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Capítulo 26: O fluxo de renda na economia do trabalho assalariado ● O fato de maior relevância ocorrido na economia brasileira do último quartel do século xix foi, sem lugar a dúvida, o aumento da importância relativa do setor assalariado ● Os gastos de consumo - compra de alimentos, roupas, serviços, etc. - vêm a constituir a renda dos pequenos produtores, comerciantes, etc. Estes últimos também transformam grande parte de sua própria renda em gastos de consumo. Destarte, a soma de todos esses gastos terá necessariamente de exceder de muito a renda monetária criada pela atividade exportadora. ● A produção de parte destes últimos, por seu lado, pode ser expandida com relativa facilidade, dada a existência de mão-de-obra e terras subutilizadas, particularmente em certas regiões em que predomina a atividade de subsistência. Desta forma o aumento do impulso externo - atuando sobre um setor da economia organizado à base de trabalho assalariado - determina melhor utilização de fatores já existentes no país ● A massa de salários pagos no setor exportador vem a ser, por conseguinte, o núcleo de uma economia de mercado interno ● O impulso externo de crescimento se apresenta inicialmente, via de regra, sob a forma de elevação nos preços dos produtos exportados, a qual se transforma em maiores lucros. Os empresários tratam, como é natural, de reinverter esses lucros expandindo as plantações. _ Dada a relativa elasticidade da oferta de mão-de-obra e a abundância de terras, essa expansão pode seguir adiante sem encontrar obstáculo por parte dos salários ou da renda da terra ● O setor cafeeiro pôde, na verdade, manter seu salário real praticamente estável durante a longa etapa de sua expansão. Bastou que esse salário fosse, em termos absolutos, mais elevado do que aqueles pagos nos demais setores da economia, e que a produção se expandisse, para que a força de trabalho se deslocasse. Portanto, teve importância fundamental, no desenvolvimento do novo sistema econômico baseado no trabalho assalariado, a existência da massa de mão-de-obra relativamente amorfa que se fora formando no país nos séculos anteriores Capítulo 27: A tendência ao desequilíbrio externo ● O funcionamento do novo sistema econômico, baseado no trabalho assalariado, apresentava uma série de problemas que, na antiga economia exportadora-escravista, apenas se haviam esboçado. Um desses problemas - aliás comum a outras economias de características similares - consistiria na impossibilidade de adaptar-se às regras do padrão-ouro, base de toda a economia internacional no período que aqui nos ocupa. ● O problema que se apresentava à economia brasileira era, em essência, o seguinte: a que preço as regras do padrão-ouro poderiam aplicar-se a um sistema especializado na exportação de produtos primários e com um elevado coeficiente de importação? ● Neste último caso, um brusco desequilíbrio na balança de pagamentos exigiria uma redução de grandes proporções no meio circulante, provocando uma verdadeira traumatização do sistema. ● Numa economia do tipo da brasileira do século XK, o coeficiente de importações era particularmente elevado, se se tem em conta apenas o setor monetário, ao qual se limitavam praticamente as transações externas. Por outro lado, os desequilíbrios na balança de pagamentos eram relativamente muito mais amplos, pois refletiam as bruscas quedas de preços das matérias-primas no mercado mundial. Por último, caberia ter em conta as inter-relações entre o comércio exterior e as finanças públicas, pois o imposto das importações era a principal fonte de renda do governo central. ● Sendo a procura monetária igual às exportações, é evidente que toda ela poderia transformar-se em importações sem que por essa razão surgisse qualquer desequilíbrio. É quando a procura monetária tende a crescer mais que as exportações que começa a surgir a possibilidade de desequilíbrio. Esse desajustamento está intimamente ligado ao regime de trabalho assalariado, como é fácil perceber. ○ Ao crescer a renda criada pelas exportações, cresce a massa total de pagamentos a fatores, realizados dentro da economia. Essa renda, conforme vimos, tende a multiplicar-se, primeiramente em termos monetários e finalmente em termos reais, dada a existência de fatores subocupados. O aumento da renda se realiza, portanto, em duas etapas: em primeiro lugar graças ao crescimento das exportações e, em segundo, pelo efeito multiplicador interno. Parte desse aumento da renda terá de ser satisfeito com importações, conforme uma relação relativamente estável que existe entre o aumento da renda e o das importações. ○ O mais importante a considerar, entretanto, é o seguinte: no momento em que deflagrava uma crise nos centros industriais, os preços dos produtos primários caíram bruscamente, reduzindo-se de imediato a entrada de divisas no país de economia dependente. Enquanto isso, o efeito dos aumentos anteriores do valor e do volume das exportações continuava a propagar-se lentamente. Existia portanto uma etapa intermédia em que á procura de importações continuava crescendo, se bem que a oferta de divisas já se houvesse reduzido drasticamente. Nessa etapa é que caberia mobilizar as reservas metálicas ● Nas economias dependentes a crise se apresenta de forma totalmente distinta, tendo início com uma queda no valor das exportações, em razão de uma redução, seja no valor unitário dos produtos exportados, seja nesse valor e no volume total das exportações. É necessário que passe algum tempo para que a contração do valor das exportações exerça seu pleno efeito sobre a procura de importações, sendo portanto de esperar que se crie um desequilíbrio inicial na balança de pagamentos. Por outro lado, a queda dos preços das mercadorias importadas (produtos manufaturados) se faz mais lentamente e com menor intensidade que a dos produtos primários exportados, isto é, tem início uma piora na relação de preços do intercâmbio. A esses dois fatores vêm acumular-se os efeitos da rigidez do serviço dos capitais estrangeiros e a redução na entrada desses capitais Capítulo 28: A defesa do nível de emprego e a concentração de renda ● Transformando-se qualquer aumento de produtividade em lucros, é evidente que seria sempre mais interessante produzir a maior quantidade possível por unidade de capital, e não pagar o mínimo possível de salários por unidade de produto. A conseqüência prática dessa situação era que o empresário estava sempre interessado em aplicar seu capital novo na expansão das plantações, não se formando nenhum incentivo à melhora dos métodos dê cultivo ● Pelas razões indicadas e outras, o setor exportador não apresentou, graças à sua expansão, nenhuma tendência a aumentar sua produtividade física. Os frutos do aumento de produtividade, que retinha o empresário e a que antes nos referimos, refletiam principalmente elevações ocasionais de preços. ● A redução do valor externo da moeda significava, demais, um prêmio a todos os que vendiam divisas estrangeiras, isto é, aos exportadores ○ Vejamos um exemplo. Suponhamos que, na situação imediatamente anterior à crise, o exportador de café estivesse vendendo a saca a 25 dólares e transformando esses dólares em 200 cruzeiros, isto é, ao câmbio de 8 cruzeiros por dólar. Desencadeada a crise, ocorreria uma redução, digamos, de 40 por cento do preço de venda da saca de café, a qual passava a ser cotada a 15 dólares. Se a economia funcionasse num regime de estabilidade cambial tal perda de 10 dólares se traduziria, pelas razões já indicadas, em uma redução equivalente dos lucros do empresário. Entretanto, como o reajustamento vinha pela taxa cambial, as conseqüências eram outras. Admitamos que, ao deflagrar a crise, o valor do dólar subisse de 8 para 12 cruzeiros. Os 15 dólares a que o nosso empresário estava vendendo agora a saca do café já não valiam 120 cruzeiros mas sim 180. Dessa forma, a perda do empresário,que em moeda estrangeira havia sido de 40 por cento, em moeda nacional passava a ser de 10 por cento. ○ O processo de correção do desequilíbrio externo significava, em última instância, uma transferência de renda daqueles que pagavam as importações para aqueles que vendiam as exportações ● Na etapa de declínio cíclico, havia uma forte baixa na produtividade econômica do setor exportador. Pelas mesmas razões por que na alta cíclica os frutos desse aumento de produtividade eram retidos pela classe empresarial, na depressão os prejuízos da baixa de preços tenderiam a concentrar-se nos lucros dos empresários do setor exportador. Não obstante, o mecanismo pelo qual a economia corrigia o desequilíbrio externo - o reajustamento da taxa cambial - possibilitava a transferência do prejuízo para a grande massa consumidora ● Se à baixa dos preços de exportação se transformasse, como seria de esperar pela lógica do sistema, em redução dos lucros dos empresários, é evidente que, conforme fosse o grau dessas perdas, muitos deles teriam que interromper a produção de café, ou as compras desse produto aos pequenos produtores locais. Não sendo praticável uma redução do custo a curto prazo através de uma compressão dos salários, cujo nível não se elevava na alta cíclica, a única solução que ficaria ao empresário, ou àqueles financeiramente menos resistentes, seria reduzir a produção. Dessa forma, tenderia a paralisar-se uma grande parte da atividade econômica. Dada a natureza dessa atividade, a paralisação acarretaria a maior de todas as perdas. ○ Por sua própria natureza, a plantação de café significa uma inversão a longo prazo com grandes imobilizações de capital. A terra ocupada pelo café não pode ser utilizada senão de forma subsidiária para outras culturas. Não existe, como no caso dos cereais, a possibilidade de reduzir, no período produtivo seguinte, a área semeada. O abandono da plantação de café significaria para o empresário um grande prejuízo, dado o montante do capital imobilizado. Por outro lado, como não existia possibilidade alternativa de utilização da mão de-obra, a perda total de renda seria de grandes proporções ● Explica-se, portanto, que a economia procurasse por todos os meios manter o seu nível de emprego durante os períodos de depressão. Qualquer que fosse a redução no preço internacional do café, sempre era vantajoso, do ponto de vista do conjunto da coletividade, manter o nível das exportações. Defendia-se, assim, o nível de emprego dentro do país e limitavam-se os efeitos secundários da crise. Sem embargo, para que esse objetivo fosse alcançado era necessário que o impacto da crise não se concentrasse nos lucros dos empresários, pois do contrário parte destes últimos seria forçada a paralisar suas atividades por impossibilidade financeira de enfrentar maiores reduções em suas receitas. Capítulo 29: A descentralização republicana e a formação de novos grupos de pressão ● O efeito regressivo na distribuição da renda provocado pela depreciação cambial era, demais, agravado pelo funcionamento das finanças públicas. O imposto às importações, base da receita do governo central, era cobrado a uma taxa fixa de câmbio. Ao depreciar-se a moeda, reduzia-se a importância ad valorem-do imposto, acarretando dois efeitos de caráter regressivo. Por um lado, a redução real do gravame era maior para os produtos que pagavam maior imposto, isto é, para os artigos cujo consumo se limitava às classes de altas rendas. Em segundo lugar, a redução relativa das receitas públicas obrigava o governo a emitir para financiar o déficit, e as emissões operam como um imposto altamente regressivo, pois incidem particularmente sobre as classes assalariadas urbanas ● A redução do valor em ouro da receita governamental era tanto mais grave quanto o governo tinha importantes compromissos a saldar em ouro. Ao depreciar-se o câmbio, o governo era obrigado a dedicar uma parte muito maior de sua receita em moeda nacional ao serviço da dívida externa. E, em conseqüência, para manter os serviços públicos mais indispensáveis, via-se obrigado a emitir moeda-papel. ● Dessa forma, estabelecia-se uma íntima conexão entre os empréstimos externos, os déficits orçamentários, as emissões de papel-moeda - em boa parte efetuadas para financiar os déficits - e os desequilíbrios da conta corrente da balança de pagamentos, através das flutuações da taxa de câmbio. ● A forma de operar do sistema fiscal merece particular atenção, pois, se por um lado contribuía para reduzir o impacto das flutuações externas; por outro lado agravava o processo de transferência regressiva da renda nas etapas de depressão ● Por outro lado, a cobertura dos déficits com emissões de papel-moeda criava uma pressão inflacionária, cujos efeitos imediatos se sentiam mais fortemente nas zonas urbanas. Dessa forma, a depressão externa (redução dos preços das exportações) transformava se internamente em um processo inflacionário. ● A incapacidade do governo imperial para dotar o país de um sistema monetário adequado, bem como sua inaptidão para encaminhar com firmeza e positivamente a solução do problema da mão-de-obra refletem em boa medida divergências crescentes de interesses entre distintas regiões do país. ○ Nas etapas anteriores, mesmo que fossem reduzidas as relações econômicas entre essas regiões, nenhuma divergência de interesses fundamentais as separava. No norte e no sul as formas de organização social eram as mesmas, as classes dirigentes falavam a mesma linguagem e estavam unidas em questões fundamentais, como fora o caso da luta pela manutenção do tráfico de escravos. Nos últimos decênios do século as divergências começam a aprofundar-se. A organização social do sul transformou-se rapidamente, sob a influência do trabalho assalariado nas plantações de café e nos centros urbanos, e da pequena propriedade agrícola na região de colonização das províncias meridionais. ○ O governo imperial, entretanto, em cuja política e administração pesam homens ligados aos velhos interesses escravistas, apresentava escassa sensibilidade com respeito a esses novos problemas ● Se, por um lado, a descentralização republicana deu maior flexibilidade político-administrativa ao governo no campo econômico, em benefício dos grandes interesses agrícola-exportadores, por outro lado a ascensão política de novos grupos sociais facilitada pelo regime republicano, cujas rendas não derivavam da propriedade, veio reduzir substancialmente o controle que antes exerciam aqueles grupos agrícola-exportadores sobre o governo central. Tem início assim um período de tensões entre os dois níveis de governo - estadual e federal - que se prolongará pelos primeiros decênios do século xx.