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LEGISLAÇÃO E ÉTICA PROFISSIONAL Mayara Joice Dionizio Debate teórico-filosófico das questões éticas atuais Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer as principais teorias sobre ética. Analisar os principais debates teórico-filosóficos a respeito da ética. Explicar atuais debates teórico-filosóficos sobre as sociedades. Introdução A reflexão sobre a ação humana sempre foi objeto de estudo de diversas áreas da filosofia. Ou seja, ainda que a filosofia trate amplamente das ações e do comportamento humano, a reflexão qualificativa sobre a ação é reservada ao estudo da ética. Assim, refletir sobre as consequências e as intenções de uma ação pode estabelecer normas para uma conduta social mais respeitosa e benéfica para uma sociedade. Neste capítulo, você vai ler sobre as principais matrizes teóricas que referenciaram o estudo da ética ao longo da história. Além disso, vai identificar como se deram os debates teórico-filosóficos no campo da ética e, ainda, atualizar-se a respeito de alguns dos impasses éticos que enfrentamos hoje. Principais teorias sobre ética Ao longo da história do pensamento fi losófi co-ético, pode-se dizer que qua- tro matrizes teóricas tiveram maior destaque acerca da problematização do comportamento humano em sociedade e das suas possibilidades de ação, direitos e deveres (Marcondes, 2007). Tais matrizes foram desenvolvidas em diferentes contextos da história, sempre propondo meios de justifi car — ou, ainda, legitimar — a boa ação das sociedades. Nesse contexto, houve vários teóricos, como Aristóteles, Platão e Santo Agostinho, que trouxeram contribuições ao pensamento da ética. No entanto, foi com a teoria contratualista que se viu uma reflexão detidamente sobre o pacto ético-social. A corrente contratualista surgiu na Idade Moderna (1453–1789) com a problematização sobre o surgimento dos Estados. Ainda que o escopo central fosse a reflexão política sobre o poder, a reflexão ética se tornou também central, dado que buscar compreender os fenômenos políticos é buscar compreender as relações que possibilitam a ação política. Tal corrente reflexiva contou com as teorias de diversos filósofos, como John Locke (1632–1704) e Francis Bacon (1561–1626). Entretanto, os teóricos que contribuíram fundamentalmente para a disseminação do pensamento sobre o contratualismo foram Thomas Hobbes (1588–1679) e Jean-Jacques Rousseau (1712–1778). Apesar de divergências teóricas, ambos tinham o mesmo objeto de reflexão: o pacto social que possibilita a formação de um Estado (Marcondes, 2007). Para Hobbes (2003), em relação ao comportamento humano, o homem é por natureza um ser instintivo que visa ao próprio bem; assim, o agir bem em relação ao outro só se dá mediante interesses. Ou seja, para Hobbes (2003), os indivíduos só se submetem à formação de um Estado desde que suas necessidades sejam atendidas, portanto, trata-se de um pacto. Já para Rousseau (2006), o humano é originalmente bom e busca viver em harmonia com os demais e a natureza, entretanto, quando ele percebe que o espaço em que vive pode ser chamado de “seu”, surgem a propriedade privada e a sociedade civil. Assim, o pacto social, para Rousseau (2006), se dá pela necessidade de um Estado que regule a sociedade e as apropriações privadas dos indivíduos; portanto, cabe ao Estado promover a igualdade e a liberdade. Dessa forma, compreende-se que o pensamento político contratualista tem como fundamento o comportamento humano em relação aos demais indi- víduos, ou seja, em sociedade. Outra corrente que fundamenta referencialmente o pensamento ético é a baseada na teoria do filósofo alemão Immanuel Kant (1724–1804). O movi- mento chamado de iluminista, que faz alusão às luzes iluminando o pensa- mento, marcou uma nova forma de pensar a realidade e o humano durante os séculos XVII e XVIII, em oposição ao obscurantismo da Idade Média. Nesse contexto, a teoria de Kant (2008), para pensar a ética, responsabiliza o humano pelo dever agir ético. Ou seja, se na teoria contratualista a atitude humana é Debate teórico-filosófico das questões éticas atuais2 gerenciada pelo Estado, na teoria kantiana, o indivíduo, dotado de capacidade intelectual e fazendo uso de sua razão, sabe os seus deveres. Assim, a atitude correta é aquela que obedece à máxima de que devemos agir de tal maneira que gostaríamos que agissem conosco (KANT, 2008). Nesse sentido, não haveria como o indivíduo emancipado e racional praticar a má ação. Em contrapartida à kantiana, surge a doutrina ética denominada utilita- rista, proposta pelos filósofos Jeremy Bentham (1748–1832) e Stuart Mill (1806–1873). Tal doutrina é pensada a partir das consequências que um ato pode acarretar; entretanto, ela defende que a ação boa é aquela que traz felicidade. Contudo, há diferenças entre as teorias de Bentham e Mill. O utilitarismo de Mill (2006), ou o utilitarismo eudaimonista, baseado na ética hedonista — doutrina grega baseada na busca do prazer como fim de toda ação —, tinha como base três princípios: 1. elucidar a importância das virtudes para se alcançar a felicidade, não apenas o prazer; 2. aliar a teoria utilitarista à concepção de justiça e direitos humanos; 3. buscar hierarquizar os prazeres e as suas consequências. Assim, Mill (2006) busca distinguir os prazeres, característicos do ego, das virtudes, que são próprias à racionalidade humana. Portanto, segundo Mill (2006), a ação deve ser avaliada a partir dos seus resultados: a ação boa é a ação que traz felicidade — a despeito da ética kantiana, que problematiza a intenção da ação como ética ou não. Para Bentham (1974), o ser humano está subjugado naturalmente pela dor e pelo prazer; assim, busca sempre o prazer e evita a dor. Dessa forma, cabe ao legislador sempre visar, em suas ações, promover felicidade ao maior número de pessoas possível, devendo o Poder Legislativo aperfeiçoar as leis segundo a filosofia da utilidade. A teoria ética mais atual é a relativista (IANNI, 1992). Tal concepção se fundamenta na arbitrariedade cultural que existe em julgar algo como correto ou não. Ou seja, essa corrente reflete as aberturas e consistências culturais diante de determinadas ações; assim, algo que é considerado errado para uma sociedade pode ser considerado correto para outra. Dessa forma, o relativismo ético visa adequar normas e códigos aos grupos sociais que estão em questão (IANNI, 1992). Porém, não se trata simplesmente de um relativismo absoluto; essa doutrina ética tem como base os princípios do conhecimento científico, ou seja, não há justificativa para a aceitação de uma ação que seja prejudicial a um determinado grupo social tendo como base uma crença ou um preconceito individual. O surgimento dessa corrente se 3Debate teórico-filosófico das questões éticas atuais deu justamente como uma crítica à regra universal jurídica e ética (IANNI, 1992). Ou seja, por vezes uma situação é julgada sem respeito à cultura de um grupo social; assim, tal ação é justificada em um preconceito cultural de quem está avaliando ou julgando determinada situação. Enfim, pode-se compreender o desenvolvimento ético acerca de diversos contextos histórico-sociais, tendo sempre como objeto a ação humana. Você sabia que o filósofo Thomas Hobbes foi também matemático? Sim, tanto que as suas teorias apresentam uma forma lógica e formal de pensar a realidade, ainda que sobre um assunto tão complexo como a política. Os grandes debates teórico-filosóficos a respeito da ética Apesar de haver muitas questões que permeiam a refl exão ética ao longo da história, algumas se mostram atemporais (MARCONDES, 2007). Por exemplo, problemas como o limite entre a moral e a ética, entre o prazer individual e o bem comum, ou ainda se a ação ética deve ser submetida a um agente regulador ou é um dever individual. Tais problemáticas se encontram atuais, ou melhor, permanentes nahistória da humanidade. A teoria de Aristóteles (1987), por exemplo, defende que o humano é um animal político, cuja exis- tência é vinculada à de outros humanos. Dessa forma, a refl exão sobre a ética torna-se incontornável, seja em relação a todos ou a si. No entanto, apesar da atemporalidade de certas questões, há momentos na história em que alguns dilemas se aprofundam. Foi assim em situações como a escravidão, o racismo cultural, sexual e de raças, as guerras e os holocaustos (MARCONDES, 2007). Na Antiguidade, nas obras de Platão e Aristóteles, por exemplo, as virtudes tinham papel central para o pensamento sobre a ética (Marcondes, 2007). No diálogo intitulado Górgias (PLATÃO, 2010), Platão discorre sobre o mito do anel de Giges para questionar sobre o dever ético. Nesse mito, Giges é um pastor que encontra um anel de ouro no dedo de um cadáver, o que confere a Giges, conforme ele gira o anel no seu próprio dedo (voltando o engaste para o lado de dentro ou de fora da mão), o poder de se mutuar em visível e invisível. Com isso, Platão (2010) ilustra o questionamento ético: age-se corretamente Debate teórico-filosófico das questões éticas atuais4 por medo da punição? De outro modo, Aristóteles também reflete acerca da ética, só que pelo argumento da felicidade. Ou seja, o fim de toda ação é o bem, dado que o homem virtuoso busca a felicidade e ela só é possível pelo bem. Assim, ao ponto que as virtudes desse homem, para Platão (2010), são inatas, para Aristóteles (1984) elas são possíveis de se alcançar pelo hábito. A partir da ressignificação cristã da filosofia grega na Idade Média, o problema voltou-se à questão do livre arbítrio (MARCONDES, 2007). Ou seja, como pensar uma liberdade de ação do ser humano se estamos todos submetidos à onipotência e à onipresença divina? Se Deus tudo prevê, como pode o ser humano ser livre? Questões como essas fundamentaram a reflexão filosófica nas teorias de pensadores como Santo Agostinho (354–430) e São Tomás de Aquino (1225–1274). Entretanto, o argumento de ambos se respaldou no fato de que se o livre arbítrio não existisse, não haveria como o homem ser dotado de vontade e agir como bem deliberar, ou, ainda, não seria necessário o papel da Igreja de interceder na vida de um religioso. Posteriormente, o filósofo inglês David Hume (1711–1776) fundamentou que não se pode esperar que do verbo “dever” conclua-se “é necessário” (MARCONDES, 2007). No mesmo sentido, tem-se a crítica de Friedrich Nietzsche (1844–1900) à concepção filosófica de fazer da ética um estudo científico, ou seja, de buscar estabelecer uma maneira correta de agir universal, dado que as sociedades têm culturas e simbolismos diferentes sobre o que é bom e correto: “[...] o que os filósofos denominavam ‘fundamentação da moral’, exigindo-a de si, era apenas, vista à luz adequada, uma forma erudita da ingênua fé na moral dominante” (NIETZSCHE, apud MARCONDES, 2007, p. 106). Nietzsche, dessa forma, abriu as portas para as reflexões contemporâneas de seu tempo ou, ainda, posteriores (MARCONDES, 2007). A Contemporaneidade é mar- cada, assim, por questionamentos sobre a ética em obras de diversos campos do conhecimento, em especial da sociologia, da psicanálise e da filosofia. Nesse contexto, para Marcondes (2007), três autores — e suas teorias — se destacam: Max Weber (1864–1920), Sigmund Freud (1853–1939) e Michel Foucault (1926–1984). Weber problematiza, enquanto sociólogo, as consequ- ências das ações humanas relacionadas às situações práticas e econômicas; Freud apresenta a agência do inconsciente nas ações humanas, provando que nem toda ação se dá por meio da racionalidade; e Foucault demonstra em sua análise histórica da filosofia como a ação é atravessada por relações de poder que nem sempre são de controle do sujeito que age (FOUCALT, 2008). Nesse contexto, ou, ainda, na concepção histórica da filosofia, é possível compreender o panorama ético acerca da responsabilidade e das consequên- 5Debate teórico-filosófico das questões éticas atuais cias da ação humana. Assim, a questão da ética se mostra transversal, pois se relaciona à intenção da ação, ao momento da ação, às consequências do agir e, ainda, à relação entre a interioridade e a exterioridade que levam o agente à concretude do ato. Os atuais debates teórico-filosóficos sobre as sociedades Não se pode dizer, na atualidade, que o estudo da ética seja estritamente per- tencente à fi losofi a (MARCONDES, 2007). Desde o fi m do séc. XIX o estudo da ação humana vem sendo realizado por diversas áreas do conhecimento, o que marca defi nitivamente a refl exão sobre o comportamento humano na Contemporaneidade. Neste contexto, surgem diferentes formas de pensar a ética, inclusive em relação a situações de exceção ou nada ordinárias. Não há como trazer, por exemplo, problemas próprios da Antiguidade ou da Idade Média, que infl uenciavam o modo como o ser humano pensava o mundo, para a atualidade. Do mesmo modo, não há como estabelecermos uma discussão ética sobre células-tronco, por exemplo, a partir do modo de pensar da Idade Média. Assim, a história da ética se atualiza e se compreende dada a comple- xidade de seu contexto temporal. Atualmente, a reflexão ética se debruça sobre uma amplitude de questões que vão da biologia e da medicina até a matriz mais tradicional: a política. Nesse contexto, as inovações tecnológicas trazem outras possibilidades de resolução de certas problemáticas, assim como outros impasses. Um dos grandes temas em questão desde os anos 1990 são as possibilidades científicas de resolução de problemas que antes eram detidamente discutidos com base em argumentos religiosos, tidos como possibilidades divinas, por exemplo: a clonagem, a inseminação artificial e a gestação de filhos alheios (barriga de aluguel). O surgimento da bioética se dá justamente pela ne- cessidade de uma reflexão que seja, até o ponto possível, neutra (NUNES; NUNES, 2004). Ou seja, questões que anteriormente eram amparadas em crenças religiosas, políticas ou mesmo no sujeito, passam a ser desmitificadas como uma intersecção de vários fatores que levam o sujeito a uma gama de escolhas — e, quando se trata de argumentos que dizem respeito à vida, deve haver uma abordagem neutra do médico ou cientista. Dessa forma, pensar problemas como eutanásia ou transfusão sanguínea requer uma intervenção respeitosa de um profissional neutro (NUNES; NUNES, 2004). Debate teórico-filosófico das questões éticas atuais6 Outro ponto bastante problematizável da Contemporaneidade se dá em torno da política (MARCONDES, 2007). Apesar de esta ser tradicional, ou seja, velha conhecida, os fenômenos atuais trazem impasses políticos que exigem um exercício ético renovável. Ou seja, por mais que certas situações componham o cenário político ciclicamente, tais como a luta pelo poder, guerras e massacres, os modos como esses acontecimentos se constituem hoje são o que se mostra singular. Atualmente, há lutas que eram inexistentes em outros momentos históricos, a exemplo da austeridade imperialista, que muitas vezes trava uma guerra revestida de causa social, quando na realidade é motivo para extração de petróleo ou outras formas de exploração. No contexto do profissional de educação física (COLOMBO; LOPES; PRADO, 2010), o desafio contemporâneo se mostra com várias facetas ou problemáticas. A começar pelo estilo de vida adotado na atualidade. Ao mesmo tempo que se pode ver um aumento no número de pessoas preocupadas com a ingestão compulsiva de carnes, de enlatados e de embutidos, entre outros alimentos que, consumidos em excesso, prejudicam os organismos, vê-se também o aumento do consumo de fast food. Nesse sentido, outros fatores ajudam e levam ao sedentarismo, como a facilidade trazida pela digitalização da vida. Muitos indivíduos não veem necessidade alguma de se movimentar, nem mesmo para consumir algum alimento, pois basta acessar aplicativos de comida. Assim,juntamente à crise do sujeito tecnológico contemporâneo, veem-se também modos de vidas extremamente sedentários e desequilibrados. Outro embate ético que os profissionais de educação física têm que enfren- tar, na atualidade, são as problematizações em torno das soluções avançadas dadas pela junção de medicina, tecnologia e farmacologia, entre outras áreas. Muitas vezes, tal profissional se vê em um embate ético até mesmo no ambiente familiar: pessoas que se encontram em situações complicadas de saúde e às vezes precisam de atendimento (domiciliar ou não). Nesse contexto, a complexidade das questões éticas que se apresentam na Contemporaneidade traz impasses totalmente novos, uma vez que, por mais que se trate de problemas de ordem política e científica, entre outros, a configuração desses impasses se mostra nova (MARCONDES, 2007). Assim, vê-se que a ética é um estudo mutável ao longo da história. Mas se a ética se altera é porque os modos de vida se alteram — trata-se, dessa forma, de uma correspondência e de um caminhar juntos. Os desafios que várias áreas do conhecimento — ou mesmo as instituições — produzem necessitam desse importante estudo para se desenvolverem. Ou seja, sem o escopo que o estudo da ética fornece a todas as áreas do conhecimento, as sociedades não se desenvolveriam. Portanto, o estudo da filosofia, que concentra uma mul- 7Debate teórico-filosófico das questões éticas atuais tiplicidade de reflexões, está na base de todas as outras áreas do saber, sejam elas de cunho prático ou não. Assim, toda e qualquer atuação profissional só evolui a partir do exercício reflexivo e diverso — o que prova que a ética se faz necessária para toda e qualquer sociedade e para toda e qualquer conduta. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensa- dores; v. 1). BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. COLOMBO, P.; LOPES, P.; PRADO, S. Fatores de risco associados à obesidade e sobrepeso em crianças em idade escolar. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 63, n. 1, p. 73-78, jan./fev. 2010. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. HOBBES, T. Leviatã. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. IANNI, O. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. KANT, I. Crítica da razão prática. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. MARCONDES, D. Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 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