto, caberia então perguntar: O que é então letramento? Letramento é prazer, é fruição, é ler em distintos ambientes, é viajar, é espairecer, é deleitar-se através da leitura, buscar notícia e prazer nos jornais, é usar a leitura para seguir programas, receitas, compras, é escrita para se nortear no mundo. Um sujeito letrado é capaz de passear pelo universo das letras, dando e recebendo informações, viajando no sentido dos documentos escritos, comprando, vendendo, pesquisando. Para isso não é preciso que tenha cursado a escola ou que tenha aprendido a ler. É preciso que tenha exercitado a leitura do mundo na trajetória de sua existência. E isso se consegue no cotidiano, no ambiente familiar, praticando sua religião, participando na comunidade, freqüentando clubes e associando-se a instituições comunitárias. Então, o letramento é o produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema característico, mesmo que o sujeito não domine perfeitamente o sistema da linguagem escrita. O letramento envolve outros modos peculiares e não somente o verbal, envolve a pintura, a escultura, a arquitetura, a dança e outras manifestações através das perspectivas visuais, em que podem existir a leitura e assimilação pelo “olhar”. O letramento envolve a alfabetização, no entanto, ela não é condição para o letramento, o que assinala uma diferenciação entre ser alfabetizado e ser letrado. O indivíduo alfabetizado é tido como aquele que adquiriu a leitura e a escrita, já o indivíduo letrado é concebido a partir dos usos que o indivíduo ou grupo social faz da leitura e da escrita. O letramento é concebido como uma cultura que se opõe à cultura da” orality”(Ong, 1982). O termo remete a uma noção mais ampla de “cultura escrita”, a um universo de práticas e de representações característico de sociedades que utilizam a escrita. Estudar o letramento inclui analisar os usos da escrita, a divisão social dos saberes, os valores particulares veiculados pelo mundo letrado (Charaudeau apud Mortatti, 2004, p. 47). Para a leitura desse exemplo, o letramento deixa de ocupar um lugar excluído da cultura para se compor nos letramentos que interessam a uma população. São elementos utilizados pelas pessoas na sua vida cotidiana, cujos usos são práticos e imediatos e não um letramento difundido a todos e ausente de usos atrelados com suas práticas sociais. Os letramentos que são entendidos como fenômenos culturais compreendem um conjunto de atividades sociais que envolvem a língua escrita e as exigências sociais do uso da língua escrita. Além disso, do ponto de vista sociológico, em qualquer sociedade, são várias e diversas as atividades de letramento em contextos sociais diferenciados, atividades que assumem determinados papéis na vida de cada grupo e de cada indivíduo. Letramento não necessita ser associado com escolarização ou pedagogia. (Giordani, 2003, p.84) A partir de todas as reivindicações por parte dos sujeitos surdos, talvez o letramento possa junto vir a auxiliar no processo da representação que a escrita tem para esses, o modo que os espaços educativos e a consolidação dos grupos surdos e de suas produções culturais possam fazer a diferença, e a sua educação possa ser entendida como a educação que conhece e reconhece as diferenças. Letramentos, nesse estudo, pode ser entendido não como uma única forma de letramento escolar e sim como práticas sociais e culturais transmitidas por meio da língua de sinais (no caso dos surdos). A prática social e cultural da escrita entre os sujeitos surdos torna evidente nosso pensar sobre letramento como sendo as experiências vividas todos os dias, tanto na escola quanto nas ruas e seu contato com o mundo ouvinte, o uso e representação da escrita atribuída pela comunidade surda. “Quando a gente tem uma namorada ouvinte, e ela não sabe a Língua de Sinais, a gente precisa ensinar a L.S. para haver uma troca.”(F.A.) 1 Na fala desse jovem surdo, percebe-se a dimensão social, os eventos de letramento e suas práticas. Assim como letramento, cultura também pode ser entendida como o modo de vida de pessoas, de grupos sociais ou de uma nação (como os valores compartilhados por um grupo ou por uma sociedade). Sendo assim, fazendo uma aproximação dos Estudos Surdos e fundamentando-se nos chamados Estudos Culturais, cultura pode ser interpretada não como algo único, mas como uma representação da diferença. Segundo Hall (1997 p.20), “a cultura que temos determina uma forma de ver, de interpelar, de ser, de explicar, de compreender o mundo”. Um traço importante de atuação do campo dos Estudos Culturais é o compromisso de interagir diretamente com as práticas políticas, sociais e culturais. A cultura está preocupada 1 Esta configuração em itálico, marca a narrativa dos sujeitos da pesquisa com a produção e o sentido das práticas, com a troca de significados entre os membros de uma sociedade. É esse caráter articulador que faz dos Estudos Culturais um campo avesso ao reducionismo epistemológico. Centrar nossas análises nos fenômenos culturais não implica reduzir tudo à cultura; significa,sim, assumir que a “cultura é uma das condições constitutivas de existência de toda prática social, que toda prática social tem uma dimensão cultural. (Veiga-Neto, 2004, pg. 53) No entanto há, em qualquer cultura, uma ampla variedade de significados sobre acontecimentos ou pessoas e várias formas de interpretá-las e significá-las. Os significados culturais organizam e regulam práticas sociais, influenciando nossas formas de entender e agir no mundo. Nessa passagem do jovem surdo, podemos vislumbrar essa questão: “Sozinho a gente lê, mas fica sem saber se está certo, na troca a gente sabe mais, a gente pesquisa, se não conhece perguntando a gente avança mais no conhecimento, sozinho fica confuso, a gente não consegue ter essa clareza. (F.A.)”. Nesse sentido, ver, enxergar, interpretar os fatos, é uma experiência cultural. A cultura é tão importante para nós, como a água é para o peixe... É uma trama de significados construída pelos seres humanos que lhes permite dar sentido às suas ações. É a cultura que nos permite pensar, interagir, é ela que configura nosso modo de ser físico. A visão de cultura como estratégia de sobrevivência enfatiza o aspecto tradutório da cultura como um processo incessante de construção de significação no âmbito da circulação de experiências, linguagens e símbolos diversos. Pode-se participar de grupos, ou de um conjunto de pessoas que compartilham significados (opções, valores, crenças...) pois estes constituem sentimentos e ações de pertença. A representação une o significado e a linguagem à cultura, sendo ela a representação, parte fundamental do processo pelo qual o significado é produzido e influenciado entre os membros de uma cultura. A representação é um sistema de significação. Utilizando os termos da lingüística estruturalista, isso quer dizer: na representação está envolvida uma relação entre um significado (conceito, idéia) e um significante (uma inscrição, uma marca material: som, letra, imagem, sinais manuais) (Silva, 1999, p. 35). Nesse estudo, somos interpelados pela narração dos surdos e convidados a prestar muita atenção para o que nos dizem, portanto, quero salientar que a posição de pesquisadora é traduzir o que as narrativas surdas produzem acerca das noções de letramento e cultura. São as histórias de vida desses sujeitos que narram e que constroem o texto deste trabalho, narrativas de suas histórias, dos seus envolvimentos amorosos, das amizades com seus pares. Jovens surdos que têm muito para nos contar das cenas vividas por eles todos os dias, tanto na sala de aula, quanto nas ruas, sem abandonar os desejos e sonhos que ainda os esperam. E nesse sentido, entender que as representações atuam na construção das identidades dos sujeitos e dos grupos sociais. As histórias relatadas pelos jovens surdos foram ferramentas principais na construção desse estudo investigativo. Para nos contar sobre suas representações de escrita, foi imprescindível que nos contassem suas experiências e sentimentos, elementos que os constituíram e que deram forma ao que nos contaram sobre a escrita. “Eu acho mais importante a língua dos surdos, da comunidade surda, em contato com a língua de sinais,professores, educadores também. Ensinar a criança a se desenvolver, pare depois aprender o português melhor”.(D.) Nessa narrativa, o jovem surdo marca sua representação em relação à criança surda. Destaca que para que esta possa ter um melhor desenvolvimento lingüístico, cognitivo e social, é imprescindível sua inserção na comunidade surda desde cedo. Dessa forma, membros de um grupo, no caso de crianças e jovens surdos, ao compartilharem os mesmos códigos culturais como imagens, idéias, língua, passam a interagir com as coisas do mundo. Por essa razão, o conhecimento da língua de sinais, por parte de professores, é de profunda importância, pois somente assim, na escolarização, os processos de letramento terão o real valor no que se refere às atribuições de significados e dos usos que deles são feitos da escrita. O conhecimento prévio que o leitor surdo tem de mundo é assimilado e transmitido através da língua de sinais. É no uso dessa língua que se torna possível a compreensão do texto fazendo da leitura uma atividade caracterizada pelo engajamento e uso do conhecimento, em vez de uma mera recepção indiferente. “O letramento que é entendido como um fenômeno cultural compreende um conjunto de atividades sociais que envolvem a língua escrita e as exigências sociais do uso dessa língua” (Giordani, 2003, p. 84). Ler e escrever são processos socais utilizados para a comunicação entre as pessoas. Na medida em que as linguagens são sociais, todos estão limitados pela mesma necessidade de ser compreensíveis uns para com os outros, entretanto, podem ter diferenças básicas entre si. “Primeiro precisa pesquisar bastante o português, para depois ver que é preciso perguntar muito para aprender a ter leitura.” (F.A) Um dos aspectos que caracteriza a singularidade no processo educacional dos surdos pode ser entendido como bilingüismo, por tratar-sede uma proposta diferenciada de trabalho. Por meio da oferta de uma educação bilíngüe, que pressupõe a utilização de duas línguas no processo de escolarização dos alunos surdos: a língua de sinais brasileira e a língua portuguesa, é possível promover um deslocamento da centralidade da oralidade para a língua de sinais na educação desses sujeitos. É dar a essa língua uma representação que significa desenvolvimento cognitivo, lingüístico e social dos surdos. No entanto, isso não significa que a linguagem passa a ter menos importância, pelo contrário, na medida em que ela deixa de ser vista como articulação oral e/ou gestual mecânica, para ser considerada meio de apreensão e expressão, através do qual as pessoas apropriam-se do mundo tal qual lhes apresenta. No entanto, as implicações educacionais da surdez precisam ser consideradas. Por isso, faz-se necessário rediscutir o momento atual em que a atenção de muitos profissionais envolvidos no ensino de surdos, numa perspectiva bilíngüe, tem ficado restrito aos componentes lingüísticos de forma isolada. Tem-se deixado de lado o desvendamento do fenômeno na sua totalidade e, em conseqüência disso, diferentes posturas pedagógicas terminam convivendo no processo pedagógico, de forma a-crítica, reproduzindo, no cotidiano de sala de aula, estratégias consideradas eficazes no ensino de pessoas ouvintes ou mesmo práticas adaptadas aos surdos, sem uma base que dê sentido às ações engendradas no campo da educação de surdos. Os jovens surdos desta pesquisa nos contam, em seus relatos, representações de uma escrita sem um real valor, sabem que a mesma é importante, mas não como uma forma de prazer, de viajar por lugares sem precisar sair do lugar, mas sim, de leituras e de escritas calcadas em formalidades gramaticais distanciando os alunos da língua da vida social para ficarem restritos a um trabalho escolar puramente alicerçado em normas cultas e padronizadas. “Queremos ler livros de histórias, ver palestras, queremos ler muitas coisas para aprender, no futuro entrar na faculdade, fazer concursos, não podemos ter preguiça (azar do surdo).(T)” Ao permitir que o sujeito interprete divirta-se, seduza, sistematize, confronte, induza, documente, informe, oriente-se, reivindique e garanta a sua memória, o efetivo uso da escrita lhe dá condição diferenciada na sua relação com o mundo, um estado não necessariamente conquistado por aquele que apenas domina o código (Soares, 2000). Por isso, aprender a ler e a escrever implica não apenas o conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de associá-las), mas a possibilidade de usar esse conhecimento em benefício de formas de expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em um determinado contexto cultural. Na educação de surdos, além de um distanciamentocultural entre professor e aluno, as políticas para o respeito às diferenças são apoiadas em práticas normalizadoras, não há propostas educacionais estabelecidas. Sem a pretensão de esgotar o tema, é preciso debater as formas como os surdos são inventados e representados, descobrindo novas maneiras de entender a surdez e os surdos a partir da construção histórica, ou seja, da diferença. A diferença está relacionada com o que o outro é e, a identidade como eu sou, por isso, identidade e diferença são processos interligados. As pessoas não nascem com uma identidade, elas são produzidas através das relações de poder. Por isso, o letramento pode ser interpretado como sendo um desses processos, como um conjunto de significados que, conforme as experiências sociais, vão se modificando e formando novas formas de letramentos. Identidade e diferença são representadas a todo o momento, ou seja, quando falo de representação quer dizer que estou dando sentido à realidade, e esta é o resultado de nossas representações. Representação é o processo pelo qual membros de uma cultura usam a língua (amplamente definida como qualquer sistema que empregue signos, qualquer sistema significante) para produzirem significados. Esta definição já carrega a importante premissa de que as coisas - objetos, pessoas, eventos do mundo - não têm em si qualquer significado estabelecido, final ou verdadeiro. Somos nós - na sociedade, nas culturas humanas -que fazemos as coisas significarem, que significamos.Os significados, conseqüentemente, mudam sempre de uma cultura ou época para outra (Hall, 1997, p.61) Na fala dos jovens surdos, percebem-se as dimensões desses sujeitos em relação à representação que a escrita exerce sobre eles, como uma imposição da sociedade normalizadora e estreitamente ligada a padrões determinados que impõem um modo de escrita que é diferente do seu código lingüístico. “Antes não gostava do português (porque aprender o português?), antes não sabia porque aprender o português, agora eu sei, é importante para fazer concursos, magistério, faculdade, para no futuro ajudar as crianças” (F.V). Os surdos querem sim ter a leitura do mundo, ler jornais, revistas, fazer “concursos”, participar do mundo como eles dizem, mas sem a imposição de uma língua disciplinadora; língua na qual esses jovens se sentem oprimidos e por que não dizer violentados, pois não estão sendo respeitadas suas diferenças culturais. Traduzindo para esse espaço, pode-se dizer que se trata de uma representação da escrita muito mais ligada a um instrumento individual do que a um sistema social. Para tanto, volta-se aos Estudos Culturais para entender o quanto esse campo está relacionado com a noção de diferença, e abrangem uma gama de questões como a sexualidade, a mídia, a cultura e as políticas de identidade e diferença. Portanto, tratar da diferença, nesse espaço, significa, entre outras coisas, ressignificá-la. Significa pensar a diferença dentro de um campo político, no qual experiências culturais, comunitárias e práticas sociais são colocadas como complementares da produção dessas diferenças. A diferença não pode ser entendida como um estado indesejável ou impróprio. Ela se inscreve na história e é produzida com ela. A diferença é aquilo que o outro é:”ela é italiana”, “ela é branca”, “ela é homossexual”, “ela é velha”, “ela é mulher”.Da mesma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva, concebida como auto referenciada, como algo que remete a si própria. A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe.(Silva, 2000,p.74) Na escola, a questão da diferença é abordada segundo os discursos de uma norma pedagógica, cultural. Norma é entendida como um conceito. Se você está abaixo deste, ou seja, está fora da norma, você é visto como uma ameaça, e, dentro da sala de aula, estará “prejudicando” os que se encontram nos padrões da normalidade. A diferença também é compreendida como sendo o outro da igualdade. Não se trata de opostos, mas de conceitos totalmente diferentes, que não servem para serem colocados como opostos quando, por exemplo, pensa-se em “incluir para igualar”. A diferença é o oposto de o mesmo, enquanto que o oposto da igualdade é o diverso. Portanto, podemos dar condições de igualdade de acesso e de permanência dos surdos nos diferentes espaços sociais, pois, ser diferente é sentir- se diferente, é olhar diferente, é significar as culturas diferentes. “Eu gosto mais da signwriting 2 porque é próprio do surdo, a língua portuguesa é própria do ouvinte, mas eu quero ensinar a signwriting para os ouvintes, porque eu quero ter uma troca. Por exemplo, no futuro enviar uma carta em signwriting e em língua portuguesa. Nessa relação eu até gosto do português, sem a obrigatoriedade dos elementos de ligação”. (F.V.) Seguir um modelo e dizer que este é o “certo” nesse espaço multicultural é não saber conviver com a diferença, é não respeitar os direitos civis, direitos humanos, direito de ser pertencente a outro grupo lingüístico, cultural, étnico ou religioso, é entrar na simetria dos movimentos dominantes, vigentes, homogêneos. F.V. é muito claro, em seu discurso. Ele não fala em não aprender o português, mas que, também, seria interessante o ouvinte aprender a “língua” do surdo. Então por que não haver uma troca de “culturas” tão próximas, e ao mesmo tempo tão distantes? As práticas culturais atravessam a escola para que ela possa pensar sobre si mesma e não simplesmente reproduzi-las em seu cotidiano. Muitas vezes, acolher a diversidade cultural dos alunos se apresenta como uma solidariedade “puxada” pela caridade, pela bondade e pelo assistencialismo. Algo que se confunde com a mera “tolerância”. Tal postura não basta. Através dos diálogos com o grupo surdo, pode-se perceber os desejos e direitos dos surdos em significar uma escrita, para que essa possa, na sala de aula e no decorrer da vida, servir como um motivo para romper com essa escrita e essa leitura que são tão fortemente marcadas por medo, insegurança e angústias, um constante sentimento de insatisfação, devido ao fraco desempenho acadêmico dos alunos em noções básicas como ler, escrever, interpretar. ... a cultura surda como cultura no momento em que a diferença cultural dos surdos emerge como diferença naquela sombra do pós-colonial. Conhece-se e compreende-se a cultura surda como uma questão da diferença, um espaço que exige posições que dão uma visão do entre lugar, da diférence, da alteridade, da identidade. Percebe-se que o sujeito surdo está descentrado de uma cultura e possui uma outra cultura. Percebe-se o surdo em seu deslocamento da cultura ouvinte ou cultura universal e emergente na problemática da diferença cultural própria. (Perlin, 2004, pg. 76) A cultura surda é multifacetada e leva em conta as diferenças, portanto são as conseqüências implicadas nessas diferenças que devem ser matéria de reflexão e análise ao se 2 Língua de Sinais escrita. pensar em educação para surdos. A proposta aqui foi de pensar em uma educação possível para surdos, considerando as peculiaridades das experiências de vida desse sujeito . Através das falas dos jovens surdos, foi possível visualizar a dicotomia estabelecida entre o aprender a ler e escrever como uma simples obrigação instituída, do que o real significado que essa escrita e essa leitura irá interpelar em suas vidas, não no sentido de estabelecer uma oposição, mas de identificar nos discursos as representações da diferença. Nesse trabalho, portanto, foi possível trazer algumas ferramentas conceituais dos estudos surdos que permitem contemplar as questões das diferenças, pois, nesse espaço, os surdos puderam traduzir e, talvez, inventar que aí sobrevive um grupo recuperando sua cultura. As representações descritas permitiram-me entender que o ensino de uma escritatotalmente fora de um “padrão” de significação, que poderia ser descrita como uma colonização do português escrito, poderá provocar novamente um fracasso na vida educacional dos alunos surdos, tendo em vista que essa escrita nem sequer se relaciona com a língua de sinais, mas sim com uma língua que a ele é totalmente estranha. Na verdade, a diversidade é essencial aos seres humanos. Nosso convívio social, nosso desejo humano de convivência e trocas nos tornam singulares e complexos ao mesmo tempo. Se olharmos nosso passado, ele não resiste a um avô, bisavô de sangue negro, índio ou branco europeu. Isso está no nosso sangue e na nossa identidade. Somos singulares como pessoas, mas compostos de relacionamentos, miscigenações com muitas trocas biológicas e culturais. Isso se faz presente nos nossos traços muitas vezes negados, nos cabelos crespos ou lisos, combinados aos tons e matizes da pele e dos olhos. Somos do interior e da capital. Saímos do interior para estudar na capital. Voltamos ao interior em trocas permanentes e isso nos enriquece continuamente. A música de Chico Buarque nos lembra: “O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, meu tataravô mineiro”. Na nossa alimentação, temos iguarias que vieram da senzala, da colônia, das aldeias, espaços esquecidos no nosso imaginário. A diversidade é, portanto, algo intrínseco a nós, algo sobre o que pensamos pouco. Vive-se num mundo onde novas identidades culturais e sociais surgem, se afirmam, extinguindo fronteiras, violando proibições e preconceitos identitários, num tempo de agradáveis cruzamentos de fronteiras, de um atraente processo de hibridização de identidades. É um privilégio, um presente, uma alegria viver num tempo como esse... A noção de letramento, assumida neste trabalho, relacionou-se com a usar diferentes formas de compreender, interpretar e extrair informações a partir de práticas culturais, as quais proporcionarão ao indivíduo capacidades, competências, habilidades diversas para que este se envolva com as variadas demandas sociais de leitura e escrita. Ler o mundo não é simplesmente ler as palavras que representam os seus significantes. Antes de mais nada, é consentir que cada ser humano possa ter o direito de ler o mundo a partir de seus próprios referenciais, de sua experiência de vida... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS VEIGA – NETO, Alfredo. Michel Foucault e os Estudos Culturais. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.) Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema...Porto Alegre, Ed. Universidade/ UFRGS, 2004. p. 53. GIORDANI, Liliane Ferrari. 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