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Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. Contratação de advogados sem licitação José Afonso da Silva* Parecer A Consulta O DR. CLÁUDIO PACHECO PRATES LAMACHIA, na qualidade de Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, honrandome com o pedido de um parecer jurídico, expõe que: O “art. 25, caput e inciso II, da Lei n. 8.666/93 afirma que: É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: (…) II — para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação”. “Por sua vez, o art. 13, caput e inciso V, do mesmo diploma legal dispõe que: “Art. 13. Para os fins desta Lei, consideramse serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a: (…) V — patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas”. Por conseguinte, a * Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP. Revista de diReito administRativo282 Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. previsão de inexigibilidade de procedimento licitatório aplica-se aos serviços advocatícios, em virtude de eles se enquadrarem na catego- ria de serviço técnico especializado, cuja singularidade, tecnicidade e capacidade exigidas do profissional tornam inviáveis a realização de licitação. Acrescenta ainda que aquela entidade atua como assistente do Recor- rente Antônio Sérgio Baptista Advogados Associados S/C Ltda. no Recurso extraordinário n. 656.558/SP, de Relatoria do Ministro Dias Toffoli, cuja repercussão geral fora reconhecida. Em tal processo, é discutido se há configuração de ato de improbidade administrativa nos casos de contratação de serviços advocatícios por ente público na modalidade de inexigibilidade. Com essas considerações, consulta-me mediante a apresentação dos seguintes quesitos: 1) Atendidos os requisitos do inciso II do art. 25 da Lei no 8.666/93, é inexigível procedimento licitatório para contratação de serviços advocatícios pela Adminis- tra ção Pública, dada a singularidade da atividade e a inviabilização objetiva de compe ti ção, sendo inaplicável à espécie o disposto no art. 89 (in totum) do referido diploma legal. 2) Sendo positiva a resposta ao quesito anterior, há alguma hipótese de apli cação do disposto no art. 89 da mesma lei ou de outra lei, sob a alegação da prática de ato de improbidade administrativa nos casos de contratação de serviços advocatícios por ente público na modalidade de inexigibilidade de licitação. A resposta aos quesitos da consulta requer considerações doutriná- rias sobre o processo de licitação, assim como sobre natureza da atividade advocatícia. 1. O princípio da licitação 1. Na minha atividade jurídica, muitas vezes tenho escrito sobre licitação e seus problemas,1 de sorte que aqui não raro se encontrarão passagens de alguns desses escritos, o que, se por um lado é algo já visto, por outro revela 1 Cf., José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo, 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 683 e 684, e Comentário contextual à Constituição. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 350 e 351. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. 283JOSÉ AFONSO DA SILVA | Contratação de advogados sem licitação que não se está aqui inventando tese para o caso concreto, mas aplicando doutrina já antes estabelecida. 2. Licitação, como se sabe, é um procedimento administrativo destinado a provocar propostas e a escolher proponentes de contratos de execução de obras, serviços, compras ou de alienações do Poder Público. O princípio da licitação significa que essas contratações ficam sujeitas, como regra, ao procedimento de seleção de propostas mais vantajosas para a Administração Pública. Constitui um princípio instrumental de realização dos princípios da moralidade administrativa e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes com o Poder Público. 3. É hoje um princípio constitucional, nos precisos termos do art. 37, XXI, da Constituição, in verbis: ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. 4. O art. 37, XXI, como nele se lê, alberga o princípio, ressalvados os casos especificados na legislação. O texto é importante, porque, ao mesmo tempo que firma o princípio da licitação, prevê a possibilidade legal de exceções, ou seja, autoriza que a legislação especifique casos para os quais o princípio fica afastado, como são as hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação. Se o princípio é constitucional, a exceção a ele, para ser válida, tem que ter também previsão constitucional. Essa cláusula excepcionante é que dá fundamento constitucional às hipóteses, previstas em lei (Lei 8.666, de 1993), de licitação dispensada, de licitação dispensável e as de inexigibilidade de licitação. 5. Há ainda a considerar outro ponto relevante, qual seja o da relação entre princípio e exceção, em face da norma constitucional. O que se quer destacar é que tanto o modelo do princípio como o modelo das exceções são disposições constitucionais com o mesmo valor jurídico. Se o princípio tem predominância por caracterizar-se como uma opção política fundamental, as exceções não se diminuem de relevância porque se revelam igualmente como uma opção política destacada, precisamente porque, ao retirar ou permitir que se retire da órbita do princípio uma parcela da realidade normada, o constituinte acabou por dar a essa parcela, ou casos excepcionados ou passíveis de serem excepcionados, um valor especialmente destacado. Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Revista de diReito administRativo284 Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. 2. Inexigibilidade de licitação 6. As hipóteses de dispensa de licitação não interessam a este parecer, porque a consulta delimitou seu âmbito à hipótese do inc. II do art. 25 da de Licitações (Lei 8.666, de 21.6.1993). Citado dispositivo estatui: Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: ............................................................................................................ II — para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação. ............................................................................................................. § 1º Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudo, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. 7. Aí se tem que é inexigível a licitação quando “houver inviabilidade de competição”. E essa inviabilidade se dá não apenas nos casos indicados expressamente no dispositivo, que não são exaustivos, pois apenas enunciam hipóteses especiais, decorrentes da cláusula “em especial” constante do caput do artigo. Aí é que seinserem os serviços jurídicos ou de natureza advocatícia, tidos como especializados por incisos do art. 13 da Lei 8.666, de 1993, como se verá com mais vagar adiante. 3. Peculiaridade dos serviços advocatícios 8. A peculiaridade mais saliente dos serviços advocatícios é que eles assentam no princípio da confiança, que repugna o certame licitatório, mas essa confiança que é subjetiva sim, mas com singularidades que afastam cri térios puramente pessoais. Primeiro, porque decorre da natureza valorativa do objeto jurídico que, por se prender a circunstâncias especiais que o ligam Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. 285JOSÉ AFONSO DA SILVA | Contratação de advogados sem licitação ao titular, revela singularidade específica, depois porque as pessoas que precisam de um advogado confiam em que o seu vai resolver o seu problema. 9. Bem, examinemos um pouco esse tema. A questão fundamental atinente à inexigibilidade da licitação, como observa Carlos Ari Sundfeld, é a da determinação do objeto da contratação. As características do objeto é que definem a viabilidade ou não do certame,2 claro, à vista do disposto na legislação que regulamenta o processo licitatório. A lei da licitação inclui entre os serviços técnicos profissionais os trabalhos relativos a pareceres, assessorias, consultorias e patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas (art. 13, II, III, V). Todas essas hipóteses entram no conceito de serviços jurídicos ou de serviços advocatícios. O patrocínio e a defesa de causas judiciais ou administrativas, como se sabe, são de natureza exclusivamente advocatícia. Pareceres, assessorias e consultorias, quando sejam de natureza jurídica, se revelam serviços advocatícios porque só podem ser prestados por advogados. 10. O que diferencia os objetos jurídicos de outros objetos profissio nais é que os segundos, como os objetos da medicina, da biologia, da engenharia etc., são regidos e conhecidos por ciências exatas, enquanto os primeiros são regidos e conhecidos por uma ciência cultural, ciência valorativa, ciência interpretativa; por isso, são dialéticos, conflitivos, pois em torno de um objeto jurídico há sempre dois ou mais advogados em peleja: um põe, o outro contrapõe; um argumenta, o outro contra-argumenta, porque esse objeto é também o objeto de um processo que busca a solução do conflito de interesse em torno dele, daí que um advogado põe, o outro contrapõe e o juiz compõe, de sorte que os profissionais que a exercem, os advogados, têm uma dimensão para além do compromisso de desempenhar bem e corretamente sua profissão, porque cumpre uma função social e um munus público. Por isso escrevi: A advocacia não é apenas uma profissão, é também um munus e “uma árdua fatiga posta a serviço da justiça”. O advogado, servidor ou auxiliar da Justiça, é um dos elementos da administração democrática da Justiça. Por isso, sempre mereceu o ódio e a ameaça dos poderosos… Bem sabem os ditadores reais ou potenciais que os advogados, como disse Calamandrei, são “as supersensíveis antenas da justiça”. E esta está sempre do lado contrário de onde se situa o autoritarismo. Acresce 2 Cf. Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 43. Ricardo Franco Ricardo Franco Ricardo Franco Revista de diReito administRativo286 Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. ainda que a advocacia é a única habilitação profissional que constitui pressuposto essencial à formação de um dos Poderes do Estado: o Poder Judiciário.3 4. Objeto ilicitável 11. Disso tudo, resulta um objeto ilicitável, porque: como licitar um tal objeto? Antes de chegar ao núcleo da questão relativa à inexigibilidade da licitação de serviços advocatícios, cabe uma discussão prévia sobre a necessidade de a Administração Pública terceirizar esses serviços mediante a contratação de advogado particular. Há quem entenda que, tendo a Cons tituição instituído a advocacia pública, mediante a previsão da Advocacia- -Geral da União (art. 131) e das Procuradorias estaduais e do Distrito Federal (art. 132) para o exercício de sua representação judicial e consultoria jurídica, ficaram impedidas de terceirizar seus serviços advocatícios. Essa interpretação, contudo, requer melhor consideração. Em primeiro lugar, porque os Municípios não estão contemplados nessa institucionalização constitucional, sem embargo de poderem ter suas procuradorias, como por certo os Municípios das Capitais dos Estados e Municípios maiores as têm. Mas há centenas de Municípios que não as têm, porque sequer comportam manter procuradorias jurídicas como um serviço permanente de sua estrutura. Por isso, têm que recorrer à contração de um profissional habilitado para prestar lhes tais serviços, quando as circunstâncias o exigem. Demais, as próprias entidades federadas que têm suas procuradorias e consultorias jurídicas, não raro, se veem na contingência de contratar advogado para pareceres ou para a defesa de seus interesses em juízo. 12. Para analisar essas questões, vou me permitir partir de um caso de minha experiência pessoal, ocorrido antes da Constituição de 1988, mas, não obstante isso, ilustra bem a matéria. A Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo, em São Paulo, foi condenada a pagar vultosa importância ao autor de uma ação movida contra ela. O procurador municipal responsável pela defesa da Prefeitura lançou no expediente interno da Procuradoria Jurídica a nota de que era causa perdida, 3 Cf. José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 603, citando Eduardo J. Couture. Los mandamientos del abogado. Buenos Aires: Depalma, 1951. p. 11 e 31. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. 287JOSÉ AFONSO DA SILVA | Contratação de advogados sem licitação “seria inútil recorrer”, o que foi aprovado pela chefia do órgão. O prefeito, que era o jurista Tito Costa, ciente disso, contratou o advogado Francisco de Almeida Prado, ad exitum, para defender a Prefeitura na segunda instância. O contratado apelou, fez defesa oral e, afinal, conseguiu uma redução da ordem de 80% da condenação. Acontece que o advogado do autor da causa ingressou com ação popular contra o Prefeito, a Prefeitura e o contratado, alegando ilegalidade e lesividade da contratação, porque, argumentava, tendo a sua própria procuradoria jurídica, não era lícito contratar advogado particular para fazer o que cabia a ela. Aí, o Prefeito contratou o Professor Geraldo Ataliba para defender a Prefeitura e a ele na ação popular. Diante disso, o autor popular propôs outra ação popular contra a Prefeitura, o Prefeito e o Professor, com os mesmos fundamentos. Daí é que o Prefeito contratou meus serviços para defender a ele e a Prefeitura. Aceitei a contratação porque não tive nenhuma dúvida sobre a sua legalidade. O autor popular não o fez; poupou-me, mas continuou encontrando motivos para novas ações populares que defendi e venci a todas. 13. O caso é exemplar. Primeiro, porque mostra que, mesmo tendo a entidade sua procuradoria, pode ser necessário contratar advogado particular para sua defesa — a procuradoria se recusava a interpor recurso cabível. Segundo, porque mostra a impossibilidade de fazer licitação no exíguo prazo para interposição de recurso. Era, pois, um caso típico de inexigibilidade de licitação por uma circunstância geradora de inviabilidade de competição. Aí está um fator que é típico da atividade advocatícia: ou seja, a angústia dos prazos (vamos chamar esse fator, sem preocupação técnica, de princípio da premência). Princípio este que é incompatível com o princípio da licitação, incompatibilidade que torna inviável o processo licitatório. Estou atento à observação de que aqui só estamos no campo do patrocínio e da defesa de causas judiciais, referidoscomo serviços técnicos especializados no inc. V do art. 13 da Lei 8.666, de 1993. De fato, não preciso insistir no serviço de consultoria, porque quem dá pareceres jurídicos são juristas de notória especialização com insofismável inexigibilidade de licitação nos precisos termos do art. 25, inc. II, daquela lei. Logo, não há necessidade de quebrar lanças em favor de questão resolvida por decisão expressa da própria lei de licitação. 14. Fora, pois, dessa hipótese de clara e precisa inexigibilidade de licita ção, há o extremo de serviços advocatícios rotineiros, “que não demandam maiores conhecimentos especializados, para o fim da inexigibilidade de Revista de diReito administRativo288 Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. licitação”.4 Isso se pensarmos apenas em termos de especialização, mas, como vistos acima, há outros fatores que arredam a aplicação da licitação para a escolha de profissionais da advocacia. Como bem salientou Alice Gonzalez Borges, Professora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Salvador: Nunca é demais ressaltar e repetir que pode ocorrer a inexigibilidade da licitação de serviços advocatícios por duas causas bem definidas na legislação: ou porque se trata de serviços [de profissionais ou empresas] de notória especialização, ou porque, em muitos outros casos, se configure mesmo, por causas diversas e potencialmente inimagináveis por qualquer legislador, verdadeira inviabilidade de competição.5 Até porque, como já mencionado de passagem, o art. 25 da Lei 8.666, de 1993, que enuncia as hipóteses de inviabilidade de competição licitatória, não é exaustivo, o que se comprova pelo teor do enunciado que confere a inexigibilidade, quando inviável a competição, “em especial” nos casos indicados nos incisos do dispositivo. Há, portanto, outros casos possíveis de inexigibilidade de licitação por inviabilidade de competição fora dos enumerados no dispositivo. 15. Alice Gonzalez Borges, refletindo sobre o evidente antagonismo entre as normas infraconstitucionais do estatuto da OAB e do seu Código de Ética e as da lei geral de licitações, apresenta diversos fatores e circunstâncias que mostram a inviabilidade de competição licitatória dos serviços advocatícios. Permitome transcrever o essencial do texto daquela ilustre professora, respondendo à questão que antes ela mesma pusera, “Mas licitar como?”: O exercício ético da advocacia não se compadece com a competição entre seus profissionais, nos moldes das normas de licitação, cuja própria essência reside justamente na competição. Muito apropriadamente, o Código de Ética recomenda, no oferecimento dos serviços do advogado, moderação, discrição e sobriedade (Arts. 280 e 29 [art. 39 do NCE]).6 4 Cf. Alice Gonzalez Borges. Licitação para contratação de serviços profissionais de advocacia. RDA, v. 206, p. 136. 5 Cf., ob. cit., RDA, v. 206, p. 137. 6 Observese que a autora cita o Código de Ética anterior, superado pelo Código de Ética, baixado pela Resolução 02/2015. No que interesse a este parecer, não há diferença essencial. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. 289JOSÉ AFONSO DA SILVA | Contratação de advogados sem licitação O art. 34, inc. IV, do Estatuto da OAB, veda ao advogado angariar ou captar causas, com ou sem a intervenção de terceiros. O Código de Ética, no art. 5o, estabelece o princípio da incompatibilidade do exer cí cio da advocacia com procedimentos de mercantilização, e, no art. 7o, veda o oferecimento de serviços profissionais que impliquem, direta ou indireta- mente, inculcação ou captação de clientela [arts. 5º e 39 NCE]. Enquanto o art. 30, inc. II, da Lei 8.666/93 estatui, como um dos requisitos de habilitação técnica a indicação das instalações materiais da empresa licitante, o art. 32, § 1o, do Código de Ética do Advogado veda, nos anúncios do advogado, menções a tamanho, qualidade e estrutura da sede profissional por constituírem captação de clientela [arts. 39 e 40 NCE]. Constitui requisito de habilitação técnica dos mais importantes, na Lei 8.666/93, a comprovação, por meio de atestados idôneos de órgãos públicos e privados, do desempenho anterior do licitante em atividades semelhantes àquela objetivada na licitação (art. 30, § 3o). O Código de Ética veda, nos arts. 29, § 4o, e 33, IV, a divulgação de listagem de clientes e patrocínio de demandas anteriores, considerados como captação de clientes [art. 42, IV, NCE]. “Se o Estatuto da OAB e o Código de Ética vedam a captação de clientela, os procedimentos de mercantilização da profissão e o aviltamento de valores dos honorários advocatícios (arts. 39 e 41 do Código de Ética [arts. 2o, IX, 29, parágrafo único, e 41, § 6o, NCE]), como conciliar tais princípios com a participação de advogados, concorrendo com outros advogados em uma licitação de menor preço, nos moldes do art. 45, I, e § 2º da Lei 8.666/93? Também resulta inviável, pelos mesmos princípios, a participação de escritórios de advocacia em licitações do tipo melhor técnica, a qual, nos termos do art. 46, § 1o, descamba, afinal, para o cotejamento de preços. Obviamente, também a licitação de técnica e preço do art. 46, § 2o, que combina aqueles dois requisitos. ............................................................................................................................ O próprio problema do preço dos serviços advocatícios é outra questão que oferece certas peculiaridades. Citarei entre colchetes os dispositivos correspondentes do Novo Código de Ética, abreviado para NCE, como mostrado no texto. Revista de diReito administRativo290 Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. Se, como é usual, esse preço consta de uma parte fixa e dos honorários da sucumbência, estes últimos são fixados pelo julgador, ficando fora de qualquer previsão ou negociação. Por outro lado, como adverte o art. 37 do Código de ética, é sempre imprevisível o desenvolvimento posterior da demanda, devendo-se até prevenir, na fixação de honorários, a superveniência de outras medidas, solicitadas ou necessárias, incidentais ou não, direta ou indireta, decorrente da causa, que justifiquem posteriores acréscimos [art. 48, § 1º NCE]. ............................................................................................................................ Outro argumento, que esbarra contra as normas éticas da profissão, é o de que os advogados assim contratados não terão muito trabalho, porque praticamente estariam apenas utilizando formulários-padrões previamente preparados. Mas o art. 34, V, do Estatuto proíbe ao advogado assinar qualquer trabalho que não tenha redigido, ou em cuja redação não haja colaborado.7 16. Maçal Justen Filho também não encontrou meio satisfatório para a licitação de serviços advocatícios. “Todas as fórmulas usualmente utilizadas para licitar serviços de advocacia são defeituosas. A melhor seria a realiza- ção de concurso.” Mas logo observa: “No entanto, mesmo o concurso poderia conduzir a resultados equivocados na medida em que não se orientasse a ava- liar a aptidão para o exercício concreto da advocacia. Um concurso voltado apenas ao conhecimento teórico produziria resultados inconvenientes”.8 Ora, quando um especialista em licitações da categoria do autor se esforça denoda- damente na busca de uma forma de licitação para os serviços advocatícios e não encontra, não há outra conclusão senão a de que tais serviços são regidos por princípios e singularidades incompatíveis com o princípio da licitação, como, aliás, ficou bem demonstrado acima com fundamento nos textos da Professora Alice Gonzalez Borges, razão por que Hely Lopes Meirelles não teve dúvida em sustentar a inexigibilidade de licitação para tais serviços, nos termos seguintes: 7 Cf. ob. cit., RDA, v. 206, p. 138 e 139. 8 Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos.9. ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 282. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. 291JOSÉ AFONSO DA SILVA | Contratação de advogados sem licitação Cabe ressaltar que a doutrina e a jurisprudência, bem como julgados dos Tribunais de Contas, têm reconhecido a inviabilidade de competição para os serviços jurídicos ou de natureza advocatícia, que se inserem, sem dúvida, no rol do art. 13 (incisos i, II e IV), desde que tais serviços não sejam padronizados (como ajuizamento de milhares de execuções da previdência social), mas, ao contrário, tenham natureza singular, ou características individualizadoras, e os profissionais prestadores se jam de notória especialização. Não só existe a impossibilidade jurídica de competição de preço ou de técnica entre serviços jurídicos, como também a instauração de licitação contrária às normas do próprio Estatuto da Ordem dos Advogados e respectivo Código de Ética (arts. 39 e 41 [48, § 6º NCE] e Precedentes do Tribunal de Ética 1.062, no Processo E-1.355). Assim, nem mesmo o concurso seria viável.9 17. Julgados do Supremo Tribunal Federal já acolheram essa doutrina de inviabilidade da competição relativamente aos serviços advocatícios, independente da notória especialização, desde uma velha decisão de relatoria do Min. Carlos Mário Veloso, in verbis: Acrescente-se que a contratação de advogado dispensa licitação, dado que a matéria exige, inclusive, especialização, certo que se trata de trabalho intelectual, impossível de ser aferido em termos de preço mais baixo. Nesta linha, o trabalho de um médico operador. Imaginese a abertura de licitação para a contratação de um médico cirurgião para realizar delicada cirurgia num servidor. Esse absurdo somente será admissível numa sociedade que nunca conceituar valores. O mesmo pode ser dito em relação ao advogado, que tem por missão defender interesses do Estado, que tem por missão a defesa da res publica.10 18. Mais recente é o julgado de relatoria do Min. Eros Grau: Contratação emergencial de advogados face ao caos administrativo herdado da administração municipal sucedida. (…) A hipótese dos 9 Cf. Licitação e contrato administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 115 e 116. 10 Recurso de Habeas Corpus n. 72.8308RO. Relator Min. Carlos Mário Veloso, 2ª Turma do STF, j. de 24.10.95, em Alice González Borges, ob. cit., RDA, v. 206, p. 140. E em Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 16, nota 16. Revista de diReito administRativo292 Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. autos não é de dispensa de licitação, eis que não caracterizado o requi- sito da emergência. Caracterização de situação na qual há inviabili dade de competição e, logo, inexigibilidade de licitação. “Serviços técnicos profissionais especializados” são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, Administração, deposite na especialização desse contratado. Nesses casos, o requisito da confiança da Administração em quem deseje contratar é subjetivo. Daí que a realização de procedimento licitatório para a contratação de tais serviços — procedimento regido, entre outros, pelo princípio do julgamento objetivo — é incompatível com a atribuição de exercício de subjetividade que o direito positivo confere à Administração para a escolha do “trabalho essencial e indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato” (cf. o § 1º do art. 25 da Lei 8.666/1993). O que a norma extraída do texto legal exige é a notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança. Há, no caso concreto, requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de inexigibilidade de licitação: os profissionais contratados possuem notória especialização, comprovada nos autos, além de desfrutarem da confiança da Administração. (AP 348, rel. min. Eros Grau, julgamento em 1512 2006, plenário, DJ de 3-8-2007.) Observese que o elemento básico que fundamenta a decisão de inexi gibilidade de licitação no acórdão é o grau de confiança: “são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ele própria, Administração, deposite na especialização desse contratado”. Isso fica mais claro ainda se lermos os fundamentos em que o Min. Eros Grau assentou sua decisão. Ele recorreu a passagens de sua obra doutrinária sobre a matéria. Diz ele, citando sua obra: Entendo, não obstante, que “serviços técnicos profissionais espe cializados” são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau que ela própria, Administração, deposite na especialização desse contratado. É isso, exatamente isso, o que diz o direito positivo, como adiante demonstrarei. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. 293JOSÉ AFONSO DA SILVA | Contratação de advogados sem licitação Vale dizer: nesses casos, o requisito da confiança da Administração em quem deseje contratar é subjetivo, logo, a realização de procedimento licitatório para contratação e tais serviços — procedimento regido, entre outros, pelo princípio do julgamento objetivo — é incompatível com a atribuição de exercício de subjetividade que o direito positivo confere à Administração para a escolha do “trabalho essencial e indiscutivel- mente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato (cf. o § 1º do art. 25 da Lei 8.666/93)”.11 Ao propósito, é importante o voto da Min. Cármen Lúcia, em apoio ao Relator, mas com clareza sobre a inexigibilidade de licitação de serviços advocatícios, como se vê desse trecho do voto: No caso de contratação de advogado, tal como justificado, motivado, ocorreria realmente a situação prevista de inexigibilidade de lici tação, pois não há, como disse o Ministro Eros Grau, condições de objetiva- mente cumprir-se o art. 3º da Lei 8.666/93. Um dos princí pios da licita- ção, postos pelo art. 3o, é exatamente o do julgamento obje tivo. Não há como verificar se um é melhor do que o outro? Cada pessoa advoga de um jeito. Não há como objetivar isso. Esse é o típico caso, como men- cionou o Ministro Eros Grau, de inexigibilidade de lici ta ção — artigo 25 c.c. artigo 13. 5. Resposta aos quesitos da consulta 19. À vista, pois, do exposto com base na doutrina e em julgados do Supremo Tribunal Federal, respondo aos quesitos da consulta do seguinte modo: Ao 1º quesito Sim, pois é inexigível procedimento licitatório para contratação de serviços advocatícios pela Administração Pública, dada a singularidade da atividade e a inviabilização objetiva de competição. Fundamento esta resposta na decisão do Min. Eros Grau e no voto da Min. Cármen Lúcia, transcritos acima, respectivamente: 11 Cf. Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 54/65 e 70. Revista de diReito administRativo294 Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 281-294, maio/ago. 2020. a) “Entendo, não obstante, que ‘serviços técnicos profissionais especializados’ são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, Administração, deposite na especialização desse contratado”; b) “Não há como dar julgamento objetivo entre dois ou mais advogados. De toda sorte, como verificar se um é melhor do que o outro? Cada pessoa advoga de um jeito. Não há como objetivar isso. Esse é o típico caso, como mencionou o Ministro Eros Grau, de inexigibilidade de licitação”. Ao 2º quesito Não, à vista da resposta anterior, não há hipótese de aplicação do disposto no art. 89 da Lei 8.666/1993 nem da lei de improbidade administrativa, pois a contratação de advogado, no caso, estájustificada, motivada, porque ocorre a situação de inexigibilidade de licitação, pois não há, como disse o Ministro Eros Grau, condições de objetivamente cumprir-se o art. 3º da Lei n. 8.666/93. É o meu parecer, s. m. j. São Paulo, 10 de junho de 2016. José Afonso da Silva OAB/SP 13.417 RG 1.410.813-6 CPF 032 588 748-91
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