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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Oscar José de Paula Neto Descascando abacaxis: a dissintonia entre a crítica e as chanchadas brasileiras na hegemonia de uma cultura cinematográfica na década de 1950 Rio de Janeiro 2016 Oscar José de Paula Neto Descascando abacaxis: a dissintonia entre a crítica e as chanchadas brasileiras na hegemonia de uma cultura cinematográfica na década de 1950 Dissertação apresentada como requisito parcial, para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política. Orientador: Prof. Dr. Orlando de Barros Rio de Janeiro 2016 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CCSA Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte. ___________________________ _________________________ Assinatura Data P324 Paula Neto, Oscar José de. Descascando abacaxis: a dissintonia entre a crítica e as chanchadas brasileiras na hegemonia de uma cultura cinematográfica na década de 1950/ Oscar José de Paula Neto. – 2016. 209 f. Orientador: Orlando de Barros. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Bibliografia. 1. Cinema brasileiro – Anos 1950 – Teses. I. Barros, Orlando de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. CDU 791.43(81) Oscar José de Paula Neto Descascando abacaxis: a dissintonia entre a crítica e as chanchadas brasileiras na hegemonia de uma cultura cinematográfica na década de 1950 Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política. Aprovada em 28 de março de 2016. Banca Examinadora: _______________________________________________ Prof. Dr. Orlando de Barros (Orientador) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ ______________________________________________ Prof.ª Dra. Laura Nery Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ ______________________________________________ Prof.ª Dra. Karla Carloni Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro 2016 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço à minha família por todo o apoio, esforço e dedicação para chegar até este estágio da minha formação acadêmica. À minha mãe, Fernanda e à minha avó, Severina, agradeço especialmente, por todo o amor, carinho e cuidado que dedicaram a mim durante toda minha vida. Em segundo lugar, agradeço ao meu orientador, Professor Orlando de Barros, por toda a atenção dedicada desde o momento da graduação e que, felizmente, se perpetuou no mestrado. Agradeço também pela prontidão em auxiliar no que fosse necessário, aos conselhos e dicas que fizeram este trabalho chegar até o ponto em que chegou. Além disso, agradeço pela liberdade, sempre supervisionada, com que me deixou conduzir a pesquisa e a escrita da dissertação. Estendo estes agradecimentos às professoras Laura Nery (UERJ) e Karla Carloni (UFF) pelas inúmeras sugestões realizadas na banca de qualificação. Muitas das sugestões de leitura e de pesquisa foram fundamentais para o prosseguimento do trabalho desde aquele momento. Gostaria de agradecer também a Professora Beatriz de Moraes Vieira pelo incentivo para que eu apresentasse um projeto na seleção de mestrado em 2013. Graças a um encontro fortuito num teatro da cidade, seguido de um pedido muito simpático por parte dela para que eu participasse do processo seletivo, estou aqui defendendo esta dissertação. Ainda agradeço as professoras Lúcia Guimarães e Laura Nery, que através das várias leituras e sugestões realizadas durante seus cursos na pós-graduação, me ajudaram a melhor delimitar teórica e metodologicamente os rumos da pesquisa. Ainda, cabe ressaltar, que as duas professoras através de suas personalidades divertidas e simpáticas, além de atenciosas com minha pesquisa, me deram uma boa dose de autoestima, num momento em que estava em dúvidas sobre minhas capacidades acadêmicas. Também agradeço aos meus amigos e colegas pelo apoio, risadas e doses de confiança, que tornaram este percurso menos difícil e mais agradável. Vocês são as melhores válvulas de escape das obrigações acadêmicas que alguém poderia ter. Por fim, agradeço ao meu namorado, Fellipe, pelo apoio dedicado em todos os momentos em que eu estava ansioso e/ou nervoso com os prazos e com a escrita da dissertação. Obrigado pela atenção e companheirismo, que foram essenciais para o resultado final do trabalho. RESUMO PAULA NETO, Oscar José de. Descascando abacaxis: a dissintonia entre a crítica e as chanchadas brasileiras na hegemonia de uma cultura cinematográfica na década de 1950. 2016. 209 f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. O presente estudo propõe-se a investigar a relação da crítica de cinema durante a década de 1950, ávida pela modernização da cultura cinematográfica, pela sofisticação do gosto estético do grande público brasileiro e pelo desenvolvimento do cinema brasileiro, com as chanchadas cinematográficas, o principal gênero de filmes produzidos no Brasil até aquele momento. As chanchadas – ou como também eram conhecidas, os abacaxis – eram o principal sustentáculo da frágil indústria cinematográfica desde a década de 1930, e manteve esta função até início da década de 1960, quando finalmente a cumplicidade do público para com estes filmes já estava esgotada. No entanto, os críticos de cinema, assim como outros intelectuais preocupados com questões cinematográficas, repudiavam tais filmes por estes se valerem de aspectos técnicos e culturais ultrapassados em relação ao momento de modernização pelo qual passava todas as esferas do país. Naquele instante, as chanchadas representavam para estes intelectuais o que de mais atrasado ainda continuava a existir na cultura brasileira em contraponto ao afã desenvolvimentista que denotava aquele contexto. Cabe destacar que a crítica e os estudos cinematográficos estavam passando por um estimulante processo de renovação no Brasil, com a intensificação das atividades cinematográficas, propiciadas pelos novos espaços de sociabilidade cinéfila. Desse modo, nos dedicamos a discutir as críticas acerca destes filmes, assim como as reflexões em torno dos problemas do cinema brasileiro publicadas nos jornais e revistas de cinema, aquelas com que os críticos se valeram para demarcar os seus posicionamentos em torno do desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira e da inserção da arte cinematográfica como forma de refletir e marcar a cultura brasileira. Palavras-chave: Cinema brasileiro. Crítica de cinema. Chanchada ABSTRACT PAULA NETO, José Oscar de. Peeling pineapples: the dissintonia between criticism and Brazilian chanchadas the hegemony of a film culture in the 1950s. 2016. 209 f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofiae Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. The present study aims to investigate the relationship of film criticism during the 1950s, eager to modernize the film culture, sophistication of the aesthetic taste of the great Brazilian public and the development of Brazilian cinema, with film chanchadas, the main film genre produced in Brazil so far. Chanchadas - or as they were also known, pineapples - were the mainstay of the fragile film industry since the 1930s, and held this position until early 1960, when finally the complicity of the audience to these films was already sold out. However, film critics, as well as other intellectuals concerned with cinematic issues, repudiated such films by these avail themselves of technical and cultural aspects exceeded in relation to the time of modernization by which passed all spheres of the country. At that moment, the chanchadas accounted for these intellectuals that later was still to exist in Brazilian culture as opposed to developmental effort that denoted that context. Notably, criticism and film studies were going through an exciting process of renewal in Brazil, the intensification of cinematographic activities provided by these new spaces of sociability cinephile. Thus, we are dedicated to discuss the criticism about these films, as well as reflections on the Brazilian cinema of problems published in newspapers and film magazines, the ones with the critics took advantage to mark their positions around the development of the industry Brazilian film and insertion of film art as a way to reflect and mark the Brazilian culture. Keywords: Brazilian cinema. Film critic. Chanchada SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................7 1 DESANCANDO AS CHANCHADAS.........................................................................17 1.1 Introdução......................................................................................................................17 1.2 Impasses do cinema brasileiro na década de 1950.....................................................25 1.3 “Campanhas contra o abacaxi”: a conturbada trajetória das chanchadas............49 2 A CRÍTICA DE CINEMA NA DÉCADA DE 1950 E A REVISÃO DO MÉTODO CRÍTICO........................................................................................................................75 2.1 Introdução......................................................................................................................75 2.2 As revistas de cinema e a cultura cinematográfica....................................................79 2.3 Reflexões sobre a crítica cinematográfica em 1964....................................................89 2.4 A Revisão do Método Crítico e o desenvolvimento da crítica no Brasil em 1950 108 3 A SOLIDIFICAÇÃO DA CULTURA CINEMATOGRÁFICA E A CHANCHADA NA DÉCADA DE 1950................................................................................................138 3.1 A cultura cinematográfica em movimento................................................................138 3.2 Chanchada, tradição cômica e a crítica cinematográfica........................................172 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................200 REFERÊNCIAS..........................................................................................................204 7 INTRODUÇÃO “O amadurecimento do movimento de cultura cinematográfica no Brasil só se anunciará quando dezenas e dezenas de pessoas em todo o País sentirem-se próximas e empenhadas num esforço comum”. 1 Estas palavras do crítico Paulo Emílio Salles Gomes foram proferidas durante momento de grande agitação cultural que marcou a década de 1950 no Brasil e foram publicadas em sua coluna sobre cinema no suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo, e conclamava a união das forças dos interessados na renovação da reflexão cinematográfica e do cinema brasileiro. O crítico assegurava que uma das maiores fragilidades da cultura cinematográfica brasileira consistia na dificuldade de ultrapassar o eixo Rio-São Paulo, onde se concentravam tradicionalmente as principais instâncias intelectuais que voltavam suas atenções para o cinema, como também reuniam os principais responsáveis pela produção de filmes do país. Desta forma, a concentração das atividades cinematográficas entre as duas cidades impossibilitava uma verdadeira articulação nacional em torno dos esforços de solidificação da cultura cinematográfica, pois não permitia o intercambio de experiência entre os profissionais de cinema das muitas outras cidades do país. Em contrapartida a falta de coesão das atividades cinematográficas, Paulo Emilio Salles Gomes reconhecia que cada vez mais o interesse pela discussão em torno do cinema crescia consideravelmente no Brasil. Portanto, tornava imprescindível, segundo o crítico, que houvesse uma organização mais eficiente dos profissionais de cinema para que a ação colocada em prática pelos intelectuais conseguisse levar em frente o projeto do fortalecimento da cultura cinematográfica e da sofisticação do gosto cinematográfico do grande público. Assim, o crítico apontava que seria de grande necessidade a realização de frequentes encontros, congressos e eventos de toda a espécie que reunissem os críticos profissionais atuantes nos diversos meios, produtores, diretores e todos os demais integrantes do campo cinematográfico que estivessem imbuídos da preocupação de reverter a frágil situação da cultura cinematográfica e do cinema brasileiro. Para isto, Paulo Emilio Salles Gomes assegurava que também seria importante a intensificação da troca de correspondência entre os agentes do campo cinematográfico, para que acontecesse a melhor interação destes no 1 O Estado de São Paulo, 08 de novembro de 1958, p. 41. 8 compartilhamento e discussão em torno das perspectivas, problemas e impressões sobre o cinema brasileiro a nível nacional. Entretanto, apesar de Paulo Emílio Salles Gomes indicar como incipientes os esforços em torno do fortalecimento da cultura cinematográfica brasileira, podemos afirmar que a preocupação com a sétima arte no Brasil conquistou naquele momento um status que ainda não havia adquirido até então e que, por isso, abriu caminho para todos os progressos que o cinema teria nos anos subsequentes, mesmo que marcados pelas dificuldades que sempre acompanharam a indústria cinematográfica brasileira. Durante a década de 1950 foram organizados os primeiros congressos de cinema, que serviram como importante ação para delinear os rumos das discussões do cinema e da atividade crítica brasileira, propiciando o encontro de vários especialistas em cinema de todo o país. Desta forma, foram realizados os seguintes eventos: o I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro, ocorrido em São Paulo e o I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, no Rio de Janeiro, ambos em 1952; o II Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, realizado em São Paulo no ano seguinte; a I Convenção da Crítica Cinematográfica, realizada na capital paulista em 1960. Todos estes eventos tiveram como mola propulsora o fortalecimento que a reflexão cinematográfica passou a obter desde o início da década de 1950, levando ao entendimento da efetiva atuação dos intelectuais preocupados em guiar o cinema e a crítica brasileira para o lugar certo, ou seja, mais próximo dos ensejos cinéfilos e intelectualistas. Além disso, estes eventos resultaram na elaboração de projetos de leis de proteção e de incentivo à produção e exibição dos filmesbrasileiros, que seriam apresentados aos governantes no intuito de se alcançar o êxito de nosso cinema com apoio do Estado. Uma das principais funções destes encontros era tentar encontrar mecanismos e soluções que fornecessem respostas válidas para a superação da insipiência de nossa indústria cinematográfica, assim como revigorar a crítica e a atuação dos outros integrantes do campo cinematográfico, ainda muito marcada por teorias e preocupações estéticas que já estavam ultrapassadas nas discussões gerais da arte cinematográfica mais modernas. Seria o momento oportuno para difundir de forma mais eficaz os aportes que fundamentariam a cultura cinematográfica atrelada às novas posições cinematográficas, estéticas e políticas. Naquele momento, boa parte da crítica salientava que a discussão em torno do cinema não poderia deixar de lado os quesitos políticos, deixando claro que os conflitos sociais que marcavam o contexto internacional e o nacional se alastravam nos debates culturais, e deixá-los de fora da análise fílmica seria como empobrecer o entendimento de todas as possibilidades do cinema. 9 Todas as transformações na crítica, e consequentemente da reflexão cinematográfica estavam atreladas diretamente ao acelerado processo de modernização pelo qual passava o Brasil desde o fim do Estado Novo, e que se intensificou durante o governo de Juscelino Kubistchek. Tal processo deu ensejo para que vários movimentos culturais intentassem se identificar com as transformações econômicas e políticas, levando-os a almejar um status de renovação conectado às mudanças. Entre as décadas de 1930 e 1950, houve a crescente modernização de pensamentos e hábitos, que modificaram o modo de vida da sociedade brasileira em diversos sentidos, fossem estes na arquitetura, artes, técnicas ou ciências. Cada vez mais a população se adaptava a um ritmo de vida mais acelerado, assim como se adequava mais acertadamente em relação ao avanço dos meios de comunicação de massa, que marcaram o início da indústria cultural no Brasil. Por isso, a situação do cinema brasileiro, notadamente artesanal, considerado por muitos como inexistente, num momento de intensa efervescência propiciada pela modernização, era considerada impraticável e deveria ser alinhado conforme os novos tempos que se abriam para o país. Ainda neste momento houve a expansão no mercado editorial brasileiro que abriu espaço para um grande número de publicações voltadas para os diversos assuntos dedicados ao consumo em larga escala: histórias em quadrinhos, revistas voltadas para o público feminino, rádio, TV e cinema. Também atrelada a este processo geral de modernização, a imprensa passou por diversas transformações, acompanhadas pelas mudanças nos principais periódicos mundiais, que possibilitou a inserção de diversas inovações técnicas, gráficas e editoriais. É nesse momento que a crítica e assuntos relacionados ao cinema ganham gradualmente maior espaço na grande mídia, seja nos suplementos literários dos grandes jornais – tais como o do Jornal do Brasil e do Estado de São Paulo – assim como na criação de periódicos especializados e a publicação de livros com temáticas que abordavam a sétima arte. Até aquele momento era extremamente escassa a literatura sobre cinema no mercado editorial brasileiro. Cabe ressaltar que as revistas dedicadas ao cinema já existiam desde décadas anteriores, tais como A Scena Muda, O Fan e Cinearte, mas eram quase exclusivamente focadas no cinema de Hollywood e não contavam em sua maioria com espaços para a crítica cinematográfica, tal como estaria bem presentes nos periódicos editados na década de 1950. Estes, principalmente, os de cunho mais intelectualizados, de caráter mais teórico e ensaístico, estavam afinados com a preocupação de sofisticar a cultura cinematográfica e cinéfila no Brasil, embora nem sempre dessem a atenção necessária ao cinema brasileiro em suas páginas. A Revista de Cinema, 10 publicação mineira e uma das principais publicações cinematográficas brasileiras é um claro exemplo desta falta de tato com a produção nacional, e será mais bem analisada no segundo capítulo desta dissertação. Estas revistas focavam o cinema como assunto sério a ser discutido, no qual criavam um espaço em que os intelectuais buscavam dotar a sétima arte do mesmo status que as outras manifestações artísticas já haviam conquistado. Assim, o cinema era tomado como meio possível de analisar, refletir e interferir na sociedade, em que intentava adentrar o debate geral da cultura, o que se tornou uma das grandes inovações da década de 1950 no que tange aos estudos de cinema do Brasil. Publicações como Clima, Diretrizes, e outras, foram importantes periódicos voltados para os assuntos culturais, mas que localizaram o cinema num lugar periférico em relação às outras artes, devido principalmente a posição inferior que os filmes ainda ocupavam no rol das manifestações artísticas. Sendo assim, o lançamento de periódicos e os novos espaços abertos para o jornalismo cinematográfico foi essencial para alterar este quadro. A crítica literária Beatriz Sarlo, ao refletir sobre as revistas literárias atuantes na modernização argentina nas décadas de 1920 e 1930, afirma que as editoras e revistas consolidam um circuito de leitores, que por meio da ação do novo jornalismo, também estava mudando e se expandindo. 2 No caso do Brasil dos anos 1950, as novas revistas, que tinham suas atenções voltadas exclusivamente ao cinema, mesmo marcada pelas dificuldades enfrentadas pelo baixo contingente de público e da ausência de apoio comercial para este segmento editorial, ainda se sobressaiam como portadoras do privilégio de poder intervir no novo cenário nacional que se delineava. Num período em que ainda não havia cursos de cinema nas universidades brasileiras e era ressaltada a pouca atenção dada pelos intelectuais para os assuntos referentes à sétima arte, os textos dos críticos e jornalistas obtiveram a primazia de levar ao grande público os principais debates que estavam a fervilhar nos espaços de sociabilidade cinéfila, notadamente os cineclubes, que também pulularam na década de 1950. Alias, os primeiros cursos de cinema surgidos a partir da década de 1960 nas universidades brasileiras foram organizados pelos críticos e intelectuais que atuavam nos jornais de grande circulação, entre eles Paulo Emilio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet e Nelson Pereira dos Santos. 2 SARLO, Beatriz. Modernidade periférica – Buenos Aires 1920 e 1930. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 40. 11 Praticada quase sempre na imprensa diária, a crítica cinematográfica não podia deixar de sofrer a influência do espírito ligeiro e superficial do jornalismo geral, mas ganhava destaque movido pela insipiência dos estudos de cinema no Brasil, que acabava por fornecer ao crítico as características de um “intelectual-jornalista”, bem próximo do conceito elaborado pelo sociólogo Pierre Bourdieu. 3 A crítica cinematográfica brasileira aproveitou a chance aberta pelo novo jornalismo, que abriu mais espaço para assuntos relacionados ao cinema, para erigir e incrementar o seu próprio campo de atuação, pois além da suposta influência sobre determinado segmento de leitores, poderiam exercer o papel de propiciador e difusor das discussões em torno da consolidação da crítica e do cinema brasileiro. Nas páginas dos grandes jornais, bem como das revistas voltadas para o público específico, neste caso o interessado pelos assuntos cinematográficos, podemos perceber o esforço da crítica de alcançar sua própria autonomia, em meio às outras instancias da crítica de arte. Para além da crítica propriamente dita aos filmes que estavam entrando no circuito exibidor brasileiro, o crítico muito informou a seus leitores acerca do andamento da crítica ecomo estava sua condição no Brasil – assim como sobre os acontecimentos políticos e sociais, e também aspectos mais teóricos acerca da cultura brasileira. Ou seja, a ação da crítica, mesma marcada por contradições, simplificações e elitismo, como bem veremos ao longo do trabalho, foi essencial para o desenvolvimento do cinema no Brasil, seja este na produção de filmes ou na reflexão cinematográfica, bem como na análise da cultura e da sociedade brasileira. Tal ação deve ser tomada aqui como parte do processo de autonomização do campo da crítica de cinema, que ao mesmo tempo em que tentava fortalecer a cultura cinematográfica e promover o cinema brasileiro de qualidade, também estava conhecendo suas próprias funções e limitações, melhor adequando-se ao contexto que marcava o país. Além disso, tal momento visto de forma positiva, a despeito de todos os problemas que ainda circundavam o cinema e a reflexão cinematográfica brasileira, significou o aumento da produção de filmes, propiciado pelo investimento dos industriais paulistas, bem como a busca crescente por parte de vários realizadores pela diversificação temática e estética. Afinal, aquele era o instante em que muitos dos intelectuais se mobilizaram para que existisse no Brasil um cinema mais próximo daqueles produzidos pelos mais respeitados centros culturais do mundo. Dessa intenção, resultarão os filmes produzidos pelos estúdios paulistas, como a Vera Cruz e a Maristela, que tentavam emular o fausto dos estúdios hollywoodianos, apesar deste modelo já 3 BOURDIEU, Pierre. Sobre televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, 111. 12 estar em aparente declínio, assim como as experiências de produtoras independentes, que buscavam produzir filmes de baixo orçamento, mas preocupados com a qualidade. Após a falência destes estúdios, cresceu entre os interessados pelo cinema brasileiro a percepção de que seria preciso raciocinar mais acertadamente acerca das reais dificuldades que marcavam a nossa indústria cinematográfica. Consequentemente, como resultado destas reflexões o neorrealismo italiano, um dos principais movimentos cinematográficos desde o final da Segunda Guerra Mundial, marcaria enormemente a reflexão do cinema realizado no país durante a década de 1950, e timidamente a produção, principalmente entre os críticos e realizadores de esquerda, que viam naquele modelo de filmes de baixo orçamento, a salvação e possibilidade de crescimento do cinema brasileiro. Tal falência ainda propiciou um maior interesse pela história do cinema brasileiro, a fim de buscar nas raízes históricas as causas da fragilidade deste. Este interesse histórico pelo “inexistente” cinema brasileiro era resultado dos problemas decorridos da exibição e da distribuição do filme brasileiro que persistia desde as primeiras décadas do século XX, notadamente a partir da deflagração da Primeira Guerra Mundial. Mesmo sendo amortizado pela ação das leis de proteção ao cinema brasileiro, que elevaram a produção de durante a década de 1950, ainda continuava a ser o cinema brasileiro em sua grande parte aquele ligeiro e popular, desvinculado das preocupações com a qualidade estética da sétima arte, notadamente as chanchadas, os filmes musicais carnavalescos que tanto causavam repulsa em praticamente toda a intelectualidade. Em meio a todos os esforços do campo da crítica cinematográfica para sofisticar o gosto das plateias brasileiras, a chanchada aparecia como um dos principais obstáculos a ser vencido para a efetivação do projeto proposto pelos intelectuais. As chanchadas, filmes de comédia frequentemente musicais, com grandes influências do teatro de revista, do rádio, do circo e de diversos outras manifestações culturais de larga aceitação popular, tinham lugar cativo junto às plateias brasileiras até inicio da década de 1960, quando aquele tipo de humor foi apropriado pelos programas televisivos e o gênero passou a apresentar perceptíveis sinais de desgaste. As chanchadas prolongaram a tradição cômica oriundas destas manifestações culturais, e consequentemente, herdaram as críticas negativas que estas enfrentaram ao longo de suas existências, pois também não compartilharam de grande simpatia por parte dos críticos. Sendo assim, a chanchada era tida como um produto realizado mediante técnicas artesanais, rudimentares, e de conteúdo ultrapassado, sem sintonia com a modernização por qual passava o 13 país desde o fim do Estado Novo. O gênero era tido pelos críticos e outros intelectuais como corruptor do gosto popular, e por causa disso, deveria ser rechaçado de uma vez por todas do cinema brasileiro. Apesar da indisposição da crítica para com o gênero, os filmes musicais carnavalescos eram praticamente a única produção cinematográfica perpetuada no Brasil e foi o principal sustentáculo para a continuidade da produção brasileira até a década de 1950, quando passou a coexistir com a diversificação de gêneros, e de filmes mais bem acabados, que ressaltavam o seu estágio de atraso. Em contrapartida, a chanchada também apresentou naquele momento a sua melhor forma, principalmente devido a renovação de seus quadros técnicos, que acabaram por propiciar melhorias consideráveis em sua realização. Além disso, o gênero encontrou um aumento considerável em sua produção, pois passou a ser produzido por outras produtoras de maneira regular, que junto ao estúdio Atlântida, principal realizadora das chanchadas, supria o mercado do entretenimento cinematográfico. Dessa forma, este trabalho visa dar atenção aquela relação conflituosa da crítica com o principal gênero fílmico brasileiro em vigência na década de 1950, e da sua boa aceitação pelo público. A despeito das tentativas para a produção de “cinema sério”, afinado com as demandas estéticas e artísticas dos intelectuais, a chanchada parecia ser a única alternativa possível para algum êxito comercial do cinema brasileiro. Esta constatação gerava um verdadeiro incômodo para as várias linhagens da crítica brasileira, fosse esta mais elitista, que condenava a vulgaridade estética e técnica que estes filmes representavam, ou a crítica de caráter esquerdista, que via aqueles filmes como alienadores da massa inculta brasileira. Num momento que a crítica tomava para si a tarefa pedagógica de refinar o gosto cinematográfico e estético do grande público, esta tomava a chanchada como desviante natural do projeto da elevação da cultura cinematográfica no Brasil. Cabe salientar que o campo da crítica cinematográfica não era um grupo homogêneo que partilhava das mesmas ideias. Assim como em todo campo, existiam lutas simbólicas internas para a imposição de sua própria visão de mundo e ideias sobre as outras. Existiam divergências ideológicas e diferentes apontamentos para os usos do cinema e a concepção do público e do povo brasileiro. Os escritos de diversos críticos com diferentes opiniões sobre o cinema brasileiro e sobre as chanchadas serão nossos meios para melhor compreender este dilema. 14 Um ponto importante que procuramos desvendar nesta dissertação é que mesmo partindo de diferentes visões, concepções e posicionamentos políticos, as chanchadas foram quase unanimemente entendidas como algo negativo pela maioria dos críticos, mesmo que regidos por conotações ideológicas distintas, acabavam por convergir numa posição muito semelhante em relação ao gênero. Embora vista conforme diferentes pontos de vista, a chanchada era desqualificada por parte de suas insuficiências técnicas, estéticas ou políticas pelos intelectuais. Segundo Bourdieu, a desqualificação é quase um dado "natural" utilizado como recurso no estabelecimento da hegemonia dos gostos, ideias e símbolos de um campo, e os críticos se utilizam deste mecanismo para estabelecer a superioridade ou inferioridade de um bem cultural sobreoutro. 4 Desta forma, a desqualificação foi uma das principais formas que a crítica encontrou para sobrepujar a chanchada. A pesquisa que resultou este trabalho não se baseou na leitura de fontes de um único jornal ou revista, nem na busca da linhagem de determinado crítico ou periódico, mas sim teve a intenção de tomar o discurso geral da crítica, ao menos o dos críticos atuantes na região sudeste, principalmente do eixo Rio-São Paulo. Assim, nos debruçamos sobre o esforço comum por parte da crítica na sua contribuição para a modernização da cultura brasileira através do cinema, que teve como consequência o posicionamento dos críticos contra a chanchada. O recorte temporal majoritário da pesquisa foi a década de 1950, mas sem deixar de lado a década precedente, quando a crítica de cinema passou a demonstrar as preocupações cinematográficas que iriam eclodir na década seguinte, assim como os primeiros anos da década de 1960, principalmente antes do advento do Cinema Novo e a tentativa de revolução que o movimento empenhou realizar na cultura brasileira. Os principais periódicos consultados foram os suplementos literários e as colunas de cinema de meio de semana do Jornal do Brasil e de O Estado de São Paulo, assim como o jornal Correio da Manhã, as revistas Filme, Fundamentos e Revista de Cinema, esta última consistindo na única fonte fora do eixo composto pelas duas principais cidades do país até aquele instante, já que era publicada em Belo Horizonte. Ressaltamos que para além dos textos críticos, teóricos e analíticos de caráter mais intelectualizados presentes nos suplementos literários direcionados certamente para um público já acostumado às regras internas do campo cinematográfico, foram levados em consideração também as resenhas, as notas de imprensa, os anúncios publicitários relacionados ao lançamento do filme, bem como 4 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011. 15 os textos propriamente que se dedicavam a análise das obras. Desta forma, através desta gama de fontes históricas, buscamos acessar a reconstrução de um mundo de experiências por meio de vários indícios que permitem averiguar como os críticos de cinema se relacionavam com uma manifestação cultural que estava distante de seus interesses para com o cinema, mas próximos dos elementos que a modernização buscava extirpar, por significar a continuidade do atraso cultural que demarcava a sociedade brasileira. Desta forma, este trabalho está dividido em três capítulos que abarcam a relação da crítica cinematográfica com o cinema brasileiro, e mais particularmente com a chanchada. O primeiro se dedica ao contexto do cinema brasileiro e as principais discussões que estavam presentes no seio do campo cinematográfico até os primeiros anos da década de 1960, relacionando-o com o contexto geral do país, e as principais discussões que abalizavam as análises dos críticos. Aqui são abordadas as leis de proteção ao cinema brasileiro e o baixo valor dos ingressos, e como estes fatores propiciavam o bom êxito das chanchadas no circuito exibidor. Em seguida, traçamos um panorama da recepção da chanchada pela crítica, abordando o momento em aqueles filmes que compunham um traço de subdesenvolvimento da cultura brasileira se tornaram um gênero respeitado da história do cinema brasileiro. O segundo capítulo foca exclusivamente as discussões que delimitaram a crítica cinematográfica e sua atividade no Brasil. Assim, são abordados os debates em torno da renovação do método crítico, um dos principais assuntos que nortearam as discussões de diversos críticos em meados da década de 1950, que apresentava de modo sistemático qual seria a funcionalidade da crítica e ressaltava aos críticos brasileiros quais os elementos que deveriam levar em consideração para adequar suas análises às novas demandas políticas e culturais. O debate em torno de tal renovação foi colocado em prática pelos intelectuais vinculados à Revista de Cinema, e ganhou repercussão que extrapolou a capital mineira. Os críticos estavam preocupados com a renovação e modernização do método crítico com base nas indicações de vários críticos e intelectuais estrangeiros, a fim de tornar a crítica mais eficiente e qualitativa no Brasil. Aqui também será abordado o debate ocorrido entre os críticos mineiros, transcrito nas páginas do periódico no ano de 1964, que significou uma interessante reflexão acerca da atuação da crítica de cinema durante na década anterior, realizada pela própria crítica. Por fim, no último capítulo, inicialmente abordamos a intensificação da cultura cinematográfica colocada em prática pelos vários integrantes do campo cinematográfico, por 16 meio da criação de cineclubes, cursos de introdução a educação cinematográfica e outros espaços criados para intensificar a socialização cinéfila e intelectual em torno do cinema. Por fim, procuramos desvendar como todo este aparato intelectual criado para sofisticar o gosto cinematográfico e estético do grande público se relacionava com a tradição cômica da chanchada. Antes de o gênero incomodar a intelectualidade unicamente por causa da insuficiência técnica de suas produções, a continuidade de determinado tipo de humor que demonstrava o imaginário considerado atrasado da população brasileira – indicado pelos críticos como vulgar – era uma das principais causa da ojeriza quase completa da crítica de cinema. A reflexão acerca deste ponto se mostra como reveladora da relação da intelectualidade com a cultura das camadas populares da sociedade brasileira. 17 1 DESANCANDO AS CHANCHADAS 1.1 Introdução Entre 1950 e 1979, havia entre os brasileiros a sensação de que faltavam poucos passos para finalmente nos tornarmos uma nação moderna, pronta para dar início a uma nova civilização nos trópicos. Desde a década de 1940, o Brasil passava por um momento importante em seu processo de industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente mais avançados. Era o momento de desenvolvimento e construção de uma economia moderna, que incorporava os padrões de produção e de consumo em sintonia com os países desenvolvidos. 5 Era a possibilidade da superação do subdesenvolvimento e atraso que pareciam inerentes à realidade brasileira, que finalmente pareciam terem a oportunidade de serem superados. As palavras-chave que demarcaram aquele período foram industrialização, urbanização e tecnologia, e quase todos os grupos sociais estavam tomados do espírito ufanista que tangia o projeto nacional-desenvolvimentista que assolava aquele momento. 6 O país estava afinado com o processo que estava a transformar os países mais desenvolvidos desde o final da Segunda Guerra Mundial e, responsável pelo tom de mudança e otimismo, respingou na sociedade brasileira. O apontamento do historiador Eric Hobsbawm é esclarecedor para o entendimento da tônica daquele momento, mesmo que se refira à realidade europeia: Durante os anos 50, sobretudo nos países desenvolvidos, cada vez mais prósperos, muita gente sabia que os tempos tinham de fato melhorado, especialmente se suas lembranças alcançavam os anos anteriores à Segunda Guerra Mundial. [...] O mundo, em particular o mundo do capitalismo desenvolvido, passara por uma fase excepcional de sua história; talvez uma fase única. Buscaram nomes para descrevê- la: “os trinta anos gloriosos” dos franceses, a Era de Ouro de um quarto de século dos anglo-americanos. [...] O dourado fulgiu com mais brilho contra o pano de fundo baço e escuro das posteriores Décadas de Crise [...]. O mundo industrial se expandia por toda à parte; nas regiões capitalistas e socialistas e no “Terceiro Mundo”. 7 Durante a década de 1950, principalmente no governo do presidente Juscelino Kubitschek,o Brasil também conheceu a experiência dos “anos dourados”, momento de grande otimismo e de modernização do país, propiciado pelo ímpeto desenvolvimentista. Segundo a 5 MELLO, João Manuel Cardoso e NOVAIS, Fernando A.. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: Lilia Moritz Schwarcz (Org.). História da Vida Privada no Brasil, Volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 560. 6 VELLOSO, Monica Pimenta.. “A dupla face de Jano: romantismo e populismo”. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 172. 7 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX : 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 253-256. 18 historiadora Ângela de Castro Gomes, não é fortuito que “a memória coletiva venha consagrando a identificação desse tempo com a expressão os anos dourados”: 8 JK, enquanto presidente, mobilizou a esperança como recurso de poder e propiciou o sentimento de que o país estava passando por mudanças cruciais que tornariam o “novo” possível. Era a chance de se desvencilhar da imagem de um país agrário e atrasado e a de se aproximar da realidade atraente dos países desenvolvidos. Além disso, o governo de JK é considerado como de estabilidade política junto ao desenvolvimento econômico, contrariando o padrão de “instabilidade crônica” que caracterizava a vida política brasileira desde a Revolução de 1930. 9 A esse respeito, a ânsia pelo novo extrapolou as esferas econômicas e políticas e se refletiu também nos campos das artes e da cultura. Tem-se o início do “tempo cultural acelerado”, não só propiciado pela abertura política, mas também pela formação de um público urbano, que fez emergir uma cultura de massa em bases mais sólidas. No campo das artes, eram metas de mobilização e interesse unânime entre os intelectuais procurar saídas para o subdesenvolvimento, buscando integrar as camadas populares e criar uma arte de acordo com a “nova” realidade na qual se encontravam. Buscavam-se novas formas de expressões artísticas capazes de integrar cultura, modernidade e desenvolvimento. 10 Assim, pululam tentativas de modernização nos mais diversos setores artísticos: na música, no teatro, nas artes plásticas, na poesia, no cinema. Percebe-se o aumento quantitativo e qualitativo de debates e discussões em torno destas questões, muitas das vezes difundidos nos meios de comunicação de grande alcance, como nos jornais e revistas que surgiram ao longo da década. Cabe destacar que durante a década de 1950, foram criados os suplementos literários ou espaços destinados à cultura através de seções específicas em quase todos os grandes jornais diários. Nestes suplementos havia a coexistência tanto da divulgação das ideias conservadoras, quanto espaço aberto para as vanguardas artísticas e culturais, que possibilitava identificar neles a introdução de novas ideias, temas e linguagens, isto é, de tendências que iriam se desenvolver – e dominar – as décadas seguintes. 11 Os suplementos do Jornal do Brasil e do Estado de São Paulo se destacaram por conta da contribuição de intelectuais que estavam buscando reconhecimento naquele período. Esses periódicos tinham fortes ranços acadêmicos na organização de seus suplementos: o Jornal do 8 GOMES, Ângela de Castro (Org.). Brasil de JK. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002, p.11. 9 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo de Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política, 1956-1961. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 22. 10 VELLOSO, Monica Pimenta. Op. cit. 172-173. 11 ABREU, Alzira. “Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 1950”. In: _______ (Org). Imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos anos 1950. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p. 19. 19 Brasil possuía um organizado "departamento de pesquisa” e o Estado de São Paulo, tinha na figura de Antonio Cândido a figura de proa para que os debates uspianos se estendessem para fora da Universidade e alcançassem ampla circulação junto ao grande público. Cândido apenas aceitou reconhecer e planejar o suplemento e dotá-lo com as características intelectuais que marcavam o ambiente cultural paulista. Entretanto, ele não aceitou dirigi-lo, cabendo esta tarefa a Décio Almeida Prado, crítico teatral que posteriormente se tornou também professor da USP, na Escola de Arte Dramática. Cabe destacar a opinião de Alzira Alves de Abreu para quem na antiga capital federal se encontravam os melhores suplementos do país, enquanto São Paulo se caracterizava por ter o melhor centro universitário. 12 No Rio de Janeiro, também havia os suplementos do Correio da Manhã e o Diário Carioca, igualmente preocupados em divulgar os movimentos de vanguarda. 13 E desta maneira, no final da década de 1950 e início de 1960, todo o debate que fervilhou nas páginas dos suplementos e outros periódicos especializados contribuíram para a elaboração do Teatro do Oprimido, da poesia concreta e do Cinema Novo. Podemos apontar isto como resultado das discussões do futuro do país através das vanguardas, por meio das linguagens artísticas, preocupadas em criar no público médio popular uma consciência política e social – mesmo que não levassem em contra a opinião e a questão do gosto deste público. Com o advento de movimentos, obras e artistas de vanguarda sintonizados com as novas tendências e ao gosto dos críticos, havia por outro lado a existência de objetos culturais mais afinados com o gosto das classes populares, como por exemplo, as chanchadas, nosso objeto de interesse. A coexistência de ambas as partes nem sempre era pacífica, já que a crítica, artistas e intelectuais buscavam a superação de atraso cultural que estas manifestações populares continham em sua forma e conteúdo. E para isso se valiam de seu poder e acesso aos meios de comunicação e da suposta superioridade intelectual para sobrepor seu gosto sobre o que era considerado inferior. Na tentativa de superar esse problema, que perturbava também a própria consolidação dos objetos culturais considerados superiores, a educação das massas incultas aparecia como uma solução necessária. Durante muito tempo, tais objetos de caráter “popular” não foram compreendidos como fundamentais para o entendimento da visão de mundo desta parcela da sociedade, e tendiam a ser excluídos em prol do gosto estético da classe dominante – excluídas pelo menos da academia e dos manuais de arte, pois na memória do grande público, as chanchadas ficaram 12 Idem, p. 53. 13 Ibidem, p. 47. 20 guardadas independentes das opiniões dos críticos daquele momento, refletindo a suposta “cumplicidade” que o gênero tinha com seu público. Memória esta, que somada aos estudos históricos e teóricos, acabaram por reabilitar a chanchada ao seio do próprio campo cinematográfico e intelectual, como podemos ver nas diversas tentativas de releitura e da busca de outras chaves de leitura pelo qual o gênero passou nas últimas décadas. Gradualmente a hegemonia na concepção da falta de qualidade daqueles “abacaxis” – pois os filmes eram assim denominados – passou a ser questionada e diversas questões passaram a ser repensadas. Um ponto passou a ganhar destaque durante o passar dos anos, mesmo que sujeita as dificuldades que esbarram na ausência de fontes históricas que permitam resultados mais sólidos, que foi a busca pelo melhor entendimento da questão do gosto do público popular. O gosto do público confronta-se com diversas questões que o crítico ou o pesquisador não consegue responder de forma precisa já que em grande medida foge da sua própria grade de entendimento, ocasionando muitas vezes em explicações dotadas dos preconceitosculturais arraigados na cultura universitária e intelectual para explicar as manifestações artísticas consumidas pelas camadas populares. Assim, a própria visão de mundo do intelectual/pesquisador se choca com a do grande público e alguns diagnósticos acabam por refletir mais o gosto do intelectual e seus juízos de valor do que a reflexão mais condizente acerca das manifestações artísticas que não sejam compartilhantes dos cânones que regem o pensamento artístico. Desta maneira, os apontamentos de Pierre Bourdieu nos são úteis ao indicar que existe certa hostilidade das classes populares e das frações menos ricas em capital cultural das classes médias em relação a qualquer espécie de experimentação formal em arte. Isso pode ser visto na relação do público popular com as diferentes manifestações artísticas e culturais como, por exemplo, no teatro ou no cinema, onde tal público diverte-se com intrigas orientadas para um happy end, do ponto de vista lógico e cronológico, demonstrando pouca preocupação com as transformações ou evoluções das linguagens artísticas. Enquanto isso, os partilhantes dos cânones artísticos rejeitam “o que é genérico, ou seja, comum, ‘fácil’ e imediatamente acessível”, tentando escapar da redução a que o individuo de conhecimento médio faz de sua relação com a arte. 14 Destarte, em meio a essa diferenciação da relação com as manifestações artísticas por parte dos pesquisadores/intelectuais e o público, muito do que foi comentado acerca deste tema foi marcado por esta maneira de conceber os objetos 14 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk Editora, 2011, p. 35. 21 artísticos. Em meio a esta tensão é que podemos encontrar, por exemplo, o gênero da chanchada: ele possuía larga aceitação popular, enquanto era hostilizada pela maioria dos críticos e intelectuais. Desta forma, corroborando com os indicativos de Bourdieu, em meio ao debate acerca da noção de público pelos integrantes do campo cinematográfico, o diretor Mario Civelli em comunicação apresentada no I Congresso do Cinema Brasileiro, afirma que os que procuravam pelos filmes brasileiros – mas que podemos também pensar em relação ao cinema estrangeiro – pouco estavam preocupados com toda a discussão estética (ou política), mas apenas em seu próprio divertimento e fruição daquele momento de lazer: O público perdoa uma fotografia mais ou menos. O público não liga muito para a qualidade de som, isto é, não se importa se o som é feito com aparelhos de fama internacional, se a modulação dos baixos e agudos é perfeita. O público quer discernir o que os atores dizem e o que a orquestra toca. O que o público quer é uma historia boa. Uma historia que diga algo para todo mundo, seja esse banqueiro ou camponês. O público quer ver seus personagens crescerem, desenvolverem-se dentro de uma lógica, mesmo que seja ilógica, proporcional, continuativa. 15 É nesse quadro que podemos encontrar o gênero da chanchada no cinema brasileiro: ela possuía larga aceitação popular, enquanto era hostilizada pela maioria dos críticos e intelectuais. As chanchadas conseguiram o feito de garantir para si, um público certo e garantido, nesse caso as camadas populares da sociedade que garantiram um fato inédito do cinema realizado no Brasil: tal público ia ao cinema destinado a consumir um filme brasileiro. 16 As chanchadas foram o sustentáculo para o funcionamento da indústria cinematográfica brasileira durante a década de 1940 e na década 1950 atingiu sua fase mais produtiva e qualitativa. Tais filmes tinham como influência o teatro de revista, o rádio, o circo e diversos outros elementos sem prestígio cultural, repetindo fórmulas de sucesso comprovado e buscando estabelecer uma política baseada no estrelismo, como acontecia nos Estados Unidos. João Luiz Vieira indica que tais filmes eram realizados num esquema industrial, sustentado por técnicas pouco sofisticadas que tinham por objetivo o lucro máximo através de poucos custos, criando filmes então unicamente feitos para o mercado. 17 Assim, em 1941 foi 15 CIVELLI, Mario. Experiências pessoais sobre o cinema nacional. A Cena Muda, Rio de Janeiro, n. 21, 22 de maio 1952, p. 29. 16 DIAS, Rosangela de Oliveira. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1993, pp. 10-11. 17 VIEIRA, João Luiz. "A chanchada e o cinema carioca (1930-1955)". In: RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987, p. 160. 22 inaugurada a Atlântida Cinematográfica, a principal produtora das chanchadas, que funcionou até 1962, sendo responsável pela produção de 66 filmes de ficção e 20 cinejornais. A Atlântida encontrou no gênero a melhor forma de manter uma produção contínua, e com garantia de público. As chanchadas, inclusive, passaram por transformações até em sua própria estrutura durante a década de 1950: muitos dos filmes pertencentes ao gênero, que tinham como principal elemento o caráter musical, deixou de lado este aspecto e se focou unicamente na comédia, seja paródica, satírica ou outra, deixando cada vez mais de lado a sua dependência dos temas carnavalescos e do sucesso dos artistas de rádio. Podemos citar neste caso os filmes Nem Sansão ou Dalila (1954), Matar ou Correr (1954), Treze Cadeiras (1957), Esse milhão é meu (1958) e O homem do Sputnik (1959), todos dirigidos por Carlos Manga. No documentário Assim era a Atlântida (1975), que será mais detidamente comentado à frente deste capítulo, Manga denota um fator evolutivo para as comédias da Atlântida, 18 em que fica mais claro no depoimento do ator Cyll Farney: antes os filmes eram marcados por “bolas vermelhas, fumaça de gelo seco, muita pancadaria” e posteriormente “com a chegada de Manga à direção, “[...] os efeitos de luz substituíram definitivamente as rampas, o gelo seco e as bolas coloridas; já a fotografia era um gosto especial do diretor, que privava por resoluções apuradas, seguidas de música de boa sonoridade”. 19 O estúdio também produziu alguns “filmes sérios”, como Também Somos Irmãos (José Carlos Burle, 1949), A Sombra da Outra (Watson Macedo, 1950) e Amei um bicheiro (Jorge Ileli e Paulo Wanderley, 1952), que obtiveram bastante sucesso de crítica e público, no entanto, foi com a chanchada que ela manteve sua produção em continuidade. O primeiro filme traz reflexão acerca do problema do racismo no Brasil; o segundo é elogiado devido a diversificar os temas comumente trazidos ao público pela produtora carioca, se arriscando sob a trama psicológica e se afastando dos temas carnavalescos e servindo de alento aos “animados de nosso cinema”. 20 Enquanto isso, o outro é tido como um dos pontos altos de toda cinematografia brasileira e é dito que foi um grande sucesso nos Estados Unidos, 18 Carlos Manga e Watson Macedo foram os dois principais diretores da Atlântida responsáveis por dotar as chanchadas de uma atmosfera mais sofisticada, com melhor acabamento técnico, diferente dos filmes das décadas anteriores, em que o caráter improvisado estava muito mais explicito. In: VIEIRA, João Luiz., Op. cit., p. 172 19 Assim era a Atlântida. Direção de Carlos Manga. Rio de Janeiro: Atlântida Cinematográfica, 1975, apud SOLANO, Alexandre Francisco. Nos passos do urubu malandro – Do picadeiro à tela: Oscarito e a Atlântida Cinematográfica. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia. Minas Gerais: Universidade Federal de Uberlândia, 2012, p. 105. 20 Jornal do Brasil, 13 de agosto de 1950. 23 21 sendo considerado por críticos da época como um “poderosodrama social”, 22 e recomendado aqueles que “criticam o cinema brasileiro por não apresentar grandes temas”. 23 No I Festival Cinematográfico do Distrito Federal, “Amei um bicheiro” foi vencedor de quase todos os prêmios, inclusive o de melhor atriz para Eliana Macedo, tantas vezes criticada quando atuava nas chanchadas 24 e foi reexibido muitas vezes ao longo da década devido a seu sucesso inicial, sendo sugerido mesmo quase três anos depois de seu lançamento na seção “Filmes que vimos e recomendamos” do Jornal do Brasil. 25 Os filmes musicais de temáticas carnavalescas ou não, foram também produzidos por outros estúdios, tais como Cinédia, Maristela e Herbert Richers. A Cinédia, com sua sede no bairro de São Cristovão, era um das poucas produtoras, em conjunto com a Brasil Vita Filmes, da empresária, atriz, diretora e produtora Carmen Santos, a estarem aptas para fornecer um filme de longa-metragem por ano e então cumprir o decreto de obrigatoriedade de exibição durante a década de 1930. A Cinédia, de propriedade de Adhemar Gonzaga, foi a empresa responsável por garantir boa parte da produção cinematográfica brasileira naquele momento, e conseguiu isso através da produção dos jornais de atualidades e das chanchadas. Manteve-se em funcionamento até 1951. 26 Enquanto isso, a Herbert Richers, produzia suas chanchadas num momento em que o gênero já começava a encontrar o esgotamento em fins da década de 1950 e nos primeiros anos da década de 1960. Inicialmente o estúdio se dedicou à produção e distribuição de filmes musicais carnavalescos, mas com a crescente estabilidade do mercado e o esgotamento daquele tipo de filme – marcada pela falência da Atlântida – passaram a produzir dramas, e deram origem a filmes de grande sucesso de público e crítica como O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, e Assalto ao trem pagador (Roberto Farias, 1962). Em balanço sobre a produção de filmes realizados no Brasil em 1964, o periódico mineiro Revista de Cinema, informa que Herbert Richers, que antes fora marcado pelo “conservantismo” e pela “política de chanchadas”, percebeu o boom originado pelo 21 Jornal do Brasil, 07 de setembro de 1953. 22 Jornal do Brasil, 11 de março de 1953. 23 Jornal do Brasil, 11 de janeiro de 1953. 24 Jornal do Brasil, 13 de novembro de 1953. 25 Jornal do Brasil, 29 de junho de 1955. 26 SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: Annablume e Fapesp, p. 123. 24 cinema nascedouro (neste caso o Cinema Novo) e resolveu investir em um cinema que fosse digno de nota. 27 Mesmo com a falência dos estúdios paulistas e suas tentativas de implantar uma produção cinematográfica com bases industriais de molde hollywoodiano, como ocorreu ao superestimado estúdio Vera Cruz, tido como o redentor e marco inicial da experiência cinematográfica brasileira, assim como os menores estúdios, tal como Maristela e Kino Filmes, a Atlântida prosseguiu com sua produção contínua até o início da década de 1960. Os estúdios paulistas, principalmente a Vera Cruz, na pretensão de atingir a “expressão cultural” condizente com os anseios políticos da elite cultural que criticava o tom popularesco e vulgar das chanchadas, tornando o cinema também afinado com a modernização por qual passava a sociedade brasileira naquele momento. 28 Para a exasperação dos críticos avessos aos filmes musicais carnavalescos e a comédia ligeira sem pretensões intelectuais ou artísticas, a Atlântida alcançou na década de 1950 o seu ápice, e pareceu ser o único tipo de filme que o cinema brasileiro era capaz de produzir naquele momento. Embora tenha havido a experiência de alguns diretores e filmes independentes – estes de certa forma tendo suas experiências por vezes amplificadas mesmo que fossem modestas, traziam algum alento para os que ainda mantinham esperança de um cinema brasileiro de “qualidade” –, era a chanchada que parecia sobreviver a todas as supostas crises que se abatiam sobre o cinema brasileiro ainda na primeira metade da década. Na critica a chanchada “É a Maior” (Carlos Manga, 1958), o crítico Geraldo Queiroz do Jornal do Brasil, relata em tom de lástima que o cinema brasileiro parecia estar “fadado a estar no estágio das chamadas chanchadas cinematográficas”, principalmente as produções realizadas no Rio de Janeiro: Pelo menos é essa a impressão deixada pelas produções realizadas aqui no Rio em confronto com o bem intencionado cinema produzido em São Paulo. Enquanto na vizinha capital, produtores e diretores buscam uma saída para o marasmo de uma indústria que se arrasta há 30 anos, os daqui não tentam progredir na realização de filmes de certo padrão – não diremos artísticos – mas que fujam necessariamente ao que vem se realizando de uns anos para cá no Distrito Federal. 29 Desta forma, é imprescindível avaliar os principais pontos que caracterizavam o cinema brasileiro naquele momento para melhor compreender o papel da chanchada e seu rechaço pelos críticos e outros intelectuais preocupados com as questões que envolviam 27 Revista de Cinema, Volume 4, setembro-outubro de 1964, p. 33. 28 VIEIRA, João. Op. cit., p. 165. 29 Jornal do Brasil, 16 de julho de 1958. 25 cinema e cultura no Brasil. Na década de 1950, o assunto foi motivo acalorado de debates e discussões em prol de seu desenvolvimento, consolidação e até mesmo da existência do cinema brasileiro. Foi o momento da realização de grandes festivais de cinema e do lançamento de periódicos hiperespecializados que alimentavam os afãs de um público cinéfilo que clamavam por um cinema de qualidade, por um cinema que ainda não existia naquele momento, mas que entre esperanças e desesperanças, poderia ser realizado no Brasil, se todos os prognósticos do campo cinematográfico fossem colocados em prática. Seria um cinema articulado ao gosto estético refinado e mais coeso com a produção cinematográfica que trazia admiração aos críticos. 1.2 Impasses do cinema brasileiro na década de 1950 Durante os primeiros anos da década de 1950, foram organizados os três Congressos de cinema, que desempenharam papel de importância na discussão que caracterizava a realidade da produção cinematográfica brasileira e a relação com os mercados externos: o I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro - realizado em São Paulo entre 15 e 17 de abril de 1952, o I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro - ocorrido no Rio de Janeiro entre 22 e 28 de setembro de 1952 - e o II Congresso Nacional do Cinema Brasileiro - ocorrido em São Paulo entre 12 e 20 de dezembro de 1953. Os congressos refletiam o espírito do tempo que circulava naquele momento: o diagnóstico dos problemas brasileiros e suas eventuais soluções. 30 Após este momento de euforia, proporcionado pela ânsia de refletir acerca do cinema brasileiro de forma mais sistemática, o Congresso de Cinema Brasileiro só foi se tornar uma entidade permanente no fim da década de 1990. Ainda podemos apontar como fundamental para a discussão da crítica de cinema no país, a I Convenção da Crítica Cinematográfica realizada em 1960. Cabe salientar que os principais pontos que davam a tônica do imaginário sociopolítico naquele período estavam bastante fincados nos assuntos que foram tratados nos congressos cinematográficos durante a década de 1950: a industrialização do cinema brasileiro, norteado por questões desenvolvimentistas e nacionalistas. A fim de traçar 30 Muito do debate em torno das questões cinematográficas estava atrelado às discussões gerais que se dedicavam a pensar os problemas que afligiam o país, que o tornavam subdesenvolvido. Era o tempo do ISEB, e este influenciava empartes este debate, por propor o rompimento das barreiras que travavam o desenvolvimento do Brasil. Tratava-se então da tentativa refletir acerca do subdesenvolvimento do país e lutar pela superação desse estágio, por meio de um esforço desenvolvimentista. TOLEDO, Caio Navarro. ISEB: Fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977, p. 18. 26 “diretrizes e assentar medidas concretas para a consolidação e o desenvolvimento de nosso cinema”, 31 foi lançado um manifesto de convocação de participação no I Congresso de Cinema Brasileiro, assinado por grande número de profissionais de cinema, que representavam os vários setores do campo cinematográfico: os produtores, distribuidores, exibidores, críticos e membros de clubes de cinema. O manifesto clamava a participação dos interessados para que houvesse a resolução dos problemas que perturbavam o surto industrial pelo qual passava o cinema brasileiro naquele instante: O surto industrial por que atualmente passa o nosso cinema acarreta um número crescente de problemas, de ordem econômica, cultural e profissional, que exigem soluções práticas e imediatas. Daí a necessidade de uma reunião de âmbito nacional que congregue todos os interessados no livre desenvolvimento do cinema brasileiro e que aproveite a experiência das reuniões anteriores, cujos benéficos resultados já se fizeram sentir. 32 De acordo com as resoluções advindas do I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, se pôde perceber a partir das discussões que marcaram o debate, uma forte preocupação com o fator da proteção as produções nacionais, para assim incentivar seu fomento e a consequente solidificação da indústria cinematográfica brasileira. A criação de um sindicato para tratar dos assuntos referentes ao cinema e de seus profissionais foi ponto de grande envergadura durante os debates, como podemos perceber pela ênfase atribuída a isto nas resoluções finais do Congresso. Nota-se nas resoluções a todo instante a necessidade de alterar a realidade cinematográfica brasileira, retirando-a da insipiência a fim de driblar o sentido de improvisação que marcava o cinema brasileiro como um todo: "nada de aventuras". Ainda temos o aviso ao governo brasileiro em tom imperioso da necessidade de atenção ao bom filme brasileiro, em detrimento do mau, marcado pela aventura e pelo oportunismo de uma má interpretação da insuficiente legislação que tange aos filmes brasileiros. "Puja-se a vulgaridade. Renuncie-se ao espírito de imitação. Cultive-se a originalidade e divulgue-se o belo”. 33 Tais congressos foram levados à frente pela ação de críticos, profissionais e estudiosos de cinema, que debateram os problemas que caracterizavam a realidade da indústria cinematográfica brasileira, a fim de encontrar soluções possíveis para a superação da situação que parecia incontornável. Nos anos 1950, Paulo Emilio Salles Gomes ao pensar a questão, indica que o cinema não refletia o desenvolvimento rápido e crescente do Brasil: no momento 31 Jornal do Brasil, 12 de setembro de 1952, p. 13. 32 Idem. 33 Jornal do Brasil, 5 de outubro de 1952, p. 5. 27 que o país deixava para trás gradualmente seu lado arcaico, o cinema se caracterizava como um fator retardatário em meio a uma economia que se modernizava. 34 Na esperança de se consolidar uma indústria cinematográfica moderna e respeitável, era de praxe que os entusiastas do cinema brasileiro almejassem um cinema comparável às produções internacionais, que serviam de parâmetro de qualidade, tanto em nível técnico quanto estético. Arthur Autran declara que o auge da busca por um cinema brasileiro de qualidade se intensificou nos anos 1950, momento em que esta demanda seria “muito mais significativa do que em qualquer momento anterior”. Pois, a “moeda dourada”, a resultante que era a qualidade, se firmava como a “peça mágica por meio da qual o cinema brasileiro alcançaria o nirvana da indústria sólida e do respeito artístico”. 35 Assim, para muitos críticos daquele momento, o elemento substancial para se decretar a existência do cinema brasileiro seria a qualidade artística, como se tal qualidade fosse fruto livre de discussões, já que seria um dado natural, não tido como algo construído e solidificado pelo gosto estético dos próprios críticos. Devemos nos atentar aos discursos em favor de determinada noção de qualidade ou a ausência dela no tocante ao cinema brasileiro. Com base nas indicações propostas por Pierre Bourdieu, as categorias utilizadas para perceber e apreciar uma determinada manifestação artística está duplamente ligado ao contexto histórico: em associação a um universo social situado e datado, elas são objeto de usos também marcados socialmente pela posição social dos utilizadores que envolvem, nas opções estéticas por elas permitidas, que acabam por consolidar o seu próprio habitus. 36 Desta forma, num contexto de modernização da sociedade como um todo, e atrelado a isto o cinema e a industrialização da produção fílmica brasileira, a busca pela elevação da pretensa qualidade do cinema brasileiro aparecia aos agentes do campo cinematográfico como fator essencial para a consolidação de tal empreitada. Autran ainda afirma que a crença existente naquele momento de parte do campo cinematográfico no quesito da "qualidade" como maneira para solucionar os males que afligiam o cinema brasileiro é muito mais acentuada do que em qualquer outro momento anterior. Abílio Pereira de Almeida, diretor ligado à Vera Cruz, resume bem a crença na 34 BERNARDET, Jean-Claude e GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica: (as ideias de "nacional" e "popular" no pensamento cinematográfico brasileiro). São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 172. 35 AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. Campinas: Tese apresentada ao curso de Doutorado em Multimeios do Instituto de Artes da UNICAMPO, 2004, p. 188. 36 BOURDIEU, Pierre. Gênese histórica de uma estética pura. In: _________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 292-293. 28 "qualidade": de acordo com depoimento cedido ao cronista Manoel Jorge, do Diário Popular, o diretor do estúdio paulista acreditava que películas com "boa qualidade técnica", alem de propiciar crédito à produção cinematográfica brasileira, traria escopo para o aumento do filme brasileiro no mercado externo, possibilitando desta maneira o retorno do custo despendido na produção dos filmes. 37 Tal crença na "qualidade" levou parcela do campo cinematográfico a atacar a legislação protecionista que garantia a exibição obrigatória, aliando-se em certos momentos, aos distribuidores e exibidores. Estes agentes, tradicionalmente usavam o argumento da falta de "qualidade" para se opor a qualquer auxilio do Estado ao cinema brasileiro que permitisse o seu avanço no mercado, pois possivelmente traria ônus aos seus negócios. Podemos também salientar que esta pretensa qualidade para parcela dos críticos era baseada para além unicamente dos requisitos da técnica e da estética, uma vez que englobava quesitos que levavam em conta aspectos políticos e sociais, que se coadunavam como fator importante no que dizia respeito a esta questão. O momento de intensa disputa entre discursos – muitas vezes inflamados ideologicamente – atrelados à direita ou à esquerda, era assolado pela discussão em torno do nacionalismo e desenvolvimentismo, que marcavam as ações de parcela dos críticos e outros agentes do campo cinematográfico, e geravam verdadeiras celeumas entre os envolvidos, como ficaram documentados nos jornais, periódicos e atas, assim como na cobertura dos congressos e outros encontros. Nesta seara, o neorrealismo italiano era um dos assuntos mais discutidos peloscríticos nos principais periódicos durante boa parte dos anos 1950 e reunia mesmo que condensada, muitos dos aspectos que rodeavam a contenda ideológica do campo da crítica. Na Revista de Cinema, o assunto rendeu diversos artigos e debates dentre os críticos do principal periódico dedicado ao cinema daquele momento. Havia espaço para a oposição, com direito a réplicas e tréplicas, dos envolvidos em tais contendas: de um lado os críticos de posição mais ligados à esquerda, mais avessos aos cosmopolitismos e geralmente nacionalistas, contra os “liberais”, geralmente mais ligados aos assuntos estritamente estéticos. O neorrealismo aparecia como a possibilidade de se fazer um cinema de qualidade e que custasse muito pouco, em detrimento do custoso cinema de estúdio, além de ser engajado e desalienante. O movimento refletia muito para posições esquerdistas, como se podia notar 37 JORGE, Manoel. 191 Horas de Pauliceia- XIII. Diário Popular, Rio de Janeiro, 17 de maio 1952., apud AUTRAN, Arthur. Op. cit., p. 188. 29 na tônica dada aos temas sociais, aos conflitos nas relações de trabalho e de classe, por meio de muitas denúncias contra as diversas formas de opressão. Estava sendo narrado o dia a dia das classes baixas, marcadas pelo desemprego, pela fome, e pela ruína provocada pela guerra, praticamente nunca marcado pelo happy end. 38 No Brasil, após o período da ditadura varguista, o neorrealismo teve grande repercussão no campo cinematográfico, principalmente dentre os afeitos às ideias esquerdizantes, pois dava alento às mudanças que estavam a ocorrer no país. O depoimento de Nelson Pereira dos Santos, realizado em 2007, demonstra pontualmente este dado: A chegada do cinema italiano ao Brasil provocou uma grande quebra na ‘dieta’ cinematográfica e cultural que nos era imposta, de um lado, pela predominância do cinema americano nas telas e, de outro, pela ditadura, que impedia o funcionamento de sociedades privadas culturais, como os cineclubes. Estes eram uma coisa perigosa, proibida e muito controlada pela polícia. Assim, quando terminaram a guerra e a ditadura, começaram a aparecer os filmes italianos. 39 É curioso notar como o realismo no cinema sofreu uma rápida transformação no pensamento cinematográfico brasileiro em pouco mais de duas décadas. Em artigo publicado na revista Cinearte em 1929, intitulado “Porque os filmes europeus não agradam...”, o articulista (sem assinatura) nos apresenta alguns motivos pelo qual a fotografia do filme brasileiro é superior às produções europeias, devido a essas mostrarem os ângulos mais feios de seu povo e de suas terras. Em tom elitista e conservador, Cinearte se questiona como o público de cinema, que “requer gosto apurado, senso estético, espírito de beleza”, poderá gostar das produções europeias que trazem protagonistas de meia idade, barrigudos, com bigodes e cabelos repartidos ao meio. O realismo ainda é criticado no que futuramente seria o principal trunfo do movimento, que seria a utilização de ambientes naturais e de aspectos mais condizentes com realidade da população: Como se pode gostar dos filmes europeus, se os aspectos das cidades mostrados na tela, são feios, com casas velhas e ruas mal calçadas? [...] Dirão que faz parte do tão apregoado realismo. Mas a questão é que abusam da realidade. São tantas as realidades que se tornam irreais. [...] Estes ambientes sórdidos impressionam a muita gente que diz logo: Isto é arte! 40 Por conseguinte, entrando pelos méritos do neorrealismo, o principal movimento cinematográfico em pauta, os debates acerca dos elementos estéticos e sociais do cinema foram amplamente discutidos pelos críticos e outros estudiosos, causando basicamente outra polarização 38 BARROS, Orlando de. “A influência do neorrealismo italiano nos filmes brasileiros”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a. 173, n. 457, out./dez. 2012, pp. 202-203. 39 Nelson Pereira dos Santos, O cinema italiano no Brasil, um depoimento, in Cléia Schiavo Weinrauch et al., Travessias Brasil-Italia. Rio de Janeiro: EdUerj, 2007, pp. 39-41. Apud BARROS, Orlando de. Op. cit., p. 214. 40 Cinearte, Ano V, n. 207, 1930, p. 12. 30 entre dois grupos (que pode ser subdividido em algumas outras categorias) e que será mais bem discutido no segundo capítulo desta dissertação: de um lado, os esteticistas, e de outro, os críticos- históricos, tal como proposto por Fábio Lucas num artigo da Revista de Cinema. 41 Pode-se somar a isto o debate acerca da “revisão do método crítico”, proposto por diversos críticos de diferentes periódicos, mas corporificado na Revista de Cinema, principalmente durante o ano de 1954. Para o crítico Cyro Siqueira, um dos fundadores do periódico, desde as mudanças ocorridas no cinema após a Segunda Guerra Mundial, a crítica cinematográfica vinha sendo inquirida, em nível internacional, a pensar acerca de um método revisionista, mas ajustadas as novas conquistas realizadas pela sétima arte. Porém, o crítico avisa que essa necessidade não era tão recente assim, pois desde a década de 1930, o diretor russo Vsevolod Pudovkin, já clamava por algo do tipo. 42 Assim, o debate em torno da revisão reuniu as opiniões e preceitos do crítico referido acima, assim como de Salvyano Cavalcanti de Paiva, Fritz Teixeira de Salles, Carlos Denis, Alex Viany, dentre outros, assim como a participação de cinéfilos e líderes de associações cinematográficas, como era o caso do Padre Guido Logger, um dos principais líderes do cineclubismo católico. Tal “revisão” estava fortemente influenciada pelos ditames oriundos do movimento neorrealista italiano e seu estilo, assim como seu impacto sobre o cinema e sobre a sociedade, que gerava fascinação ou repulsa dentre os especialistas. Entretanto, em meio a discussões acaloradas, marcadas por polêmicas e cisões de ordem cultural, ideológica, política, econômica, etc., por parte das diferentes personalidades que compunham o campo cinematográfico, alguns assuntos tiveram mais destaques do que outros nos congressos de cinema, e consequentemente nos jornais e revistas. Os baixos valores dos ingressos e as leis de proteção e exibição do filme brasileiro foram assuntos de grande envergadura, com consequentes debates na mídia. Ambos os assuntos eram tidos como os principais problemas que tornavam a situação do cinema brasileiro como um assunto sem solução e dificultavam o desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira. Assim, o filme brasileiro em meio a todas as dificuldades inerentes a sua realização e exibição, não conseguiria se sustentar com base no baixo valor cobrado nas bilheterias de cinema devido à fixação deste por conta de mecanismos que favoreciam as empresas de 41 LUCAS, Fábio. Sobre a crítica de cinema. Revista de Cinema, Belo Horizonte, n. 18, p. 29, setembro de 1955. 42 Revista de Cinema, volume 1, abril de 1954, p. 3. 31 cinema estrangeiras. Anita Simis, se utilizando de um estudo desenvolvido pela Comissão Municipal de Cinema, afirma que em 1955, o preço dos ingressos de cinema era 5,5 vezes mais barato do que aquele que era cobrado em 1939. Desde 1951, os ingressos estavam tabelados. O documento afirmava que “a atual situação do preço dos ingressos no país é, sem dúvida, o principal fator de crise que a indústria cinematográfica nacional está atravessando. O preço das entradas no Brasil é o mais barato hoje cobrado no mundo”. 43 Mário Audrá Jr., em depoimento a Afrânio Mendes Catani, afirmou que "ganharia a parada" com a Maristela caso o valor dos ingressos não estivesse congelado, o que ocasionou várias mudanças no modo de gerir a empresa, como por exemplo, “segurar”
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