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AUTARQUIA EDUCACIONAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO - AEVSF FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS E SOCIAIS DE PETROLINA - FACAPE CURSO DE DIREITO REBECCA BEZERRA BORGES A EPIDEMIA SOCIAL DE ABANDONO AFETIVO: A paternidade responsável e a ausente figura paterna nos lares brasileiros. PETROLINA – PE 2020 REBECCA BEZERRA BORGES A EPIDEMIA SOCIAL DE ABANDONO AFETIVO: A paternidade responsável e a ausente figura paterna nos lares brasileiros Monografia apresentada à Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina – FACAPE, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof. Diane Jéssica Morais Amorim. PETROLINA - PE 2020 REBECCA BEZERRA BORGES A EPIDEMIA SOCIAL DE ABANDONO AFETIVO: A paternidade responsável e a ausente figura paterna nos lares brasileiros Monografia apresentada à Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina – FACAPE, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof. Diane Jéssica Morais Amorim. Banca Examinadora: ______________________________ Prof. Diane Jéssica Morais Amorim Orientadora – Curso de Direito – FACAPE ______________________________ Prof. Curso de Direito – FACAPE ______________________________ Prof. Curso de Direito – FACAPE Petrolina, ______ de _____________________ de 2020. AGRADECIMENTOS Primeiramente quero agradecer à Deus, por ter me concedido fé, perseverança e força para me manter firme diante das tribulações e dúvidas. À minha família por acreditar na minha capacidade e potencial, incentivando-me a continuar e não desistir. Aos meus amigos que, me diziam que até as pequenas vitórias merecem ser celebradas, em especial à minhas amigas mais próximas que, apesar da distância nos separando, sempre me davam apoio moral e conselhos. À minha orientadora, por me assistir, esclarecer minhas dúvidas, e pela paciência ao orientar, além de crer no mérito e importância do tema escolhido. E, finalmente, a todos os docentes que fizeram parte da minha caminhada acadêmica, contribuindo para o meu aprendizado, os quais levarei para o resto da vida – seja pessoal, seja profissional. Que tudo que aguentei e enfrentei até agora seja o combustível para eu continuar a caminhada. “São os restos do amor que batem às portas do Judiciário.” Rodrigo da Cunha Pereira RESUMO RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade evidenciar o fenômeno do abandono afetivo paterno-filial nas relações familiares (ou relações interprivadas), posto que o afeto e o cuidado possuem crucial função no desenvolvimento do indivíduo como ser humano, em outras palavras, no processo de crescimento cognitivo da criança e do adolescente. Para isso, é necessário nos aprofundarmos nas singularidades do abandono afetivo sob a perspectiva da legislação brasileira, qual seja, a Constituição Federal Brasileira de 1988, o Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002), o Estatuto da Criança e do Adolescente ou ECA (Lei nº 8.069/1990) e dos entendimentos jurisprudenciais dos tribunais superiores. Consolidado na pesquisa exploratória e bibliográfica, e partindo-se de informações existentes acerca do tema para uma melhor compreensão dos aspectos que envolvem a denominada “teoria do desamor”, conta com amparo em aportes teóricos jurídicos e de alguns doutrinadores, fazendo uso da pesquisa descritiva tendo como objetivo possibilitar a percepção das consequências psicológicas e jurídicas derivadas do abandono afetivo. Por fim, com uma abordagem qualitativa e através do método dedutivo, partindo-se do lato sensu para o stricto sensu, também será demonstrado o significado e as características do abandono afetivo. Palavras-chave: Direito de Família. Relação paterno-filial. Abandono afetivo. Danos morais. Responsabilidade civil. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 8 1 O PODER FAMILIAR SOB A ÉGIDE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 10 1.1 Noções gerais e conceito 10 1.2 Sujeitos e objeto da relação jurídica 12 1.2.1 Sujeitos e a titularidade do poder familiar 12 1.2.2 Natureza jurídica e objeto 14 2 O DEVER DE CUIDADO E DE AFETO 15 2.1 A responsabilidade civil diante do poder familiar 16 2.2 Entendimentos dos Tribunais Superiores 18 3 O INSTITUTO FAMÍLIA E SEUS ASPECTOS 20 3.1 Evolução histórica da entidade familiar 20 3.2 Princípios constitucionais basilares do direito de família 22 3.2.1 Princípio de proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CFB/88)22 3.2.2 Princípio da solidariedade familiar (art. 3º, I, da CFB/88) 23 3.2.3 Princípio do maior interesse da criança e do adolescente (art. 227, caput, da CFB/88)24 3.2.4 Princípio da afetividade 25 3.2.5 Princípio da função social da família (art. 226, caput, da CFB/88) 25 4 AS NUANCES DO ABANDONO AFETIVO PATERNO-FILIAL 26 4.1 O dano moral 27 4.2 A responsabilidade civil no âmbito do abandono afetivo paterno-filial 29 4.3 Entendimentos jurisprudenciais superiores 32 4.4 Divergências jurídicas 34 5 A TIPIFICAÇÃO DO ABANDONO AFETIVO COMO ILÍCITO CIVIL E PENAL (PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 700 DE 2007) 36 5.1 Disposições gerais 36 5.2 Dos fundamentos do projeto 37 5.3 A tentativa de qualificação do amor, sua monetização e a obrigação de amar 38 CONSIDERAÇÕES FINAIS 42 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 44 8 INTRODUÇÃO O Direito de Família Brasileiro passou por consideráveis mudanças estruturais e funcionais nas últimas décadas. Os doutrinadores denominam de Direito de Família Existencial aquele fundado na pessoa humana e que tem como fulcro normas de ordem pública, e, sabe-se que o Estado tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CFB/88, no qual é inafastável a proteção da pessoa humana. Assim como a Carta Magna, o Novo Código de Processo Civil também ostenta normas valorizadoras da dignidade da pessoa humana e, assim, atuando como um norte principiológico quando o julgador aplica o Direito positivado, conforme determina o art. 8º do NCPC. A omissão afetiva de um ente, este significativo para a formação do caráter, da conduta e personalidade da criança e/ou adolescente, pode ocasionar danos psicológicos e sociais negativos. E, sendo uma das questões mais controvertidas do Direito de Família contemporâneo e objeto de divergências na doutrina e jurisprudências pátrias, o abandono afetivo e a paternidade responsável possuem relações com os princípios norteadores do Direito de Família, além de trazerem consequências jurídicas, psicológicas e sociais – uma vez que a tese interessa não apenas às relações interprivadas, mas também ao Estado. A prática do abandono afetivo não é algo moderno, pelo contrário, ela acompanha o ser humano desde os seus primórdios. Ao longo das eras, o conceito de família sofreu inovações, de modo que a ideia patriarcal – isto é, o poder familiar centralizado no homem ou no masculino – nos diasde hoje não mais o é. Com a evolução da sociedade e das necessidades do núcleo familiar, novos preceitos sobre a temática revelam-se. Assim, novas espécies de relações familiares se configuram e, o afeto torna-se um elemento de considerável relevância nos relacionamentos familiares contemporâneos. Simultaneamente, advém o dever de conferir parâmetros modernos ao direito de família, sendo reconhecidas juridicamente a afetividade e a socioafetividade, além da possibilidade de aplicar àqueles pais que não cumprem os seus deveres e obrigações com os filhos a paternidade responsável. Até o ano de 2004, a aplicação de danos morais decorrentes do abandono afetivo não ocorria, sob o argumento de que não é possível tutelar ou quantificar o afeto por ausência de previsão legislativa. Contudo, atualmente os magistrados para a quantificarem a indenização vêm levando em conta os critérios extraídos dos arts. 944 e 945, do Código Civil. Além disso, juristas assinalam no sentido de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem empregado o denominado “método bifásico”, que promove uma análise cautelosa da adequação de valores 9 referentes a indenização, quantificando o dano moral o qual a vítima tolerou – portanto, uniformizando os paradigmas jurisprudenciais quanto ao tratamento da questão. Em suma, tal método dá-se da seguinte maneira: em um primeiro momento, o magistrado fixaria um valor inicial da ofensa moral, utilizando como referência outros julgados que abordam a temática; já em um segundo momento, aqui, o juiz estaria autorizado a empreender uma majoração ou minoração do quantum indenizatório concebido inicialmente, ante as circunstâncias do caso concreto. Ultimamente, também vem sendo discutido entre os operadores do Direito a possibilidade do reconhecimento de um direito ao afeto nas relações de filiação, bem como a aplicabilidade do instituto da responsabilidade civil em caso de omissão dos pais. Todavia, há divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da temática, mas julgados majoritários consideram que essa reparação deve estar em consonância com o trauma que a criança e/ou adolescente sofreu. Então, a aplicação de medidas jurídicas serviria de obstáculo para condutas futuras semelhantes, exercendo a função de advertência, nas quais consistem em uma compensação pecuniária por dano moral quando configurada a omissão paterno-filial. E, diante do florescente número de casos e ações indenizatórias – além de ser uma questão de cunho social que recentemente tornou-se objeto de debates entre os operadores do Direito (tanto na doutrina quanto na jurisprudência) – é de considerável importância que a sociedade tome conhecimento do tema, uma vez que a tese compete tanto às relações interprivadas quanto ao Estado, pois a temática em análise reforça a significância das responsabilidades da paternidade previstas em lei, bem como o fato de que o comprometimento e a participação ativa do pai na criação dos filhos desencadeia benefícios incalculáveis no seu desenvolvimento. Ante ao exposto, o presente trabalho tem como motivação a demonstração da temática envolvendo a questão e a forma como é analisada a partir do Direito de Família, conceitualizando e contextualizando o instituto da família e o abandono afetivo nas relações paterno-filiais a partir de aportes doutrinários jurídicos – exemplificando a temática através de casos concretos com a apresentação de jurisprudências e entendimentos superiores, bem como relacionando suas peculiaridades aos princípios norteadores do Direito de Família com as demais normas do ordenamento jurídico pátrio, investigando quais as suas consequências jurídicas, psicológicas e sociais na medida que provoque a sociedade e o Direito para o debate social. Ademais, também serão elaboradas possíveis recomendações ao direito civil e às disposições processuais civis no que se refere ao cabimento de uma ação indenizatória por 10 dano moral, definindo, assim, as formas de ressarcimento a ofensa moral suportada pelo indivíduo. 1 O PODER FAMILIAR SOB A ÉGIDE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 1.1 Noções gerais e conceito Estabelecido nos arts. 1.630 a 1.638 do Código Civil de 2002, Tartuce (2018, p. 1564-1570) conceitua o poder familiar como “uma decorrência do vínculo jurídico de filiação”, exercido pelos genitores em relação aos filhos (relações estas fundadas, sobretudo, no afeto). Tido como irrenunciável, o poder familiar é também intransferível, inalienável, imprescritível, proveniente da paternidade natural e da filiação legal, bem como da socioafetiva. Outro aspecto do poder familiar é que as obrigações decorrentes dele são intuitu personae, ou seja, personalíssimas. Ademais, também é apontada como atributo a indivisibilidade da titularidade e não o seu exercício. Desse modo, assevera-se que: O poder familiar consiste num conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido em igualdade de condições por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção dos filhos (DINIZ, 2012, p. 1.197). Flávio Tartuce (2018, p. 1.564) ainda afirma que parcela da doutrina opta por denominar o poder familiar de autoridade parental em decorrência das mutações feitas em algumas expressões no Estatuto das Famílias (PL 470/2013). De acordo com o art. 87 do aludido projeto “A autoridade parental deve ser exercida no melhor interesse dos filhos”. Portanto, esta deve ser exercida pelo pai e pela mãe, não utilizando-se mais a expressão pátrio poder, integralmente superada em consequência da despatriarcalização do Direito de Família. No que diz respeito às famílias homoafetivas, a autoridade parental pode ser exercida por dois homens ou por duas mulheres, sem ressalvas quanto ao tratamento da matéria. Nesse sentido, desprende-se do art. 1.630 do CC que “Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”. Quanto ao art. 1.631 do dispositivo civilista, durante o casamento e a união estável, compete a autoridade parental aos pais e na falta ou impedimento destes, o outro exercerá com exclusividade. A caso haja divergências no tocante ao seu exercício, é assegurado por força de lei a qualquer deles recorrer a tutela jurisdicional do juiz para a solução do desacordo 11 (art. 1.631, parágrafo único, do CC). Determina, ainda o art. 1.632 do CC que “A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”. A norma legal reforça o status da convivência familiar, bem como ser esta um dever dos pais de terem os filhos sob sua companhia – sendo um dos fundamentos para a responsabilidade civil por abandono afetivo, uma vez que essa companhia abrange o afeto, a interação entre pais e filhos. Desse modo, cumpre observamos que o Superior Tribunal de Justiça reconhecedireito de indenização não apenas nos casos de abandono afetivo, mas também em havendo abandono material do filho pelo pai (conforme o Informativo n. 609 da Corte). Por fim, como se observa na leitura do art. 1.633 do CC: “O filho, não reconhecido pelo pai, fica sob poder familiar exclusivo da mãe; se a mãe não for conhecida ou capaz de exercê-lo, dar-se-á tutor ao menor”. Todavia, na hipótese de a mãe não for conhecida ou demonstrar incapacidade de exercê-lo, a autoridade parental será exercida por um tutor. A redação do art. 1.634 do codex legal, recentemente foi modificado pela Lei n. 13.058/2014, traz novas atribuições quando ao exercício do poder familiar que compete aos pais, a saber: Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) I - dirigir-lhes a criação e a educação (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584 (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014); IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014). (grifo nosso). Por sua vez, o art. 1.637 do CC traz a seguinte redação: 12 Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. No que diz respeito aos fundamentos da destituição da autoridade parental por sentença judicial à luz das informações contidas no art. 1.638 do CC, são hipóteses de destituição: Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente; V - entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017). (grifo nosso). Tartuce (2018, p. 1.570) enfatiza que não se trata de um rol taxativo (numerus clausus), pois, é tendência de o Direito Privado atual compreender que as relações constantes em lei não são taxativas, e sim exemplificativas (numerus apertus). Portanto, é um instituto jurídico que vincula pais e filhos menores, não emancipados, que são os sujeitos da relação jurídica que se constitui por vínculo natural, biológico, adotivo, pelo reconhecimento espontâneo, cujo objeto desse relacionamento é um conjunto de direitos e deveres, em âmbito pessoal e patrimonial. 1.2 Sujeitos e objeto da relação jurídica 1.2.1 Sujeitos e a titularidade do poder familiar O poder familiar constitui uma relação jurídica entre os pais, em igualdade de direitos, interesses, deveres e exercício, e seus filhos menores, não emancipados, seja o vínculo paterno-materno-filial originado de uma relação matrimonial, ou não, em união estável, ou por adoção. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) impõe no art. 21 que o poder familiar será exercido tanto pelo pai quanto pela mãe, logo, não baseando-se no gênero para definir as atribuições destinadas aos pais, à medida que agirem segundo a forma prevista em lei. São titulares do poder familiar os genitores, em plena, total e equânime igualdade de direitos, interesses, deveres e exercícios, considerando-se que, eventuais divergências insuperáveis entre eles poderá ser solucionada pelo Poder Judiciário (art. 1.631, caput, e 13 parágrafo único, e art. 1.634, caput, ambos do CC/2002; art. 21, ECA), uma vez que não mais prevalecerá a vontade de quaisquer deles. Sua titularidade será exclusiva de um só dos pais quando o outro falecer ou dele for destituído, ou, em caso de não reconhecimento da filiação (art. 1.633, CC/2002). Os pais, em igualdade de condições, possuem a responsabilidade pelo cumprimento de todas as atribuições que lhe são inerentes em igualdade jurídica – logo, não se fala mais em competências ou encargos diferenciados ante a diferença de sexo. Quanto aos titulares do polo passivo, o Código Civil estabelece que figuram os filhos menores (art. 1.630 c/c. o art. 5º, caput, ambos do CC/2002) que estão subordinados ao poder familiar, sendo os genitores os únicos titulares ativos – a respeito dos filhos menores emancipados a ele não estão sujeitos, pois o poder familiar se extingue com a emancipação (art. 1.635, II, CC/2002). Ressalte-se, outrossim, que a orfandade paterna e materna também o extingue (art. 1.635, I, CC/2002), caso em que esse infante (criança ou adolescente), haverá de ser posto sob tutela, consoante disciplinam os arts. 1.728 a 1.766 do Código Civil e arts. 36, 37 e 38, estes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Portanto, o poder familiar é composto por titulares mútuos de direitos. A titularidade passiva é determinada pelo fato da maternidade e paternidade estarem reconhecidos legalmente, por qualquer das formas previstas em lei, dando-se prioridade ao exercício correto do poder familiar e seus deveres bem como o resguardo dos direitos da criança e adolescente. Segundo o art. 1.632 do Código Civil de 2002: "A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos". Quer dizer, sendo a titularidade inerente a ambos os cônjuges, ainda que após a separação ou divórcio, os direitos e deveres relativos ao filho menor, estes dividem-se entre os genitores ante a ausência de um dos pais no seio familiar. Cumpre enfatizarmos que conforme o art. 5º do Código Civil de 2002, a menoridade cessa após atingir dezoito anos completos, no momento em que a pessoa está habilitada a praticar e gozar de todos os atos da vida civil. Sendo assim, a maioridade civil do filho é uma das causas extintivas do poder familiar (art. 1.635, III,CC/2002), competindo aos pais após a extinção do poder familiar prestar apoio e ajuda quando necessário, porém a obrigação incumbida não é mais exigida. Entretanto, tal como realça Oswaldo Peregrina Rodrigues (2015)1, "caso permaneça a incapacidade civil desse filho por outro fator – clínico, físico, 1Promotor de Justiça em São Paulo, Professor Universitário – Graduação e Pós-Graduação – na PUC/SP, Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, Associado do IBDFAM n. 102. 14 psíquico ou psicológico –, será aplicável o instituto da curatela, com a prévia e imprescindível interdição do incapaz". Essa hipótese configuraria um exercício cumulativo da curatela (especificamente, do poder familiar) pelos pais que, até o dado momento, a exerciam conjuntamente e solidariamente. 1.2.2 Natureza jurídica e objeto A respeito da natureza jurídica, apresenta-se como um conjunto de prerrogativas, conferidas aos pais pelo Estado tendo como finalidade a formação dos filhos, observando o melhor interesse destes e de forma que promova suas capacidades e desenvolvimento saudável. Conforme evidencia Maria Helena Diniz, apud Silva (2015, p. 8), o poder familiar é: [...] conjunto de direitos e obrigações quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido, em igualdade de condições por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho2. À vista disso, a autoridade parental está intrinsecamente atrelada ao dever, ao poder-dever; e simultaneamente, tem-se a titularidade do instituto e o exercício de prestações relativas ao poder familiar, com os direitos, e, conjuntamente, a obrigação de satisfazer os vários deveres inerentes ao seu exercício. Portanto, como sujeitos titulares no exercício do poder familiar temos os pais (ou genitores), detentores do direito de exigir obediência e respeito dos filhos menores não emancipados e, ainda, concomitante a este, o dever de prestar sustento, guarda, criação e educação. Acerca do tema demonstra Maria Berenice Dias, apud Carvalho (2016)3 que “(...) Têm ambos o dever de dirigir a criação e a educação, conceder ou negar consentimento para casar, para viajar ao exterior, mudar de residência, bem como representá-lo e assisti-lo judicial ou extrajudicialmente (CC, art. 1.634)”. Em relação ao objeto, há a prevalência de direitos de natureza pessoal e material, onde, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu o art. 22, impõe que "Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais". Ainda que haja divergências se o poder familiar se resume somente a deveres e obrigações estabelecidos em lei ou se são poderes atribuídos aos pais, a autoridade parental é um instituto sui generis que 2SILVA, Nadine Anelli. O poder familiar e suas implicações no direito civil brasileiro, 2015. 3CARVALHO, Renata Nunes. Poder familiar e suas limitações: análise da lei da palmada, 2016. https://www.sinonimos.com.br/intrinsecamente/ 15 possui natureza, características e especificidades, de modo que constitui uma relação jurídica de direito material estabelecida entre pessoas físicas que figuram em dois polos (ativo e passivo), na medida em que há correlação e correspondência de direitos e deveres entre os sujeitos. 2 O DEVER DE CUIDADO E DE AFETO A partir do momento em que um casal demonstra animus em ter filhos, surge o dever de cuidado com os mesmos – isto é, advém a responsabilidade dos pais em relação aos filhos, seja no sentido material, seja no sentido moral. Tal responsabilidade consiste em uma obrigação presumida de os genitores promoverem materialmente os filhos até que atinjam a maioridade civil. Logo, a responsabilidade civil inerente a autoridade parental decorrente da falta de afeto por parte dos pais materializa-se através da ausência de cuidado e negligência ao direito de convivência familiar. Essenciais para a formação e desenvolvimento saudável da criança e adolescente, o cuidado e o afeto é apontado como o principal fundamento das relações familiares e apesar de alguns juristas manifestarem suas críticas ao fato de que constitui um princípio jurídico aplicado ao âmbito familiar, a afetividade consiste na capacidade individual de experimentar o conjunto de fenômenos afetivos (tendências, emoções, paixões, sentimentos etc.)4, que tem um papel crucial no processo de aprendizagem do ser humano, uma vez que está presente em todas as áreas da vida, exercendo uma profunda influência no crescimento cognitivo da criança/adolescente. Malgrado, não se encontra prevista expressamente na Carta Magna como um direito fundamental, porém, diz-se que a afetividade “decorre da valorização constante da dignidade humana e da solidariedade” (TARTUCE, 2018, p. 1.327). Nas palavras da Ministra Nancy Andrighi, apud Tartuce, “o afeto tem valor jurídico” (2018, p. 1.327 e 1.328): A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes. Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às manifestações de intolerância ou de repulsa que possam porventura se revelar em face das minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e apaziguamento de possíveis espíritos em conflito. A defesa dos direitos em sua plenitude deve assentar em ideais de fraternidade e solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo, assim como já o fez, em 4AFETIVIDADE. Significado de afetividade, 2013. 16 tempos idos, quando emprestou normatividade aos relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por consequência, o instituto da união estável. O dever de cuidado e de afeto manifestam-se por meio de condutas de assistência recíproca entre os componentes de uma família. Quer dizer, refere-se à assistência moral, material, psicológica e social que os pais ou responsáveis devem prestar aos filhos e esses, devem prestar aos seus genitores, na velhice. Dispostos nos arts. 229 da CFB/88 e 22 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), os quais possuem as seguintes redações: Art. 229 da CFB/88. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Art. 22 do ECA. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores. Ocorre que, muitas famílias deixam de observar esse cuidado, acarretando consequênciaspara o desenvolvimento da criança ou adolescente. Não é possível – e até mesmo quase impossível – criar e educar uma criança e/ou adolescente não dando a devida observância a convivência familiar, posto que esta proporciona a base moral e psíquica do menor e permite o desenvolvimento saudável de sua personalidade. Em razão disso, a ausência de um dos genitores, ainda que a criança seja amparada pelos demais familiares ao longo da vida, pode dar origem a danos sociais e psíquicos marcantes. O ordenamento jurídico pátrio trouxe o cuidado e o afeto como um valor jurídico presente em diversas legislações, tais como a CF/88, o Código Civil de 2002 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como tem como fundamento basilar as diversas decisões dos Tribunais Superiores. A despeito de que parcela da doutrina e jurisprudência ainda possuam o entendimento de que não é possível obrigar alguém a amar, o fundamento para que se admita a responsabilização civil por abandono afetivo acha respaldo no argumento de que a falta de cuidado bem como a ausência da convivência familiar, estas obrigações inerentes a autoridade parental, uma vez descumpridas caracterizam ato ilícito. Ressalta-se que não se responsabiliza a falta de amor, e sim a de cuidado, de afeto e de convivência o que, em geral, está associado ao amor, porém, trata-se de um dever que independe do sentimento. Logo, atribui-se ao dever de cuidado um valor jurídico de considerável relevância, uma obrigação legal, dado que tem como finalidade a proteção integral do menor – em outras palavras, o preceito constitucional da tutela máxima é no efeito de colocá-la a salvo de todas as formas de negligência. https://jus.com.br/tudo/educacao 17 2.1 A responsabilidade civil diante do poder familiar Por essa via, seria o cuidado uma obrigação de assistência material, antes mesmo de um agir afetivo e, uma vez caracterizada a transgressão obrigacional, há uma manifesta situação de vulnerabilidade do menor5. De acordo com as lições da Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, apud Tartuce (2017)6: A responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria liberdade [...]. Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção [...]. Acerca da matéria relacionada ao poder familiar, de acordo com o art. 932 do Código Civil de 2002, os pais são responsáveis pela reparação civil aos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia. Como pressuposto para caracterização do abandono afetivo, é indispensável a presença da lesão de um direito alheio por meio da inobservância a um dever jurídico previsto em lei, qual seja, o dever de convivência. Tendo como embasamento algumas decisões emanadas dos Tribunais Superiores, têm-se reconhecido o requerimento de filhos que alegam abandono ou rejeição por parte dos genitores, sequelados em face da falta de carinho, afeto, ensinamento na infância e na juventude. Por sua vez, sob o prisma dos tribunais, o maior óbice da responsabilização por abandono afetivo encontra-se no debate acerca da caracterização da falta de cuidado e/ou dos deveres inerentes ao vínculo paterno-filial como ato ilícito bem como a possibilidade de aplicar as normas gerais da responsabilidade civil no Direito de Família. Dispõe o art. 186 do Código Civil de 2002 que “aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. E ainda, prevê o art. 927 do referido diploma legal que “aquele que por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a indenizar”. Com base nos preceitos civilista, fica perfeitamente demonstrado que o pai ou a mãe que deixa de cuidar do filho, voluntariamente, descumpre os deveres inerentes ao poder familiar (estes expressamente estabelecidos nos art. 227 e 229 da CFB/88, bem como no supramencionado art. 22 do ECA) – cometendo, desta forma, ato ilícito e fazendo gerar a possibilidade de uma indenização. O Código Civil de 2002 trata a responsabilidade civil in lato sensu, isto é: 5JAIME, Carla Custodio. O dever de cuidado como ensejador da responsabilidade civil por abandono afetivo, 2015. 6TARTUCE, Flávio. Da indenização por abandono afetivo na mais recente jurisprudência brasileira, 2017. 18 Inexiste no ordenamento jurídico qualquer restrição legal que impeça a aplicação das normas que regulam a responsabilidade civil às relações tuteladas pelo Direito de Família. Ao contrário, a matéria é abordada no Código Civil (CC) de maneira ampla e irrestrita (MOYSÉS, 2012, p. 6). A fim de evitar quaisquer controvérsias sobre a caracterização do abandono afetivo como conduta ilícita, a proposta do Estatuto das Famílias (PLS n. 470/2013), nos arts. 108 e 109, conceitua a prática como qualquer ação ou omissão que ofenda direito fundamental da criança ou do adolescente, entre eles a convivência familiar saudável. Portanto, a ausência do afeto no seio da família causaria danos psíquicos aos filhos, que podem ser irreversíveis e jamais serão compensados por indenizações pecuniárias eventualmente cobradas. Lembrando-se que não se trata de “dar preço ao amor”, tampouco de compensar a dor, propriamente dita. A saber: Art. 108. Considera-se conduta ilícita o abandono afetivo, assim entendido a ação ou a omissão que ofenda direito fundamental da criança ou adolescente. Art. 109. Compete aos pais, além de zelar pelos direitos estabelecidos em lei especial de proteção à criança e ao adolescente, prestar-lhes assistência afetiva, que permita o acompanhamento da formação da pessoa em desenvolvimento. Parágrafo único. Compreende-se por assistência afetiva: I - orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais; II - solidariedade e apoio nos momentos de necessidade ou dificuldade; III - cuidado, responsabilização e envolvimento com o filho. O aspecto mais relevante é alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e aos demais, que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave. Da mesma forma, a reparação poderia prevenir condutas de abandono na medida em que houvesse um trabalho de conscientização de gerações futuras, não só pelo Poder Judiciário, mas principalmente, pelas Instituições de Ensino e, também pelas famílias, sobre a importância de se planejar ter filhos para que possam ser criados com todo o afeto e cuidado de que necessitam7. 2.2 Entendimentos dos Tribunais Superiores A problemática que abrange a responsabilização civil por abandono afetivo mostra-se como um tema polêmico, vez que os magistrados devem ter cautela ao efetuar a 7JAIME, Carla Custodio. O dever de cuidado como ensejador da responsabilidade civil por abandono afetivo, 2015. 19análise do caso concreto objeto de julgamento, a fim de proteger a tutela jurisdicional estatal da litigância de má-fé (servindo de mecanismo de vingança contra pais ausentes ou negligentes no tratamento com os filhos). Nesse sentido, conforme entendimento dos Tribunais pátrios: EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ABANDONO MATERIAL E AFETIVO DA FILHA POR PARTE DO GENITOR. TRAUMA PSICOLÓGICO CARACTERIZADO. EXISTÊNCIA DE CONCAUSALIDADE. AFASTAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL. INOCORRÊNCIA. DANOS MORAIS CARACTERIZADOS. INDENIZAÇÃO. CABIMENTO. 1. No âmbito das relações familiares, para a configuração da responsabilidade civil, no caso de abandono afetivo, deve ficar comprovada a conduta omissiva ou comissiva do genitor, quanto ao dever jurídico de cuidado com o filho, bem como o dano, caracterizado pelo transtorno psicológico sofrido e o nexo causal entre o ilícito e o dano suportado, nos termos do artigo 186 do Código Civil. 2. Em hipóteses excepcionais, quando configuradas trauma psicológico decorrente do descaso do genitor perante a prole, é cabível indenização por abandono afetivo, em virtude do descumprimento legal do dever jurídico de cuidado, necessários à adequada formação psicológica e inserção social da prole. 3. Demonstrado que o genitor, por omissão voluntária, deixou de observar o dever jurídico de cuidado, previsto nos artigos 227 e 229, da Constituição Federal e no artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, causando trauma psicológico à autora, conforme laudo pericial produzido nos autos, tem-se por caracterizado ato ilícito passível de indenização. 4. A existência de concausas, por si só, não ilidi o nexo causal, tampouco afasta a responsabilidade civil daquele que, com sua conduta ilícita, causou dano a outrem, razão pela qual o genitor omisso deve responder pelos danos experimentados pela prole, na proporção em que concorreu para o evento danoso. 5. Para a fixação do quantum indenizatório a título de danos morais, deve o magistrado levar em consideração as condições pessoais das partes, a extensão do dano experimentado, bem como o grau de culpa do réu para a ocorrência do evento. 6. Recurso de Apelação conhecido e parcialmente provido. ACÓRDÃO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. (Tribunal de Justiça do Distrito Federal). (grifo nosso). EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL.AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS.PRELIMINAR. CERCAMENTO DE DEFESA. NÃO DEMONSTRADO. ABANDONO AFETIVO DE MENOR. COMPROVAÇÃO. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE CONVÍVIO FAMILIAR. DANO MORAL. OCORRÊNCIA. [...]. 3. A falta da relação paterno-filial, acarreta a violação de direitos próprios da personalidade humana, maculando o princípio da dignidade da pessoa humana. Mostra-se cabível a indenização por danos morais decorrentes da violação dos direitos da criança, decorrente do abandono afetivo. [...] (TJ-MG, AC 10024143239994001 MG, Rel. Evandro Lopes da Costa Teixeira, 17ª Câmara Cível, j. em 08.08.2019, DJe 20.08.2019). (grifo nosso). A partir da leitura dos julgados, podemos extrair a seguinte conclusão inicial: o Poder Judiciário gradativamente tem atribuído a devida importância ao afeto no âmbito familiar, na medida em que a jurisprudência nacional vem admitindo a possibilidade de dano moral afetivo sujeito a indenização, se por acaso ficar demonstrada violação aos deveres integrantes da autoridade familiar e, em especial, os direitos da criança e do adolescente 20 (TJ-SP, AC 1007185-90.2019.8.26.0007 SP, Rel. J. B. Paula Lima, 10ª Câmara de Direito Privado, j. em 29.05.2020, DJe 29.05.2020). 3 O INSTITUTO FAMÍLIA E SEUS ASPECTOS 3.1 Evolução histórica da entidade familiar Ao longo da evolução humana, a família consiste em um dos conceitos que mais se modificou e que se tornou um dos mais diversificados, sendo encarada como um elemento que favorece o desenvolvimento da personalidade, considerada o núcleo estruturante do indivíduo, que tem como embasamento a ética, a afetividade e a solidariedade – estando vinculada a proteção. Para uma melhor compreensão, é imprescindível perceber sua preexistência em relação ao Estado. A instituição família organiza-se através de regras culturalmente elaboradas. Conforme assevera Priscila Marques Degani (2020): [...] a sociedade está em constante ebulição, fazendo com que a lei não consiga acompanhar com tanta rapidez todas as mudanças por que passam as famílias, cabendo à doutrina e jurisprudência atender os artífices da justiça. O direito é o reflexo do momento social e modifica-se conforme as mudanças ocorridas na sociedade. Considerada por Barreto (2012, p. 206) como a “primeira célula de organização social e formada por indivíduos com ancestrais em comum ou ligada pelos laços afetivos”, substancialmente foi criada na Roma antiga e era fundada no patriarcado, onde, as mulheres, filhos e servos estavam sujeitos ao poder do pai, que detinha a chefia do núcleo familiar. A evolução do instituto família se divide em quatro fases: família consanguínea, família punaluana, pré-monogâmica e a monogâmica, cada uma com suas particularidades e atributos (ENGELS apud BARRETO, 2012). A união era constituída através de um instrumento político: o casamento, onde, a ausência de afeto no núcleo familiar era algo ordinário, pois, tal laço era estabelecido com o propósito de conservar os bens e preservar a honra e as vidas acaso surgisse uma crise. Um comportamento usual na sociedade familiar romana era a distinção entre os filhos. Enquanto para a filha incumbiam os ensinamentos e preparativos para um possível matrimônio, pertencia aos filhos homens o direito sob os bens. Além disto, o homem dispunha do direito de romper o matrimônio ou, na hipótese de adultério ou esterilidade, de repudiar sua mulher. 21 No decorrer dos séculos, a religião cristã teve uma influência substancial nas bases familiares que, a partir deste momento, seriam formadas através das cerimônias religiosas. Assim, o dogma da Igreja Católica pregava o casamento como algo sagrado, o qual, sob as bençãos divinas do céu tal vínculo entre o homem e a mulher somente poderia ser desfeito pela morte. Com o fim da Idade Média e início da Era Moderna, uma nova ideia de família emergiu baseada não apenas nos axiomas católicos, e sim no afeto, no amor, no carinho, na convivência etc. Desse modo, com o afastamento do Estado das influências religiosas e a positivação do instituto família no Direito, adquiriu-se uma perspectiva mais social, a família como peça fundamental da sociedade. Sob a égide do Código Civil de 1916, marco histórico da legislação cível brasileira, o instituto família (moldado a sua época) estava vinculado a dois aspectos fundamentais: o casamento formal e a consanguinidade, bem como ordenavam a ideologia da família patriarcal que descartava da tutela jurisdicional do Estado as demais espécies de entidades familiares e os filhos havidos fora da constância do matrimônio (sendo este último a únicaforma de constituição da denominada família legítima, logo, toda e qualquer outra forma seria considerada ilegítima, mesmo que presente o afeto). Quanto ao poder familiar, exercido pelo marido, a figura paterna detinha autoridade sobre os demais membros descendentes, quer dizer, “um perfil rigorosamente hierarquizado e patriarcal, em que um conjunto de pessoas permanecia sob o poder absoluto, ilimitado e vitalício de um chefe, o pater famílias” (DEGANI, 2020). No que diz respeito ao direito das famílias, a legitimidade da família e a dos filhos, em consonância ao princípio da defesa da constituição matrimonial, adotou-se como paradigma de proteção à filiação a presunção pater is et, ou seja, de que o filho concebido na constância da sociedade conjugal tem por pai o marido da mãe. Todavia, o Código não trazia em seu texto normas que abordassem a prática do abandono afetivo paterno-filial e a sua responsabilização civil. Com o passar das décadas, desenvolveu-se um novo panorama, e com isso, o instituto desprendeu-se dos modelos originários (baseados no casamento, sexo e procriação) de origem romana, resultando no fim do molde patriarcal. Promulgada em 1988, a atual Constituição Federal Brasileira ao reunificar o sistema, trouxe consigo conceitos do direito civil, atribuindo uma nova roupagem a sua estrutura e reorganizando os parâmetros basilares da legislação civilista de 1916. Dessa forma, a família perde a sua natureza patrimonial e passa a valorizar as pessoas que a compõem, portanto, a ideia que atualmente temos é de que ela consiste em um vínculo, independentemente das suas origens ancestrais. Assim, ela ganha prestígio no ordenamento 22 jurídico, recebendo proteção especial do Estado, e concedendo tratamento indistinto aos filhos havidos ou não do casamento, bem como reconhecendo os efeitos jurídicos de outros moldes familiares. Visando acompanhar a evolução da sociedade, foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), disciplinando os interesses da criança e do adolescente, compreendendo nessa proteção sujeitos de direitos. Baseado na Doutrina Jurídica da Proteção Integral, fez com que o filho deixasse de ocupar a posição de objeto, para ocupar a posição de sujeito na relação familiar (art. 15). Com a chegada do novo Código Civil, em 2002, efetuou-se uma dissociação entre o estado de filiação e o estado civil dos pais, pondo um término ao impedimento no que tange ao reconhecimento da paternidade. Além disso, ocorreu um alargamento do conceito de parentesco, deixando de ser apenas o liame da consanguinidade para se tornar também um critério socioafetivo respaldado no afeto. Embora não seja de conhecimento geral, o art. 5º, inciso II, da Lei n. 11.340/06 (Lei Maria da Penha), estabeleceu infraconstitucionalmente em sua redação a definição moderna de família, que consiste em uma “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” (NORONHA, 2012, p. 18-19).8 Assim, a relação entre pais e filhos deve ser pensada e exercida em benefício destes. Malgrado, outras temáticas não foram tratadas de forma satisfatória, a exemplo do debate quanto à admissibilidade de indenização por danos morais em caso de abandono afetivo paterno-filial, cabendo-nos preencher tais lacunas com entendimentos jurisprudenciais. 3.2 Princípios constitucionais basilares do direito de família 3.2.1 Princípio de proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CFB/88) Encarado como um dos princípios mais abrangentes em relação aos demais previstos na Carta Magna de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se expresso no art. 1º, inciso III da Constituição Federal Brasileira de 1988 e, de acordo com o legislador, atribui a pessoa humana status central na norma – sendo um dos fundamentos estruturais da construção do Estado Democrático de Direito –, garantindo a todos os seres humanos respeito e tratamento isonômico, independentemente de cor, raça, gênero ou religião. 8NORONHA, Maressa Maelly Soares. A evolução do conceito de família. Nova Andradina, 2012. 23 O direito de família está inerentemente relacionado ao princípio em análise, pois, é no ambiente familiar que o indivíduo encontra o devido tratamento e respeito de que necessita para desenvolver de modo saudável e positivo o seu caráter (logo, se traduz como um importante mecanismo de manutenção e proteção à família e à integridade dos membros desse grupo, das relações e vínculos familiares, bem como manutenção dos direitos de personalidade). A dignidade é um valor intrínseco do ser humano, à sua essência, o qual já dispõe desde o seu nascimento. Assim estabelece o referido artigo: Art. 1º da CFB/88. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; No dizer de Tartuce (2018, p. 1.316), “a dignidade humana deve ser analisada a partir da realidade do ser humano em seu contexto social”. A finalidade do princípio de proteção da dignidade da pessoa humana seria a de “propiciar tutela integral à pessoa, de modo que não pode permanecer em departamentos estanques do direito público e do direito privado” (MONTEIRO apud DANTAS, 2017)9, o que possibilita à família manter firmes os laços afetivos construídos. Além disso, em razão de estarem em processo de desenvolvimento e construção de personalidade, etapa da vida na qual necessitam de considerável apoio, carinho, cuidado, amor e atenção, é indispensável a preservação também da sua dignidade e interesse. 3.2.2 Princípio da solidariedade familiar (art. 3º, I, da CFB/88) Estabelece expressamente o art. 3º, inciso I da Constituição Federal de 1988 que dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil está a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Definido como a necessidade de que os componentes familiares possam compartilhar dos mesmo valores e deveres recíprocos, tendo origem nos vínculos afetivos e compreende a fraternidade e a reciprocidade. Nesse sentido, o princípio incide sobre a família ao impor tais deveres enquanto ente coletivo e a cada um dos membros de modo individual (LÔBO apud TRINDADE, 2019, p. 1), além de que: 9MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, volume 2: Direito de Família. 38ª Edição. Revista e Atualizada. São Paulo: Saraiva, 2007. 24 [...] ao mesmo tempo, estabelece diretriz ao legislador, para que o densifique nas normas infraconstitucionais e para que estas não o violem; ao julgador, para que interprete as normas jurídicas e solucione os conflitos familiares contemplando as interferências profundamente humanas e sentimentais que encerram.10 Tem como desígnio primacial o resguardo das relações de afeto, da mesma forma que o respeito e a consideração entre os indivíduos que integram a entidade familiar.Portanto, cada membro da família deve cooperar a fim de que o outro possa concretizar e desenvolver o mínimo necessário para o seu crescimento biológico e psicológico positivo. 3.2.3 Princípio do maior interesse da criança e do adolescente (art. 227, caput, da CFB/88) Encontrado implicitamente na Constituição Federal de 1988, no caput do art. 227, esse princípio é entendido pela doutrina como uma forma de proteção ao menor de idade. In verbis: Art. 227 da CFB/88. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010). Trata-se da primazia das necessidades da criança e do adolescente como pressupostos de resolução de conflitos ou, ainda, para composição de futuras regras – garantindo o respeito aos direitos fundamentais da criança e jovens, vez que a convivência familiar saudável é compreendida como direito fundamental característico da infantoadolescência. E, ainda, o art. 3º e parágrafo único do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) determinar que: Art. 3º do ECA. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou 10LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. 2004. 25 outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016). Em complemento, o art. 4º do ECA traz em sua redação os deveres da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público, de modo a assegurar a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. A Lei n. 13.257/2016 estabelece, ainda, que a prioridade absoluta em garantir os direitos da criança, do adolescente e do jovem (nos termos do art. 227 da Constituição Federal e do art. 4º do ECA) inclui o dever do Estado em estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância (isto é, período que abrange os primeiros 6 (seis) anos completos), na medida em que atendam às especificidades dessa faixa etária, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (art. 3º). 3.2.4 Princípio da afetividade Como desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana e mesmo que implicitamente exposto no ordenamento jurídico pátrio, seu fundamento é constitucional, se manifestando como uma afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade (LÔBO apud TRINDADE, 2019)11. A afetividade é reconhecida como elemento substancial que delineia o suporte fático da família a partir da “repersonalização das relações civis”, um fenômeno jurídico pelo qual prestigia o interesse da pessoa humana em face das relações patrimoniais12. Nesse seguimento, ao ficar demonstrada a ausência de afeto no ambiente familiar tem-se infrutífera toda a proteção concedida pelo ordenamento jurídico e, consequentemente, prejudicando o crescimento da criança e do adolescente vítima do abandono afetivo. 3.2.5 Princípio da função social da família (art. 226, caput, da CFB/88) É a partir da vivência em família que o indivíduo efetivará seu pleno desenvolvimento, ficando visível a relevante ocupação da entidade familiar na construção saudável da criança e do adolescente. A própria Carta Magna de 1988 em seu art. 226 confere a família o status de base da sociedade ao revesti-la de proteção do Estado. Isto posto, a função social da família desempenha o papel de parâmetro para alguns direitos elencados na 11LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. 2004. 12LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p.11. 26 legislação pátria, em especial os relacionados a criança e ao adolescente. Com o reconhecimento da função social da família, consequentemente, legitima-se a função social da própria sociedade (TARTUCE, 2018). 4 AS NUANCES DO ABANDONO AFETIVO PATERNO-FILIAL Segundo Tartuce (2018, p. 1.321), “ser solidário significa responder pelo outro, o que remonta à ideia de solidariedade do direito das obrigações. Quer dizer, ainda, preocupar-se com a outra pessoa. Desse modo, a solidariedade familiar deve ser tida em lato sensu, tendo caráter afetivo, social, moral, patrimonial, espiritual e sexual” – logo, atribui-se valor inquestionável ao afeto (ao amor) como sentimento proveniente do amor, importante para construção positiva das relações familiares e elemento vital para o aperfeiçoamento do princípio da dignidade da pessoa humana (ANGELUCI apud NASCIMENTO, 2017). Por sua vez, a paternidade responsável pode ser definida como a ideia de responsabilidade que deve ser observada tanto na formação quanto na manutenção da família. Isto é, o indispensável acompanhamento dos filhos pelos pais. Destarte, o abandono afetivo (ou teoria do desamor) caracteriza-se pelo não cumprimento dos poderes-deveres dos pais de educar, cuidar e assistir o filho, temática que vem sendo objeto de discursão nos tribunais, com diversas opiniões divergentes. Então, seria uma questão de inadimplemento desses poderes-deveres, uma omissão do pai no cumprimento de um poder-dever decorrente de sua autoridade parental, dentre os quais destaca-se os deveres de prestar educação, carinho, assistência moral, afeto, dentre outros (LÔBO apud NASCIMENTO, 2017). Comumente o abandono afetivo se dá de duas formas: após a separação dos genitores, no momento em que a guarda do menor passa a ser concedida apenas à um dos genitores, ou por espontânea vontade do pai que deixa de conviver cotidianamente com seu filho e de fomentar todo afeto necessário para uma formação psicológica saudável – e, consequentemente, tal conduta viola o princípio da dignidade da pessoa humana. Essa segunda hipótese corresponde a uma forma de abandono moral, tão prejudicial quanto o 27 material, e que dá ensejo à compensação pecuniária. Porém, há correntes apontam no sentido de que há ocorrênciado abandono afetivo em ambientes familiares onde há uma coabitação entre seus membros, na qual o pai não dispensa qualquer tipo de zelo para com seu(s) filho(s). A exemplo, temos o entendimento da professora Alana Gabi Sicuto (apud Esteves, 2017, p. 80), onde: Normalmente o abandono afetivo configura-se quando o pai abandona física e moralmente a vida do filho, mas também pode ocorrer quando, mesmo havendo coabitação entre eles, o pai não dispensa qualquer forma de atenção, afeto ou apoio ao filho. Tal hipótese é possível, porque como mencionado acima, a convivência familiar exige não só a presença física, mas principalmente o apoio moral do pai ao filho.13 No entanto, é preciso observar o caso concreto, pois, existem situações alheias à vontade do pai. Para um melhor entendimento, por exemplo, seria a hipótese em que o pai não possui a guarda do filho e recursos suficientes para visitá-lo quando reside em uma localidade consideravelmente distante. Outro tipo de cenário seria quando não há ciência de paternidade, quer dizer, até que seja realizado o exame de DNA e fique comprovado o liame biológico da paternidade, não se fala em abandono afetivo paterno-filial. Nesse sentido, apesar da mãe poder exercer a função de pai e mãe, a figura masculina é elemento essencial para um sadio desenvolvimento psíquico emocional-afetivo da criança ou adolescente. O leito familiar tem responsabilidade pela formação do indivíduo como pessoa, onde, inserido neste meio absorverá todos os valores, princípios, ensinamentos etc., os quais serão levados adiante na vida adulta. Portanto, está propenso a efetivamente oportunizar a dignidade ao incorporar os sentimentos e esperanças no rol de valores primordiais para conquista da felicidade (DIAS14 apud NASCIMENTO, 2017). De acordo com Nascimento (2017, p. 214), no campo da psicologia, os profissionais citam como ofensas geradas pelo distanciamento da figura paterna: rejeição, baixa autoestima, danos ao rendimento escolar, transtornos alimentares, depressão, ansiedade aguda (decorrente da insegurança pela ausência de uma base familiar), temperamentos agressivos, etc. Contudo, deve-se sempre analisar o caso concreto vez que dispõem de fatores singulares a serem averiguados e indagados. 4.1 O dano moral 13SICUTO, Alana Gabi. Responsabilidade civil no direito de família: dano moral decorrente do abandono afetivo. 2016. 14DIAS, Maria Berenice. Adoção e a espera do amor. Brasília, DF: Conteúdo Jurídico. p. 3, abr. 2005. 28 Para que seja possível o pagamento de uma indenização, é indispensável a comprovação do dano patrimonial ou extrapatrimonial suportado por alguém em que, via de regra, não há responsabilidade civil sem dano, incumbindo o ônus da prova ao autor da demanda. Impende salientar que em algumas hipóteses é admitida a inversão do ônus da prova do dano ou prejuízo (Tartuce, 2018, p. 554). Nessa lógica, no entendimento do doutrinador civilista Flávio Tartuce (2018, p. 555), o dano ostenta o status de atributo imprescindível da responsabilidade civil, se divide em: danos clássicos ou tradicionais e danos novos ou contemporâneos. De acordo com sua classificação, o primeiro corresponde aos danos materiais e aos danos morais enquanto o segundo diz respeito aos danos estéticos, danos morais coletivos, danos sociais e danos por perda de uma chance. Entretanto, iremos nos voltar apenas para o dano moral. Tornando-se pacificada a partir da Constituição Federal de 1988 e estando prevista expressamente no art. 5º, incisos V e X, a chamada “reparabilidade dos danos imateriais” é encarada como algo moderadamente contemporâneo. Com isso, compreende-se por dano moral aquele que se caracteriza pela ofensa a um bem de natureza imaterial juridicamente tutelado pela lei (um direito da personalidade), e que pode ocorrer tanto por ação quanto por omissão que signifique ato ilícito, independentemente de dolo ou culpa. Todavia, lembremos que deve-se atentar ao caso concreto, posto que “os danos morais suportados por alguém não se confundem com os meros transtornos ou aborrecimentos que a pessoa sofre no dia a dia” (Tartuce, 2018, p. 562), cabendo ao magistrado apontar se a reparação imaterial é cabível ou não. Hironaka15 apud Rezende (2017) aduz que: O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada. (HIRONAKA, 2011 apud REZENDE, 2017, p. 1). Para uma análise cautelosa do caso concreto, o magistrado deve utilizar como referência os direitos aludidos nos arts. 5º e 7º, da CFB/1988, que dizem respeito a cláusula geral de tutela da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Carta Magna). Nesse perspectiva, como estabelece o Tribunal de Justiça de São Paulo no seguinte julgado: 15HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressupostos, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo. Santa Catarina: CCJ, 2011, p. 7. 29 APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO E MATERIAL DOS FILHOS PELO GENITOR. [...] O estudo psicossocial juntado a fls. 88/91, constata-se que as visitas deixaram de ser constantes após a morte da avó paterna, chamada Faustina e após a realização do exame de DNA para comprova a paternidade biológica do réu, ora apelante, houve a interrupção do pagamento da pensão devida por um período prolongado, e que o mesmo teria sido obrigado a pagar os valores atrasados, e diante disso, o apelante teria interrompido completamente a visitação. O aludido estudo concluiu que “(...) o afastamento descrito pelos filhos como ‘abandono’ no caso em questão pode ter intensificado a angústia vivenciada pelos mesmo (...)”, “com poucos prejuízos psíquicos a ambos em virtude da dedicação da família materna ao exercício dos cuidados necessários ao longo do desenvolvimento dos mesmos” (fls. 91). [...] Enfim, pela prova produzida nos autos, verifica-se que houve abandono dos filhos por parte de seu genitor, sendo que o arbitramento do dano moral no valor de R$ 5.000, 00 (cinco mil reais) para cada um dos autores se mostrou adequado, porque atendidos os critérios de razoabilidade e proporcionalidade, representando um valor meramente simbólico para algo inestimável e quase irreparável que é o abandono afetivo. A sentença, portanto, deve ser mantida por seus próprios fundamentos, eis que enfrentou os fundamentos reprisados nas razoes recursais. [...] Diante do exposto, meu voto não dá provimento ao recurso. RECURSO IMPROVIDO. (TJSP, 2020). Assim sendo, ao ficar perfeitamente ilustrada a omissão afetiva do pai quanto aos cuidados fundamentais, o ordenamento jurídico e parte dos entendimentos jurisprudenciaisapontam no sentido de ser possível o indivíduo lesionado ser indenizado pelos danos morais causados pela violação a integridade psicofísica, nos termos do art. 5º, inciso X, da CFB/88, e em respeito ao princípio da solidariedade familiar – tornando-se possível a responsabilização civil do genitor. 4.2 A responsabilidade civil no âmbito do abandono afetivo paterno-filial Impende frisarmos que, a responsabilidade civil (ou antijuridicidade civil) ocorre quando uma pessoa deixa de observar um preceito normativo que regula a vida. De acordo com Tartuce (2018, p. 516), a responsabilidade classifica-se em responsabilidade civil contratual ou negocial e responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana. Esta última merece nossa atenção, vez que está baseada no ato ilícito (art. 186 do Código Civil). Entende-se por ato ilícito o ato praticado em desacordo com a ordem jurídica, na medida em que viola direitos e causa prejuízos a outrem. Fala-se em ato ilícito in lato sensu, posto que “produz efeitos jurídicos que não são desejados pelo agente, mas somente aqueles impostos pela lei” (Tartuce, 2018, p. 518). Dessarte, pode-se dizer que o ato ilícito se caracteriza pela conduta humana capaz de ferir direitos subjetivos privados, indo de encontro a ordem jurídica e ocasionando danos a alguém. Além disso, é também a soma entre lesão de direitos e dano causado, conforme 30 dispõe o art. 186 do Código Civil. O dano é tido como elemento fundamental para a configuração do ato ilícito e para o correspondente dever de reparação (art. 927, caput, do CC/2002). E, como consequência, deriva do ato ilícito a obrigação de indenizar, de reparar o dano (art. 927, parte final, do CC/2002). Dentre os elementos basilares da responsabilidade civil (ou os pressupostos do dever de indenizar) temos: a conduta humana, a culpa in lato sensu ou genérica, nexo de causalidade e o dano ou prejuízo16. Segundo Tartuce (2018), a conduta humana pode ser causada por uma ação ou omissão voluntária ou por negligência, imprudência ou imperícia. Na hipótese de omissão, é imprescindível a demonstração de que, caso a conduta fosse praticada, o dano poderia ter sido evitado. Em regra, a responsabilidade que decorre desse elemento faz com que o agente responda com o seu patrimônio (art. 942, caput, do CC/2002), em observância ao princípio da responsabilidade civil em sede de responsabilidade extracontratual. Quanto a culpa in lato sensu ou genérica, esta engloba o dolo e a culpa in stricto sensu. Em relação a primeira, temos a violação intencional do dever jurídico com o fito de prejudicar outrem e que pode tratar-se de uma ação ou omissão voluntária – e, uma vez presente o dolo, observa-se o princípio da reparação dos danos, quer dizer, todos os danos suportados pela vítima serão indenizados (posto que presente o dolo do agente, em regra, não se fala em culpa concorrente da vítima ou de terceiro). Acerca da segunda, pode ser definida como o desrespeito a um dever preexistente, não havendo propriamente um animus de violar o dever jurídico, sendo caracterizado por três aspectos: imprudência, negligência e imperícia. Aqui, merece especial atenção a culpa extracontratual ou aquiliana, visto que é resultado da violação de um dever fundado em norma do ordenamento jurídico ou de um abuso de direito, a culpa in omittendo que é alinhada à negligência, e a culpa in concreto que analisa a conduta de acordo com o caso concreto. Já o nexo de causalidade, indispensável requisito para a concretização da responsabilidade, constitui a relação de causa e efeito entre a conduta culposa (ou risco criado) e o dano suportado por alguém. E, finalmente, o dano ou prejuízo. Para que haja a compensação pecuniária, necessariamente deve-se comprovar o dano patrimonial ou extrapatrimonial suportado por alguém. Logo, em regra, não há responsabilidade civil sem dano, cabendo o ônus de sua prova ao autor da demanda (art. 373, I, do CPC/2015). Outrossim, classifica-se em: danos clássicos ou tradicionais (danos materiais e danos morais) e danos novos ou contemporâneos 16TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018. p. 534-598. 31 (danos estéticos, danos morais coletivos, danos sociais e danos por perda de uma chance). Destaca-se o dano moral, o qual encaixa-se à temática objeto de discursão. É necessário que, ao ingressar-se com a ação, sejam comprovados os elementos fundamentais da responsabilidade, quais sejam: a conduta ilícita ao demonstrar que o pai deixou de cumprir os deveres legais imposto na Constituição Federal, em seu art. 227, no Código Civil, em seu art. 1.634 e art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. In verbis: Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Art. 1.634 Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação; Art. 22 Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Além da conduta ilícita, deve ser comprovado o dano, que se entende presumido e o nexo de causalidade entre a conduta e dano, sendo certo que sem esses não haveria como ser concedida a indenização a título de dano moral. Outrossim: [...] há a violação dos deveres inerentes ao exercício da paternidade, quais sejam: a presença efetiva do genitor em situações cotidianas da prole como reuniões escolares, visitação de qualidade, auxílio material, auxílio moral e intelectual, e demais deveres a serem exercidos conjuntamente (SOUSA, 2016, p. 48). Apesar de ter como finalidade retornar as coisas ao seu estado inicial (status a quo ante), a compensação pecuniária não possui o condão de possibilitar isso, pois a aplicação da indenização neste caso teria como escopo servir de sanção e modo de prevenção a novas situações. Embora não haja unanimidade quanto a natureza jurídica da indenização por danos morais, tem-se três correntes doutrinárias e jurisprudenciais atualmente em vigência, das quais prevalece na jurisprudência pátria a terceira. Segundo esta, a indenização reveste-se de um caráter principal reparatório e de um caráter pedagógico (ou disciplinador acessório), tendo como objetivo servir como óbice de novas condutas – entretanto, esse caráter acessório existirá apenas se vir acompanhado do principal. Haverá, necessariamente, um certo grau de discricionariedade do magistrado na aplicação
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