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A ARTE DE BENZER E USO DAS PLANTAS MEDICINAIS: PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES ORAIS DE BENZEDORES E RAIZEIROS ACERCA DO SABER FAZER EM JOÃO PINHEIRO (MG) Giselda Shirley da Silva O objeto de estudo são as representações dos benzedores e raizeiros1 de João Pinheiro, região noroeste de Minas Gerais acerca de suas práticas em relação à arte de Benzer2 a utilização de raízes e ervas medicinais. O estudo foi pautado em teóricos que partilham do solo da História cultural e no diálogo com outras áreas do saber, viabilizando assim, reflexões sobre os sentidos possíveis relacionados à arte de benzer e uso de ervas para a preservação da saúde, bem como, os traços culturais que estão presentes e demarcam e o modo de ver dos narradores. Roger Chartier em seu livro, a História Cultural: entre práticas e representações nos incita a refletir sobre essa forma de pensar a história, rompendo com determinismos e cristalizações. A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa desse tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis consoantesàs classes sociais ou os meios intelectuais são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado (CHARTIER, 1990: 17). Nesse sentido, pensamos que a História cultural nos permite ver a história de forma nova e plural. João Pinheiro localiza-se o noroeste mineiro3, região que ainda preserva muito das tradições oriundas do mundo rural. É o maior município em extensão territorial de Minas 1Raizeiros são aqui definidos como os sujeitos sociais que utilizam a flora medicinal como forma terapêutica para manter a saúde. Usam plantas para fazerem chás, garrafadas e outros tipos de remédios. Muitas vezes essas práticas são feitas pela mesma pessoa. Benzeduras e utilização de ervas muitas vezes andam juntas. Benzedores são as pessoas que praticam o ofício de benzer. 2O Benzimento é aqui entendido como uma atividade terapêutica, a qual se concretiza através da relação emissor/receptor, quem benze e quem é bento. Nessa relação o benzedor (eira) exerce um papel de interligação com divino pela qual se busca a cura. Essa prática tem como parte do seu rito o uso de algum tipo de oração, decoradas e algumas delas orações espontâneas e a utilização de algum tipo de objeto. Gerais abrangendo uma área de 10.727,471km². (IBGE: 2010) O município possui sete distritos e diversas vilas e povoados4. De acordo com o Censo de 2010, a população do município em 2010 é de 45.260 habitantes. A área urbana composta de 36.761 pessoas, sendo, 18.262 homens e 18.499 mulheres. A população rural composta de 8.499, sendo 4.786 homens e 3.713 mulheres. A densidade demográfica é de 4,22 habitantes/km²(IBGE, 2010). Estabelecemos como marcos temporal os anos de 1960-2013, sendo que, desde a década de 1960 houve um significativo aumento da população urbana da cidade de João Pinheiro em decorrência de diversos fatores, entre eles, a Construção da Br-040 que liga Belo Horizonte a Brasília, causando a migração dos moradores da zona rural para a urbana e a vinda de moradores dos outros municípios para João Pinheiro, o que possibilitou o desenvolvimento do município. Vandeir José da Silva, Maria Célia da Gonçalves e Giselda Shirley da Silva pesquisaram sobre a história local e escreveram que: Com o advento de Brasília fazia-se necessário ligá-la à antiga capital federal, a cidade do Rio de Janeiro; por isso, visando uni-las, investiu-se na construção da rodovia BR 040, conectando Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. O percurso dessa rodovia, rasgando o sertão das Minas, mudou a história do Noroeste mineiro. Um dos nossos narradores nos fala desse tempo: [...] Isso aqui era a maior 3 O Noroeste de Minas constitui-se em uma enorme vastidão territorial. Engloba 19 municípios. Possui aproximadamente 340.000 habitantes e ocupa umterritório de 63.202,43 km². A região divide-se em duas microrregiões regiões. Micro-Região Paracatu: Brasilândia de Minas, Guarda-Mor, João Pinheiro, Lagamar, LagoaGrande, São Gonçalo do Abaeté, Varjão de Minas, Vazante. Micro-Região Unaí: Arinos, Bonfinópolis de Minas, Buritis, CabeceiraGrande, Dom Bosco, Formoso, Natalândia, Uruana de Minas. Esta é uma das maiores bacias leiteiras do Estado e possui um dos maiores rebanho bovino. O povoamento desta região deu-se em decorrência da mineração e da criação de gado e até pouco tempo era considerada um enorme vazio territorial. Devido a distancia entre os municípios e da capital do Estado, esta região teve que se adaptar e procurar alternativas para o desenvolvimento. Apresenta diversidades regionais e culturais e mantêm ainda muito da cultura do sertanejo, descrito por Guimarães Rosa em suas obras. (SILVA, 2007, p. 11) 4 De acordo com o Diagnóstico Habitacional do Município (2011), além da sede, o município conta com sete distritos, sendo eles: Caatinga, Cana Brava, Luizlândia do Oeste, Olhos D’água do Oeste, Santa Luzia da Serra, São Sebastião e Veredas. Em decorrência do amplo território, além dos distritos, possui também diversos povoados e vilas: Almas, Malhadinha, Olaria, Parque das Andorinhas, Vereda Malhada, Bocaina, Roca Nova, Mandacaru, Mata da Cama, Tereza, Taquara, Facão, Barreiro dos Veados, Capão dos Cavalos, Pastinho, Buritizeiro/Buritis, Café-do-amigo, Terra-Azul, Cancela, Gurita, Taboca, Tauá, Riacho Fundo, São Joaquim, Tapera. Há também diversos núcleos de pequenos e médios produtores rurais e Assentamentos, os quais são aqui apresentados nominalmente conforme dados obtidos no Diagnóstico Habitacional (2011): Ruralminas I, Ruralminas ll, Fruta Dantas, Floresta, Nova Esperança, Formiga, Barreiro do Cedro Segredo, Campo Grande, Itatiaia, Rio Bonito, Danilo Coimbra, Diamante, Vista Alegre e Campo Grande de Cima. Diagnóstico Habitacional (2011) Documento pertencente ao acervo do Arquivo Publico Municipal “Genésio José Ribeiro” em João Pinheiro. dificuldade, era uma distância danada. Não tinha asfalto. Num tinha estrada. Num tinha ponte. Para ir para Belo Horizonte a gente gastava 2 a 3 dias de carro. Num tinha nada. Tinha de ir pra Patos de Minas, depois passava para a Serra da Saudade. Nas representações do narrador, compreendemos as dificuldades encontradas no acesso aos centros mais desenvolvidos. Nesse sentido, os municípios “cortados” por esta rodovia seriam beneficiados, viabilizando o transporte e o escoamento da sua produção. Foi construída no município no final da década de 1950 e possibilitou a cidade um impulso rápido após sua construção, distanciando- se urbanisticamente do arraial de outrora: “Muitos eram os viajantes que passavam por ela, fossem com destino ao Rio, Belo Horizonte ou Brasília, atraindo pessoas da região que vieram morar no município”, disse o Sr. João Batista Franco.(SILVA, et al, 2011:) Muitas dúvidas e questões permearam o estudo, fazendo-nos refletir sobre nas palavras da professora Tereza Negrão: “A inquietação parece ser um atributo daqueles que se dedicam a Clio, se entendemos que reverenciá-la significa sentirmo-nos permanentemente mobilizados por seus apelos, na polifonia dos sentidos que a palavra História encerra” (MELLO, 2.001, p 40). Estas inquietações são aqui apresentadas sob a forma interrogativa:Quais são as representações dos benzedores e raizeiros em relação à utilização dos benzimentos e das ervas medicinais para a preservação da saúde? De onde são os benzedores/raizeiros inseridos na pesquisa? Qual a forma de repasse/aquisição desses saberes? Quais são os objetos e símbolos usados nos momentos das benzeções? Qual a relação do benzimento com as plantas medicinais e com a religiosidade local? Como estes saberes se entrecruzam nas práticas e representações dos narradores? Qual o papel desempenhado na saúde local ao usar tais saberes e a relação campo/cidade e cultura? Partindo dessas inquietações, estabelecemos os objetivos do estudo. Objetivamos analisar por meio das práticas e representações, como esses saberes/fazeres foram sendo criados/recriados ao longo da trajetória histórica local e a relação das mesmas e dos conhecimentos divinatórios voltados para o par saúde/doença e sua relação com o meio rural, bem como, elas foram sendo ressignificadas. Representações são aqui entendidas como definiu Sandra Pesavento (2004) As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotada de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade. Nesse sentido, buscamos perceber nas representações dos benzedores os sentidos atribuídos por eles a essa prática, questões relacionadas à memória, identidade, o papel social e cultural na história local, Observamos nos embates cotidianos a preservação/recriação desse saber fazer herdado e repassado através da oralidade. Verificamos também a relação das práticas com a identidade dos benzedores. O argumento norteador pautou-se na concepção de que os benzimentos e uso de plantas medicinais para a preservação/restituição da saúde possuem relação com a cultura local, os ensinamentos (re) passados das gerações mais velhas as mais novas por meio da oralidade e fé/credibilidade a estas práticas atribuídas.Esses saberes oriundos do mundo rural foram sendo (re) construídos na cidade com a migração do homem do campo para o meio urbano em busca de melhores condições de vida. Como empírico, usamos fontes plurais, entre elas, documentos do Arquivo Municipal, iconografia, narrativas orais, objetos e símbolos usados nos momentos dos benzimentos, raízes e ervas empregadas com fins medicinais que fazem parte do acervo dos raizeiros. Salientamos a relevância da memória e das narrativas orais para perceber essa atribuição de sentidos possíveis àprática de cura5 e a relação com a história e as tradições locais. Percebemos que a história oral se apresenta como uma alternativa interessante para conhecermos os sentidos possíveis atribuídos à arte de curar. ParaLima (2005, p.22) “A história oral constitui-se como um dos caminhos que instaura, no reino de Clio, a pluralidade histórica e a polissemia necessária para os fazeres de uma narrativa comprometida com o bem-estar social dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira”.História e memória estão intimamente ligadas e permitem refletir sobre o passado, inspirados por Clio e Mnemosyne Lucília Neves(2006:32) incita-nos a refletir sobre os domínios deMnemosyne ao escrever que:. Narrativas sob a forma de registros orais ou escritos são caracterizadas em palavras os registros da memória no tempo. São caracterizadas pelo movimento peculiar à arte de contar, de traduzir o importante como estilo de transmissão, de geração para geração, das experiências mais simples da vida cotidiana e dos grandes eventos que marcaram a História da humanidade. São suportes das identidades coletivas e do reconhecimento do homem como ser no mundo. 5As expressões artes de curar e práticas de cura são aqui apresentadas relacionadas à arte de benzer e usar plantas medicinas. Estas expressões buscam apresentar de forma mais ampla esses saberes oriundos da vivencia cotidiana e que incorporam diferentes práticas de curar. A pesquisa foi desenvolvida por meio da história oral com entrevistas realizadas com 06 benzedores e raizeiros que residem em João Pinheiro, buscando perceber nas suas narrativas a relação com a memória, à história e cultura local. Entre os narradores portadores do “dom de benzer” e o conhecimento acerca das ervas medicinais, estão inseridos homens e mulheres, sendo que todos possuem mais de 60 anos de idade. A escolha dos narradores deu- se a partir da idade, sendo que praticam o ofício há mais de 30 anos. Buscamos analisar a partir da história oral, a manutenção dessas tradições antigas que ainda persistem no nosso cotidiano que são oriundas do mundo rural e são recriadas no contexto urbano: No alvorecer do século XXI a benzeção e o curandeirismo ainda são práticas religiosas populares, em plena vigência, mesmo que (re) significadas. [...]. Ao penetrar no território das doenças religiosas e, por consequência, da "medicina rústica", desvela-se um mundo de magia, cujos códigos de linguagem e rituais simbólicos permitem o contato entre o material e o espiritual. Nele, os dons de curar são astúcias que permeiam as práticas culturais de grande parte de sujeitos sociais que, contra as próprias limitações que cercam sua luta pela sobrevivência, recorrem a este lugar utópico, ao mesmo tempo palpável e real. Partindo do princípio da saúde como completo bem-estar, e a desarmonia significando doença, entram então a questão: os saberes e fazeres humanos como auxiliares na manutenção da saúde. Marcia de Melo Kuyumjian nos alerta de que a arte de escrever significa uma presença e uma ausência. Segundo ela, ao selecionarmos fontes e modos de narrar optamos por excluir do contexto outras fontes e maneiras de contar. Para ela, “o trabalho do historiador é como o trabalho do artesão. Ele é obrigado a escolher o tipo de argila e a confeccionar um artefato específico.” (2008: 09) Dessa forma, a tessitura desse texto deu-se a partir do aporte teórico- metodológico e das escolhas efetuadas nas narrativas orais. As práticas de benzedura e utilização de ervas medicinais são antigase vão sendo recriados ao longo do tempo e nesta dinâmica constante de transmissão e recepção de saberes que não cessa nunca, há permanências, rupturas e apropriações no cotidiano. Como aponta Certeau (1994) “o homem inventa o cotidiano graças às artes de fazer, astúcias sutis, táticas de resistência pelas quais se altera os objetos e os códigos, se reapropria do espaço e do uso a seu jeito”. Oliveira afirma ainda que: E é nesse contexto de trocas sociais mais amplas que essa população subalterna afirma sua identidade de pobre, oprimida, desenraizada e expropriada do saber científico sobre o corpo eas funções vitais. É no próprio modo de produzir as suas medicinas populares que essa população resiste política e culturalmente a opressão imposta pelas classes dominantes. Através da sua vida e dos modos que esta população encontra para lidar com suas doenças é que afirmamos que não há uma única medicina popular. Mas várias, e, em constantes transformações. E através delas dá-se uma das maneiras possíveis desta população explicar o modo como vivem: o modo como é politicamente marginalizada e economicamente expropriada nesta sociedade. O modo como está concretamente inserida nas relações sociais mais amplas. (OLIVEIRA, 1984: 38) É relevante analisar estas práticas e como elas vão se constituindo no seio da sociedade, principalmente a partir da visão de mundo, como interpretam a sua realidade, buscando meios para minimizar as dificuldades cotidianas. Darnton nos alerta que “as visões de mundo não podem ser descritas da mesma maneira que os acontecimentospolíticos, mas não são menos reais”. (DARNTON, 1986, p. 39). Assim, ao pensar sobre as visões de mundo não podemos deixar de refletir sobre a maneira como esses benzedores veem o mundo à sua volta, como interpretam sua prática e a missão que acreditam serem escolhidos de Deus para exercerem. Foi recorrente nas narrativas dos benzedores a concepção de que benzer é um dom divino e que a pessoa que possui o dom não deve negar quando alguém a procura para ser bento. Dona Judite, uma das benzedeiras inseridas na pesquisa afirmou também que a medida que vai praticando o ofício e vendo o resultado de suas orações, adquire mais confiabilidade no seu poder. Ela nos contou que: Eu aprendi a benzer porque eu tenho fé e acredito. Depois que eu aprendi fui praticando e tendo mais segurança. A gente benzia... Acho que a que era bom, né? Agora, não... A gente benze e quem recebe a oração vem e fala assim: Nossa! Mas o fulano dormiu bem. Melhorou né? O retorno da pessoa, para falar se a benzeção foi boa, ou não, é muito importante.” Observamos pelas palavras da benzedeira que o retorno das pessoas que recebem a oração é importante para perceber a eficácia de seu trabalho. Quando nós estamos falando em benzeção estamos falando em orações, em fé, mas abordamos também um saber que foi culturalmente sendo repassado através do tempo. Foi perceptível ao longo da pesquisa que o aprendizado também tem relação com o contexto cultural e econômico nos qual os benzedores estão inseridos sendo recorrente o aprendizado do ofício com pessoas mais velhas de onde moravam e a relação com o mundo rural. Todos os seis benzedores inseridos na pesquisa ao relatar sua história de vida, mencionaram ter nascido na roça e que migraram para a cidade de João Pinheiro na juventude ou depois de adultos. Assim disse o Sr. José Pompiano: Eu era rapazinho... Eu trabalhava com um cidadão por nome de Sr. Capoeira. E ele me ensinou a benzer de ofendido de cobra. Eu benzi muita gente ofendido de cobra. Eu aprendi... Com o Sr. Capoeira. Nois tava numa região ele subiu na porteira, no moirão da porteira. Ele subiu de um lado e eu subi de outro prá ele me ensinar. Cê vê como era as coisas. Ele deu um assobio, três assobios... Ficou quieto... Quando é fé... As cobras veio de dentro do mato, do pasto... Saindo da fazenda do homem. Aquilo, eu me invoquei com aquilo. Por isso que eu aprendi a benzer rápido. Que eu invoquei com aquilo. Que aquilo era uma realidade. Antes eu duvidava. Dona Judite nos contou que ela aprendeu a benzer com sua avó e que o aprendizado deu-se em decorrência das dificuldades vividas na labuta diária para criar os filhos quando ainda residia na roça, no interior do município. Eu aprendi com minha avó e acho que minha avó aprendeu com o pai, a avó dela... Não lembro com quem... Mas, foi por causa das dificuldades da vida também. Igual era eu... Foram as dificuldades. Nós tínhamos que atravessar o rio, para ir do outro lado, que era a casa dela, para ela benzer né? Já o Sr. Antônio afirmou ter aprendido a benzer por meio de uma inspiração divina. Ele nos contou que: Foi tipo um sonho que eu recebi esse comunicado, sabia? Era assim... Eu dormia e uma voz me chamava... Eu pensava assim: Gente... Parece que eu estou sonhando. Olhava e não via nada, sabe? Isto foi várias vezes dentro de uma noite, mas, foi resumido dentro de uma noite também. Por que quando falou que eu poderia ajudar alguém, né? Falaram para mim no sonho... Mas eu falei... Mas como eu posso ajudar? É fácil... Falou a oração no sonho para mim. Que ninguém sabe essa oração. Meu pai não sabia. Muita gente fala completamente diferente. Ela é pequenininha. Nas palavras deste benzedor, o aprendizado se deu por meio de um chamamento divino para ajudar as pessoas. Percebemos que o sagrado foge ao controle do humano, mas no imaginário popular, alguns são intermediários da cura, canais por meio dos quais, Deus concede a Bênção. Esse dom pode ser dado a uma pessoa super-letrada e a uma analfabeta, independende do seu conhecimento escolar. A bênção não está no benzedor. O efeito positivo dela é a fé do penitente ou do paciente, no Deus que tudo pode e no poder do benzedor como canal de benção. O benzedor no caso é só o mediador, pois quem cura é Deus, a pessoa é só o instrumento usado por ele Sempre à disposição de quem precisa e sem cobrar nada, nossos narradores disseram que “benzer é um dom gratuito de Deus”. Ponderou Dona Judith Para benzer... Se a pessoa tiver o dom e a vontade de aprender a benzer. A primeira vez que ela faz uma benzeção, ela vê o resultado. E eu vi. Por que quando a pessoa vai benzer e não tem nada, a pessoa não sente nada. Eu, quando eu vou benzer, me dá assim, sabe? Me dá um frio... Sei lá o quê que acontece... Dá só assim aqueles rupiaçõ, né? Se a pessoa tiver muito pesada, a gente benze e fica ruim. É como se puxasse para a gente. Maria Clara Machado em seu estudo sobre os benzimentos em Minas afirmou que: O sentido dessas práticas curativas advém da sua eficácia simbólica que só privilegiam aqueles portadores da fé. Estes agentes religiosos leigos, em contrapartida ao seu poder de cura não podem obter lucro de sua atividade, antes de tudo compartilham com o outro só o seu ritual de magia e preces, mas também a certeza de que para curar o corpo é preciso curar a alma. Para tanto, laços de afetividade e solidariedade se estabelecem e as frustrações, as decepções, a dor e os sofrimentos se articulam numa rede de significados, onde o mal pode ser vencido e a esperança se anuncia. Ao inverter o caos se ordena a sobrevivência, a continuidade da vida e do grupo. Nesse sentido, disse o Sr. Antônio: Você não acha bom encontrar a pessoa passando mal. Você acha bom encontrar é a vitória do companheiro. Você benze e amanhã ele te comunicar que melhorou. Dia a dia você quer ajudar. Não sinto cansaço, não sinto preguiça. Eu não ocupação que eu não posso parar e ajudar a pessoa. Se chegar alguém e eu estiver almoçando e alguém chamar, eu volto e largo o prato, vou lá, benzo e depois que a pessoa for embora, eu almoço. Não estou com pressa. Servir o outro. Esse é meu objetivo. Isto já aconteceu várias vezes. Não tem distancia... Não tem hora, não tem dia. Esses saberes são adquiridos principalmente por meio da oralidade e do exemplo de outros de outros benzedores, atrelado a questão do dom. Segundo eles, o ensinamento se dá principalmente quando o benzedor já sente que está velho e que precisa (re) passar para alguém o ofício. Dona Judith contou que: Eu ainda não ensinei ninguém a benzer. Ainda não. Só falo assim, igual eu falei para vc. Enquanto a gente tiver dando conta de usar as palavras, a gente não deve passar ensinar para outro. Porque tira a força. Vem um aqui para eu benzer ele e ai ele sai e fala... Olha aquela velha não está com nada mais. Se ensinar, tira a força. Minha avó dizia isso... Se ensinar tira a força. Minha avó me ensinou, ela estava com uns 90 anos. Ela me falou, Não ensina prá ninguém. Enquanto vc estiver bem. Em relação a esta questão, comentou também o Sr. José Pompiano: “A reza é um segredo né filha? O Sr. Capoeira me ensinou na época dele morrer. Quando a pessoa que sabe benzer e ele vê uma pessoa que ele confia nele para benzer, ele ensina. Na época dele morrer, ele ensina. E ele morre e a pessoa fica com aquele dom de benzer.” Conforme foi ensinado a Dona Judith, ao ensinar o ofício a outros, a pessoa que benze perde a “força” que possui para benzer. Estas práticas só continuam a existir no seio da cultura atual, porque encontra credibilidade por meio das pessoas com os quais convivem e que procuram com as mesmas, sendo a fé um importante requisito, pois as pessoas procuram pelas benzeções porque elas têm fé. Maria Clara Machado afirmou que “a validade da medicina popular está ligada à eficácia de suas práticasjunto á população e as estratégias manipuladas pelos próprios profissionais de cura sobre o seu trabalho” (OLIVEIRA, Op. cit, p. 62). Podemos relacionar à permanência destas práticas a questão da fé a credibilidade e eficácia das orações e no trabalho dos benzedeiros. Através da coleta dos dados, foi possível perceber que entre as enfermidades que as pessoas mais procuram pelos trabalhos dos benzedores são: mau-olhado, quebranto6, espinhela caída, vento- virado7, carne quebrada8, dor de dente, cobreiro9, impigem10, mordida de cobra, dentre outros. Essas práticas culturais são amalgamadas em um saber fazer construído culturalmente e historicamente, representadas a partir de um código baseado na necessidade e na generosidade. Práticas essas embebidas em rituais, gestos, no poder e domínio das palavras, e no manuseio dos objetos a serem utilizados na hora do ritual, sejam eles, ramo verde, tolha branca, faca, machado, litro com água, etc. Para cada doença, uma oração diferente... Objetos diferentes. Santos diferentes são 6 Acreditam que o quebranto é um tipo de mal causado pelo "excesso de amor" ou “quando alguém é admirado”. Os principais alvos de quebranto na visão dos rezadores são as criancinhas. Causa desânimo, abatimento, enfraquecimento. 7 O vento virado é o resultado de sustos ou medos fortes sofridos pela criança. 8 Carne quebrada é quando a pessoa machuca a carne do corpo e então o benzedor benze, costurando com um novelo de linha fiada em casa. Vai costurando e dizendo: "Carne quebrada, nervo rendido, osso partido. Isso mesmo é que eu benzo”. Carne quebrada. Dá sete pontos. Pergunta novamente: O que é que eu benzo? Carne quebrada. O benzedor repete a oração e dá mais sete pontos. Repete as costuras e a oração três vezes, em três dias consecutivos. 9 O cobreiro é visto como sendo uma doença que se contrai através do contato direto com roupas por onde tenham passado certos insetos ou animais peçonhentos. Caracterizam-se irritações na pele acompanhadas de dor. 10Impigem é um tipo de micose e se não for tratada ganha o corpo inteiro. aclamados. Todo um universo repleto de símbolos11 e gestos, que variam de oração, doença, benzedor, lugar e cultura. Os santos de devoção cujas intenções são feitas as orações variam de benzedor para benzedor. Dona Judith nos contou que para benzer de cobreiro ela faz as orações em intenção de São Bento e descreve as palavras e a forma do rito. O Sr. Geraldo nos contou que para benzer de mordida de cobra ele também benze em devoção a São Bento. Para benzer de cobreiro a gente pergunta o quê que eu corto? A pessoa responde cobreiro bravo. Você pega uma talinha, um talo fino e pergunta: De quê que corta? O quê que vai cortar né? Você pergunta? De quê que corta? Cobreiro brabo. Corto a cabeça, corto o meio e corto o rabo. Ai, eu cortei de cobreiro brabo. Mas ocê fala é pro ocê. Ocê num fala alto não. Vc fala baixo. Alto, ocê só pergunta: De quê que corta? A pessoa responde: Cobreiro Brabo. Ai, a gente reza. Para cobreiro, a gente reza em intenção de São Bento: A gente corta em intenção de São Bento. A gente corta a cabeça, corta o meio e corta o rabo. Do cobreiro. Porque pode ser aranha, pode ser cobra, lagartixa, qualquer bicho peçonhento que dá cobreiro. Eu corto o meio, a cabeça e o rabo. Corta em cruz. E faz a oração. A oração é o pai nosso. Não tem outra oração. Só que faz ela em intenção a São Bento. A de cobreiro. Podemos observar que existe diferenciação em relação às palavras usadas na oração. De acordo com o Sr Arnaldo, outro benzedor entrevistado, ao benzer de cobreiro ele assim reza: O que é que eu corto? Cobreiro brabo Assim mesmo eu corto; Corto a cabeça, meio e rabo. Cobreiro de lagartixa, cobra, Bicho preguiça, mandruvá, sapo, E todo bicho peçonhento, eu corto; A cabeça, meio e rabo. Na frente vai são Jorge, Cortando a goela do dragão, distrais eu vou cortando cobreiro bravo, corto a cabeça, meio e rabo. Em nome de Deus eu corto. Percebemos também a preocupação em demonstrar que as suas orações objetivam fazer o bem e ajudar próximo. Assim nos conta o Sr. Geraldo12, 11 Símbolo é aqui entendido como o fez DURAND (1988) como qualquer signo concreto que evoca, através de uma relação natural, algo de ausente ou impossível de ser percebido: Ou então conforme Jung: A melhor figura possível de uma coisa relativamente desconhecida que não se saberia logo designar de modo mais claro ou característico. 12 É um senhor de 51 anos. Trabalhador rural e exerce também o ofício de benzedor. Eu benzo, mas só pra fazer o bem. [...] Benzo de dor de dente, espinhela caída, pra tirar lagarta de roça, mordida de cobra... Mas eu num benzo pra matar a cobra não, só pra sarar a pessoa que tá ofendida. Benzo pra fechar o corpo contra mordida de cobra a hora que vou sair pra trabalhar, bater pasto. Eu limpo cada capoeira suja, num encontro com uma cobra... Só rezo pra coisa boa, pra fazer o mal, não. Tem gente que faz oração pra pôr dor de dente nas pessoas. Pra mandar cobra, lagarta, pra roça dos outros. Eu só benzo prá tirar das roças. [...] A gente reza em três cantos da fazenda e deixa um que é para as cobras, insetos, seja lá o que for que a gente tiver benzendo, sair da roça. Ai a gente manda eles pra um lugar que num tem gente, onde num vai fazer mal pros outros. Eu procuro fazer minhas orações só pra ajudar os outros. Em relação a este tipo de benzimento em relação a picadas de cobra e para afastar as cobras de propriedades de outros, contou o Sr. José Pompiano: Graças a Deus, toda pessoa que eu benzi que foi ofendido de cobra, ele escapou. Agora eu vou às fazendas, faço uma benzeção ali. Costuma dar certo... Deus ajudando dá certo. Eu tenho... Quando as cobras estão demais numa fazenda, eu pego as cobras, faço uma benzição pra elas, mando elas encostarem na beira de um córrego. Elas ficam lá... E tem essa experiência aqui... Na fazenda Campo grande ali, tem as cobras amontoada lá. Lá no Paracatu também tem umas cobras amontoadas lá. Nas fazenda lá. Desta forma, percebemos que estes se reconhecem como pessoas que tem o dom da cura através das suas orações, reafirmam sua identidade social como benzedores, E preciso estabelecer uma relação do ato de benzer as pessoas de mais idade. O ato de benzer. Já a procura pela benzeção ela diversifica. Há pessoas de todas as faixas etárias. Como eu disse anteriormente. Justamente porque as pessoas tem fé. Às vezes é porque são bentas desde criança, porque aprenderam no seio familiar, ou, no próprio convívio social. Mas, como gestores da prática, como benzedores mesmo nesse rito, geralmente há uma associação às pessoas de maior idade. Um dos fatores que tem causado isto é o desinteresse dos mais jovens pelo aprendizado do ofício. O benzimento está muito ligado à prática da solidariedade. Ajuda ao outro. E, talvez pela própria necessidade que foi sendo historicamente construída. Ela está mais associada às classes mais populares, as pessoas mais humildes, mais simples. Entre os benzedores que eu conheço, não há pessoas de poder aquisitivo mais elevado. Talvez por esta inter-relação que há muitas vezes entre as pessoas de menor poder aquisitivo. Há uma predominância de pessoas de poder aquisitivo mais baixo. Mas, a procura não. A procura pelo benzimento, já há pessoas de diversos níveis e classes sociais. Contou o Sr. Antônio Congo: Qualquer pessoa que vem até minha presença para oração, ou mesmo, para ensinar um remédio de plantas, a primeira coisa que eu vou pedir é que aumente três coisas: a humildade, a fé e a esperança. Não esqueça. Quando sair para vir me visitar, procure... Fale que a Virgem Maria venha na sua frente. Venha na sua frente até encontrar comigo. Ela e seu filho Jesus também. Venha e venham tambémseus assessores, né? A importância maior que existe são essas. Muitas pessoas pensam que, às vezes, a benzeção pode desaparecer com esse desinteresse do amis jovens no aprendizado, mas, nós observamos que ela não desaparece. Ela é, na verdade, reconstruída, revista a cada novo fazer, a cada novo aprendizado. São práticas baseada em códigos, valores e significações historicamente compartilhadas, bem diferentes dos novos remédios laboratoriais como ‘as tal de injeção’. Trata-se de um discurso que revela as resistências engendradas, a recusa da população que utiliza a terapêutica da medicina popular, baseada nas propriedades curativas da fauna, da flora e dos minerais para a cura de várias doenças, em relação às novas verdades sobre a doença, o tratamento e a cura. Muitas vezes há uma interligação destas práticas relacionadas à natureza e ao conhecimento divinatório, sobrenatural. Baseando-se no relato o benzedor parte dos indícios percebidos nas queixas de quem os procuram, receitam remédios caseiros, fazem orações ou indisciplinas, simpatias, Há uma inter-relação entre os saberes, existente principalmente a partirda coletividade e necessidade de ajuda mútua. É um conhecimento baseado na observação e experiência visando minimizar as dificuldades, doenças e sofrimentos da população mais carente. Em João Pinheiro há muitos benzedores e pessoas que lidam com plantas medicinais, e eles são procurados por pessoas de diversas idades e com diferentes problemas, buscando a cura através das orações e das ervas. O ato de benzer é carregado de simbolismo. Em um dos dias da realização da pesquisa, observamos o Sr. Antônio em um momento de benzimento. Ele dirige-se para o lado de fora da sua casa. Solicita que a pessoa que quer ser bento para que fique de costas, de pé, mãos abertas. Usando o rosário como objeto simbólico, o benzedor inicia o rito. Primeiramente ele faz o nome do pai no seu rosto. Depois, faz o mesmo procedimento, gestual e simbólico nas costas da pessoa que está sendo benta, ele faz o nome do pai e dá prosseguimento a sua oração em tom baixo.Pede ao seu “paciente” para prestar bem atenção e busque rememorar aquilo que ele está mais precisando... Saúde... Paz... Depois, ele descreve o rito e como se baseia nas evidencias para detectar se a pessoa está necessitando da oração. Eu pego o cordão, meço aqui, da ponta do dedo ao cotovelo da pessoa, (mostra por meio das palavras e do gesto como é que se faz) que é de cima aqui e vou trazer aqui( mostra por meio das mãos como ele pega o cordão e mede o tamanho dos ombros. Geralmente antes da oração, a distancia medida por meio do cordão, que vai desde a ponta do dedo ao cotovelo é maior que a medida do ombro. Ele diz que, quanto maior é a diferença entre ambos, maior é o mal que de que a pessoa está acometida). Já fiz várias vezes. Então, deu certinho igual está aqui, é porque não está caído não. Não tem nada errado. É outro problema, né? Agora, se tiver fora do esquadro, a gente mede e faz isto aqui... Dá diferença. (Ele fala mostrando como essa diferença é perceptível ao comparar as medidas feitas antes e depois da oração.) Vc viu a do menino? Viu como estava caída? (ele se refere ao cinegrafista o qual foi bento durante a entrevista e que de acordo com as medidas efetuadas antes de depois da oração deu um diferença grande no cordão conforme as medidas do braço e do ombro). Faz aquilo mesmo. Ai, eu faço a oração e voltas para o lugar. Ao final da oração, eu desejo que a paz de Jesus e que a virgem Maria o acompanhe. Após a realização do rito. ele pergunta ao rapaz que foi bento, o que ele estava sentindo durante o período em que estava fazendo a oração. Depois, pede a mão esquerda para conferir: - agora é que está o milagre do cordão. (Refaz as medidas feitas anteriormente e mostra que agora as medidas estão iguais, braço e ombro) e pergunta: _ Conferiu, ou não? Desafiou ele ao mostrar a diferença na medida do cordão feita antes e depois da oração. O ritual é uma forma de representação visual e exterior dos poderes mágicos legitimando a prática. Sem a encenação há perda do brilho e o contato entre o espiritual e o terreno, o mágico e o concreto não se realiza. O fortalecimento da crença está na força do ritual e, consequentemente, naquele que o dirige. Os fenômenos naturais pertencem, nesta ótica, ao mundo mágico. Doença, morte, alegria e tristeza, nascimento e crescimento são produtos de um mesmo poder. Ilusão e realidade se confundem. Basta que se tenha fé nas palavras e ações empreendidas pelo portador do dom para que os resultados possam ser obtidos. Para cada mal existe uma oração correspondente. Para cada oração, um santo de devoção, um ritual, um número de vezes que deve ser repetida o benzimento, objetos simbólicos que variam de acordo com a cultura, com a crença e com o espaço geográfico ignificados existentes em um gesto ou uma palavra. Segundo o Sr. Antonio, o relato do doente, contando o que houve antes e depois que adoeceu ajuda a entender o que a pessoa está sentindo. Dona Maria contou que: “Se a pessoa está com dores de cabeça, pode ser que seja uma dor de cabeça de origem estomacal, por causa de algum alimento ingerido, neste caso, aconselha que se tome chá de flor de mamão, marcelão, boldo, entre outras espécies de chá, algumas vezes acompanhadas de bicarbonato de sódio. Em outras ocasiões, de acordo com os relatos do doente, a dor de cabeça pode ser de sol, então se faz uma benzeção para tirar o sol da cabeça.” Os raizeiros possuem um saber sobre as funções terapêuticas das plantas, conhecem as espécies, suas características, qual parte utilizar de cada espécie, seja ela raiz, caule, folha, flor, semente ou erva. Identificam para qual tipo de doença a planta deve ser utilizada, bem como a forma correta de utilização de cada parte com as devidas combinações, pois a aplicação desses remédios da mesma forma que o medicamento da farmácia, também tem as. dosagens certas e a forma de preparo adequado. Ao refletir sobre o valor social do benzedor e da relevância do seu trabalho, relembramos das palavras do Sr. Antônio ao afirmar que na sua casa não há um dia que não vai ninguém para pedir para ser bento. Dona Roxinha dedica a vida a atender as pessoas que muitas vezes fazem fila na porta de sua casa, chegam cedo e o fluxo de pessoas permanece durante todo o dia, entram para sua cozinha e área, sendo este geralmente o espaço da casa destinado ao trabalho, rompendo com as barreiras do público e do privado. Ali as pessoas chegam efica a espera do seu atendimento, observam-na atender os outros que chegaram primeiro. Neste lugar da casa ela permanece durante todo o dia, atendendo e servindo o próximo. Uma senhora que estavaesperando para ser atendida disse à outra que chegou posteriormente: “Pode acreditar no que ela te falar, que o que falar, acontece. Eu venho aqui há anos e ela sempre me ajudou”. Essa credibilidade por parte de muitos moradores da cidade e região perceptível no fluxo de pessoas que vão a casa dessa benzedeira. Segundo sua filha, na sua casa vai gente de todo o Brasil, sendo que, algumas vezes, vem ônibus repletos de pessoas de diversos lugares do país para que ela faça suas orações. Em um só dia em que fizemos a observação do seu trabalho, ela atendeu em média 15 pessoas, cada uma com uma questão ou pedido diferente, sendo possível perceber a relação entre curandeirismo e benzeção. Ela afirmou que muitas vezes não necessita que a pessoa conte o que está sentindo. Ela fecha os olhos, se concentra, antecede a descrição da pessoa e diz o que ela pressentiu sobre a pessoa. Então, com base neste pressentimento, ela orienta receita algum remédio geralmente feito à base de plantas, sugere simpatias ou que depois de recebida a graça, a mesma realize alguma tarefa. Interessante notar a forma como ela atende a cada pessoaque a procura como se fosse única, independente do tamanho da “fila de espera”. É como se não estivesse ninguém ali presenciando o rito ou esperando pelo atendimento. Enquanto ela não resolve o problema daquela pessoa que esta atendendo no momento, não atende outra, mesmo que a fila de espera esteja grande. Observamos também o poder de concentração da mesma que não se deixa atrapalhar no seu ofício, mesmo diante de conversas dos presentes, das pessoas da sua família que partilham do mesmo espaço onde realiza seu ritual. Observamos também que além de benzer a pessoa que está presente, todos os benzedores que foram entrevistados benzem uma pessoa que está distante através do pedido e da posse do nome, foto ou objeto da pessoa que irá receber as orações. Nesse sentido, foi interessante observarmos que as mudanças em relação aos pedidos de oração que muitas vezes vem por intermédio do telefone. Sr. Antônio disse que já benzeu pessoas até nos Estados Unidos fazendo as orações na sua casa e que a pessoa liga depois para agradecer. Segundo ele, a pessoa liga no seu celular, pede a benção, conta do mal que está acometido, então ele faz as orações e indica se a pessoa necessita adotar algum procedimento posterior, como por exemplo, um banho ou tomar algum remédio. Dona Roxinha que disse receber vários telefonemas com pedidos de orações afirmou adotar o mesmo procedimento. Considerações finais O argumento norteador assentou-se na convicção de que a lida entre fontes e referenciais desvelaria um cotidiano pleno de permanências, reelaborações, táticas e embates em relação a essas práticas. A pesquisa desvelou por meio das representações dos benzedores e raizeiros que estas práticas permanecem, sendo, recriadas no cotidiano em decorrência de diversos fatores e que contribuem para a preservação da saúde das pessoas da localidade, mantendo a relação com a fé e religiosidade, a cultura local e a preservação de saberes repassados de geração em geração, o conhecimento/uso das plantas e ervas retiradas cerrado. Os ritos são repletos de significados, sentidos muitas vezes não compreendidos por quem não partilha do mesmo entendimento ou valores. Essas crenças e práticas estão presentes nas ações cotidianas em João Pinheiro, pois ainda existem muitas pessoas que benzem e um número significativo daqueles que lançam mão dos conhecimentos e dons das pessoas que sabem benzer para restabelecer a saúde e afastar os males. Essa forma de combater “as doenças é revificada porque ela é transformada. Recria-se com o seu mundo, as suas necessidades e seus valores.”. Percebemos que com a saída do homem do campo para as cidades estes conhecimentos são também presentes na vida urbana, sendo ali recriados e ressignificados de acordo com a realidade. Estas práticas possuem suas raízes no meio rural e na solidariedade, todavia, com a migração do homem do campo para a cidade, esses saberes permanecem no seu cotidiano, adaptadas a realidade na cidade e as transformações que ocorrem no seio social, como por exemplo, um número maior de pessoas que os procuram pelo agrupamento de pessoas na área urbana, o uso dos meios de comunicação e a mistura dos remédios caseiros com os medicamentos comprados em farmácias. Mesmo entre percalços, permanências, reelaborações dessas práticas, elas persistem e atravessam o tempo, pois a fé permanece. Enquanto as pessoas acreditarem em um poder superior para estabelecer a harmonia e a ordem; crerem que através da força divina podem encontrar equilíbrio e paz, estas práticas encontrarão legitimidade no seio social. 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