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Direito, interpretação e hermenêutica APRESENTAÇÃO O Direito é uma ciência que estuda as normas como construção social e a aplicação destas no mundo dos fatos. No entanto, para que as normas sejam aplicadas no mundo real, o sujeito da norma ou o julgador, em um caso concreto, devem interpretá-la para adequar a situação de fato ao suporte fático normativo –ou o suporte fático normativo às especificidades do caso concreto. A este processo de concretização das normas, dá-se o nome de Interpretação Normativa. Esta interpretação é realizada a partir das ferramentas elaboradas pelo ramo teórico da Hermenêutica Jurídica. Nesta Unidade de Aprendizagem, você verá as diferenças entre Interpretação e Hermenêutica, as diversas ferramentas de interpretação normativa existentes e seu processo evolutivo, bem como as suas relações com a Hermenêutica Filosófica. Bons estudos. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Compreender as diferenças entre Interpretação e Hermenêutica.• Analisar os métodos de Interpretação Normativa.• Identificar a importância da Hermenêutica Filosófica na Interpretação Normativa.• INFOGRÁFICO Nesse infográfico, você verá as relações entre a Filosofia, a Hermenêutica Filosófica, a Hermenêutica Jurídica e a Aplicação da Norma. CONTEÚDO DO LIVRO Os conceitos de Hermenêutica e de Interpretação são utilizados de forma corrente como sinônimos, porém, na ciência jurídica, tratam-se de conceitos distintos, tendo esta distinção implicações práticas para o estudo de um e de outro. No capítulo Direito, interepretação e hermenêutica, da obra Introdução ao estudo do Direito, você verá as diferenças entre Hermenêutica e Interpretação Normativa, bem como os diferentes métodos de interpretação e suas relações com a Hermenêutica Filosófica. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO Magnum Eltz Revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna Bacharel em Direito Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional e em Direito Público Mestre em Direito Professor em cursos de graduação e pós-graduação em Direito Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin CRB-10/2147 G429i Giacomelli, Cinthia Louzada Ferreira. Introdução ao estudo do direito [ recurso eletrônico ] / Cinthia Louzada Ferreira Giacomelli , Magnum Koury de Figueiredo Eltz ; revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna. – Porto Alegre: SAGAH, 2017. ISBN 978-85-9502-219-5 1. Direito – História. I. Eltz, Magnum Koury de Figueiredo. II.Título. CDU 340.111 Hermenêutica e interpretação Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Distinguir interpretação de hermenêutica. � Analisar os métodos de interpretação normativa. � Identificar a importância da hermenêutica filosófica à interpretação normativa. Introdução O Direito é uma ciência que estuda as normas como construção social e a sua aplicação no mundo dos fatos. No entanto, para que as normas sejam aplicadas no mundo real, o sujeito da norma ou o julgador, em um caso concreto, devem interpretá-la para adequar a situação de fato ao suporte fático normativo ou o suporte fático normativo às especificidades do caso concreto. A esse processo de concretização das normas dá-se o nome de interpretação normativa, realizada a partir das ferramentas elaboradas pelo ramo teórico da hermenêutica jurídica. Neste capítulo, você vai ler a respeito das distinções entre interpreta- ção e hermenêutica, das diversas ferramentas de interpretação normativa existentes e do seu processo evolutivo, bem como das suas relações com a hermenêutica filosófica. Hermenêutica e interpretação no Direito Os conceitos de hermenêutica e interpretação são utilizados de forma corrente como sinônimos. No entanto, na ciência jurídica, trata-se de conceitos distintos, e essa distinção tem implicações práticas para o estudo de um e de outro. Conforme ensina (NADER, 2001, p. 253): A palavra hermenêutica provém do grego Hermeneúein, interpretar, e deriva de Hermes, deus da mitologia grega, filho de Zeus e de Maia, considerado o intérprete da vontade divina. Habitando a Terra, era um deus próximo à Humanidade, o melhor amigo dos homens. Todo conhecimento humano, de acordo com F. Gény, desdobra-se em dois aspectos; os princípios e as aplicações. Os princípios provêm da ciência e as aplicações, da arte. No mundo do Direito, hermenêutica e interpretação constituem um dos muitos exemplos de relacionamento entre princípios e aplicações. Enquanto que a hermenêutica é teórica e vista a estabelecer prin- cípios, critérios, métodos, orientação geral, a interpretação é de cunho prático, aplicando os ensinamentos da hermenêutica. Não se confundem, pois, os dois conceitos apesar de ser muito frequente o emprego indiscriminado de um e de outro. A interpretação aproveita os subsídios da hermenêutica. Esta, conforme salienta Maximiliano, descobre e fixa os princípios que regem a interpretação. A hermenêutica estuda e sistematiza os critérios aplicáveis na interpretação das regras jurídicas. Dessa forma, a hermenêutica é o ramo científico por trás da sistematiza- ção do estudo como uma organização dos pensamentos filosóficos que são anteriores à prática e a interpretação é o conceito ligado à hermenêutica. Ambos os conceitos compõem a práxis jurídica. Conforme ensina (KELSEN, 1999, p. 897-388), o âmbito da aplicação ocorre: Quando o direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de ficar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação e, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Na hipótese em que geralmente se pensa quando se fala de interpretação, na hipótese da interpretação da lei, deve responder-se à questão de saber qual o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto. Mas há também uma interpretação da Constituição, na medida em que de igual modo se trate de aplicar esta – no processo legislativo, ao editar de- Hermenêutica e interpretação130 cretos ou outros atos constitucionalmente imediatos – a um escalão interior; e uma interpretação dos tratados internacionais ou das normas do Direito internacional geral consuetudinário, quando estas e aquelas têm que ser aplicadas, num caso concreto, por um governo ou por um tribunal ou órgão administrativo, internacional ou nacional. E há igualmente uma interpretação das normas individuais, de sentenças judiciais, de ordens administrativas, de negócios jurídicos, etc. em suma, de todas as normas jurídicas, na medida que hajam de ser aplicadas. [...] Mas há também os indivíduos que têm — não de aplicar, mas — de observar o Direito, observando ou praticando a conduta que evita a sanção, precisam de compreender e, portanto, de determinar o sentido das normas jurídicas que por ele hão de ser observadas. Assim, enquanto a hermenêutica estabelece os parâmetros de estudo das normas, o seu método de análise e uma organização dos pensamentos filo- sóficos, a aplicação ocorre quando se descendem as normas do seu âmbito ideal para um nível menos elevado, em que se encontra o caso concreto, ou seja, os fatos ocorridos no mundo real. Como ensina Nader (2001, p. 254), “A efetividade do Direito depende de um lado, do técnico que formula as leis, decretos e códigos e, de outro lado, da qualidade da interpretação realizada pelo aplicador das normas”. Ou seja, ao passo em que o legislador formula o texto das normas legais, o juiz, o aplicador do direito (seja advogado, promotor, etc.) ou mesmo o indivíduo deve interpretar esse texto normativo, e a qualidade da interpretação é medida pela técnica interpretativa aplicada, desenvolvida pela hermenêutica. Como resume o autor: Comotodo objeto cultural, o Direito encerra significados. Interpretar o Di- reito representa revelar o seu sentido e alcance. Temos assim: a) revelar o seu sentido: a lei que concede férias anuais ao trabalhador tem o significado, a finalidade de proteger e de beneficiar a sua saúde física e mental; b) fixar o alcance das normas jurídicas: ignifica delimitar o seu campo de incidência. Dentro do exemplo citado, temos que apenas os trabalhadores assalariados, isto é, que participam em uma relação de emprego, fazem jus às normas trabalhadas. De igual modo, as normas contidas no Estatuto dos Funcionários Públicos da União têm o seu campo de incidência limitado (NADER, 2001, p. 225). 131Hermenêutica e interpretação A partir das ferramentas de hermenêutica, o aplicador, ao interpretar o texto, deve reve- lar o sentido da norma e fixar o alcance dessas ferramentas. Deve pressupor, portanto, que o texto normativo não é necessariamente claro o suficiente para que o seu leitor saiba, a partir da sua literalidade, quais são todos os elementos necessários para a sua aplicação. Eis a importância do desenvolvimento de um aparato hermenêutico para que o interprete possua as ferramentas adequadas dentro de um sistema científico jurídico. Assim, é possível estabelecermos que a hermenêutica é teórica, responsável pelo desenvolvimento de ferramentas anteriores à aplicação, e a interpretação é a ponte entre o campo normativo abstrato e a aplicação das normas no caso concreto, seja por meio de uma sentença, seja por meio da própria vivência de acordo com as normas jurídicas vigentes pelo cidadão. Os métodos de interpretação da norma jurídica Como você viu na seção anterior, a hermenêutica é o campo responsável pelo desenvolvimento das ferramentas de interpretação para que o aplicador do Direito possa fazê-lo em conformidade com a ordem normativa vigente. Para tanto, a ciência jurídica apresenta diversas ferramentas, que espelham uma evolução científica da própria hermenêutica e, portanto, da interpretação da norma jurídica. Bobbio (1982) contextualiza a discussão evolutiva da hermenêutica jurídica a partir do desenvolvimento do dogma da completude em oposição ao reco- nhecimento de lacunas no ordenamento jurídico. Conforme o autor: O dogma da completude, isto é, o princípio de que o ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz em casa caso, uma solução sem recorrer à equidade, foi dominante e o é em parte até agora, na teoria jurídica europeia de origem romana. Por alguns é considerado como um dos aspectos salientes do positivismo jurídico. [...] Nos tempos modernos, o dogma da completude tornou-se parte integrante da concepção estatal do Direito, isto é, daquela concepção que faz da produção jurídica um monopólio do Estado. Na medida em que o Estado moderno crescia em potência, iam-se acabando todas as fontes de direito que não fossem a Lei ou o comando soberano (BOBBIO, 1982, p. 119-120). Hermenêutica e interpretação132 Dessa forma, se há completude no ordenamento jurídico, não há necessidade de interpretação, pois a literalidade da norma e o conjunto normativo são suficientes para a aplicação do Direito a todos os casos concretos. Para melhor compreendermos a completude a que se refere Bobbio (1982, p. 114-115), trazemos a conceituação do autor: Por “completude” entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente “lacuna” (num dos sentidos do termo “lacuna”), “com- pletude” significa “falta de lacunas”. Em outras palavras, um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema. Para dar uma definição mais técnica de completude, podemos dizer que um ordenamento é completo quando jamais se verifica caso de que a ele não de podem demonstrar pertencentes nem a uma certa norma nem a norma contraditória. Especificando melhor, a incompletude consiste no fato de que o sistema não compreende nem a norma que proíbe um certo comportamento nem a norma que o permite. De fato, se se pode demonstrar que nem a proibição nem a permissão de certo comportamento são dedutíveis do sistema, da forma que foi colocado, é preciso dizer que o sistema é incompleto e que o ordenamento jurídico tem uma lacuna. A partir dessa definição mais técnica de completude, entende-se melhor qual é o nexo entre o problema da completude e o da coerência. [...] podemos de fato definir a coerência como aquela propriedade pela qual nunca se dá o caso em que se possa demonstrar a pertinência a um sistema e de certa norma e da norma contraditória. [...] diremos “incoerente” um sistema no qual exis- tem tanto a norma que proíbe um certo comportamento quanto aquela que o permite; “incompleto”, um sistema no qual não existem nem a norma que proíbe um certo comportamento nem aquela que o permite. [...] de fato, o que tentamos estabelecer é sempre a unidade: unidade negativa, com a eliminação de contradições; a unidade positiva, com o preenchimento de lacunas. Dessa forma, o dogma da completude encara que o sistema não possui qualquer lacuna, ou seja, que todos os casos estão considerados no sistema e que esse sistema é coerente, e que, portanto, não há contradições entre uma norma e outra, ou expectativa de frustração de determinado comportamento e ausência de norma que o proíba. Por outro lado, se entendemos que o sistema é incompleto, e, portanto, possui lacunas, ou que há controvérsias entre normas existentes dentro de um sistema normativo, há necessidade de aplicação de normas interpretativas para resolução desses casos. 133Hermenêutica e interpretação Nader (2001, p. 257) sintetiza a discussão em seu trabalho: Outrora, vigorava o princípio in claris cessat interpretatio. Pensavam os juristas antigos que um texto bem redigido e claro dispensava a tarefa do intérprete. Havia a ideia errônea de que o papel do intérprete era o de “torcer o significado das normas”, para coloca-las de acordo com o interesse do momento. A confirmar a desconfiança no trabalho dos intérpretes, encon- tramos em Hufeland a declaração de que “é um mal que a lei precise de uma interpretação. As leis não devem estar sujeitas às chicanas jurídicas”. O jurista brasileiro Paula Batista, autor de uma apreciada “Hermenêutica Jurídica”, esposou esta tese, há mais de meio século, afirmando: “Ou existem motivos para dúvidas do sentido de uma lei, ou não existem. No primeiro caso cabe interpretação, pela qual fixamos o verdadeiro sentido da lei e a extensão do seu pensamento; no segundo, cabe apenas obedecer ao seu preceito literal”. Para a compreensão dos diversos métodos interpretativos da norma, é im- portante ressaltarmos as diferenças entre a compreensão das lacunas trazidas por Bobbio, sendo as primeiras as lacunas ditas reais ou seja, a ausência fática de normas escritas sobre determinada conduta de maneira positiva ou negativa, e ideológicas, que, segundo o autor, não são “a falta não já de uma solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou em outras palavras, já a falta de uma norma, mas de uma norma justa” (BOBBIO, 1982, p. 140). Bobbio (1982, p. 143) também distingue lacunas próprias e impróprias: “A lacuna própria é uma lacuna do sistema ou dentro do sistema; a lacuna imprópria deriva da comparação do sistema real com um sistema ideal”. Além disso, o autor diferencia as lacunas ditas objetivas das subjetivas: Subjetivas são aquelas que dependem de algum motivo imputável ao le- gislador; objetivas são aquelas que dependem do desenvolvimento das rela- ções sociais, das novas invenções, de todas aquelas causas que provocam um envelhecimento dos textos legislativos e que, portanto, são independentes da vontade do legislador (BOBBIO, 1982, p. 144). Ainda, o autor distingue lacunas voluntárias e involuntárias: Involuntáriassão aquelas que dependem de um descuido do legislador, que faz parecer regulamentado um caso que não é, ou faz deixar de lado um caso que talvez se considere pouco frequente, etc. Voluntárias são aquelas em que o próprio legislador deixa de propósito, quando a matéria é muito complexa e não pode ser regulada com regras muito miúdas, é melhor confiá-la, caso por caso, à interpretação do juiz. Em algumas normas muito gerais que podem ser chamadas de diretrizes (BOBBIO, 1982, p. 140-144). Hermenêutica e interpretação134 Finalmente, Bobbio (1982, p. 145) diferencia as lacunas Preter legem e inter legem: As primeiras existem quando as regras, expressas por serem muito particula- res, não compreendem todos os casos que podem apresentar-se a nível dessa particularidade; as segundas têm lugar, ao contrário, quando as normas são muito gerais e revelam, no interior das disposições dadas, vazios ou buracos que caberá o interprete preencher. As lacunas voluntárias são normalmente inter legem. O autor Paulo Nader também traz na obra Introdução ao estudo do Direito uma sistematização da evolução dos conceitos interpretativos, da literalidade à vontade da lei, da vontade do legislador à interpretação histórica-evolutiva, à investigação científica do Direito e finalmente à escola do Direito livre, em que destacamos os seguintes ensinamentos: Escola tradicional da exegese: predominância do meio gramatical e da lógica interna do sistema jurídico (não estuda elementos de outros ordenamentos ou princípios gerais do direito), é reflexo do momento histórico-legal codicista, em que todas as normas deveriam estar organizadas sob Códigos de forma sistemática, clara e objetiva; Possui como postulados básicos: Dogmatismo Legal; Subordinação à Vontade do Legislador; O Estado como Único Autor do Direito (NADER, 2001, p. 273). Método Histórico-Evolutivo: segundo esta escola que surgiu no final do século XIX, o intérprete possui um papel relevante. Cumprindo ao judiciário manter o Direito sempre vivo, atual, de acordo com as exigências sociais do momento histórico (NADER, 2001, p. 274). Livre investigação científica do Direito: concepção do jurista François Gény, no final do século XIX, admite alguns pontos da escola da Exegese e rejeita a outros, aceita que o interprete deva pesquisar a vontade do legislador, não concordando com a tese de que a lei seja a única fonte formal do direito; admite a falibilidade do código, portanto e que o interprete deva preencher as lacunas a partir de um processo, obedecendo a vontade do legislador, e a atualização dos conceitos genéricos de ordem pública e bons costumes conforme o con- texto histórico. Gény entende que há uma necessária interdependência entre a lógica e a interpretação gramatical. Segundo essa corrente, o Direito possui, na sua versão duas categorias: o dado e o construído. O dado corresponde à realidade observada pelo legislador, às fontes materiais do Direito, como os elementos econômico, moral, cientifico, técnico, cultural, histórico, político, etc. O construído é uma operação lógica e artística que, considerando o dado, subordina os fatos a uma ordem de fins. (NADER, 2001, p. 275-276) Finalmente, a corrente do Direito Livre: escola que se opõe diretamente à Exegese, que concede ampla liberdade, inclusive em relação ao texto legal, 135Hermenêutica e interpretação se considerar como incapaz de fornecer uma solução justa ao caso. Se a lei for justa, deve ser aplicada, se for injusta deve ser colocada de lado de acordo com critérios de justiça. Reichel, aponta três características principais desta escola: Repúdio à doutrina da suficiência absoluta da lei; afirmação de que o juiz deve realizar, precisamente pela insuficiência dos textos, um labor pes- soal e criador; e a aproximação paulatina do julgador à atividade legislativa (NADER, 2001, p. 277). Uma vez compreendidas as diversas escolas da interpretação normativa, passaremos à classificação dos métodos propriamente dita. Os métodos de interpretação normativa podem ser classificados e ca- racterizados como: Método integrativo — uma vez compreendido um determinado sistema como lacunoso, há dois métodos de integração desse sistema segundo a ter- minologia de Carnelutti, conforme referenciado por Norberto Bobbio (1982), a heterointegração ou de autointegração. O primeiro método consiste na integração operada por meio do: 1. recurso a ordenamentos diversos; 2. recurso a fontes diversas daquela que é dominante (identificada, nos ordenamentos que temos sob os olhos com a lei). Dessa forma, podemos compreender que o método literal e a vontade da lei são formas de autointegração, ainda que não reconheçam as lacunas existentes no sistema, enquanto a heretointegração é composta por diferentes métodos como histórico, Direito comparado e princípios interordenamentais como direitos naturais, humanos, etc. Autointegração — segundo Bobbio (1982), o método de autointegração se apoia particularmente em dois procedimentos: 1. analogia, o procedimento pelo qual se atribuir a um caso não regula- mentado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante; 2. princípios gerais do direito, com os quais o legislador pretende ou presume que, em caso de lacuna, a regra deve ser encontrada no âmbito mesmo das leis vigentes, sem recorrer a outros ordenamentos nem a fontes diversas da lei. Hermenêutica e interpretação136 Método literal ou gramatical — Tratando-se de Direito escrito, é pelo ele- mento gramatical que o intérprete toma o primeiro contato com a proposição normativa. Malgrado a palavra se revele, às vezes, um instrumento rude de manifestação do pensamento, pois nem sempre consegue traduzir as ideias, constitui a forma definitiva de apresentação do Direito, pelas vantagens que oferece do ponto de vista da segurança jurídica. Cumpre ao legislador aper- feiçoar os processos da técnica legislativa, objetivando sempre uma redação simples, clara e concisa. O elemento gramatical se compõe da análise do valor semântico das palavras empregadas no texto, da sintaxe, da pontuação, etc. No Direito antigo, o processo literal era mais importante do que hoje. Ocorria, às vezes, que os códigos eram escritos em línguas mortas, o que exigia esforço concentrado do intérprete. Modernamente, a crítica que se faz a esse elemento não visa, como é natural, à sua eliminação, mas à correção dos excessos que surgem com a sua aplicação. Objetiva-se evitar o abuso daqueles que se apegam á literalidade do texto, com prejuízo a mens legis. Método de busca da vontade da lei e do legislador — conforme visto, a exegese compreendia a vontade do legislador como um parâmetro endógeno de interpretação literal. Essa ferramenta deriva dos tempos da antiguidade, em que a lei era ditada pelos deuses e que, portanto, somente o seu criador poderia mudar o seu sentido. A partir da criação da figura do legislador legitimado pelo povo, a exegese estabeleceu que a lei que pode ser interpretada de maneira subjetiva, ou seja, pelo estudo comparativo do emprego de vocábulos de determinada forma pela pessoa do legislador, chamada de mens legislatoris, ou pela dedução da sua vontade pelo sistema da ordem jurídica. De qualquer sorte, o resultado encontrado deveria ser aplicado, mesmo que inócuo ou absurdo. Já o método objetivo leva o intérprete a pesquisar a vontade da lei. O legislador não cria a lei no seu intelecto, mas apropria-se das fórmulas que a organização social sugere para transfundi-las nos textos. No dizer de Maximiliano, “o indivíduo que legisla é mais ator do que autor, traduz apenas o pensar e sentir alheios, reflexamente, às vezes, usando meios inadequados de expressão quase sempre” (NADER, 2001, p. 260). Método de Interpretação sistemática — segundo Nader (2001), não há nenhum dispositivo, na ordem jurídica, que seja autônomo, autoaplicável. A norma jurídica somente pode ser interpretada e ganhar efetividade quando analisada no conjunto de normas que dizemrespeito a determinada matéria. 137Hermenêutica e interpretação Quando um magistrado profere uma sentença, não aplica regras isoladas: projeta toda uma ordem jurídica ao caso concreto. O ordenamento jurídico compõe-se de todos os atos legislativos vigentes, bem como das normas costumeiras válidas que mantém entre si perfeita conexão. Método de Interpretação histórica — muitas vezes o conhecimento gra- matical e lógico do texto legislativo não é suficiente para a compreensão do espírito da lei, sendo necessário recurso à pesquisa do elemento histórico. Como força viva que acompanha as mudanças sociais, o Direito se renova, ora aperfeiçoando os institutos vigentes, ora criando outros para atender o desafio dos novos tempos. Em qualquer situação, o Direito se vincula à história e o jurista que almeja um conhecimento profundo da ordem jurídica, forçosamente deverá pesquisar as raízes históricas do Direito Positivo. Método de Interpretação Teleológica — na moderna hermenêutica, o ele- mento teleológico assume papel de primeira grandeza. Tudo o que o homem faz e elabora é em função de um fim a ser atingido. A lei é obra humana e, assim, contém uma ideia de fim a ser alcançado. Na fixação do conceito e alcance da lei, sobreleva de importância o estudo teleológico, isto é, o estudo dos fins colimados pela lei. Enquanto a occasio legis se ocupa dos fatos históricos que projetaram a lei, o fator teleológico investiga os fins que a lei visa atingir. Outra forma de classificar os métodos interpretativos são: Interpretação declarativa — nem sempre o legislador bem se utiliza dos vocábulos, ao compor os atos legislativos. Muitas vezes, expressa-se mal, utilizando com impropriedade os termos. Quando dosa as palavras com ade- quação aos significados que deseja imprimir na lei, falamos que a interpretação é declarativa. O intérprete chega à constatação de que as palavras expressam, com medida exata, o espírito da lei. Interpretação restritiva — quando ocorre, porém, que o legislador é infeliz ao redigir o ato normativo, dizendo mais do que queria dizer, a interpretação é restritiva, pois o intérprete elimina a amplitude das palavras. Exemplo: a lei diz descendente, quando, na realidade, queria dizer filho. Interpretação extensiva — é a hipótese contrária à anterior. O intérprete constata que o legislador se utilizou com impropriedade dos termos, dizendo menos do que queria afirmar. Ocorrendo tal hipótese, o intérprete alegará o campo de incidência da norma, em relação aos seus termos. O exemplo anterior Hermenêutica e interpretação138 é útil, ainda: se o legislador, desejando referir-se a descendente, emprega o vocábulo filho. Também podemos classificar os métodos pelo critério do elemento lógico. Segundo Nader (2001, p. 267), “por ser estrutura linguística que pressupõe vontade e raciocínio, o texto legislativo exige os subsídios da lógica para a sua interpretação”. Lógica interna — pela lógica interna, o interprete submete a lei à ampla análise, considerando a própria inteligência do texto legislativo, alheando-se dos elementos de informação extra legem. Lógica externa — visando completar o sentido da lei, sem contrariá-la, essa lógica se guia na lição dos fatos. Orienta-se pela observação dos acontecimentos que provocaram a formação do fenômeno jurídico, indagando, ainda, os fins que ditaram as regras jurídicas. Estudam-se, portanto, a ocasio legis e a ratio legis. Pode o interprete descer ao exame da história dos institutos e, ainda, ao Direito comparado. A lógica do “razoável” — Recaséns Siches, que expõe a doutrina da lógica do razoável, julga que foi um erro maiúsculo cometido pela teoria e prática jurídica do séc. XIX o emprego, em assuntos jurídicos, dos métodos da lógica tradicional, também chamada de matemático-física, silogística, que se originou com o Organon, de Atistoteles. Na sua opinião, essa metodologia se ajusta à matemática, física e outras ciências da natureza, revelando- -se, porém, inservível para os problemas ligados à conduta humana, afir- mando que há razões diferentes do racional de tipo matemático, de tipo formalista-silogista. Nader ainda traz as inovações da Lei de introdução ao Código Civil (LICC), hoje Lei de introdução ao Direito brasileiro (LIDB), em que a divisão doutri- nária entre a obrigatoriedade ou não dos seus métodos é aplicada na prática jurídica pátria. Segundo o autor, no art. 5º da LIDB, “o sistema jurídico brasi- leiro rompeu com a exegese tradicional, que impedia o intérprete de conciliar os textos com as exigências dos casos concretos” (NADER, 2001, p. 262). O juiz deixaria, assim, aquela condição de “ente inanimado”, conforme Montesquieu concebera, ou então, como descreve Roscoe Pond, em relação à teoria mecâ- nica, que reduz o juiz à condição de operador de máquinas automáticas: “[...] ponham-se os fatos no orifício de entrada, puxe-se uma alavanca e retire-se a decisão pré-formulada” (NADER, 2001, p. 263). Segundo o autor, o art. 5º da LICC (NADER, 2001, p. 263): 139Hermenêutica e interpretação [...] revela, de início, o descontentamento do legislador com os critérios tradi- cionais de hermenêutica seguidos em nosso País até aquela época. Apesar de a formula adotada não oferecer com segurança os novos critérios, foi cometido ao intérprete um papel importante na revelação do Direito. [...] A expressão fins sociais visa a eliminar a possibilidade de que meros caprichos pessoais possam surgir em detrimento da coletividade. Quando houver conflito entre o interesse individual e o social, este último deve pre- valecer. Tal colocação não tem a finalidade de esmagar o indivíduo em favor do elemento social. Há situações em que o individual pode prevalecer, de acordo com os critérios fixados pelo próprio legislador. Finalmente, Pontes de Miranda (2013) refere que os métodos exegéticos aplicáveis às leis não aproveitam os negócios jurídicos e vice-versa. Para o autor, interpretar o negócio jurídico é revelar quais elementos do suporte fático entrarão no mundo jurídico e quais efeitos que, em virtude disso, produzem. Destaca alguns critérios a serem observador no momento da interpretação do negócio jurídico. 1. Princípio da integração: é indispensável a interpretação sistemática do conteúdo integral do negócio jurídico. O interprete deverá examinar cada parte do conjunto em conexão aos demais. 2. Princípio da fixação genérica: na apuração do real sentido do negócio jurí- dico, não se deve levar em consideração “ao que é pessoal de cada figurante, ou ao destinatário”. O interprete deverá fixar-se primeiramente no texto, examinando os elementos gramaticais e depois a lei pertinente à matéria, podendo inclusive, se for necessário, recorrer aos usos; 3. Princípio da classificação técnica: com apoio no conhecimento fornecido pela doutrina e pela lei, o intérprete classifica o negócio jurídico, a fim de determinar-lhe as consequências jurídicas (MIRANDA, 2013, p. 322–327). Conforme complementa Nader (2001, p. 268): [...] na interpretação dos contratos, destacam-se as chamadas teoria objetiva ou da declaração e a teoria subjetiva da vontade. Ao considerar que o contrato faz lei entre as partes, a teoria objetiva preconiza, consoante expõe Miguel Reale, a interpretação objetiva, analogamente ao processos de interpretação da lei, pelo qual não se leva em conta o pensamento do legislador. [...] Para a teoria subjetiva, ou da vontade, o interprete é orientado no sentido de descobrir a intensão das partes. A interpretação literal é condenada e a subordinação do intérprete ao conteúdo semântico dos vocábulos é condicionada à plena adequação das palavras ao elemento volitivo. Hermenêutica e interpretação140 Em resumo, é possível concluir que a evolução da interpretação normativa possui como fio condutor o balanço entre o apego à norma e aos elementos internos de determinado sistema normativo (e especificidades dos seus costumes ou vontades empregadas nas normas) e a liberdadede disposição do aplicador da norma frente à fontes de outros ordenamentos jurídicos, a partir do Direito comparado, dos princípios gerais de Direito ou mesmo de uma análise histórica-evolutiva da norma — quando não descartada a literalidade da norma em prol de um preenchimento idealista das lacunas normativas existentes. O maior limitador interpretativo na noção de bem comum está disposta na LIDB, em nosso ordenamento jurídico, e nos princípios gerais do Direito Natural, que transpassam a noção de um ordenamento jurídico específico. A importância da hermenêutica filosófica para a interpretação normativa A hermenêutica jurídica é o ramo teórico que contribui para a formação da metodologia utilizada na aplicação das normas a partir do processo de interpretação normativa. Já a hermenêutica filosófica é o ramo anterior que disponibiliza ferramentas teóricas para todos os ramos das ciências, podendo ser aplicadas por seus respectivos ramos aplicados. Não são raras as contribuições da filosofia para a ciência jurídica, começando por suas construções sobre o próprio conceito de justiça, passando pelas discussões sobre os direitos naturais até a positivação das normas e teorias sobre as ciências políticas, eco- nômicas e sociais que permeiam a construção das normas e da interpretação jurídica. 141Hermenêutica e interpretação Como visto, a hermenêutica jurídica evolui de acordo com a dicotomia entre a pureza da norma e a possibilidade de preenchimento de lacunas entre fatores endógenos e exógenos ao ordenamento jurídico, como a história, economia, sociologia e filosofia. Esse debate, no entanto, é anterior à própria concepção da norma e à sua força textual positivada, conforme os ensinamentos de Streck (1999, p. 99): A questão da linguagem sempre esteve posta em diferentes épocas. Pode-se colocar como a primeira obra de filosofia da linguagem o escrito de Crátilo, de Platão, do ano de 388 a.C. Nele, além de Sócrates, há mais dois personagens: Hermôgenes, que represente os sofistas e Crátilo, que representa Heráclito (pré-socrático que justamente com Parmênides, inaugura a discussão acerca do “ser” e do “pensar”, e do logos superando o mythos). Crátilo é um tratado acerca da linguagem e, fundamentalmente, uma discussão crítica sobre a linguagem. São contrapostas duas teses/ posições sobre a semântica: o natu- ralismo, pela qual cada coisa tem nome por natureza (o logos está na phisys), tese defendida no diálogo por Crátilo; e o convencionalismo, posição sofís- tica defendida por Hermógenes, pela qual a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional, é dizer, não há qualquer ligação das palavras com as coisas. Assim, o conteúdo das nomenclaturas é uma das bases da própria discussão filosófica de Platão, entre a arbitrariedade e a lógica aplicada nas regras de criação das expressões ordinárias. O autor segue narrando a obra de Platão: [...] Desse modo, no Crátilo, para discutir a questão relacionada à justeza dos nomes, Sócrates toma como modelo a atividade do artesão, onde há uma finalidade própria a cada coisa e a cada ação e que, analogamente aos ins- trumentos adequados a cada atividade artesanal, há também um responsável pelo estabelecimento dos nomes para as coisas, o nomoteta (onomaturgo), o sábio legislador (espécie de fala autorizada...): “Nem todo homem é capaz de estabelecer um nome, mas apenas um artista de nomes; e este é o legislador, o mais raro dos artistas entre os homens. Mas o nomoteta não nomeia as coisas arbitrariamente. Para exercer sua atividade, ele se guia por um modelo ideal, pois parece haver uma certa exatidão natural de um nome em relação ao objeto (STRECK, 1999, p. 100). A noção Platônica sobre o nomoteta, ou aquele que legisla sobre o uso das palavras, é uma das primeiras raízes remotas de uma exegese literal, em que a defesa de uma lógica por trás da escolha das palavras legitimaria o seu uso conforme o emprego arbitrado pelo “artesão das palavras”. Hermenêutica e interpretação142 Streck (1999, p. 103-104) segue a sua história sobre o discurso sobre a formação das palavras em Aristóteles: (Aristóteles em) sua “Primeira filosofia” pretende estudar o ser das coisas (ousia), que quer dizer a sua essência, naquilo que elas são em si mesmas, não importando o que elas pareçam e pelas mudanças que sofrem. Por isso, Jacobus Thomasius, no séc. XII, afirmou que a primeira filosofia deveria chamar-se de ontologia. Para os objetivos (e limites) desta abordagem, é importante referir que, em Aristóteles, a linguagem continua tendo um papel secundário. No fundo, o sistema aristotélico, é uma releitura do pensamento de Platão, uma vez que Aristóteles descobre uma brecha no sistema de seu mestre: como podemos falar de essências subsistentes? Nele, a linguagem não manifesta, mas significa as coisas. A palavra é (somente um) símbolo, e sua relação com a coisa não é por semelhança ou por imitação, mas (apenas) por significação. A questão está na adequatio, é dizer, na conformidade entre a linguagem e o ser. Pressupõe uma ontologia. Ou seja, Aristóteles acreditava que as palavras só possuíam um sentido definido porque as coisas possuíam uma essência. [...] A essência das coisas que confere às palavras a possibilidade de sentido. Desse modo, exemplificadamente, o que garante à palavra cão uma significação uma é o mesmo que faz o cão ser cão. Dessa forma, o pensamento Aristotélico, ainda que como um reflexo da filosofia de Platão, encontra um eco no mundo das essências em que as pala- vras podem (e devem) refletir a essência do que representam, subordinando a criação das palavras a fenômenos que descrevem, não o contrário, de forma que, o que garante à palavra a sua significação, é o fenômeno que torna o objeto descrito ele mesmo. Em relação aos sofismos relacionados à composição das palavras na sua essência, Streck (1999, p. 155) relaciona as contribuições da filosofia à discussão hermenêutica dentro da ciência jurídica: No âmbito da interpretação da lei, naquilo que tradicionalmente chamamos de hermenêutica jurídica, é preciso chamar a atenção (dos juristas) para o fato que “nós, não temos mais um significante primeiro, que se buscava tanto em Aristóteles, como na Idade Média, como ainda em Kant; significativamente primeiro que nos daria a garantia de que os conceitos em geral remetem a um único significado”. Daí por que um rompimento com essa tradição do pensamento jurídico dogmático é difícil e não se faz sem ranhuras: “A recusa de uma concepção metafísica do Direito não se faz sem problemas. O mesmo ocorre, aliás, com a afirmação dessa concepção. Crer que há uma essência verdadeira em si mesma do Direito – como que à espera de ser captada em sua inteireza pelo sujeito do conhecimento, seja mediante um trabalho estritamente racional de índole dedutiva, em que as normas do Direito racional, isto é, as 143Hermenêutica e interpretação chamadas leis da natureza, seriam aprendidas como autênticos corolários a que se acederia pelo raciocínio a essa essência na dinâmica da vida social, através da investigação sociológica do fenômeno jurídico; seja buscando-a na exegese dos textos legais -, crer nisso, não deixa de ser confortável. Assim, a crença em um sistema autossuficiente da exegese e codificadores é baseada na crença de que o Direito e o texto normativo advêm de uma essência e que isso legitimaria a perfeição de um sistema oriundo da observação da natureza humana — ainda que, como descreve Streck (1999), desde a construção positivista, haja uma separação entre o Direito e a metafísica filosófica que, como bem alerta o autor, não se faz sem a perda da segurança que a unidade interpretativa traria ao ordenamento jurídico. Outra importante contribuição narrada pelo autor encontra-se no ramo aplicado da filosofia jurídica que trouxe a abertura do sistema como uma possibilidade de aplicação da discricionariedade do juiz, não por um acaso, no âmbito da construçãoda common law: No âmbito do Direito, o grande contributo é do direito anglo-saxão, mormente na obra de Hart e seus polemizadores (Raz; Dworkin). Na teoria de Hart, a dinâmica das normas somente pode ser explicitada através da análise das chamadas regras secundárias (adjudicação, mudança, reconhecimento), que permitem a justificação e existência do sistema jurídico. Para Hart, o direito possui uma zona de textura aberta que permite a livre manifestação do poder discricionário do juiz. Essa postura é criticada por Dworkin, que entende que o Direito sempre proporciona uma boa resposta, já que o juiz, ao julgar, escreve a continuidade de uma história, uma espécie de romance escrito em continuidade, onde a boa resposta seria aquela que melhor enfrentasse a dupla exigência que se impõe ao juiz, ou seja, fazer com que a decisão se harmonize o melhor possível com a jurisprudência anterior e ao mesmo tempo a atualize (justifique) conforme a moral política da comunidade. Lamego, assevera que o modo como Hart introduz a problemática da hermenêutica, através de um ponto de vista interno, tem a vantagem de “economizar” uma série de refle- xões antropológicas sobre a teoria do conhecimento e da ação que a questão evidentemente co-envolve (STRECK, 1999, p. 156). Nas discussões entre a discricionariedade de Hart, em que a norma é revelada na sua concretude, a justificação da sua imputação é a confrontação com a sua essência verificada nos fatos concretos e a postura de Dworkin, em que o romance jurídico necessita de uma vinculação lógica entre os casos precedentes e o caso concreto, sendo o último consequência do ordenamento que o antecede. Há como pano de fundo a própria discussão sobre a nomenclatura e a discricionariedade ou ciência da nomeação das coisas, eis que a norma precede de uma essência observadora de fenômenos prévia ou no momento da sua aplicação. Hermenêutica e interpretação144 Finalmente, ao tratar especificamente da hermenêutica filosófica, Streck (1999, p. 157–158) sintetiza o debate da filosofia pura e jurídica nas seguintes contribuições dessa escola: Embora esses avanços, somente graças à hermenêutica filosófica (Gadmer; Ricoeur) é que a antiga tensão entre a dogmática jurídica e a sociológica vem a ser superada, na medida em que a linguagem e os textos, é dizer, a enuncia- ção, são colocados no centro das discussões. Os contributos da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspectiva para a hermenêutica jurídica, assumindo grande importância as obras de Heidegger e de Garmer. Como efeito, Heidegger, desenvolvendo a hermenêutica no nível ontológico, trabalha com a ideia de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão, é na compreensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A com- preensão possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, vista prévia e antecipação, nascendo desta estrutura a situação hermenêutica. Já Gaddamer, seguidor de Heidegger, ao dizer que ser que pode ser compreendido é linguagem, retoma a idéia de Heidegger da linguagem como casa do ser, onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado. Daí que, para Gadamer, ter um mundo é ter uma linguagem. As palavras são especulativas, e toda a interpretação é especulativa, uma vez que não se pode crer em um significado infinito, o que caracteriza o dogma. A hermenêutica, desse modo, é universal, pertence ao ser da filosofia, pois, como assinala Palmer, a concepção especulativa do ser que está na base da hermenêutica é tão englobante como a razão e a linguagem. Dessa forma, é possível concluir que as contribuições da filosofia para a hermenêutica jurídica são: � a discussão sobre a precisão dos termos; � uma discussão prévia sobre a possibilidade de lacunas entre a arbitra- riedade do legislador e a essência dos fenômenos que tenta descrever; � a construção das normas como um construto metafísico natural. Já as contribuições da hermenêutica filosófica para a hermenêutica jurídica são: � a crítica às limitações das palavras escritas; � o uso dos princípios como guias, por se tratarem de especulações do interprete; � a compreensão da linguagem como horizonte aberto e estruturado para aplicação no caso concreto; � a conceituação da compreensão e interpretação a partir da bagagem do interprete, despida de uma “pureza teórica”. 145Hermenêutica e interpretação BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1982. KELSEN, H. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MIRANDA, P. de. Tratado de Direito privado. São Paulo: RT, 2013. t. 3. NADER, P. Introdução ao estudo do Direito: de acordo com a constituição de 1988. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. Hermenêutica e interpretação146 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo: DICA DO PROFESSOR Nesta Dica do Professor, você verá os diversos métodos de aplicação do Direito e suas características na prática. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! NA PRÁTICA Enquanto algumas áreasdo Direito, como o Direito Privado, por exemplo, sofrem influências de métodos avançados, como o método histórico e a livre interpretação do Direito. Alguns ramos ainda sofrem com as limitações da aplicação tópica da literalidade da norma e da vontade do legislador, notadamente no Direito Público, por força do princípio da legalidade. No caso a seguir, é possível observar a aplicação destes dois métodos clássicos desenvolvidos pela exegese codificadora. Assim, a observância do princípio da legalidade impõe a restrição interpretativa à determinados ramos do Direito pela construção exegética, ainda que a doutrina possa construir interpretações mais ousadas, como é o caso recorrente da Doutrina Garantista dentro do âmbito penal. SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Introdução à Hermenêutica Jurídica - O que é Hermenêutica? O que é Hermenêutica? Uma explicação sobre o termo através de uma viagem à Mitologia Grega. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Neoconstitucionalismo e a nova hermenêutica dos princípios e direitos fundamentais O presente artigo aborda o tema do novo paradigma do Direito Constitucional nas Constituições do pós-guerra e a sua relevante influência na hermenêutica das normas Constitucionais pela inserção dos princípios como normas do sistema jurídico. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! A análise dos Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs/PNUD/ONU) e as aproximações com a perspectiva histórico-hermenêutica Este texto visa explicitar os procedimentos de investigação que estão orientando as reflexões sobre os RDHs. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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