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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Graduação em Psicologia Bárbara Luiza Silveira Paloma Fernanda Paiva A MÚSICA E O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO DA MULHER NO CONTEXTO BRASILEIRO: Possíveis diálogos e contribuições Betim 2020 Bárbara Luiza Silveira Paloma Fernanda Paiva A MÚSICA E O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO DA MULHER NO CONTEXTO BRASILEIRO: Possíveis diálogos e contribuições Monografia apresentada ao Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia. Orientador: Prof. Manoel Deusdedit Júnior Área do conhecimento (CNPq): Psicologia Social: Papéis e Estruturas Sociais; Indivíduo. (7.07.05.03-8). Betim 2020 Bárbara Luiza Silveira Paloma Fernanda Paiva A MÚSICA E O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO DA MULHER NO CONTEXTO BRASILEIRO: Possíveis diálogos e contribuições Monografia apresentada ao Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia. Área do conhecimento (CNPq): Psicologia Social: Papéis e Estruturas Sociais; Indivíduo. (7.07.05.03-8). Prof. Dr. Manoel Deusdedit Júnior (Orientador) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Prof (a). Dr (a). Karla Gomes Nunes (Banca Examinadora) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Betim, 04 de dezembro de 2020 Dedicamos este trabalho às mulheres que com força e garra lutaram por mudanças. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradecemos a todas as mulheres fortes que nos inspiraram e ainda nos inspiram. Agradecemos ao nosso orientador Manoel Deusdedit Júnior por aceitar nos conduzir com tanta dedicação e zelo nesse trabalho. Aos nossos pais, familiares e amigos que sempre estiveram ao nosso lado nos apoiando ao longo dessa trajetória. Agradecemos a todas as figuras singulares que fizeram parte do nosso crescimento, nos impulsionando através da música. Agradecemos por aprender a ouvir sons tão diversos ao longo da vida, e sermos tocadas por eles. Somos, Pagu indignada no palanque! (Rita Lee) RESUMO A presente monografia discute quais são os possíveis diálogos e contribuições da música ao processo de emancipaçao da mulher no contexto brasileiro, pois entende- se que desde a antiguidade a mulher é culturalmente reprimida e desvalorizada, e vivencia cotidianamente a misoginia, o preconceito e os impactos de uma cultura sexista e patriarcal. Diante deste contexto, o texto analisa a construção e desenvolvimento do movimento feminista, tendo em vista que este foi importante marco no processo de emancipação da mulher, uma vez que aparece questionando o sistema opressor e o padrão social idealizado a partir do gênero masculino. Por meio da narração das mudanças sociais provocadas pelo movimento feminista e da análise das consequências dessa construção na subjetividade feminina, manifesta pelos meios artisticos, os objetivos deste estudo incluem uma investigação sobre a música enquanto um fazer sublimatório. Este estudo culminou com uma análise sobre a música como um dos caminhos para a transformação social, e apontou o relevante papel desta, no movimento feminista na construção do processo de emancipação da mulher no Brasil. Nesse cenário, são apresentados os percursos da música enquanto forma de expressão subjetiva da mulher em diferentes épocas e contextos, considerando-a, ainda, como meio de comunicação e expressão intersubjetiva e, ressaltando a necessidade do olhar da psicologia para a arte menos interpretada pela psicanálise. Provou-se ser de grande relevância para a reflexão sobre os avanços conquistados nesse processo e na ruptura dos estigmas construídos ao longo dos anos. Os resultados da pesquisa mostraram que por meio da música as mulheres podem efetivamente modificar o contexto social. Palavras-chave: Mulher, Música, Feminismo, Emancipação. ABSTRACT This monograph discusses the possible dialogues and contributions of music to the emancipation process of women in the Brazilian context, as it is understood that since ancient times, women have been culturally repressed and devalued, experiencing on a daily basis misogyny, prejudice and the impacts of a sexist and patriarchal culture. Given this context, the text analyzes the construction and development of the feminist movement, considering it an important milestone in the emancipation process of women, once it questions the oppressive system and the idealized social pattern from the male gender. Through narration of social changes caused by the feminist movement and analysis of the consequences of this construction on female subjectivity, manifested by artistic means, the objectives of this study include an investigation of music as a sublimation. This study culminated in an analysis of music as one of the paths to social transformation, and pointed out its relevant role in the feminist movement on constructing the emancipation process of women in Brazil. In this scenario, the trajectories of music are presented as a form of women’s subjective expression in different times and contexts, considering it, still, as a mean of communication and intersubjective expression and, emphasizing the need from a psychological point of view to the less interpreted art by psychoanalysis. It proved to be of great relevance to reflect on the advances achieved in this process and the rupture of stigmas built over the years. The results showed that through music women can effectively modify the social context. Keywords: Women, Music, Feminism, Emancipation. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 17 2. A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA MULHER E O FEMINISMO ........................ 19 2.1. Ser mulher no Brasil ............................................................................... 24 3. PSICANÁLISE, MÚSICA E SOCIEDADE ........................................................... 34 4. A MÚSICA ENQUANTO FACILITADORA DO PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO DA MULHER ........................................................................................................ 47 4.1. A atuação da mulher na música brasileira ........................................... 49 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 61 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 65 17 1. INTRODUÇÃO Ainda que os direitos, as conquistas e a emancipação da mulher tenham crescido ao longo dos anos, a inviabilidade feminina no espaço musical ainda é legitimada pela sociedade. A primeira edição do estudo “Por Elas que Fazem a Música”, realizado em 2017, pela União Brasileira de Compositores (UBC) mostra que apenas 14% dos associados à UBC são mulheres. Quanto aos valores arrecadados, a renda média das mulheres associadas é 28% menor do que a dos homens. Ainda, do total dos rendimentosde direitos autorais distribuídos para produtores fonográficos, apenas 3% são de mulheres, contra 97% de homens1. Com esses dados, é possível inferir que os números desiguais se apresentam como reflexo de uma sociedade sexista e patriarcal. Entretanto, apesar da disparidade de gênero significativa no mercado musical, a mulher utiliza do recurso musical como forma de expressão e luta. Aos poucos, mulheres têm conquistado destaque por seus talentos musicais, dando voz a outras mulheres e escrevendo através de canções suas vivências subjetivas, históricas e culturais. Segundo Lopes (2005), ao longo da história da psicanálise, a música continua sendo a arte menos interpretada e ainda poucos autores se ousaram a “psicanalisar” a música. Compreendendo a música como importante recurso de expressão, que permite ao sujeito manifestar sentimentos, pensamentos, desejos, fantasias e emoções, consideramos de grande relevância manifestar sobre as contribuições da música no processo de emancipação da mulher pelo olhar psicanalítico, pois reconhecemos que existe forma de expressão subjetiva que se origina através da arte, da poesia, do som, dos estilos e meios em que a música pode ser produzida e ser propagada. A vivência no meio feminino nos impulsiona a olhar para toda a forma de representatividade e entender as diferenças de papel entre homens e mulheres na sociedade. É notório o predomínio patriarcal em nossa cultura e no âmbito artístico, e consideramos que a participação de mulheres no ambiente musical, ainda que reduzida, pode ser vista como forma de expressão e luta. 1 Disponível em http://www.ubc.org.br/anexos/publicacoes/arquivos_noticias/porelasquefazemamusica2018.pdf. (Acesso em 17 de março de 2020). http://www.ubc.org.br/anexos/publicacoes/arquivos_noticias/porelasquefazemamusica2018.pdf 18 Diante desse contexto, esse trabalho busca compreender as contribuições da música para o processo de emancipação da mulher no contexto brasileiro. Por meio de um resgate histórico sobre o movimento feminista, e abarcando a música enquanto um fazer sublimatório e instrumento de influência social, buscamos relacionar a música e o movimento feminista ao processo de emancipação da mulher. O estudo foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica, embasada em materiais já elaborados em livros e artigos científicos, que oferecem como vantagem a obtenção de dados históricos e a compreensão do fenômeno de forma mais ampla que em uma pesquisa de campo. Ressaltamos que foi necessário analisar cuidadosamente as fontes e os dados, para assegurar uma pesquisa bibliográfica adequada (GIL, 2002). Os passos seguidos para realização da pesquisa bibliográfica incluíram a escolha do tema, o levantamento bibliográfico, a formulação do problema, a elaboração do plano de redação, a busca das fontes, a leitura do material, a elaboração de fichamentos, a organização lógica do assunto e a redação do texto (GIL, 2002). A redação do texto está organizada por meio de três seções, sendo que a primeira seção apresenta um resgate histórico sobre o feminismo no mundo e no contexto brasileiro, enquanto movimento e fenômeno que acarreta mudanças sociais e na condição feminina. A segunda seção apresenta a música sob a luz da psicanálise, compreendendo-a enquanto um fazer sublimatório e, portanto, um evoluído mecanismo de defesa. Na terceira seção buscamos relacionar a música e o processo de emancipação da mulher, voltando-se para a inserção e valorização da mulher dentro do meio musical, abordando a sua autonomia através das representações femininas na música, que é uma expressão artística e que tem influência e impacto, tanto no grupo, como na sociedade. 19 2. A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA MULHER E O FEMINISMO A misoginia se faz presente na história do ocidente, relacionada, principalmente, à sexualidade feminina culturalmente reprimida e desvalorizada desde a antiguidade que cita a dominação sobre o corpo feminino no sentido de que o espirito deveria se sobrepor ao físico e no domínio político do masculino sob o feminino (...) na Grécia, os mitos contavam que, devido à curiosidade própria de seu sexo, Pandora tinha aberto a caixa de todos os males do mundo e, em consequência, as mulheres eram responsáveis por haver desencadeado todo tipo de desgraça. A religião é outro dos discursos de legitimação mais importantes. As grandes religiões têm justificado ao longo dos tempos os âmbitos e condutas próprios de cada sexo. Na tradição judaico-cristã, o relato da expulsão do Paraíso tem essa função. Eva é a Pandora judaico-cristã porque, por sua culpa, fomos desterrados do Paraíso (PULEO, 2004, p.1). Segundo Jarschel (1994), na Idade Média isso se acentua e através do cristianismo, passa-se a ter uma leitura do corpo masculino como uma criação do sopro divino direto, e a mulher como criação da carne, e portanto muito mais suscetível à perdição, ou seja, o homem como a perfeita união entre espirito e carne e a mulher por ser vinda da costela masculina, foi fabricada a partir da carne e portanto seria mais carnal. Diante disso, foram então atribuindo cargas pejorativas ao que se relaciona a mulher, como o sangue menstrual e também relacionando a mulher a fragilidade e por isso a atuação do demônio sobre elas a razão natural para isto é que ela é mais carnal que o homem, como fica claro pelas inúmeras abominações carnais que pratica. Deve-se notar que houve um defeito na fabricação da primeira mulher, pois ela foi formada por uma costela de peito de homem, que é torta. Devido a este defeito, ela é um animal imperfeito que engana sempre (MALLEUS MALLEFICARUM, apud, JARSCHEL1994, p.10). Tal concepção depreciativa da mulher, como um corpo diabolizado, pecador e sem a capacidade de dominação da mente sobre o corpo, mantem o domínio do homem sobre a mulher, que muitas vezes se submetia e aceitava essa dominação e controle por medo de ser seduzida pelo diabo; constrói-se, assim, uma cultura ancorada na desigualdade de gênero que é legitimada por antigos discursos. Ainda na Idade Média, segundo Lins (2012), havia o controle sobre a beleza feminina, sendo que as mulheres não podiam ser belas pois despertariam o desejo do diabo; portanto, quanto mais uma mulher negasse a beleza, mais estaria protegida 20 das tentações do diabo, e mais próxima de Deus ficaria. A sociedade ocidental é marcada por muitos discursos de legitimação da desigualdade entre homens e mulheres; que foram constituidos, conforme dito acima, desde a Grécia Clássica até a tradição judaico-cristã, procura-se demonstrar, por Pandora e Eva, que “a curiosidade feminina é a causa das desgraças humanas e da expulsão dos homens do Paraíso” (GARCIA. 2011, p.12). A inquisição, segundo Pinto (2010), foi atroz às mulheres que desafiassem os princípios pregados como dogmas incontestáveis. A ciência e a filosofia ocidentais também legitimam a desigualdade, pois o ocultamento do trabalho feminino ao longo da história da humanidade foi tão intenso, que muitas histórias de mulheres foram escondidas e silenciadas, e por isso seus nomes e trabalhos ainda continuam desconhecidos. Na modernidade, a dominação masculina sobre o feminino ganha novos contornos para além da espiritualidade, uma vez que a sociedade revoluciona o pensamento em relação ao teocentrismo, que pensa a sociedade fundamentada na religião e em Deus para o mundo. Segundo Garcia (2011), o mundo é, então, definido pelo masculino e a representação da humanidade é atribuída ao homem com base no androcentrismo. Nesse contexto, a dominação sobre as mulheres passa a ser principalmente no campo do trabalho através do capitalismo, pois as mulheres saíram da Idade Média em uma condição de subalternidade espiritual e adentram a Modernidade desprovidas da possibilidadede se inserir como trabalhadoras da classe superior, se inserindo então como segunda classe, sem a possibilidade de se tornar livre por meio de seu trabalho. Tal condição é acentuada com a Revolução Industrial na manipulação do mercado de trabalho, uma vez que as mulheres pobres sempre trabalharam e se tornam mão de obra muito mais barata que o homem, sendo submetidas a trabalhos degradantes e desumanos por serem obedientes e submissas (LINS, 2012). Posteriormente, sobretudo na atualidade, a dominação sobre o feminino se apresenta também pela padronização física por meio dos padrões estéticos e da beleza. Diante do exposto, percebe-se que a sociedade se construiu de maneira patriarcal, sendo o patriarcado uma estrutura hierárquica entre gêneros, podendo ser pensada a partir da definição do termo androcentrismo, que considera o homem como único paradigma de representação coletiva (SANTOS; KAUSS, 2017). Cabe ressaltar que segundo Beauvoir (1980), o termo mulher se refere a uma categoria socialmente construída e diante disso, o conceito gênero trata-se de uma construção social, ou 21 seja, este ultrapassa a percepção do sexo anatômico. Segundo Oliveira (2002), o patriarcado provoca a influência do androcentrismo como postura que parte de uma perspectiva unicamente masculina, que é tomada como válida para homens e mulheres e legitima a construção social de uma imaginária soberania do homem em relação à mulher, colocando esta como inferior ao homem. Portanto, pode-se dizer que o patriarcado é entendido como pertencendo ao extrato simbólico e, em linguagem psicanalítica, como a estrutura inconsciente que conduz os afetos e distribui valores entre os personagens do cenário social. A posição do patriarca é, portanto, uma posição no campo simbólico, que se transpõe em significantes variáveis nas distintas interações sociais. Por esta razão, o patriarcado é, ao mesmo tempo, norma e projeto de auto-reprodução, o que o leva a censurar e controlar a fluidez, as circulações, as ambivalências e as formas de vivência de gênero que resistem a ser enquadradas na sua matriz heterossexual hegemônica (ALMEIDA, 2004, p4). O patriarcado, portanto, é institucional e se apresenta em todas as esferas da sociedade; e, assim como as demais hierarquias impostas a uma sociedade, a hierarquia de gênero se apresenta de forma cruel e opressora, dado que as funções dentro de uma sociedade muitas vezes são baseadas no gênero, e assim estabelecem também uma hierarquia social que comumente acarreta em desigualdade, violência e discriminação. Por muitas décadas a redução da mulher à reprodução e a submissão em relação aos homens foram dadas como naturais. “Esse ser tido como inferior até mesmo pela ciência sempre esteve à mercê dos comandos e diretrizes ora do pai, enquanto provedor do lar, posteriormente do marido, como proprietário, da sociedade, da Igreja e também do Estado” (SANTOS; KAUSS, 2017, p.42). Contudo, a partir do século XIX, as mulheres começaram a desenvolver teorias feministas que explicassem a hegemonia masculina, fazendo menção ao patriarcado no seu sentido crítico (GARCIA, 2011). Tais análises provocaram questionamentos sobre o controle e o domínio dos homens sobre as mulheres e a partir da compreensão de que o controle patriarcal se estendia também para as outras esferas de forma opressora; e, uma vez que durante séculos as mulheres estiveram em uma posição social inferior aos homens, tiveram seus direitos negados e acreditaram serem culpadas pela violência que sofriam. Nesse sentido, o feminismo se articula como filosofia política e movimento social, uma vez que existem diversas correntes que compõem o pensamento 22 feminista, sendo uma característica que o diferencia de outras correntes de pensamento político, o fato de que ele é constituído por práticas de mulheres em toda parte do mundo (GARCIA, 2011). Desse modo, o feminismo pode ser definido como: a tomada de consciência das mulheres como coletivo humano, da opressão, dominação e exploração de que foram e são objeto por parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob suas diferentes fases históricas, que as move em busca da liberdade de seu sexo e de todas as transformações da sociedade que sejam necessárias para este fim (GARCIA, 2011, p. 13). Essa tomada de consciência feminista transforma a vida das mulheres, visto que a consciência da discriminação promove uma necessidade de mudança diante dos fatos, e nisso consiste a capacidade emancipadora do feminismo (GARCIA, 2011), pois, através disso, provocam-se transformações nas relações de gênero e consequentemente, impactos nos discursos patriarcais. Ao longo da história, o feminismo foi considerado pela sociedade patriarcal um inimigo a ser combatido e não enquanto um movimento, que, segundo o contexto da época e de cada sociedade, tem o objetivo em comum de “lutar pelo reconhecimento de direitos e oportunidades para as mulheres e, com isso, pela igualdade de todos os seres humanos” (GARCIA, 2011, p. 12). Portanto, essa consideração deturpada do feminismo se dá, sobretudo, quando as mulheres começaram a afirmar concretamente sua independência, questionar os mitos sobre o feminino e o papel social desempenhado por estas, desde o Período Medieval, em uma sociedade fundada pelo patriarcado e marcada por uma autoridade imposta institucionalmente dos homens sobre mulheres. Para compreensão do movimento feminista se faz necessário considerar que este “é um movimento que produz sua própria reflexão crítica, sua própria teoria” (PINTO, 2010, p.15). A sincronia entre o ativismo e teoria no feminismo perpassa, entre outras coisas, pelo tipo social de ativista que pelo menos inicialmente reforçou o feminismo na segunda metade do século XX, sendo este formado por mulheres de classe média, educadas, principalmente, nas áreas das Humanidades, da Crítica Literária e da Psicanálise. Pode-se conhecer o movimento feminista a partir de duas vertentes: da história do feminismo, ou seja, da ação do movimento feminista, e da produção teórica feminista nas áreas da História, Ciências Sociais, Crítica Literária e Psicanálise. Por esta sua dupla característica, tanto o movimento feminista quanto a sua teoria transbordaram seus limites, provocando um interessante embate e reordenamento de diversas naturezas na história dos movimentos sociais e nas próprias teorias das Ciências Humanas em geral (PINTO, 2010, p.15). 23 Em meio à repressão e desigualdade de gênero, o feminismo, contudo, na história ocidental surge por meio dos questionamentos das diversas mulheres que se rebelaram contra essa condição imposta e lutaram por liberdade. Portanto, “o feminismo tem uma longa história como movimento social emancipatório, sendo este um discurso capaz de impugnar, criticar, desestabilizar e mudar essa relação injusta por conta de sua força crítica” (GARCIA, 2011, p. 12). A primeira onda do feminismo se inicia nas últimas décadas do século XIX, quando as mulheres, inicialmente na Inglaterra, organizaram-se para lutar por seus direitos, sendo que o primeiro deles que se popularizou foi o direito ao voto. As sufragetes, como ficaram conhecidas, promoveram grandes manifestações em Londres, foram presas várias vezes, fizeram greves de fome. Em 1913, na famosa corrida de cavalo em Derby, a feminista Emily Davison atirou-se à frente do cavalo do Rei, morrendo. O direito ao voto foi conquistado no Reino Unido em 1918 (PINTO, 2010, p15). No entanto, o termo feminismo foi empregado nos Estados Unidos por volta de 1911, quando escritores, homens e mulheres, começaram a usá-lo no lugar das expressões utilizadas no século XIX tais como movimento das mulheres e problemas das mulheres, para descrever um novo movimento na longa história das lutas pelos direitos e liberdades das mulheres (GARCIA, 2011, p.12). Essetermo visava ir além do sufrágio e de campanhas pela moral e pureza social, pois buscava determinação intelectual, política e sexual. As feministas americanas buscavam o equilíbrio entre as necessidades de amor e de realização, sendo esta individual e política. De certo modo, pode-se afirmar que “sempre que as mulheres - individual ou coletivamente - criticaram o destino injusto e muitas vezes amargo que o patriarcado lhes impôs e reivindicaram seus direitos por uma vida mais justa estamos diante de uma ação feminista” (GARCIA, 2011, p.13). O feminismo inicial perdeu força a partir da década de 1930 na Inglaterra e nos Estados Unidos, e retorna novamente na década de 1960. Segundo Pinto (2010), nesse espaço de trinta anos, Simone de Beauvoir, com o livro “O segundo sexo” publicado em 1949, entre outros aspectos, através da máxima “não se nasce mulher, se torna mulher”, marca as mulheres e se torna fundamental para a nova onda do 24 feminismo. Para compreensão da nova onda do feminismo, faz-se necessário um resgate histórico sobre a importância da década de 1960 para o mundo ocidental: os Estados Unidos entravam com todo o seu poderio na Guerra do Vietnã, envolvendo um grande número de jovens. No mesmo país surgiu o movimento hippie, na Califórnia, que propôs uma forma nova de vida, que contrariava os valores morais e de consumo norte-americanos, propagando seu famoso lema: “paz e amor”. Na Europa, aconteceu o “Maio de 68”, em Paris, quando estudantes ocuparam a Sorbonne, pondo em xeque a ordem acadêmica estabelecida há séculos; somou-se a isso, a própria desilusão com os partidos burocratizados da esquerda comunista. O movimento alastrou-se pela França, onde os estudantes tentaram uma aliança com operários, o que teve reflexos em todo o mundo. Foi também nos primeiros anos da década que foi lançada a pílula anticoncepcional, primeiro nos Estados Unidos, e logo depois na Alemanha. A música vivia a revolução dos Beatles e Rolling Stones (PINTO, 2010, p.16). Em meio a tantos acontecimentos revolucionários, Betty Friedan, em 1963, lança o livro “A mística feminina”, considerado um norteador do feminismo. Na Europa e nos Estados Unidos, o novo movimento feminista aparece com toda a força, e as mulheres começam então a falar diretamente, pela primeira vez, sobre a questão das relações de poder entre homens e mulheres. Desta vez, o feminismo aparece como um movimento libertário, que, além de espaço para a mulher no trabalho, na vida pública e na educação, também luta por uma relação e direitos igualitários entre os gêneros, para que as mulheres tenham liberdade e autonomia sobre sua vida e seu corpo (PINTO, 2010). 2.1. Ser mulher no Brasil Assim como nas demais sociedades patriarcais, a posição social da mulher, no Brasil, foi perpassada pelo pensamento machista e embasado nos dogmas da Igreja Católica e da ciência, seguindo a hierarquia de gênero que a coloca enquanto inferior ao homem, sendo que, quando afirmamos que a mulher é subserviente não apenas ao marido como também ao Estado, o fazemos porque em toda a história ele se faz presente, legitimando a soberania do “primeiro sexo” em relação ao “segundo”. No Brasil, as leis previam e estimulavam a permanência da mulher no ambiente doméstico, sendo responsáveis pela conservação da família ou pela ruína desta (SANTOS; KAUSS, 2017, 44-45). Segundo Santos e Sacramento (2011), o casamento era visto como uma 25 instituição que promovia a visão da ascensão social e manutenção do status, onde as mulheres tinham como papel, exercer uma função social de dona de casa, e esposa, mas a autoridade suprema, no ambiente familiar, continuava a pertencer ao marido. No século XIX, a mulher deveria se dedicar a propagar e fortalecer o amor familiar, que, visto de uma forma romântica, considerava-a como a base da moral da sociedade, ou seja, a mulher deveria satisfazer os desejos sexuais do marido, além de proteger a virgindade de suas filhas, até que se casassem. A sexualidade feminina, que era controlada de forma intensa, se vinculava a uma visão de propriedade privada; ou seja, a mulher virgem era considerada como mais valorosa, tanto pela igreja quanto pela sociedade, como um todo. No Brasil as mulheres viviam reclusas sob o poder de seus pais até o momento de passarem ao poder de seus maridos. Os pais combinavam as bodas dos filhos levando em consideração somente a condição financeira. No Brasil o acordo matrimonial estava nas mãos do pai da moça e obedecia aos interesses familiares. Se a jovem é rica já está preparada para o casamento e o pai trata logo de apresentar-lhe algum de seus amigos. (SANTOS; SACRAMENTO, 2011 p.6). As mulheres, nessa época, não se dedicavam a aproveitar a sua adolescência, pois, de alguma forma, deveriam se preparar para a maternidade, tendo a lição de aprender, durante a sua juventude, a ser mãe e dona de casa, se dedicando assim, a tais tarefas desde cedo para logo após se casarem com homens que, em muitas das vezes, eram bem mais velhos do que elas. Nessa realidade, os relacionamentos dessas mulheres, no caso, os namoros, eram fiscalizados, e isso aconteceu até que se iniciasse o século XX, garantindo assim uma falsa ideia de poder sobre os corpos das mesmas, pois, ao serem fiscalizados, por seus pais enquanto estavam juntas de seus pretendentes, acreditava-se que isso estava impedindo a aproximação dos corpos e, por consequência, preservando a virgindade dessas mulheres. O costume da vigilância e do controle exercido sobre as mulheres e o seu posterior afrouxamento no decorrer do século XIX, com a ascensão dos valores burgueses, estavam condicionados ao sistema de casamento por interesse. O afrouxamento da vigilância e do controle sobre os movimentos femininos foi possível porque as próprias pessoas, especialmente as mulheres, passaram a se autovigiar. Aprenderam a se comportar. (SANTOS; SACRAMENTO, 2011 p.6). Portanto, também no Brasil a mulher por muitos anos esteve reduzida à reprodução e aos cuidados domésticos, e, além disso, não podiam andar 26 desacompanhadas pelas ruas, deveriam se casar cedo com o marido escolhido pelo seu pai de acordo com interesses financeiros; e as que quebravam com esses dogmas eram marginalizadas (SANTOS; SACRAMENTO, 2011). Ainda que nessa posição reduzida à reprodução e cuidados domésticos, as mulheres brasileiras aos pouco foram se organizando em prol de mudanças nesse cenário; embora esses primeiros movimentos da história do feminismo no Brasil, sejam conhecidos por fragmentos encontrados por historiadores e que deixam muitas lacunas, pois, como citado anteriormente, o ocultamento do trabalho feminista foi muito intenso no mundo, e isso não foi diferente em nosso país. No entanto, alguns importantes dados, embora pouco conhecidos, são pontos fundamentais para a compreensão das mudanças na posição social da mulher e da luta feminina no país. Em 1868, foi publicado segundo Ribeiro (2018), o Tratado Sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar, escrito por Anna Rosa Termacsics dos Santos, que buscava trabalhar questões relacionadas à participação política, ao mundo do trabalho, casamento, educação e à participação das mulheres na imprensa periódica diária. O tratado contém 128 páginas escritas em forma de manifesto e repletas de uma insatisfação feminina, baseada em experiências conjuntas sobre uma dependência a que estiveram impostas, contrapondo de forma contundente os argumentos que excluíam as mulheres de espaços como educação, trabalho e política, além de questionar o casamento como finalidade na vida de todas. A reivindicação do voto não foi, nesse caso, um ato isolado, mas inserido numa denúncia sobre a arbitrariedade de todo o sistema legislativo que, segundo o impresso, alienava as mulheres a aceitarem tal condição como se esta fosse natural (RIBEIRO,2018, p 15). Em 7 de setembro de 1873, o periódico mensal O Sexo Feminino começou a circular as ruas de Campanha em Minas Gerais. Neste, e nos quarenta e quatro números publicados em seguida, a editora D. Francisca Senhorinha da Motta Diniz e suas colaboradoras – constituidoras de uma pequena elite de mulheres letradas dentro e fora de Campanha – tinham como motivação comum a melhoria da condição da mulher na sociedade. Essas e outras mulheres estavam impulsionadas por um amplo movimento de redefinição da mulher na modernidade e vinham a utilizar-se do meio impresso como espaço para suas várias reivindicações (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2007, p 431). Após a experiência em Minas Gerais, Francisca Senhorinha muda-se com suas filhas para o Rio de Janeiro, onde continua a publicar jornais, em meio a efervescência 27 da imprensa dirigida e editada por mulheres. Em 1852, a argentina Joana Paulo Manso de Noronha fundava, no Rio de Janeiro, o Jornal das Senhoras, com o subtítulo Modas, Literatura, Bellas- Artes, Theatros e Crítica. No decênio seguinte, em 1862, aparece o Bello Sexo: Periódico Religioso, de Instrução e Recreio, Noticioso e Crítico Moderado redigido por D. Julia de Albuquerque Sandy Aguiar, também no Rio de Janeiro. Apesar de manter o tom ponderado de seu antecedente, o próprio subtítulo revela que sua aceitabilidade se apoiava em tradições religiosas e moderadas, mas apresenta algumas inovações, como a reunião semanal de suas colaboradoras e artigos assinados – prática incomum no Jornal das Senhoras –, acenando para a maior tolerância da escrita feminina (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2007, p 431). No entanto, no Brasil, assim como na Inglaterra, o feminismo se manifestou publicamente por meio da luta pelo voto. Inicialmente o feminismo no Brasil aparece representado por duas correntes: a primeira, liderada por Bertha Lutz, compreendia o movimento das mulheres que se uniram de forma política, lutando por seus direitos e afirmações dos mesmos, para participarem ativamente da cidadania, este foi considerado uma tendência “bem comportada” do feminismo, por se tratar de um movimento de caráter conservador que não questionava a opressão da mulher Esse viés do feminismo era considerado a área conservadora do movimento, visto que não abordava a temática da repressão sobre a mulher, lutando por direitos somente porque a sociedade seria mais igualitária e se desenvolveria de forma satisfatória. (PINTO, 2003, p. 378). Segundo Pinto (2010), Bertha Lutz, bióloga e cientista, após estudar no exterior, retornou ao Brasil na década de 1910, liderando a luta pelo voto. Foi um importante nome do feminismo no Brasil, sendo uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que fazia campanha pública pelo voto feminino, direito este que foi conquistado em 1932 após Getúlio Vargas assinar uma prerrogativa que garantia essa concessão. A partir disso, o voto feminino era visto como facultativo, ou seja, não obrigatório, e somente com a Constituição de 1934 promulgada é que o voto feminino se tornou, então, um dever. Foi na primeira corrente do feminismo que houve as reivindicações a respeito da igualdade jurídica, do direito ao voto, do acesso à instrução e profissões, além de ser o momento em que as mulheres começaram a se opor aos chamados casamentos arranjados, não aceitando mais serem vistas como propriedade de seus maridos. A segunda corrente do feminismo, considerado como feminismo 28 malcomportado”, reunia intelectuais, líderes, operárias entre outras, que, além dos direitos políticos, defendiam o direito à educação e abordavam temas considerados tabus, sendo então um movimento mais rebelde das mulheres, perante a forma como começaram a conversar com a sociedade, através das atitudes que podiam ter em conjunto, como por exemplo discussões sobre igualdade e sexualidade. Cabe ressaltar, dentro da segunda corrente, o movimento das operárias de ideologia anarquista, reunidas na “União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas”, que em 1917 proclamam sobre a situação das mulheres nas fábricas e oficinas que eram constantemente rebaixadas (PINTO, 2003). Nesta corrente havia ainda uma vertente considerada “o menos comportado dos feminismos”, manifesto compreendendo assim que as participantes desse movimento eram mulheres extremistas, por muitas vezes anarquistas e comunistas, sendo Maria Lacerda de Moura considerada comandante dessa vertente. O feminismo inicial no Brasil perdeu força a partir da década de 1930, assim como na Inglaterra e Estados Unidos. O golpe de 1937 e a instauração do Estado novo foi um momento em que, ainda que houvesse importantes momentos de participação feminina, como ,por exemplo, o movimento contra a alta do custo de vida em 1950, houve um regresso no movimento feminista que se estendeu até as primeiras manifestações nos anos 1970 (OTTO, 2004).Ainda que nos primeiros anos da década de 1960 o Brasil seguisse as manifestações socioculturais, principalmente pela revolução da música através da Bossa Nova. Não obstante, em 1964 aconteceu o golpe militar, inicialmente moderado, pois nos quatro primeiros anos da ditadura as medidas repressivas do regime autoritário não possibilitavam uma distinção clara entre o que era proibido ou permitido. Com o fortalecimento das organizações e movimentos populares em oposição ao regime, o governo militar instaurou uma atmosfera de medo, silêncio e repressão em 1968, com a promulgação do Ato Institucional n. 5 (AI-5), que transformava o Presidente da República em ditador (PINTO, 2010). Em contraposição à Europa e aos Estados Unidos, que mantinham um cenário propício para o surgimento de movimentos libertários, o Brasil vivia um momento “de repressão total da luta política legal, obrigando os grupos de esquerda a irem para a clandestinidade e partirem para a guerrilha” (PINTO, 2010, p.16). Entretanto, foi nesse ambiente de repressão que aconteceram as primeiras manifestações feministas no Brasil, na década de 1970, ainda que “o regime militar [visse] com grande desconfiança qualquer manifestação de feministas, por entendê- 29 las como política e moralmente perigosas” (PINTO, 2010, p.16-17). No período da ditadura, o movimento feminista volta às discussões no Brasil; porém, devido à repressão social que o país estava sofrendo, tanto no governo como nas ruas, essa era uma época delicada para discutir a liberdade da mulher. Ainda assim, acompanhando os movimentos que ocorriam na América Latina, e tirando por base as ocorrências da evolução do movimento feminista não só no Brasil, a luta pode ser vista como mais intensa, frente à soberania militar. Nesse contexto, (...) além de buscar direitos e igualdade, o que se buscava também era o fim do pior tipo de desigualdade, a falta de alimentos. É preciso entender que nesse momento além de direitos, as mulheres precisavam se preocupar com a carestia, a saúde, manter sua liberdade, etc (PINTO, 2003, p. 379). O movimento das mulheres nesse período lutava também contra o regime autoritário que a ditadura impunha. Entende-se assim, pois, com a ausência de democracia que havia no Brasil, o que não era a realidade de outros países, as brasileiras deveriam então encarar a realidade de lidar com um sistema repressor e extremista. O avanço do feminismo internacional e as mudanças na situação da mulher no país na década de 60 contribuiu para a eclosão do feminismo brasileiro nos anos 70, que surge como consequência da resistência das mulheres à ditadura militar. Essa participação feminina, além de modificar a ordem política vigente, representou uma transgressão feminina, o que foi relativamente aceito na época. Assim, as mulheres negavam o lugar tradicionalmente “atribuído à mulher ao assumirem um comportamento sexual que punha em questão a virgindade e a instituição do casamento,‘comportando-se como homens’, pegando em armas e tendo êxito neste comportamento” (SARTI, 1998, p.3). Ainda nesse cenário de repressão vivido durante os anos de ditadura militar, “as ideias que inspiravam o movimento de reconstrução sociopolítico do país tiveram que encontrar novas formas de existência” (GIANORDOLI-NASCIMENTO, 2013, p.31). Assim, a oposição ao regime militar era realizada por meio da militância política e por diversos setores da sociedade, reagindo às tentativas de silenciamento e buscando reestabelecer a possibilidade de expressão. Diante disto, “o cenário cultural foi atingido por um intenso movimento de renovação que alcançou os meios de difusão cultural, da música popular ao cinema novo, passando também pelo teatro e pela 30 literatura” (GIANORDOLI-NASCIMENTO, 2013, p.31). Tal renovação possibilitou maior espaço para a trajetória de mulheres na militância política por meio da cultura, rompendo com os códigos e valores sociais da época. Nesse contexto cultural, a dança também entra como uma importante forma de manifestação cultural presente na cultura popular brasileira. Em especial, no âmbito do empoderamento feminino, a dança é vista como forma de expressão de resistência e autoafirmação, a partir do movimento do corpo. Partindo disso, a dança não é somente um processo de criação, mas também um processo de representação do poder feminino. O corpo que dança não tem problemas com a condenação ao erótico, ao drama, ao sexual, que pode transgredir discursos sobre formas ideais, adequadas, encerradas em papéis prédeterminados. O corpo é, antes de qualquer contenção, prova de liberdade e de fruição. O corpo que dança rematerializa, recorrentemente, aquela sua parte capturada pelas amarras da tradição. (SILVA, MARIN, 2017 p. 172). O movimento de mulheres no Brasil também teve a participação da Igreja Católica, uma vez que as organizações femininas de bairro ganharam força como parte do trabalho pastoral inspirado na Teologia da Libertação (SARTI, 1998). Os grupos feministas politizados estiveram nos enfrentamentos com a Igreja na busca de hegemonia nos grupos populares. Embora se tratasse de uma aliança entre o feminismo e a Igreja Católica contra a corrente do regime autoritário, assuntos que poderiam gerar atritos eram evitados. “A atuação da Igreja, no que se refere à perspectiva feminista, sempre teve limites claros, prevalecendo a rigidez de princípios morais, ainda que a atuação cotidiana nas comunidades de base pudesse comportar alguma flexibilidade” (SARTI, 1998, p.5). À experiência de resistência das mulheres à ditadura somaram-se as mudanças vividas pelo país, como a expansão do mercado de trabalho e do sistema educacional, e, ainda que de forma excludente, proporcionaram novas oportunidades para as mulheres, pois Este processo de modernização, acompanhado da efervescência cultural de 1968, de novos comportamentos afetivos e sexuais relacionados ao acesso à métodos anticoncepcionais e ao recurso às terapias psicológicas e à psicanálise, impactou o mundo privado. Novas experiências cotidianas entraram em conflito com o padrão tradicional de valores nas relações familiares, sobretudo por seu caráter autoritário e patriarcal. Nessas circunstâncias, o Ano Internacional da Mulher, 1975, oficialmente declarado pela ONU, propicia o cenário para [retomada] do movimento feminista no Brasil, ainda fortemente marcado pela luta política contra o regime militar 31 (SARTI,1998 p 4-5). Em 1975, ainda que a ditadura se mantivesse, o movimento feminista ganha força, pois, com o reconhecimento oficial da ONU acerca da questão da mulher como um problema social, retira-se o movimento que até então atuava na clandestinidade, “abrindo espaço para a formação de grupos políticos de mulheres que passaram a existir abertamente, como o Brasil Mulher, Nós Mulheres, o Movimento Feminino pela Anistia, citando apenas os de São Paulo” (SARTI,1998, p 5). As mulheres aparecem então atuando contra o conservadorismo, na luta por direitos e abordando em estudos temas, como sexualidade, homossexualismo, violência sexual e doméstica, aborto, igualdade de gênero e o lugar social da mulher, dando ao movimento força política, além de força social. Com o advento da redemocratização, muitas mulheres acabam segregadas por partidos políticos, essa nova onda leva as feministas a criarem laços partidários, principalmente com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) que estava se formando (PINTO, 2003, p. 381). Nesse período democrático, surgiu o que podemos chamar de feminismo acadêmico, que foi apoiado pelo Departamento de Pesquisas da Fundação Carlos Chagas. Foi então a partir daí que o movimento feminista começou a ganhar forças no Brasil, debatendo questões, como desigualdade de gênero, e se consolidando a prática das políticas públicas em prol da mulher. Nesse progresso, segundo Pinto (2010) em 1984, surge o Conselho Nacional da Condição da Mulher, que conquista a inclusão dos direitos da mulher na Carta Constitucional. Em 1988 a promulgação da nova Constituição Federal permite a criação de espaços, como as Delegacias da Defesa da Mulher, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres e a destituição do pátrio poder. Já na década de 1990 a principal luta do movimento feminista foi contra a violência doméstica, ganhando força, quando em 2006 a Lei Maria da Penha foi criada com o objetivo de estipular punição adequada e cessar atos de violência doméstica contra a mulher. A história do feminismo no Brasil, segundo Carneiro (2003), é uma das mais respeitadas e referenciadas mundialmente, além de ser um dos movimentos sociais de melhor performance dentro do Brasil. Muitas são as contribuições que o movimento trouxe ao longo dos anos de luta, dentre eles, podemos destacar as contribuições no processo de democratização do Estado, as inovações nas políticas públicas na promoção de igualdade de gênero, a luta ao combate à discriminação contra as 32 mulheres, a luta contra a violência doméstica e sexual, a conquista de autonomia sobre o próprio corpo, a conquista dos direitos sexuais e reprodutivos, a conquista e participação ativa do seu direito à cidadania. Sua participação nas últimas seis décadas tem sido um dos fatos mais marcantes ocorridos na sociedade brasileira: Entre os brasileiros que trabalham, as mulheres são quase a metade, e são responsáveis pelo sustento de aproximadamente 33% das famílias no Brasil. Tudo isso conseguido inicialmente quando nos fins dos anos 60 foi franqueado a elas o ensino popular. A chefia da família feita por mulheres também foi uma conquista. Ela se deu desde muito cedo, normalmente quando elas passavam por dificuldades econômicas por terem sido abandonadas. Quebrando então com a ideia da medicina social que dizia que as características femininas eram a fragilidade, o recato, o predomínio do afeto sobre o intelectual, a subordinação da sexualidade e a vocação maternal (SANTOS; SACRAMENTO, 2011 p.7). Atualmente, o universo feminino não se restringe somente à esfera doméstica; ainda que seja necessária sua expansão, hoje a mulher ocupa lugares que lhe foram negados por muitos anos, “a mulher atual passou a conduzir suas ações e se tornou multifuncional, bem resolvida, tendo em primeiro lugar sua liberdade e uma melhor condição de vida,” (SANTOS, SACRAMENTO, 2011 p.6). Entretanto, apesar das conquistas obtidas por meio do movimento feminista ocorrido no Brasil e no mundo no decorrer de décadas, ainda vivemos em uma sociedade patriarcal, marcada pelo preconceito e machismo, provocando desigualdades sociais entre homens e mulheres. Ou seja, mesmo que muitos tenham sido os avanços do movimento feminista nas últimas décadas em prol dos direitos e liberdade para as mulheres, a desigualdade de gênero ainda é uma marca da sociedadeBrasileira, pois mulheres são discriminadas profissionalmente: o gênero feminino ainda possui salários inferiores aos de pessoas do gênero masculino exercendo a mesma função; ainda prevalecem hierarquias familiares onde mulheres são subordinadas a um ente de gênero masculino. Outro problema enfrentado diz respeito à taxa de feminicídio que cresce a cada ano. Em suma, As mulheres foram e continuam sendo objetos de opressão em todas as partes do mundo. Como vemos ao longo da história, são suprimidas do prazer sexual, da exibição do rosto, são escravizadas e prostituídas etc. No entanto, as mulheres conquistam cada vez mais seu lugar numa sociedade de forte resistência aos novos conceitos de gênero, protagonizando diversas causas femininas, reivindicando e discutindo questões que abordam esses conceitos (ALVES; ALVES, 2013, p.117). 33 As mulheres continuam na luta contra a opressão e sua exploração, que se confirma pela ordem patriarcal e capitalista; e diante disso, cabe não cometermos os equívocos em pensar o movimento feminista enquanto um movimento singular, mas enquanto um movimento plural, diga-se feminismos, dado que este apresenta interseções em relação à classe e raça, e deve “ser refletido como um posicionamento, um modo de agir político, e nesse sentido deve ser pensado no plural, para garantir a incorporação das diferenças nas relações de poder, vivenciadas entre mulheres que guardam interesses diversos e até contraditórios” (FOUGEYROLLAS-SCHWEBE et. al, 2005, p. 830). Portanto, ainda hoje o movimento feminista busca a conquista do que foi negado a mulheres por séculos, que inclui ter o poder de escolha para exercerem sua vocação, seja enquanto profissional, mãe, dona-de-casa ou mesmo em todas as funções simultaneamente. 34 3. PSICANÁLISE, MÚSICA E SOCIEDADE A datar da Pré-História a arte está atrelada aos seres-humanos por meio de pinturas rupestres, esculturas, estatuetas etc., em que a humanidade registra sua história cotidiana e rituais; com o decorrer da história da humanidade, as artes foram sendo aprimoradas e utilizadas como forma de expressão através das artes plásticas, sonora, literária, dramática e corporal, tornando-se, assim, um caminho para a transformação subjetiva, intersubjetiva e social. Desde o seu nascimento, a psicanálise mantém uma aproximada ligação com o campo artístico. Segundo Tavares (2014), por meio das artes foi possível encontrar as mais variadas possibilidades da expressão humana, e dessa forma, se tornando passíveis de análise pela ótica psicanalítica, “podendo por fim compreendê-las como resultantes de processos de subjetivação característicos daqueles que empreendem os processos criativos de tais obras” (TAVARES, 2014, p.12). Freud, ao longo das suas obras, além das evidências clínicas, utilizou em seus estudos conteúdos culturais forjados e expressos pela literatura, mitologia, contos populares, contos de fadas etc., visto serem tão frequentemente encontrados em sua obra menções e citações de Goethe, Dostoievski, Proust, Thomas Mann, E. Allan Poe, entre tantos outros escritores. Da mesma forma, desenvolveu análises de obras provindas das artes plásticas, como as de Michelangelo e Leonardo da Vinci, como em Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua infância (FREUD, 1910), de onde metodologicamente se fazia possível uma decifração das formações do inconsciente, partindo-se de materiais culturais, no intento de rastrear-se aquilo que nos remete ao plano individual/particular do sujeito criador. Método privilegiado pela psicanálise – o retorno e assento à história individual desvelariam as marcas constitutivas do ser de desejo (TAVARES, 2014, p. 12). Freud utilizou das artes como possível fonte de representações dos variados aspectos subjetivos, seja analisando artes plásticas ou analisando os diversos significados de determinada palavra em diferentes contextos culturais, expressos por artistas, e observou que estas expressavam manifestações inconscientes e considerando-as uma forma de comunicação simbólica que apresenta uma função catártica o desenvolvimento das ideias psicanalíticas e todo o impacto por elas produzido, fez-se paulatinamente que todo o cenário cultural do séc. XX sofresse sua impressão, de modo que, a partir de então, as mais diferentes manifestações artísticas já traziam em si as influências das descobertas freudianas (TAVARES, 2014, P. 12). 35 Freud chegou a considerar sendo da mesma natureza os fazeres da ciência, das artes, da filosofia e da religião, em relação ao sentido sublimatório atribuído a essas atividades criativas. O próprio saber teórico da Psicanálise, segundo Tavares (2014), se relaciona ao campo das artes, uma vez que seu saber-fazer enquanto práxis se aproxima muito aos processos criativos. A prática psicanalítica, como atividade de reconstrução das lacunas psíquicas dos indivíduos através da simbolização necessita de certa dose de criatividade do analisando, ou seja, o processo analítico pressupõe como condição para sua possibilidade, uma potencialidade criativa inerente ao sujeito falante constituído que é pelo universo simbólico. “A espontaneidade discursiva foi eleita por Freud como a via régia e condição primeira para a possibilidade de acesso ao inconsciente” (TAVARES, 2014, p13). O método psicanalítico inaugura o “acesso aos conteúdos recalcados do sujeito, os quais contêm em si as razões de ser que a própria razão desconhece” (TAVARES, 2014, p.13). A Psicanálise encontra por meio da associação livre, sendo esta dependente da espontaneidade e criatividade do sujeito, a possibilidade de produção de um saber sobre aquilo que escapa ao próprio sujeito, buscando mais que uma remoção dos sintomas, mas também sendo uma aposta em novas possibilidades de subjetivação por parte do sujeito. Portanto, o método psicanalítico em si é uma proposta que demanda um processo criativo por parte do sujeito, este que é constituído através do universo simbólico, uma vez que o processo interpretativo depende “do movimento da cadeia significante (associação livre), no qual o sujeito dividido assume a tarefa de uma produção de sentido” (TAVARES, 2014, p 14). Assim, a Psicanálise se aproxima da arte como forma de apreensão e representação do mundo em que o sujeito está inserido. No âmbito das produções artísticas, estas são compreendidas como produtos derivados de um processo criativo, subjetivo e intersubjetivo de quem as executa, e que podem ser consideradas como uma favorecida via de acesso ao inconsciente, uma vez que escapam mais da censura do que a palavra e podem ser lidas através do conceito formulado por Freud citado por Tavares (2014): Sublimação. Sublimação trata-se de uma palavra que remete a dois discursos teóricos importantes no século XIX, sendo o primeiro constituído na alquimia durante a Idade 36 Média, onde a sublimação se associa à passagem direta de uma substância do estado sólido para o estado gasoso; o segundo formulou-se no século XVIII e seus campos teóricos de referência são a estética e a teoria da literatura. Segundo Birman (2008) a palavra sublimação foi previamente citada em uma correspondência de Freud a Fliess, quando ele afirma que o abjeto e o sublime teriam a mesma origem psíquica, opondo-se à representação presente nos discursos filosófico e do senso comum, que os consideravam opostos. Então, a partir disso, o discurso freudiano inscreve esse conceito nos registros do pulsional e do sexual. “É nessa perspectiva que Freud retoma tal oposição entre o belo e o sublime na psicanálise. Enquanto a sublimação é o processo psíquico pelo qual o sexual abjeto se transforma no sublime” (BIRMAN, 2008, p. 19). No entanto, a palavra Sublimação enquanto conceito da teoria psicanalítica se concebe apenas em “A moral sexual civilizada” (1908), quando Freud apresenta o conceito comoalgo que, ao mesmo tempo em que se inscreve no registro da pulsão sexual, se contrapõe a ela no campo da cultura (BIRMAN, 2008). Este tão crucial e controverso conceito sofreu modificações ao longo das obras freudianas e diz sobre as possibilidades criativas do sujeito. De acordo com Metzger (2008), inicialmente a sublimação foi interpretada como uma defesa histérica e posteriormente como a dessexualização, ou seja, uma inibição dos fins sexuais, sendo este processo um dos pilares da civilização. Tavares (2014) cita que tal conceito se manteve apresentado por Freud como um dos possíveis destinos da pulsão Isso implica que nesse processo estaria envolvida uma mudança de meta, de objeto, como caminho para a pulsão, ao contrário de seu pensamento inicial que versava sobre uma dessexualização das pulsões sublimadas. Como destino possível, a sublimação seria um processo em que as intensidades pulsionais poderiam encontrar satisfação e representação, não sendo represadas pelo mecanismo do recalque (TAVARES, 2014, p 15). O conceito de sublimação, segundo Nasio (1995), perpassa diferentes elaborações conceituais, como a teoria metapsicológica da pulsão e a teoria dinâmica dos mecanismos de defesa do eu. Diante disso, para compreensão do processo sublimatório se faz necessário relacionar os conceitos “pulsão de morte” e “sublimação”. Tavares (2014), com base nos postulados de Freud e Lacan, cita que a pulsão de morte seria aquela não passível de representação e suas manifestações se dão, entre outras coisas, por meio da compulsão à repetição ou do automatismo 37 repetitivo, por meio do gozo correspondente daquele real impossível de ser escrito. Assim sendo, A sublimação é o conceito psicanalítico de maior alcance ético justamente porque permite o enfrentamento do problema, aparentemente incontornável, da relação do sujeito com a pulsão de morte. A pulsão de morte, pulsão “por excelência”, produz efeitos destrutivos e desorganizadores porque resiste a ser inteiramente dominada pelas pulsões sexuais, pulsões de vida, articuladas ao significante. Ou seja: articuladas aos outros e à cultura. As pulsões de vida apontam sempre para onde estão os outros, “dentro” ou fora do psiquismo; e no mundo humano, onde os outros estão (ainda que na fantasia), estão os significantes que os representam. (KEHL, 2002 apud TAVARES, 2014, p. 43). A Sublimação se relaciona então à plasticidade da força pulsional, ao mesmo tempo que, ao nos referirmos à capacidade plástica da pulsão, não significa possibilidade de toda sublimação (SIMÕES, 2007). A simbolização de conteúdos psíquicos, segundo Tavares (2014), é sempre da ordem de uma produção de sentido. A atividade artística é um exemplo das diversas maneiras de criar sentido e fecundar um exercício infinito de tentativa de simbolização do real (TAVARES, 2014). Desta forma, na impossibilidade de a pulsão de morte ser expressa pelo meio discursivo, o processo sublimatório aparece como uma possibilidade, mesmo que parcial, de saída “de condições de mal-estar ou como destino dos excessos das intensidades pulsionais” (TAVARES, 2014, p 16). Logo, o artista transmite sua própria linguagem do inconsciente em forma de cultura, visto que Sublimar é encontrar satisfação para a pulsão em outro lugar que não o do sintoma, que não o do retorno do recalcado, que não o da contínua substituição significante. É um certo tipo de realização movida por um desejo que não visa manifestamente a uma satisfação sexual, tais como a criação artística, a investigação intelectual, atividades humanitárias e culturais que são muito valorizadas pela sociedade (SIMÕES, 2007, p?). O fazer sublimatório é um destino possível das pulsões e, por meio da criação artística, pode-se constituir destinos possíveis para as forças pulsionais e inscrever a pulsão no registro da simbolização, de forma que a sociedade aceite e lhe conceda valor (TAVARES, 2014). As manifestações artísticas se apresentam das mais variadas maneiras, uma vez que a arte é um reflexo da sociedade e permite que artistas expressem suas ideias, opiniões, sentimentos e vivências, explicitamente ou por entrelinhas. Dessa forma, o homem ao longo da sua evolução realizou as mais variadas manifestações artísticas. Dentre essas maneiras de expressão 38 destacaremos a música, tomando como base a hipótese de que a criação musical estaria amparada nessa ruptura, permitindo novos investimentos, ou “outra forma de gozar”, trazendo a sublimação como suporte desse ato de criação, que poderia ser submetido até ao critério do sentimento oceânico (...), sem qualquer ligação místico-religiosa (BERTELLI, 2012, p 64). A música é um modo de expressão, de estruturação do psiquismo e possibilita mudanças no meio social; de acordo com Sandler citado por Duarte (2017), a música é um modo de dizer o que não pode se dizer e ouvir o que é inaudível. No entanto, desde o nascimento da psicanálise, ela foi a arte menos interpretada por seus estudiosos. Segundo Lopes (2006), os grandes nomes da psicanálise, como Freud, Lacan, Melaine Klein não voltaram seus estudos à música, e poucos foram os psicanalistas que aprofundaram sobre esta. Freud, o grande nome da psicanálise, apresentou resistência à música e declarou que, o que não poderia reduzir a conceitos não o comovia (MARCELA, 2008). Entretanto, segundo Duarte (2017), ainda que tivesse a opinião de que havia o perigo, ao se envolver com a música, de perder o controle racional, aceitava que a música também oferecia uma via régia para o inconsciente. Freud tinha atração pela ópera, teve um encontro psicanalítico e musical com Mahler, onde cantarolou junto a ele e ficou admirado com a capacidade psicológica de compreensão de um compositor; e ao analisar um de seus sonhos, escreveu para Fliess sobre a canção de ninar tcheca que ouviu aos 17 anos e que fixou em sua memória. Ainda segundo Duarte (2017), o encontro com Mahler possibilitou a Freud lidar melhor com a representação musical e favoreceu uma ponte com seu sonho, através do encontro do profissional com seu paciente. Além dos grandes nomes da psicanálise, grandes autores da Estética, bem como disciplinas de Filosofia da Arte, também não conseguiram explicar a música. Portanto, a música, ainda hoje, permanece uma arte profunda e enigmática. Arthur Schopenhauer foi o primeiro a considerar a música como algo a mais em sua teoria estética, levando em conta seu sistema filosófico e tornando-a o núcleo de sua metafísica. “Os que se aventuraram a desbravá-la – Hegel, Schopenhauer, Nietzsche – não solucionaram o mistério e abriram mais um problema: a relação entre a música e a palavra” (LOPES, 2006, p. 74 – 75). Apesar disso, a música é uma das formas de atividade artística que está inserida na cultura e nos processos de subjetivação, e está atrelada a todas as etapas 39 da vida humana, constituindo-se como uma linguagem possível que permite compartilhar o mundo a nossa volta por produções que envolvem sons, palavras, silêncios, pausas que produzem ritmos, melodias, gêneros, capazes de contar histórias, fazer denúncias, questionar sistemas e promover reflexão social. Mas, para darmos continuidade a essa discussão, cabe uma reflexão sobre o que é a música, de forma a diferenciar esta do som emitido pelos meios de fontes sonoras. As músicas são produções artísticas produzidas e consumidas por pessoas. Outro ponto a se ressaltar é que a música tem sido chamada erroneamente de “linguagem universal”, sendo esse termo ilusório, pois a música não diz de uma linguagem universal, pois está enraizada nas culturas de sociedades de forma específica, tal como a comida, a roupa e a linguagem (SEEGER, 2008). Portanto, falamos da música enquanto produção artística que se relaciona ao contexto em que o artista está inserido. De uma maneira geral, a música pode ser definida como “umsistema de comunicação que envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se comunicam com outros membros” (SEEGER, 2008, p. 239). Há indícios de que desde a pré-história já se produzia música, possivelmente por consequência da observação dos sons da natureza. Ao longo da história da humanidade o homem foi aprimorando sua capacidade musical e criando instrumentos musicais. No ocidente, a música, como a conhecemos hoje, está atrelada à cultura desde o Período Renascentista (1450-1600), onde quase não existiam orquestras, mas apenas instrumentos isolados. A partir desta época começou a surgir interesse entre os compositores em escrever música não religiosa, ainda que as grandes produções musicais deste período estivessem ligadas à Igreja Católica. Durante o Período Barroco (1600-1750) começam a se formar as primeiras orquestras, que dariam origem à Orquestra Sinfônica. Durante este período o estilo musical apresentava ritmos enérgicos, melodias ornamentadas, alternância entre sons fortes e fracos e contraste em instrumentos de timbres diferentes. No Período Clássico (1750-1810) novos instrumentos foram inseridos nas orquestras, tornando- as maiores. A música deixa de ser tão complicada quanto à barroca, realçando a graça e a beleza das melodias, de modo a se apresentar mais elegante e distinta. No Período Romântico (1810-1900) a Orquestra Sinfônica atinge seu ápice, em quantidade e tipos de instrumentos. Os compositores deste período buscavam romper com a música da era clássica, considerada por eles como ultrapassada, promovendo 40 maior expressividade das emoções. Ainda nesse período, houve preocupação em consolidar a Música Nacional, que valorizasse a história dos países. No Período Moderno (1900 em diante) introduziram-se nas orquestras a música eletro-acústica e sintetizadores. Esse período é dividido em várias subdivisões, tais como Neoclássico, Contemporâneo e Vanguarda (PALISCA, 2007). Ainda considerando aspectos conceituais, Tavares (2014) expõe que as definições do senso comum sobre a música colocam-na esta como o produto final de um trabalho artístico com sonoridade agradável ao ouvinte, sem considerar o processo criativo envolvido até esta produção final. Assim, se faz necessário trabalhar com a noção de musicalidade para uma compreensão ampla da produção musical. O termo musicalidade nos ajuda a compreender as variadas definições do que é a música, devido ao fato de que abrange de forma mais ampla os significantes de representação da música, indo além dos significados do senso comum. o termo musicalidade nos parece mais propício a vislumbrarmos o que seria uma possibilidade expressiva de musicar o mundo e o existir. A musicalidade seria entendida para nossos propósitos como um processo, um devir, que, independente de formação musical, parece habitar o ser humano como uma exigência à expressão (TAVARES, 2014, p.17). O homem está ligado à arte musical desde o processo de seu nascimento. Isso acontece, pois a musicalidade está ligada ao processo de subjetivação do ser humano; ou seja, quando contemplamos a arte e a música, estamos suscetíveis a experimentar diversas sensações de diferentes formas. Os chamados melômanos, que são os amantes da música, as pessoas que têm “mania musical”, experimentam um gozo a partir da escuta musical, de forma qualitativamente diferente dos que têm uma audição superficial; porém, ambos são afetados pela produção de subjetivação a partir da escuta da música, e nisso está o processo de musicalidade. Assim, “a música abriga uma dimensão enigmática, no que se refere ao modo como toca os sujeitos, especialmente pelo fato de seu registro (sonoro-musical) apresentar-se como aquilo que está aquém e além das palavras” (TAVARES, 2014, p.18). Dentro da musicalidade, podemos refletir sobre o conceito de Pulsão Invocante, que, para a psicanálise, é o que nos faz compreender a sonoridade presente no psiquismo a partir de um registro primitivo. Ou seja, a voz, como objeto primário de contato da criança com o mundo, proporciona uma inscrição sonora dando vida à pulsão invocante. 41 A fala materna forja uma inscrição sonora no psiquismo e, a partir de então, a pulsão invocante passa a ser aquela força que conduz o sujeito em direção ao que TAVARES chama de “ponto azul”, inspirado no conceito de “nota azul” batizada por Delacroix em carta dirigida à Chopin. A nota azul ou “blue note”, como conhecida no sistema de composição dos músicos de blues, seria aquela nota musical que transcende as expectativas temporais e previsíveis, ou, como poderíamos compreender em termos psicanalíticos, seria a nota que resgata o sujeito de sua clivagem simbólica, lançando-o novamente ao tempo anistórico antecedente ao recalque originário (TAVARES, 2014, p.18). A musicalidade, segundo Tavares (2014), está diretamente ligada à composição de subjetividade a partir da melodia da fala materna. É a partir da voz materna que a pulsão invocante se torna marca mnêmica da produção de sonoridade melódica. Ou seja, a voz materna é internalizada pela criança e se torna um primeiro referencial de sonoridade musicante. Isso explica como o ser humano se atrai pela musicalidade, já que se encontra inserido nesse processo, e tendo a subjetividade estruturada desde essa fase primária do seu desenvolvimento. A ligação do ser humano com esses fatores primitivos do que pode ser chamado de existência da sonoridade, e posteriormente musicalidade, leva o sujeito a ir além do simbólico, dado que na música, assim como na nota azul e no blues, acontece a transcendência temporal. Isso explica que a pulsão invocante presente na musicalidade e que estrutura a subjetividade se encontra em um tempo considerado anterior ao que é a clivagem simbólica, a partir, primeiramente, do contato com a voz materna, o que torna o sujeito um ser que é também um “sujeito musical” (TAVARES, 2014). Considerando isso, a psicanálise é uma linha de pensamento com métodos aplicáveis que pode cooperar no auxílio do entendimento da produção de subjetividades, dentro da arte e da música. As novas formas de vivências sociais e os novos modelos de configurações determinam novas formas de vivenciar a arte e a música, e novas possibilidades de formação de laço entre os sujeitos. Ou seja, dessa forma, ocorre também uma mudança nas relações dos sujeitos entre si. Segundo (TAVARES 2014), existem a partir daí novos modos de construção subjetiva no que se refere à coletividade e às trocas intersubjetivas. Neste sentido, não seria a música (a despeito de outras qualidades e finalidades) uma forma privilegiada de invocação do outro, na medida em que esta é capaz de transformar os espaços (contextos culturais, espaços virtuais, espaços internos, psíquicos, físicos, acústicos etc.) em lugares deflagradores de encontros? Em suma, não seriam também as invocações musicantes propícias a reinventar o chamamento do próprio laço social entre 42 os sujeitos no registro da cultura? (TAVARES, 2014, p.147). A música como instrumento que atua sobre a produção da subjetividade, segundo a psicanálise, tem uma importante função social não só de forma individual para compor e alterar crenças e pensamentos dos sujeitos, mas também de forma grupal e social. O que para (TAVARES 2014) é chamado de ressonância metapsicologia no tecido cultural e no enlace social significa então a interferência e influência da música nesses dois universos. O músico também atua como participante dessas interferências e atuações da música no grupo e no sujeito; porém, a relação entre músico e ouvinte é, segundo Tavares (2014), uma relação onde o músico é sujeito invocante, e o ouvinte o sujeito invocado, sendo que, para que o sujeito seja passível de ser invocado dentro dessa realidade, é necessário que o mesmo reconheça que isso está ocorrendo.Desta maneira, em especial na invocação musicante, o outro é aturdido, contagiado e então elevado à condição de próximo, de onde, a partir desta função, poderá (à sua maneira: processos de subjetivação desencadeados) prestar sentidos e sanções às mensagens cifradas da linguagem musical pela via do laço social entre músico e ouvinte. (TAVARES, 2014, p.153). Seguindo a lógica desse conceito psicanalítico, só é possível conceber a existência do outro quando compreendemos que estamos nos relacionando e sendo também enxergados por ele. É na medida em que o outro me enxerga que o sujeito consegue entender que está se relacionando. Assim, a música como instrumento de objetificação e alteração cultural é vista como a caracterização de uma forma de linguagem, expressada a partir de instrumentos musicais e poesias, além de todo o conjunto que vai dizer sobre variados estilos de produção sonora, ou seja, a música é em si uma invenção humana. É também razoável considerar que tanto o melômano (em especial) quanto àquele que desfruta singelamente do prazer da escuta musical experimentam, pela via da fruição estético-musical, atravessamentos páticos significativos deflagradores de sentidos possíveis, frutos da dimensão invocante inerente aos contágios musicantes. (TAVARES, 2014, p.154). Passível de vivenciar todas essas influências, é na música que o sujeito experimenta o deleite musical (TAVARES, 2014), que influencia diretamente no que é do âmbito relacional social, e na transformação da cultura, além de ter sua subjetividade construída e também alterada. Dessa forma, como o sujeito é influenciado pela música que consome, pode vir a ampliar sua bagagem simbólica de 43 acordo com o que as mensagens que ouve e com as quais se conecta ao ouvir a melodia. Entretanto, a função social da música vai além dessas reflexões. Como forma de expressão emocional, a música pode ser condutora do que, segundo Merriam citado por Hummes (2004), diz ser a função de expressão emocional, que vai proporcionar não só a expressão dos sentimentos e ideias, mas também das revelações através da fala. É dessa forma, que surgem oportunidades do sujeito se descarregar emocionalmente pela música, alcançando muitas vezes até mesmo uma sensação de alívio ou solucionando conflitos internos. Acontece uma forma de desabamento ou desabafo do sujeito através da música, e isso surge, tanto na visão do músico quanto na visão do sujeito que a consome. Dessa forma, a música permite que ambos os sujeitos participantes ampliem, sintam e externem uma variedade do que pode ser visto como suas expressões a partir de emoções. Há também, através da música, o que podemos considerar a função que proporciona divertimento, de entretenimento. Dessa forma, é destacado que nas sociedades, entre os sujeitos, a música impulsiona o prazer a quem toca instrumentos e a quem ouve. Além disso, cantar também é considerado uma fonte de divertimento e entretenimento. Necessário esclarecer apenas que a distinção deve ser provavelmente entre entretenimento “puro” (tocar ou cantar apenas), o que parece ser uma característica da música na sociedade ocidental, e entretenimento combinado com outras funções, como, por exemplo, a função de comunicação. (MERRIAM apud HUMMES, 2004, p.18). O prazer estético também se encontra presente na música, na medida em que é criada e contemplada. Dessa forma, cada cultura aborda formas diferentes de fazer música e de expressar a escuta. Algumas culturas expressam essa forma de consumir a música através da escuta, representando-a com danças. Para Merriam citado por Hummes (2004, p. 22), “música e estética estão claramente associadas na cultura ocidental, tanto quanto nas culturas da Arábia, Índia, China, Japão, Coréia, Indonésia e outras tantas”. A comunicação a partir da música é também uma forma de função social, devido ao fato de que, por meio dela, os sujeitos se comunicam entre si. A partir do momento em que a música expressa linguagem que se referencia à cultura em que estão inseridos, os sujeitos presentes e participantes dessa cultura entendem a mensagem e, assim, com a linguagem que está sendo expressa, conseguem se 44 comunicar transmitindo não só emoções, mas também pensamentos através do código entendido por eles, participantes dos grupos (HUMMES, 2004). No que diz respeito à função da música como representação de simbologia, ou representação simbólica, segundo Hummes (2004), nas sociedades, os sujeitos encontram na música ideias e comportamentos, e são também os sujeitos que proporcionam essas perspectivas, pois são agentes construtores de letras. A música emprega, comunica informações, transmite emoções da linguagem, constituindo assim a função simbólica de dada cultura que a partir das suas vivências produziram e consumiram a música. Há pouca dúvida de que a música funciona em todas as sociedades como símbolo de representação de outras coisas, ideias e comportamentos sempre presentes na música. Ela pode cumprir essa função por suas letras, por emoções que sugere ou pela fusão dos vários elementos que a compõem (MERRIAM apud HUMMES, 2004, p.19). A reação física a partir da música surge como função social, na medida em que gera hesitação, seja em um sujeito ou em um grupo de indivíduos. Isso acontece de forma contínua na sociedade, sendo essas reações moldadas a partir da cultura de cada sociedade, podendo ter, por exemplo, uma função de excitação de comportamento de guerreiros e caçadores. Apesar disso, a reação física como função social é questionada, por não poder ser listada de forma essencial como necessariamente uma função, “a produção da resposta física da música parece ser uma importante função; para Merriam, a questão se esta é uma resposta biológica é provavelmente anulada pelo fato de que ela é culturalmente moldada” (HUMMES, 2004, p.19). A música também estabelece uma função social voltada à imposição da conformidade às normas. Assim sendo, é possível que uma música carregue uma bagagem cultural que contenha advertências a comportamentos e a sujeitos que não são desejáveis dentro de determinada norma social. Como exemplo disso podemos considerar as músicas que são voltadas a incentivar protestos, chamando a atenção para algo que se quer discutir, algo que esteja sendo inconveniente. Segundo Merriam citado por Hummes (2004, p. 19), “a obtenção da conformidade com as normas sociais é uma das principais funções da música”. É importante salientar que, atualmente, a tecnologia tem proporcionado que o acesso à música seja muito fácil e rápido, instantâneo, assim como a internet. E é 45 exatamente devido à internet que conseguimos nos conectar uns com os outros, compartilhando músicas, além de apenas acessá-las e digeri-las. Assim como a informação se propaga rapidamente, a música também chega ao seu público alvo de forma ágil e rápida; dessa forma, as pessoas que produzem a música também têm se adaptado a esses meios tecnológicos. Com isso, as funções sociais da música atualmente estão enquadradas em formas também tecnológicas, atingindo cada vez mais sujeitos e sociedades, possibilitando que diversas culturas também se conectem através dela. Certamente essa convivência com as novas tecnologias, com os multimeios e com os variados suportes onde a música está presente influenciam a educação musical tanto no sentido pedagógico, estético, funcional como no de valorização da mesma (HUMMES, 2004, p. 18). A função social da música não se volta necessariamente ao que ela foi criada e composta para fazer ou atingir, mas se trata de uma possibilidade e forma de ser empregada ou utilizada. Em diferentes culturas, o folclore e a tradição, tanto quanto os rituais religiosos, são passados de geração a geração por contos, mas também por meio da música.
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