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1 ! O PODER DA AIDEIA · Gênese e História do Orçamento Pat·ticipativo de Porto Alegre Luciano Fedozzi © do autor l ª edição 2000 Direitos reservados desta edição: Tomo Editorial Ltda. Capa: Roberto Silva Projeto Gráfico: João Carneiro Editoração Eletrônica: Paulo Furasté Campos Revisão: Moira Filmes: Pallotti Filmes da capa: Fotolito Digital Fotografias: Acervo do CAMP (Centro de Assessoria Multiprofissional) e acervo do autor F294p Fedozzi, Luciano O Poder da Aldeia : gênese e história do Orçamento Participativo de Porto Alegre/ Luciano Fedozzi - Porto Alegre : Tomo Editorial, 2000. 240p. l. Governo Municipal : Participação Popular : Orçamento Participativo : Porto Alegre : Rio Grande do Sul. 2. Administração Municipal : Administração Popular : Porto Alegre : Rio Grande do Sul. 1. Título. CDU 352.08164 Catalogação na publicação: Bibliotecária Maria Lizete Gomes Mendes CRB 1 0/950 Tomo Editorial Uda. Fone/fax: (51) 227.1021 E-mail: tomo@portoweb.com.br Rua Demétrio Ribeiro, 525 CEP 90010-31 O Porto Alegre/RS ou Caixa Postal: 1029 Agência Central 90001-970 Porto Alegre/RS O PODER DA ALDEIA Gênese e História do Orçamento Participativo de Porto Alegre Luciano Fedo7zi PUCRS/BCE \Ili\\\ 111\I\\\II\ \li\ 0.675.282-8 DittW Editorial 36'1.. 08'1651 fWY-p@) PRESERVE SUA FONTE DE CONHECIMENTO Hl .. f!::' «À h ,}[ft;;/ 'rt:J' À memória de Nagib Garcia Hassen :,:ti\:\\ .: : 7 ' '' i' li•,,·~ 1' l 't'j't,, ' , ,; '.},'e]), Numa pólis bem constituída, todos correm para as assembléias; sob um mau Governo, ninguém quer dar um passo para ir até elas, pois ninguém se interessa pelo que nelas acontece, prevendo-se que a vontade geral 1uio dominará, e porque, enfim, os cuidados domésticos tudo absorvem ... Quando alguém disser dos negócios do Estado: Que me importa?- pode-se estar certo de que o Estado está perdido. ]-] Rousseau. Do Contrato Social, Capítulo XV. ~~'~ ~!. 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 SUMÁRIO Prefácio: Reforma ou Revoluçüo? O Orçamento Participativo e a Revolução Democrática do Estado - Emir Sader ............................... 9 Apt·esentação .................................................................................. 13 I Participação populat· no governo municipal de Porto Alegre ... 1 7 · O contexto sócio-político que antecedeu a vitória da Frente Popular .................................................................................. 17 1.1.1 A questão da habitaçfto e do acesso à cidade ...................... 19 O surgimento de novos atores populares na esfera pública local ...................................................................................... 28 Novas formas de açfto coletiva e de organização elos movimentos comunitários de Porto Alegre ...................................... 34 O Projeto dos Conselhos Populares na gestão do Prefeito Collares (PDT) .................................................................... 49 A Administração Popular e a Lei elos Conselhos Populares ............. 50 II 1989 - Iniciando a experiência do OP: a prática como critério da verdade? ....................................................................... 59 Da expectativa à crise ...................................................................... 59 A crítica dos atores populares .......................................................... 61 Os limites ela cultura reivindicativa .................................................. 64 Os limites ela Administração Popular ................................................ 67 Novos dilemas e cultura política velha ............................................ 70 O descrédito na participação popular .............................................. 7 6 A crise de governabilidade ............................................................... 7 8 m 1990 - Retomando a governabilidadc: a superação da crise financeira, as mudanças na estrutura administrativa e na . t- l l . t . . · 81 ges ao e o p ane,amen o parttc1pattvo ...................................... . Reforma tributária e recuperação das finanças municipais .............. 81 As mudanças no planejamento e na estratégia governamental ....... 84 3.2.1 Os impasses no planejamento governamental ...................... 84 3.2.2 A disputa sobre o caráter político da Administração Popular ........................................................... 90 A Hora das Definições Estratégicas .................................................. 92 A Reforma Administrativa e a proposta de Participação Popular .... 96 Alguns conceitos da política de participaçfto da · Administração Popular .............. : ....................................................... 98 As mudanças na estrutura do planejamento ....................... ; ........... 100 IV A nova metodologia de planejamento participativo ............. 103 4.1 A construção do novo modelo ele gestão cio planejamento ........... 103 4.2 A discussão do orçamento de 1991 com as comunidades ............. 104 4.3 A criação ela metodologia para a escolha elas prioridades nos investimentos ........................................................................... 107 4.4 Orçamento 1992: a retomada ela participação popular e a consolidação do novo modelo de gestão dos recursos públicos ............................................................................ 114 4.5 A regionalização como espaço social da participação ................... 118 4.6 A sistematização da política de democratização do Estado e de participação popular .............................................................. 119 4.7 Assembléias Regionais: consolidação da dinâmica de participação e representação popular ............................................ 122 4.8 A evolução na metodologia para a escolha dos investimentos · ·, · , 124 pnont,lnos ........................................ · · · ... · · · · .. · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 4.9 Os novos critérios para distribuição dos investimentos no Orçamento de 1992 ........................................................................ 12 5 4.10 O Plano de Investimentos/92 ......................................................... 128 4.11 A relação entre o Orçamento Participativo e a Câmara de Vereadores .............. : ....................................................................... 131 V A consolidação da dinâmica e das instâncias de participação popular .................................................................. 137 5 .1 A consolidação do Conselho Municipal do Plano de Governo e Orçamento .................................................................... 138 5.2 A regulamentação legal do Orçamento Participativo ..................... 142 5.3 A discussão do orçamento para 1993 ............................................. 144 5 .4 A dinâmica de funcionamento das Assembléias Regionais ............ 14 5 5.5 A dinâmica do Conselho Municipal do Plano de Governo e Orçamento ...................................................................................... 151 5.6 A consolidação da metodologia para a distribuição dos recursos orçamentários ................................................................... 15 5 5.7 Síntese do funcionamento e da metodologia do orçamento participativo .................................................................................... 15 7 5.8 A continuidade do projeto participativo: aprovação e reeleição da Administração Popular ............................................... 159 Comentários e conclusões ......................................................... 167 Notas .............................................................................................. 191 Referências bibliográficas .......................................................... 219 Documentação............................................................................. 228 lista de siglas ................................................................................ 230 Anexos ........................................................................................... 231 Prefácio REFORMA OU REVOLUÇÃO? O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E A REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO EmirSader * Não é equivocado centrar a análise de uma formação so- cial a partir do Estado. E~te condensa em si as co.ntradições soci- ais, expressando sua relaçao de f?rças e a hege;11orna de_ uma delas. No entanto a condição para nao se deter a1, para nao cortar o Estado das ~·elações sociais que expressa, é abordá-lo como Esta- do de uma sociedade concreta, que sintetiza politicamente suas relações econômicas, sociais e ideológicas. Desde que o "Manifesto Comunista" colocou os funda- mentos da natureza de classe do Estado nas sociedades capitalis- tas, aqueles que lutam pela so.cialização elo pocl~r _e da política se viram diante de duas alternativas - a da clestru1çao do a parelho de Estado e a construção de outra forma para expressar relações econômicas e sociais sem dominação, nem exploração - como foram os casos clássicos da Rússia, da China, de Cuba - ou da sua reforma radical. A primeira alternativa supõe uma via insurrecional na luta pelo poder e, portanto, a capacidade de acumulação de força não apenas social, política e ideológica, mas também militar. A clinftmica particular desta faz com que ela se transforme numa espécie de variável independente, com mecanismos próprios de acumulação, em que os aspectos técnico-materiais têm um papel decisivo. Na atualidade, por exemplo, significa que o poderio mili- tar norte-americano - decisivo para bloquear a possibilidade de triunfos insurrecionais em El Salvador e na Guatemala, com a pre- tensão de exercer o mesmo papel na Colômbia - torna-se um obs- táculo determinante, na medida em que o fim da bipolaridade mundial, com a desaparição da URSS, deixa o campo praticamen- te livre para a atuação sem fronteiras da força militar dos EUA. 1 O Lucia110 Fedozzi Dessa forma, erige-se um obstáculo técnico-militar para ,~ :ia ~n- surrecional, fazendo da ação violenta um instrumento pnvileg1a- do das forças conservadoras, que não poupam vítimas civis no uso prioritário que passaram a reservar à aviação, como as guer- ras imperiais dos anos noventa o demonstram. Ainda que se instalasse um Estado revolucionário pela via insurrecional seu caráter democrático adequado às novas rela-, ' ções econômicas e sociais nunca foi assegurado - como demons- , ' tram os casos já citados. Dessa forma, resta o tema da transforma- ção revolucionária do Estado pela ação política de massas, como um desafio para os que lutam por uma sociedade sem exploração e sem dominação de classes. Poucos passos positivos foram acumulados pelas forças anticapitalistas ao longo de suas lutas. A opção exclusiva entre a via insurrecional ou a de um reformismo assimilado e diluído den- tro do Estado capitalista - inibiu ao invés de fertilizar - teórica e praticamente - o processo de construção de um poder pós-capi- talista. O exemplo da falta de diálogo e até mesmo de aliança es- tratégica durante o governo de Salvador Allende no Chile forne- ce provas dramáticas da necessidade da superação da alternativa reforma ou revolução, como meio de forjar o espaço - teórico e político - para a construção de um poder democrático de massas. Em meio a graves retrocessos em tudo o que se refere à dimensão pública do Estado, mediante a mercantilização levada a cabo pelas políticas neoliberais durante as duas últimas décadas do século XX, conquistas democráticas importantes foram logra- das em governos municipais e estaduais no Brasil, através das políticas de orçamento participativo. Estas, ao transferir para a ci- dadania organizada um tema central como o do orçamento, per- mitem redespertar o interesse pela política e pelas questões do Estado, ao superar a dicotomia estatal/privado, através da qual o liberalismo pretende desqualificar qualquer forma de regulação social, em favor da regulação pelo mercado. As políticas de orçamento participativo, ao contrário elo que certas posturas podem fazem supor, não são políticas setori- ais ou de racionalização administrativa, mas são o núcleo de uma radical reforma política do Estado, na direção da socialização da política e do poder. De tal forma que nenhum direito social estará efetivamente garantido sem que a cidadania tenha, através do po- der sobre o orçamento - não apenas o gasto, mas sobre a política tributária em geral - poder de decisão sobre esse mecanismo fun- damental de distribuição ou de concentração e de renda - e, com ela, de poder - que é o orçamento público. O Poder da Aldeia 11 Estudos como O Poder da Aldeia: gênese e história do Or- çamento Participativo de Porto Alegre, ele Luciano Fedozzi, avan- çam na direção de aprofundar a compreensão das dimensões re- ais do que já foi conquistado, dos obstáculos e das vias para sua superação. Não é um exagero dizer que este é o tema mais im- portante da reflexão política brasileira, se se deseja elaborar uma plataforma não somente alternativa ao neoliberalismo, mas às for- mas de poder propiciadas por ele e que representam a roupagem do capitalismo no período histórico que estamos vivendo. De tal forma, que podemos dizer que, quem quiser se ca- lar sobre o orçamento participativo, deveria abster-se também de falar de uma democracia real, com alma social, no Brasil de hoje e de amanhã. * Emir Sac.ler é professor de Sociologia e.la USP e e.la UERJ. I Apresentação No início dos anos 90, o Orçamento Participativo de Porto Ale- gre se projetou como uma das experiências bem sucedidas de participa- ção da população nas decisões sobre o destino dos recursos públicos municipais. Ao completar doze anos consecutivos de existência, o mode- lo participativo de Porto Alegre vem servindo de inspiração para a im- plantação de formas semelhantes de gestão dos orçamentos públicos em cerca de noventa cidades brasileiras, de porte grande, médio ou pequeno.1 Fruto desse efeito-denwnstraçlio sobre as possibilidades de funcionamento da democracia participativa, o Orçamento Participativo (doravante OP) vem promovendo um intenso intercfünbio nacional e internacional entre a muni- cipalidade de Porto Alegre e outros governos locais, instituições públicas e privadas, organizações não-governamentais, pesquisadores e intelectuais · do Brasil e de outros países da América Latina, dos Estados Unidos, da Europa e da África. 2 Esse reconhecimento internacional foi selado quando a experiência de Porto Alegre foi selecionada pelas Nações Unidas como uma das quarenta melhores intervenções urbanas merecedoras de apresen- tação, em 1995, na Segunda Conferência Mundial sobre Habitação Humana (Habitat II), realizada em Istambul. A repercussão alcançada pelo OP de Porto Alegre não passou despercebida pelas instituições multilaterais de financiamento, tais como o Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamerica- no de Desenvolvimento (BID), cujo interesse por formas de envolvimento da população no controle dos recursos públicos ficou evidente em recen- tes atividades realizadas por essas instituições em Porto Alegre e nos Esta- dos Unidos.3 Em conseqüência da importància assumida por essa inovação de- mocrática, diante da longa história de autoritarismo do Brasil e da Améri- ca Latina, o OP tem sido objeto de estudos diversos, acadêmicos ou não , que tentam elucidar - a partir ele disciplinas distintas elo conhecimento - as mais diversas facetas dessa prática sócio-política. Em estudo anterior dissertei sobre as contribuições elo novo modelo ele gestão sócio-estataÍ de Porto Alegre para a superação das formas tradicionais de gestão públi- ca que caracterizam nossa formação social e política, autoritária e patri- monialista, e, conseqüentemente, para a emergênciadas condições insti- tucionais necessárias à prática da cidadania nas relações entre o Estado e a sociedade civil (Fedozzi, 1997). O presente estudo, entretanto, não tem l 14 Luciano Fedozzi a intenção ele ser uma obra produzida a partir dos critérios metodológicos próprios às ciências sociais. Trata-se, isso sim, ele uma contribuição para preencher, ainda que ele forma provisória e necessariamente incompleta, uma lacuna na bibliografia existente até boje sobre OP-PoA: como surgiu e como foi construída essa forma ele gestão dos recursos públicos desde os seus primórdios; que tipo ele conflitos, contradições e dificuldades surgi- ram no decorrer ele sua construção? São aspectos que aguçam a curiosidade ele todos interessados em conhecer melhor a história elo OP-PoA. Por isso, no presente livro, o leitor encontrará uma sistematização ele dados e uma reflexão política baseadas na experiência pessoal elo autor - como um elos integrantes ela equipe ele governo que iniciou a construção desse processo e, posteriormente, como pesquisador elo tema - através ela (re)construção histórica ela gênese elo OP até a forma como esse modelo se consolidou na primeira gestão ela Frente Popular em Porto Alegre 0989- 1992), uma coligação entre o Partido elos Trabalhadores e o ex-Partido Co- munista Brasileiro (PCB), que formou a Administração Popular (doravante AP). Nessa (re)construção, para a qual são utilizados dados, relatos, docu- mentos e entrevistas, poder-se-á acompanhar a evolução elo OP e perce- ber que, longe ele um cenário pré-determinado pela vitória elas forças polí- ticas ele esquerda e seu discurso participacionista, a democratização do or- çamento de Porto Alegre é resultante de uma trajetória sócio-político, cuja construção foi sinuosa, inusitada e complexa. A apreensão histórica da dinâmica de desenvolvimento dessa in- venção democrática, no contexto específico que caracterizou a primeira gestão da AP, revela-se melhor, dessa forma, quando são conhecidas as dificuldades, os conflitos e os limites elo processo ele sua construção, no poder Executivo e nas relações estabelecidas entre esse e as comunida- des, e na relação de ambos com o poder Legislativo. Embora a gênese histórica do OP eleva ser localizada, em sua for- ma latente, na cultura política e na prática social elos diversos atores locais (tais como os movimentos associativos das comunidades e os partidos de esquerda atuantes na esfera pública local, principalmente, a partir de mea- dos da década de 70), o leitor poderá perceber que, antes de uma fórmula pronta - simples dedução político-programática do PT (partido hegemôni- co na Frente Popular) ou da plataforma de reivindicações do movimento comunitário da cidade -, o OP é resultante de um complexo conjunto de fatores objetivos e subjetivos que caracterizaram a realidade sócio-política na capital gaúcha no final da década de 1980 e início dos anos 90. A conquista inédita pela esquerda socialista e comunista do go- verno da capital gaúcha, após 220 anos de história da cidade, obrigou tanto os dirigentes da Frente Popular, como os integrantes dos movimentos comunitários, a refazerem seus discursos e reavaliarem suas estratégias e O Poder da Aldeia 15 práticas, diante de urna realidade extremamente complexa e refratária a fórmulas simplificadoras e pré-concebidas. Esse duro aprendizado para ambos os atores, entretanto, não serviu como justificativa para o abando- no de um ideário firmemente sustentado, mesmo nos momentos difíceis de crise de governabilidade e de credibilidade nos dois primeiros anos da AP. Era inarredável a idéia de democratizar essa fração do Estado, tor- nando a Administração Municipal transparente e acessível ao cidadão, como forma de inverter a sua tradicional utilização para fins privados e/ ou particularistas e colocá-la a serviço dos interesses públicos e da pro- moção da justiça distributiva. A própria prática indicou o caminho da de- mocratização do orçamento público - principal instrumento de gestão do Estado moderno - como a melhor forma de efetivar esses objetivos. Resumidamente, cinco fases principais, desenvolvidas em forma de capítulos no livro, constituem a história do OP desde a sua gênese até a sua maturidade em 1992: (a) o surgimento de novos atores populares na esfera pública local no final da década de 70, baseados no associativis- mo comunitário e nas práticas de enfrentamento do Estado para conquis- tar direitos urbanos, e a seguir o desencanto dessas comunidades pelo não atendimento das demandas na gestão do PDT (1986-1989), primeiro governo eleito após o regime ditatorial; (b) o surgimento de um novo ci- clo caracterizado por enormes expectativas seguidas de frustração com o governo da Frente Popular a partir de 1989, pela crise de governabilida- de da AP e conseqüente descrédito dos atores comunitários na própria eficácia da participação popular; (c) a virada do jogo no mandato da AP quando, em 1990, foi superada a crise de governabilidade em decorrên- cia de mudanças profundas na estratégia política e nas esferas financeira, de planejamento e de política comunitária da Administração Municipal; (d) a fase de construção do novo método de planejamento participativo juntamente com a retomada da participação popular na gestão do muni- cípio; (e) o desabrochar da experiência de participação consolidando o modelo do OP que, em sua essência, é praticado até hoje em Porto Ale- gre.4 Cabe destacar ainda que, como se poderá acompanhar no de- correr do texto, embora o OP tenha se tornado o principal meio de efeti- var a e:,fera pública de co-gestào dos recursos públicos, a sua dinâmica de construção deve ser compreendida considerando-se o contexto específi- co da primeira gestão da AP, bem como a história política, social e cultu- ral que precedeu a vitória da Frente Popular nas eleições de 1988. Sem intenção de produzir uma avaliação geral sobre essa primeira gestão, o presente estudo não poderia deixar de abordar os diversos fatores que contribuíram para que o OP se tornasse uma espécie de fio condutor do conjunto das ações da Administração Municipal. Ao mesmo tempo, o trata- 16 Luciano Fedozzi mento de questões atinentes à estratégia geral da AP talvez seja útil para demonstrar que o sucesso e a continuidade dessa experiência, através de sucessivas reeleições da Frente Popular, deva-se, entre outros importan- tes fatores, ao círculo virtuoso formado por uma estratégia política que combinou a inversão de prioridades nos investimentos - os quais passa- ram a ser dirigidos preferencialmente para os bairros e as vilas de baixa renda - com a qualificação dos serviços e da infra-estrutura universalmente estendidos a toda a cidade. Ao completar doze anos consecutivos, o saldo do OP parece ser positivo: são cerca de e.luas mil obras e atividades aprovadas e em grande parte executadas principalmente a partir das necessidades reais aponta- das pelas comunidades historicamente excluídas do desenvolvimento urba- no.s Saneamento básico, regularização fundiária e habitação, pavimentação ele vias, educação, saúde e transporte são os setores prioritários elos inves- timentos públicos que indicam a característica redistributiva e de inclusão social elo sistema criado pelo OP, em meio a uma realidade nacional ele crise e de desmonte elo Estado e elas políticas públicas, que tem levado à crescente exclusão social ele grandes contingentes humanos. Por isso, este livro tem a singela intenção de contribuir para his- toriar a forma pela qual o porto-alegrense vem construindo a sua cidada- nia, talvez, a obra mais importante semeada na árdua luta pela sobrevi- vência das classes populares desde os anos 70, e ora inaugurada através das oportunidades desencadeadas pelo OP a partir ele 1989. I PARTICIPAÇÃO POPULAR NO GOVERNO MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE 1.1 O contexto sócio-político que antecedeu a vitória da Frente Popular O Brasil viveu profundas transformações econômicas, sociaise po- líticas entre as décadas de 1950 e 1980. Nesse período, em que o país dei- xou de ser agrário-exportador para tornar-se predominantemente urbano e industrial, responsável pelo oitavo PIB mundial, a população das cidades foi acrescida de mais de 60 milhões de pessoas, 29 milhões somente durante os anos 80, passando as áreas urbanas a concentrar 2/3 da população brasileira (Davidovich e Fredrich, 1988, p.16). Esse extraordinário processo migratório - um dos maiores do mundo contemporâneo - foi impulsionado pelo mode- lo de niodernizaçào conservadora gestado no período de 1930-50 e intensi- ficado pelo regime ditatorial a partir de 1964.6 Ligada à manutenção da secu- lar estrutura fundiária no campo (herdada do período colonial), a moderniza- çào urbana e industrial promoveu um processo de concentração de riquezas, de renda, de terras urbanas, de acesso seletivo aos equipamentos e serviços públicos, sem precedentes no país, tornando os pólos de desenvolvimento capitalista no Brasil, principalmente as capitais e as regiões metropolitanas, cenários emblemáticos da situação de desigualdade, de segregação urbana, de degradação ambiental e de escalada da violência que caracteriza o apar- theid social em que está mergulhada a sociedade brasileira nesse final de século - uma das nações mais desiguais do mundo, conforme apontam os sucessivos relatórios da ONU.7 Essa situação de crise social se agravou com o esgotamento do modelo autoritário-desenvolvimentista a partir da crise econômica e da re- cessão no início dos anos 80, aprofundando a deterioração das condições de vida da maioria da população brasileira. Empobrecimento em níveis re- cordes, fracasso das políticas públicas de saúde, de educação e de financi- amento para a moradia popular, carência de infra-estrutura urbana e ele serviços, degradação do meio ambiente e aumento da violência avoluma- ram-se na década ele 80. 18 Luciano Fedozzi Além dos conhecidos fatores histórico-estruturais de nossa forma- ção social, autoritária e excludente, também os sucessivos fracassos dos governos de transição e do período pós-transição contribuíram para a situ- ação de cronicidade ela crise brasileira, em que a forma democrática e cons- titucional dos governos que sucederam o regime militar "falhou em apare- cer como instância política com credibilidade mínima para medir os confli- tos mais amplos ela sociedade e os interesses em jogo, como também fra- cassou em organizar eficaz e racionalmente o próprio funcionamento elo aparato ele Estado" (Paoli, 1992; Mello, 1993). A continuidade ele práticas tradicionais, patrimonialistas e clientelistas, de apropriação privada e/ou particularista elo Estado, a oligopolização e monopolização ela economia e a total submissão do país ao capital financeiro internacional, somados ao des- monte das políticas sociais e elas funções públicas promovido pelo neoli- beralismo, 8 det~rminaram um quadro ele fraqueza elo poder público e ele crise social sem precedentes na história brasileira. Como indicam os sinais e os sintomas sociais emanados elas ruas, especialmente nas metrópoles e nas grandes cidades brasileiras, essa crise vem acompanhada ela degrada- ção dos padrões ele sociabilidade cotidiana, verificando-se um crescente processo ele "individualização alienada ou anômica, síndrome ele uma soci- edade fragmentada" (Warren-Scherer, 1993), representada pela perda ele referências a valores que até então expressavam uma cultura aproximati- va das pessoas e pela ausência ele "valores éticos ela coisa pública que impedem a criação ele horizontes coletivos mais duráveis, sociais e políti- cos" (Paoli, 1992). Essa dupla crise nacional, elo Estado e elas formas ele sociabilidade, agravada pelo fenômeno ela globalização e ela reestruturação produtiva em curso no cenário internacional, revela um quadro novo na articulação elas instâncias federativas, em que o fim elo Estado-nação tende a ser complementado pela revigoração elas instâncias locais. Apesar ele o neolocalismo ensejar uma curiosa situação ele conver- gência entre as agendas neoliberal e elas esquerdas em torno da descentra- lização ela política social,9 diversos estudos têm mostrado que as mudanças provocadas pela globalização vêm promovendo processos ele "clesinclustri- ( alização, clesmetropolização e clesassociação profunda entre a reprodução elo capital e a reprodução ele um vasto contingente populacional cuja qua- lificação não o habilita a entrar no novo sistema produtivo, desafiando os paradigmas ele gestão local diante das novas formas ele exclusão social, cujas conseqüências são mais graves elo que aquelas provocadas pelo pro- cesso de 'espoliação urbana" (Ribeiro e Santos Júnior, 1994). Como se sabe, o processo ele espoliação urbana refere-se ao "somatório ele extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade elos serviços ele consumo coletivo que - conjuntamente com o acesso ~1 terra e à habitação - se apre- sentam como socialmente necessários a subsistência elas classes trabalhado- ras" (Kowarick, 1979, p.59). A noção de "espoliação urbana decorre da O Poder da Aldeia 19 constatação de que a industrialização e a urbanização periféricas fazem nascer amplas necessidades coletivas de reprodução, mas a intervenção do Estado é absolutamente limitada para atendê-las. Os fundos públicos são prioritari- amente destinados ao financiamento imediato da acumulação do capital e, quando se dirigem ao consumo coletivo, privilegiam as camadas de maior renda" (Ribeiro, 1994, p.273-4 ln: Ribeiro e Santos Júnior, 1994). Ocorre que as transformações provocadas pela globalização e pela reestruturação produtiva - com a precarização das relações de trabalho, a terceirização e a proliferação da economia informal- acompanhadas do desmantelamento elo setor público nacional, acentuaram o processo ele fragmentação urbana no Brasil a partir dos anos 80, indicando que uma parcela considerável da população estaria passando de uma situação estrutural ele exploração - con- forme descrita pela noção ele espoliação urbana - para uma posição estru- tural de irrelevância, ou seja, de exclusão social, configurando-se uma nova categoria de pobreza urbana cujas implicações sociais, políticas e culturais são imprevisíveis (Ribeiro, 1994, p.273-4 ln: Ribeiro e Santos Júnior, 1994, p.261-289). 10 Porto Alegre e a Região Metropolitana (RMPA), embora apresen- tem indicadores sociais que as distinguem positivamente em comparação às outras regiões elo país, 11 não ficaram à margem das conseqüências oriun- das elas profundas transformações na estrutura sócio-econômica do país. O fluxo migratório do interior, principalmente em busca da oportunidade de empregos e de renda, aliado ao descenso social gerado pela deterioração dos salários, levou a RMPA a aumentar a sua população, em relação à po- pulação total do Estado do Rio Grande do Sul, de 18,9% em 1960, para 31,5% em 1985 e 41,66% em 1991 (IBGE, 1991). Durante a década de 70, as taxas de crescimento demográfico da RMPA e da capital foram bem maiores que a média do Estado, sendo respectivamente de 45,8% e 27,1%, compa- rativamente à taxa média de crescimento de 16,6% no RS. Composta por vinte e dois municípios que, em grande parte, cumprem funções de repro- dução da força de trabalho a custos baixos, a RMPA abrigou a maior parte da população vinda do interior, comparativamente à capital (IBGE, 1980). 1.1.1. A questão da habitação e do acesso à cidade A expansão dos núcleos favelados formados por assentamentos autoproduzidos (ocupações) em áreas irregulares ou clandestinas, públicas e/ou privadas, é uma das principais conseqüências do modelo desenvolvi- mentista de caráter espoliador e excludente que hegemonizou a história do Brasil. Em Porto Alegre, as origens do processo de favelização remontam à década de 1940, por volta de 1946, quando se intensificaram o êxodo rural e também a migração para fora das fronteiras do Estado, em virtude das profundas transformaçõeseconômicas que alteraram as relações de produ- ( 20 Luciano Fedozzi ção e de propriedade rural, levando à liberação de mão-de-obra nos mini- fúndios e nos latifúndi~ Estudos sobre esse período (correspondente aos governos estaduais de -~tlter Jobim e de Ernesto Dorneles, de 1947 a 1955) demonstram qu~,~esar elo crescimento e do aumento da renda interna da economia gaúcha, na maioria desses anos, a situação econômica e social do Estado apresentava graves problemas: "êxodo rural, fuga para as cidades do RS e para as fronteiras agropecuárias do Brasil, extrema polarização da estrutura fundiária, esgotamento (apropriação prévia) de terras virgens no RS, aumento do desemprego e das favelas, dificuldades em aparelhar as cidades, em dotar o Estado de transporte e energia elétrica, dificuldades em alimentar a preços condizentes a maioria da população" (Müller citado por Ferretti, 1984, p.112-13). Nesse contexto de profundas transformações sócio-econômicas e de intensa migração, em que a precariedade da moradia popular e a desigualdade de acesso à ocupação e ao uso cio espaço urbano passam a ser considerados problemas políticos, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) criou a Superintendência da Habitação, em 1940, primeiro órgão estatal com funções específicas para executar a política habitacional de caráter social no município. Posteriormente modificada para Serviço da Habitação Popular, em 1951, e De- partamento Municipal da Casa Popular, em 1952, essa unidade administrativa transformou-se, em 1965, no atual Departamento Municipal de Habitação (DE- Fotografia 1. O Poder da Aldeia 21 MHAB), por exigência do Sistema Financeiro da Habitação e do BNH, criado em 1964 pelo Governo Federal. Entretanto, a favelização em Porto Alegre tornou-se uma questão de relevância estatal somente por volta de 1951, quan- do surgem os primeiros estudos tentando compreender e explicar esse fenô- meno. Baseados, fundamentalmente, na análise de caráter psicossocial em voga na época, esses estudos são reveladores da concepção sociológica paternalista e moralizante que imperou no enfoque oficial do levantamento da realidade das vilas de malocas que cresciam na capital (Ferretti, 1984, p.117-24).12 A atuação da municipalidade através do DEMHAB, nesse período, deu-se basica- mente através da constituição ele loteamentos para atender ao crescimento de- mográfico e à pressão social e política por habitações. A criação das vilas pas- sou a ocorrer através de uma lógica em que constituíam-se loteamentos, como solução emergencial, prevendo-se a futura instalação de infra-estrutura pela Prefeitura, com repasse dos custos para os proprietários. Entretanto, a prolife- ração de situações irregulares de vilas implantadas pelo Departamento, 13 so- mados à ampliação de loteamentos privados implantados de forma irregular nas adjacências elo perímetro central, 14 bem como à formação de novos núcle- os ele vilas na zona periférica ela cidade, determinou um quadro ele ocupação caótica do espaço urbano na década ele 50, formado por vilas e por loteamen- tos mal equipados ou sem qualquer tipo ele equipamento público. Esse processo ele crescimento urbano e ocupação desigual do es- paço físico ela cidade foi acompanhado por intensa polarização política por meio elos pa1ticlos que disputavam o apoio elas massas no período (PSD, PL, UDN, PTB e clandestinamente o PCB): Os chamados 'maloqueiros'possuem consciência da situaçâo em que se en- contram, em grande parte devido à açâo dos partidos políticos e dos comu- nistas introduzidos no meio (. . .) nos demais bairros, a situaçâo geral é de acomodaçâo e passividade ( .. .) as atividades políticas sâo muito intensas e num estado de exaltaçâo nas vilas de malocas. Isto devido ao fato de situa- çâo ser explorada continuamente em benefício de partidos legais (PTB) ou ilegais (PCB) (Comissâo Interestadi_wl da Bacia Parcmá-Uniguai. Estudo de uma capital: Porto Alegre. Sâo Paulo, 1958 citada por Ferretti, 1984, p.118). A partir de 1964, em Porto Alegre, após a cassação do prefeito trabalhista Sereno Chaise (PTB), 15 os sucessores passaram a ser nomeados pelo governo militar, dentro ela política elo novo regime. O regime ditatorial pautou as suas políticas urbanas basicamente a partir de padrões tecnocráti- cos ele gestão, em que os atores populares não eram reconhecidos como sujeitos portadores ele direitos e nem como interlocutores legítimos para a negociação ele suas demandas perante o Poder Público. Nesse período, a administração municipal articulou-se prioritariamente com interesses empre- sariais, realizando investimentos em áreas estruturadas da cidade, onde resi- diam as classes niédia e alta, assim como em áreas urbanas, que, devido aos investimentos públicos e privados, foram valorizadas e integradas ao merca- 22 Luciano Fedozzi do imobiliário. A cidade não ficou imune ao vertiginoso aumento da faveliza- ção que ocorreu nas capitais e nas metrópoles brasileiras. Como mostra a tabela a seguir, no início ela década ele 1970, a fisionomia urbana ela cidade apresentava 124 vilas ele subabitação, representando 11.14% ela população. No início dos anos 90, esse número saltou para 249 vilas e 33.66% da popu- lação, ou seja, mais ele 400 mil pessoas vivendo em cerca ele 106 mil barra- cos. A cidade irregular e informal cresceu a taxas ele 8% a 9% ao ano, en- quanto a outra Porto Alegre, legal e formal, teve um crescimento anual ele apenas 1,9% (SPM/PMPA, 1990). 16 Tabela A. Evolução das subabitacões em Porto Alegre. Ano Nº de N· Ili! barracos População · vilas favelada 19~1 · 4 3.965 16.303 1965 56 13.588 65.595 1972173 · 124 20.152 105.833 1980/81, 145 38.093 171.419 1982/83 ·. 167 39.909 180.489 1987 .... 183 60.889 274.000 1988 212 72.555 326.043 1990 212 98.000 393.043 1991 249 106.000 425.000 Fonte. Secreta na do Planeiamento Municipal, 1991 (dados estimativas). *Dados oficiais de Censo-lBGE-1991. População % total pop. fav./ pop. total 394.151 4,13 748.878 8.76 950.142 11.14 1.125.901 15,22 1.275.483 14,15 1.307.562 20,95 1.334.247 24,47 1.387.588 28,32 1.262.631 * 33,63 .( ,:.)· \ > \ Acrescente-se que, além elas conhecidas causas estruturais do pro- i!-}· . 't. esso de espoliação - ligadas à migração à concentração de renda, à au-\t~"4. - ~ . d , \,{/( · ; , s,encia . e política habitacional para as camadas de baixa renda -, outros \\1.\ :f,:'.· / fatores intra-urbanos contribuíram para agravar a situação de desigualdade J.. n_o acesso aos direitos urbanos básicos e sua conseqüente segregação só- . cro-espa~ial: o empobrecimento interno ela população de Porto Alegre 17 e o elevado número ele vazios urbanos especulativos. Na década de 80, um percentual de 41,88% da área total da capital estava nas mãos de grandes construtoras, incorporadoras e especuladores imobiliários. Mais grave é que os cem maiores proprietários de terra detinham 47 ,67% das áreas vazias da cidade, sendo que 18,6% dessas, utilizados como reserva de valor, estavam localizadas em áreas de ocupação intensa, por disporem de infra-estrutura e serviços_ públicos (Oliveira e Barcellos, FEE/RS, 1989).18 \;À _expulsão de núcleos de subabitação das áreas ocupadas pela população de baixa renda, por meio de programas de erradicação para áreas longínquas e sem infra-estrutura urbana realizadas, inicialmente, atra- vés de remoções forçadas e violentas, foi uma das formas da gestão urbana utilizadas nesse período (Guareschi, 1980; Ferretti, 1984, 1993; Liedke Fi- lho e Ferretti, 1993; Baierle, 1992). Ao mesmo tempo, as administrações O Poder da Aldeia 23 l ', 1 i Fotografia 2. Remoções violentas marcaram a ação do poder público na década de 1970. municipais do regime ditatorial buscaram cooptar parcelas das comunida- des, por meio de práticas políticas tradicionais, clientelistas e patrimonialis- tas, ou através da elaboração de uma série ele programas e projetos que buscavam neutralizar possíveis movimentoscontestatórios, assim como uti- lizá-las no processo de disputa eleitoral (Guareschi, 1980; Ferretti, 1984). fse entre 1950 e 1972 foram removidas 62.151 pessoas pelo Departamento '-'"1vlunicipal de Habitação (DEMHAB), em apenas cinco anos, entre 1971 a 1976, esse contigente chegou a 33.286 moradores e 7.741 famílias, sendo que desse número, 19.255 pessoas foram levadas para outros municípios da RMP A e o restante para áreas distantes, sem infra-estrutura urbana e sem oportunidades de emprego próximos ao local de moradia. Muitas des- sas remoções acabaram constituindo núcleos de subabitações com alta con- centração populacional na capital, a exemplo das Vilas Mato Sampaio e Fátima-Pinto, na Zona Leste, Maria da Conceição, no bairro Partenon, São Vicente Mártir e Restinga na Zona Extremo-S'@7(Guareschi, 1980:106). O caso da Restinga é emblemático. Localizada ,t22 Km do perímetro central e isolada dos equipamentos urbanos, a Restinga foi criadá a partir de 1964 pela Prefeitura (com financiamento do Plano Nacional de Habitação Popu- lar), para funcionar como centro de triagem da população. Entre os anos de 24 Luciano Fedozzi 1971-76 chegou a receber 2.020 famílias removidas de outras vilas (sendo 1.273 na Restinga Velha e 747 na Restinga Nova), tornado-se, na década de 90, um bairro com mais de 100 mil moradores de baixa renda, cuja relação com o poder público (Executivo e Legislativo) foi marcada por for- te conteúdo clientelista na distribuição das casas. i9 Ainda na década de 70, foram lançados diversos programas e proje- tos estatais relacionados direta ou indiretamente com o problema social e político da crescente favelização em Porto Alegre. Além do projeto CURA (Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada), instituído nacionalmente e financiado pelo BNH, em 1972, cuja intenção era promover a urbanização das cidades (não se destinando, portanto, à produção de unidades habitacio- nais), destacam-se os programas Pró-Gente I e o Pró-Gente II, elaborados pela Prefeitura com financiamento do BNH, respectivamente em 1975 e 1977, quando assumiu o prefeito Guilherme Sociais Villela (da ARENA, depois PDS, hoje PPB), nomeado pelo regime e reconduzido para a gestão 1979-85. 20 Destinados à população de baixa renda, os programas prometiam abastecer de infra-estrutura os núcleos de subabitação, especialmente do DEMHAB, sem remoções e sem reeditar o deslocamento das populações para áreas longínquas, a exemplo da Restinga. Entretanto, a prática da remoção pura e simples somente foi obsta- culizada no final nos anos 70, em razão da intensa mobilização dos morado- res das áreas de subabitação que, como será visto mais adiante, emergiu na esfera pública local como movimento social de massas nos anos 1978-79, momento de crescente contestação ao regime ditatorial e de fortalecimento da sociedade civil no país. Entretanto, outros dois projetos são reveladores da concepção autoritária predominante nas instftncias governamentais quanto ao tratamento dos problemas da expansão quantitativa e espacial da pobreza em Porto Alegre: a aprovação, em 1979, do Plano Diretor de Desenvolvi- mento Urbano (I PDDU)21 e o PROMORAR. No processo de elaboração e aprovação do I PDDU, a prática au- toritária do regime vigente beneficiou-se da concepção tecnocrática domi- nante no corpo burocrático do setor de planejamento urbano. Ao se "orien- tar pela noção tecnocrática da racionalidade máxima possível em condi- ções econômicas tendencialmente monopolistas, o I PDDU veio ao encon- tro dos interesses fundamentais elos grandes grupos econômicos imobiliári- os, financeiros e da construção civil, ainda que regulando em parte suas áreas e formas de atuação" (Liedke Filho, Ferretti, 1993, p.167). Nesse processo, duas questões merecem ser destacadas. Elas são reveladoras ela concepção tecnocrática que orientou os dirigentes políticos e o corpo técnico ela Prefeitura - com o aval de parcela dos vereadores - no tratamento dispensando aos problemas ela ampliação ela segregação sócio- espacial ela população pobre na cidade e do modelo autoritário que prevale- ceu na relação entre o Executivo e os movimentos populares. O Poder da Aldeia 25 Em primeiro lugar, a desatualização dos dados a respeito das áreas de subabitação tornou incompatíveis os princípios normativos de fixação da população de baixa renda e a definição do uso de áreas previstos no I PDDU. O crescimento da população por área de subabitação, nos anos en- tre 1965 e 1981, o tempo de existência dessas áreas e o número de barra- cos não foram compatibilizados pelo planejamento, para efeitos da destina- ção do uso do solo urbano em conformidade com o Plano Diretor (Ferretti, 1984). O desconhecimento, por parte da SPM, da real situação habitacional da população moradora em áreas entào definidas pelo Plano como de pre- servação ambiental, lazer, etc. criou uma discrepância entre a formalidade legal e a situação real de uso das áreas, trazendo novos conflitos entre a administração municipal e os moradores de vilas irregulares ou clandesti- nas, 22 que passaram a desenvolver lutas de autodefesa pela sua fixação nos locais de moradia, pela posse da terra e por bens e serviços públicos bási- cos. Conforme apontou Ferretti a respeito da elaboração do PDDU em 1979: a última informaçâo mais completa sobre o problema da subabitaçâo em Porto Alegre é de 1973, quando o DEMHAB procedeu levantamento sócio- econômico em todo o município. Tentativas de atualizaçâo foram feitas, inclusive contando com a participaçâo da SPM, porém, sem os resultados esperados. Em contrapartida, a fonte que poderia fornecer com maior cla- reza cl situaçâo física das áreas de subabitaçâo, ou seja, o levantamento aerofotogrmnétrico, também se encontrava desatualizado, datando o últi- mo de 1956. E foi utilizando estafante e mais informações do DEMHAB sobre vilas onde tinha jurisdiçâo, que se baseou o Plano Diretor na sua reavalia- çâo em 1979. Em função disso, muitos locais onde havia subabitações foram destinados a usos não compatíveis com a habitação. Nesse mesmo tempo, começaram a surgir movimentos nas vilas pela recuperação das mesmas e con- seqüente posse da terra. Por outro lado, o governo {federal] acenava esta pos- sibilidade através da reabilitaçâo de alguns programas do BNH nâo implan- tados até o momento, ressurgindo com o nome de Programa de Erradica- çâo da Sttbabitaçâo- PROMORAR (Ferretti, 1984, p.110-11). O segundo aspecto diz respeito à exclusão política dos segmen- tos populares no sistema decisório de gestão do espaço urbano e das políticas públicas do município. Aspecto que ficou evidenciado tanto pela representação meramente formal conferida à participação comunitária no Conselho do Plano Diretor, como também pela tentativa da Prefeitura de esvaziar as Associações de Moradores, retirando-lhes o caráter de instân- cias autônomas e de reivindicação por bens e serviços públicos que ca- racterizava uma parcela significativa da mobilização popular desde mea- dos da década de 70. Referindo-se à participação da comunidade como princípio-coro- amento do sistema de planejamento, o Plano previa que essa deveria ocor- rer mediante a criação de Associações de Moradores (AMs) corresponden- tes às UTPs (Unidades Territoriais de Planejamento),23 desde que reconhe- ~' 26 Luciano Fedozzi cidas pela administração municipal segundo um estatuto-padrão e cuja fun- ção básica seria encaminhar as questões atinentes à área de abrangência da UTP. "Ocorre que já existia e era de pleno conhecimento da administração, uma organização de AMs constituída pelo movimento autônomo da popu- lação, em torno da FRACAB (Federação Rio-grandense ele Associações Co- munitárias e Amigos de Bairro)" (Ferretti, 1984, 1993), entidade de atuação estadual. que, como se verá mais adiante, foi reorganizada em 1977. Na medida em que não havia coincidência entre a área de abrangência das AMs e a área das UTPs previstas no Plano, o movimento denunciou essú tentativade duplicação da representação. Essa prática, corrente no Estado, era utilizada para dividir os moradores das vilas e bairros populares e, com o Plano, pretendia institucionalizar-se. Todavia, a mobilização ele setores populares e de entidades democráticas (FRACAB, sindicatos, etc.) impediu a aplicação desse dispositivo de tutela do Estado, revogando-o quando o projeto de lei foi submetido à aprovaçfto da Càmara de Vereaclores.24 Não obstante, prevaleceu uma representação meramente formal da população no Conselho do Plano Diretor: vinte e um membros indicados pelo Prefeito e submetidos à prévia aprovação da Càmara, dentre os quais 9 represen- tando o município, 8 representando as entidades de classe e organizações governamentais estaduais, e 4 escolhidos pelas entidades comunitárias re- presentando as 4 zonas em que a cidade foi dividida, segundo critérios técnicos do Plano. Essa composição aliada à forma de indicação dos representantes - através de listas submetidas à aprovação do Prefeito -, determinou uma situação de sub-representação da população, agravada pela assimetria de poder existente entre as forças sociais e econômicas que atuam no espaço urbano. Conforme analisaram Oliveira e Barcellos 0993, p.261-2), 25 "o fó- rum constituído pelo Conselho espelhou uma composição semelhante ao jogo de dominação que se pode identificar no espaço urbano, na medida em que a cidade é o lugar onde se defrontam, de um lado, os proprietários fundiários e imobiliários, os incorporadores, as empresas da construção ci- vil, os empreiteiros de obras e os concessionários de serviços públicos e, de outro lado, aqueles que nela buscam morar e viver seu cotidiano". A reflexão elas autoras, integrantes do Conselho do Plano Diretor, é bastante elucidativa do modus operandi dessa instància: Neste colegiado, observamos posições que manifestam claramente a exis- tência de interesses fortemente articulados, corno é o caso da Sociedade de Engenharia e do Sindicato da Indústria da Construçiio Civil. Com relaçiio aos interesses das classes populares, verificamos que nem sempre os repre- sentantes comunitários conseguem traduzi-los com a mesma sintonia que marca a presença das reivindicações dos setores privados. Entretanto, .al- gumas entidades(. . .) atuam orientadas por princípios democráticos, a partir dos quais é possível desenhar urna cidade em que o acesso aos benefícios O Poder da Aldeia 27 seja mais igualitário e a ocupação dos espaços seja menos especulativa(. . .) a exemplo do Instituto dos Arquitetos e da Ordem dos Advogados do Brasil (Oliveira e Barcelos, 1993, p.261). Quanto ao PRO MORAR, trata-se do Programa de Erradicação da Subabitação criado em 1979 pelo Governo Federal, através do BNH, com o objetivo anunciado de recuperar e urbanizar áreas faveladas e ouvir as Associações de Moradores. 26 Conforme indicam alguns estudos, esse pro- grama de âmbito nacional objetivou responder a duas macrofunções do Es- tado: uma de ordem política e outra de ordem econômica. A primeira ques- tão dizia respeito à necessidade do regime autoritário de enfrentar o novo contexto político do país, no qual a rearticulação partidária e a ativação da sociedade civil, por meio do revigoramento de instâncias de organização, tais como as Associações de Moradores, detei-minava um papel político- eleitoral maior das favelas que passaram a reivindicar e ter peso nas deci- sões da política habitacional (Ferretti, 1984; Valladares, 1978; Singer, 1980). Ou seja, a conjuntura política não permitia mais que o problema da faveli- zação crescente nas grandes cidades fosse tratado com o uso da força do Estado ou mediado apenas por critérios técnicos da burocracia estatal. Por outro lado, alguns estudos apontam para outro aspecto contido nos progra- mas do SFH. Trata-se do papel desenvolvido pelo Estado na criação das condições estruturais para a acumulação do capital em geral e, nesse caso, especialmente do capital financeiro e imobiliário, ou seja, trata-se de per- ceber, "entre as múltiplas facetas do SFH, a transformação gradual da polí- tica habitacional em política financeira C.. .) a contagem e o acionamento de um complexo e gigantesco sistema financeiro, onde o Estado é o principal promotor da captação da poupança interna e seu administrador" (Lisboa Júnior et alii citados por Ferretti, 1984, p.108). Em Porto Alegre, através do DEMHAB, quase um terço das áreas de subabitação existentes no início dos anos 80 (46 dentre 146) foram in- cluídas formalmente no PROMORAR (o Pró-Gente havia sido cancelado pela Prefeitura). Entretanto, o programa sofreu críticas e foi contestado pe- las Associações de Moradores e pela FRACAB, principalmente porque as comunidades afetadas perceberam os aspectos de segregação social e es- pacial contidos no modelo de urbanização proposto, qual seja: construção exígua das unidades habitacionais (sala e cozinha, sem banheiro), ausência de previsão de infra-estrutura, condições financeiras exigidas fora dos pa- râmetros reais da população (renda fixa), previsão de remoção de famílias, além de exigências técnicas pouco flexíveis para construção e urbaniza- ção. Em razão disso, o programa, ainda em 1979, sofreu alterações que implicaram o abandono da construção de moradias para concentrar-se ex- clusivamente nas atividades de recuperação urbana com implantação de infra-estrutura e vias de acesso. Não obstante, a persistência de impasses quanto à remoção das famílias das áreas a serem recuperadas, somada aos ( 28 Luciano Fedozzi demais problemas apontados, acarretou que os resultados do programa fos- sem pífios. O PROMORAR ficou na fase dos levantamentos de dados sen- do que apenas três vilas receberam a implementação do plano (Guareschi, 1980; Ferretti, 1984; Ribeiro, 1991). 1 2 O surgimento de novos atores populares na esfera piíblica local A conjuntura pós-eleições de 1974, quando ocorreu a primeira der- rota eleitoral do regime ditatorial para a oposição aglutinada no MDB, levou o regime a incorporar outros fatores de ordem política envolvidos com a questão urbana, já que o debate na esfera pública, apesar da repressão, ex- trapolava a forma estritamente técnica que delimitava (e controlava) o trata- mento dispensado ao tema do desenvolvimento urbano. Segundo Ferretti, a partir da metade da década de 70 até meados dos anos 80, a atuação da municipalidade, no discurso, foi ofensiva. Além dos Projetos Pro-Gente I e II já citados, a Prefeitura tomou a iniciativa de organizar diversos programas, sendo os mais importantes: (a) "elaboração, pela Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV), do 'Plano Comunitário de Pavimentação' ( ... ) prevendo a partilha dos custos da pavimentação entre a comunidade interessada e o Es- tado; (b) início, pelo Executivo Municipal, de programa de descentralização :nunicipal, com atendimento de audiências nos bairros da cidade; (c) elabo- :ação, pelo Centro de Desenvolvimento Social, de projetos de educação na ?eriferia de Porto Alegre - projeto a ser executado através dos Centros Soci- ais Comunitários; (d) criação do Gabinete de Atendimento das Reivindica- ;;ões dos Bairros (GAREB)·, ligado às Associações de Moradores e à FRACAB Lcom a redemocratização da entidade, em 1977, o GAREB tentou desenvol- ve~ uma organização comunitária paralela]; (e) reativação da Comissão de Bairros como parte das decisões do I Seminário de Obras em Vias Públicas; CO participação da população no Conselho do Plano Diretor; (g) tratamento urbanístico especial para áreas de subabitação, pelo I Plano Diretor" (Ferret- ti, 1984, p.160-1). Não obstante o caráter ofensivo das políticas do regime autoritário, na segunda metade da década de 70, numa conjuntura nacional de avanço das lutas pela redemocratização do país, o movimento associativo elos mora- dores de bairros de Porto Alegre constituiu-se, progressivamente, como um espaço público de desenvolvimento de práticas de organização das classes populares para a reivindicaçãode direitos relacionados ao acesso ao solo urbano, aos equipamentos de infra-estrutura e aos serviços públicos. Nessa época o movimento sindical, em geral, ainda se ressentia da vigilância e da repressão política por parte da ditadura. Um dos momentos marcantes de nova postura de autonomia e independência de parcela significativa das As- sociações de Moradores (AM's) atuantes em Porto Alegre e no Rio Grande do O Poder da Aldeia 29 Sul, diante das práticas autoritárias e clientelistas patrocinadas pelo poder público municipal e estadual dirigidos pela ARENA, foi a retomada e a rede- mocratização da Federação Rio-grandense de Associações Comunitárias e Amigos de Bairro (FRACAB), em 1977. -·'l"'. ,. .. ,, .. ,,,_" ..... - A ·1 . 1 .. \.. ... Fotografia 3. Encontro da FRACAS em Porto Alegre. Fundada nos anos 50, a entidade encontrava-se nos anos de chumbo sob a influência política e sob a dependência financeira do Estado. Com a vitória da oposição para a diretoria ela FRACAI3, a entidade veio a fortale- cer setores dos movimentos sociais que encaminhavam as suas lutas cotidi- anas baseadas na noção elos direitos e não mais por meio ela pura sujeição aos favores elo poder político institucionalizado e elos seus representantes. Apesar ela forte disputa interna que se estabeleceu entre facções políticas após a sua retomada, na entidade tornou-se possível a centralizaçâo de recursos materiais, de apoio técnico, jurídico e político necessários para impulsionar, de forma autônoma e in- dependente do Estado, a organizaçâo inicial dos movimentos urbanos e suas lutas. A partir de 1977, a sede da entidade tornou-se um lugar de re- ferências, onde eram criadas as oportunidades para encontros, trocas de experiências e construçâo de redes de solidariedade dos movimentos entre si e destes com setores da sociedade que se ident{ficavmn com as propostas e promessas de mudanças que estes traziam. Profissionais liberais, técni- ( 30 Luciano Fedozzi cos de nível superior, estudantes, igrejas, sindicatos, militantes de partidos clandestinos e políticos de oposição encontravam nos espaços da FRACAB um lugar para o debate político e encaminhamento de ações unitárias numa conjuntura em que, apesar da proclamada abertura, ainda ocorriam pri- sões e perseguições políticas (Menegat, 1995, p.95-6).27 O perfil oposicionista assumido pela entidade sofreu fortes repre- sálias por parte do Estado e da Prefeitura. O poder público tentou impedir 0 trabalho da Federação através de várias formas: primeiro, cortando o sub- sídio, o que obrigou a entidade a buscar doações financeiras; segundo, o Estado realizou uma investigação com o objetivo de encontrar motivos para o fechamento da entidade; terceiro, a Prefeitura criou uma organização pa- ralela, o Conselho Metropolitano de Porto Alegre (Conselhão), buscando articular todas as associações da capital e da Região Metropolitana e criar associações de bairros onde não havia; quarto, criou o Movimento Comuni- tário Gaúcho (Guareschi, 1980, p.130-9). Apesar disso, as iniciativas de caráter mais abrangente, tais como o Conselhão, não tiveram o êxito esperado, provavelmente devido ~l falta de interesse da população. Não obstante, como mostram os estudos de Guares- chi (1980) e de Ferretti (1984), a prática de cooptação de lideranças comuni- tárias, principalmente pela ARENA através do poder público, e também por políticos do MDB, em troca de favores pessoais, era comum naquele contex- to. Entretanto, no final da década de 70 e início dos anos 80, uma parcela significativa dos movimentos populares de Porto Alegre passou a desenvol- ver formas de resistência às práticas de autoritarismo e de submissão ao po- der público institucionalizado. Em resposta à distribuição desigual do espaço urbano e à apropriação seletiva dos recursos públicos em infra-estrutura e serviços, emergiram na esfera pública local atores populares que passaram a adotar novas práticas de enfrentamento com os órgãos administrativos do Estado. Embora práticas tradicionais de tutela tenham encontrado o consenti- mento de setores do movimento comunitário, preocupados em obter, a qual- quer custo, bens e serviços do Estado, esse tipo de interação foi rejeitada por uma parcela significativa dos movimentos sociais urbanos, especialmente aqueles organizados pelos moradores das áreas de subabitação. No final dos anos 70 e início dos anos 80, surgiram, ao lado de setores comunitários tradi- cionais, submetidos às práticas patrimonialistas e clientelistas ele integração ao Estado e ao sistema político, novos atores que pautaram a ação coletiva apoiados em uma matriz discursiva que ressaltava os direitos sociais ela cida- dania como algo a ser conquistado e universalizado, tais como o direito à moradia, ao saneamento básico; além da saúde, educação, transporte coleti- vo, lazer, etc. Conforme mostram os principais estudos que analisam os movi- mentos sociais urbanos desse período, essas mobilizações foram levadas a cabo, principalmente, pelas populações moradoras das áreas de subabi- O Poder da Aldeia 31 tação, em situação irregular e/ou clandestina (Guareschi, 1980, Ferretti, 1984 e Ribeiro, 1985). Por meio dessas mobilizações, que ocorrem de forma intensa nos anos 1978-79 e se estenderam até 1984 (embora tenha havido um refluxo desses movimentos entre 1980-82), as populações das vilas e bairros demandavam, majoritariamente, questões ligadas à posse/ propriedade da terra e à resolução das carências em equipamentos urba- nos e serviços públicos, assim como aspectos ligados à autonomia e à independência política das Associações dos Moradores. Como aponta a compilação desse período realizada por Menegat 0995), os três estudos antes citados - baseados, fundamentalmente, em notícias publicadas nos jornais da capital - descrevem a existência de um amplo processo de mobilização dessas comunidades que obrigou a opinião pública e as au- toridades a reconhecerem os problemas vividos pelos núcleos de con- centração de subabitações em Porto Alegre, não obstante também hou- vesse mobilizações por reivindicações urbanas em outras áreas estrutura- das da cidade. Praticamente metade dos núcleos de subabitação (61 den- tre os 128 núcleos existentes naquele momento) realizaram, entre os anos de 1978-79, algum tipo ele mobilização por reivindicações urbanas. Os 12 núcleos mais mobilizados, no período de um ano (entre outubro de 1978 e setembro de 1979), foram alvo de 485 notícias nos jornais locais, número extraordinariamente expressivo, levando-se em consideração que nem todas as mobilizações foram noticiadas. Esses 12 núcleos abrigavam, em 1979, 71.571 pessoas e representavam 47,7% do total dos moradores em áreas de subabitação, a maioria das quais foram ocupadas nas décadas de 1960/70 (Guareschi, 1980, p 139-252).28 A Figura 1 (na página seguinte) sintetiza as mobilizações registra- das pelos três estudos citados. Ainda que a pesquisa de Ferretti não tenha diferenciado as mobilizações realizadas em 1978-79 (estudadas por Gua- reschi, 1980) daquelas que ocorreram entre 1980-82, optou-se por inseri- lo no quadro a seguir devido à riqueza das informações produzidas. O re- gistro dos movimentos coletados por Ribeiro (1985) entre 1982-84, mos- tram, por sua vez, uma possível continuidade das mobilizações realizadas pelas comunidades entre os anos de 1978 a 1984. A apresentação dos da- dos através da divisâo regional do OP, que viria a ser construída quase dez anos após, entre 1990/91, mostra de forma categórica o elo histórico entre os movimentos surgidos no final da década de 1970 e a construção do OP na virada dos anos 80/90, pois as regiões mais mobilizadas desenvolveram um papel fundamental na construção do mesmo. Os estudos antes citados revelam um contexto rico em mobiliza- ções de parcela das classes populares que passaram a se manifestar na esfe- ra pública 29 local, no intuito de pressionar os órgãos governamentais e sen- sibilizar a opinião pública,inclusive utilizando-se da mídia para a resolução dos problemas acumulados durante décadas dc.l}rbáni?ação espoli~ltiva ex- '1 :, ,'I ·;1 ·:, ,.: i 1 : · .· ., ,, '. .· .~ ,, ./ ' ,' ! 32 Luciano Fedozzi Figura 1 - Movimentos reivindicatórios em Porto Alegre- 1978-84. . Regiões do OP · . , Guareschí* . Ferretti** . Rosa Ribeiro••• 1978 (out.)-1979 (set.) · 1978-1982 1982-1984 Ilhas·.,. Anchieta Huma\tá-Navegantes . Tio Zeca Teodora Teodora Tio Zeca Teodora A. J, Renner leste . Saturnino Brito Fátima (Pinto) Fátima (Pinto) Fátima li Mato Sampaio Mato Sampaio Fátima 1 (Pinto) Três Fazendas Bom Jesus Beco Resbalo ; Beco do Resbalo Mirim lomba do Pinheiro , ' Chácara das Pedras Panorama N. S. das Graças r N. S. das Graças Tamancas Agrononia Beco do Davi Jardim Viçosa Viçosa Tamancas Beco do Davi Esmeralda Esmeralda Nova São Carlos Chácara das Pedras .... ... Nc,:i Nova Brasília Nova Brasllia União Sto. Agostinho Sto. Agostinho Elizabeth São Borja V. Elizabeth Nova Brasília Beco das Moças Nova Gleba São Borja Beco dos Maias Dois Toques Sta. Rosa ~ Nova Gleba V. Ramos Nova Gleba Vila do Respeito Sarandi Vila Ramos Dois Toques Vila Ramos Sarandi Pt:'::;::::':: Maria da Conceição Campo da Tuca São Pedro Comunitária Ceres São José Maria da Conceição ' Tuca Restinga Barro Vermelho Restinga Restinga Nova Restinga Figueira Barro Vermelho Glória Restin1e Nova Morro da Polícia São Francisco 1' de Maio Jardim Cascata Jardim Renascença N. S. Lourdes 1' de Maio Cruzeiro Tronco Cruzeiro do Sul Cruzeiro do Sul Orfanotrófio 1 Vila Maria Orfanotrófio 1 Orfanotrófio li Orfanotrófio li Cruzeiro do Sul Mato Grosso Vila Maria Mariano de Matos Pedreira 1 Pedreira li Cristal Cristal Cristal Guaíba Centro-Sul Vila Montegia São Vicente São Vicente Monte Cristo Camaquã Monte-Cristo Vila Nova Extremo,Sul Guarujá Avipal Beco do Adelar Sargentos Eixo Baltazar Jardim Sabará Beco do Resbalo Jardim Mirim Chácara das Pedras Sul Assunção Centro Planetário Nordeste *Guareschi- O autor pesquisou nos 6 jornais diários da grande imprensa com circulação em PoA: Zero Hora, Folha da Manhã, Folha da Tarde, Correio do Povo, Diário de Notícias e Jornal do Comércio. Além disso, utilizou como fonte o jornal semanal D Rio Grande e dois jornais mensais da imprensa alternativa, CoojornaleBoletim dos Bairros (FRACAS). • *Ferretti- Pesquisa realizada nos jornais Zero Hora, Folha da Tarde e Folha da Manhã, ***Rosa Ribeiro-Utifizou dados coletados nos jornais Zero Hora, Folha da Tarde, Correio do Povo e Jornal Denúncia. O Poder da Aldeia 33 pressa, sobretudo, pelo abandono das vilas e bairros populares da capital. Segundo Ferretti, cinco fatores ou hipóteses podem explicar, ainda que par- cialmente, as razões para a deflagração desses movimentos na forma intensa como eles ocorreram em 1978/79. O primeiro refere-se ao fato de que as eleições para os cargos legislativos possa ter funcionado como catalisador da vida política municipal, perpassando todos os níveis da sociedade, inclusive as vilas e suas organizações sociais; o segundo diz respeito às modificações propostas pelo Plano Diretor que, como se viu anteriormente, ao colocar as áreas de subabitação fora do sistema de planejamento, agudizou os conflitos com essas populações; o terceiro refere-se à percepção, pelas classes popu- lares, da prática de alocação desigual dos recursos orçamentários por parte da Prefeitura, que privilegiava grandes investimentos em projetos urbanísti- cos na área central ou nas áreas já estruturados, ao mesmo tempo em que adotava a partilha de custos nas [poucas) obras realizadas nos bairros e vilas { periféricos, especialmente para pavimentação de vias. Essa prática gerou ; inconformidade por parte das comunidades de baixa renda, uma vez que, · \\ oneradas pela partilha de custos, desejavam um tratamento equânime por '-'- parte do poder público. O quarto fator deve-se à abertura relativa dos meios de comunicação de massa, os quais passaram a noticiar as ações reivindicati- vas que vinham sendo realizadas silenciosamente em alguns bairros e vilas, contribuindo assim para disseminar a idéia da organização comunitária como um poder viável; e por fim, mas extremamente importante, o fato de que, tanto a Prefeitura como agentes particulares desencadearam, nessa época, ações ofensivas contra os assentamentos irregulares ou clandestinos. Por par- te da Prefeitura houve a divulgação do término do prazo, estipulado no ano anterior, para a regularização dos prédios unifamiliares mediante apresenta- ção da planta da casa, barraco ou apartamento, como condição para a cessão de benfeitorias. Quanto aos particulares, houve o ingresso de várias ações de reintegração de posse dos núcleos de ocupação clandestina. Essas medi- das causaram incertezas quanto ao futuro das comunidades, pois condiciona- vam a regularização das áreas à posse legal (Ferretti, 1984, p.166-7). Esse contexto local no final da década de 1970, no âmbito de uma conjuntura política nacional de crescente contestação ao regime autoritário, ensejou, juntamente com outros importantes fatores, o surgimento de um novo movimento popular em Porto Alegre, cuja parcela mais expressiva constituía-se de moradores dos núcleos de subabitação.30 Esse movimento por reivindicações urbanas, organizado basicamente em torno do problema da posse da terra, das carências de infra-estrutura urbana e serviços, assim como ela autonomia e independência política das AM's, passou a adotar práticas de enfrentamento com o Estado. Essas práticas eram orientadas por um discurso público que, por um lado, exigia do Estado e da sociedade o reconhecimento dos direitos de todos à cidadania e, por outro, se insurgia contra o estigma que comumente associava os moradores das favelas à con- ( 34 Luciano Fedozzi dição de marginais. Como diziam os moradores da Vila União, assentamen- to clandestino na região Norte, durante o momento em que se mobilizavam pela posse da terra em 1982: Nilo somos marginais desocupados como muita gente pensa. Pelo contrá- rio, somos trabalhadores da construçilo civil, das fábricas, das lojas. Conz um salário minguado, damos duro, suamos muito para conquistar o pilo de cada dia. Por tudo isso, achamos que temos direito a um pedaço de chilo (Carta aberta à população. Menegat, 1995, p.82). O discurso em prol dos direitos assumidos por essa parcela das classes populares em Porto Alegre e a sua tematização na esfera pública local repre- sentaram um salto qualitativo em direção à superação das práticas de submis- são paternalista (o pedir) e/ou clientelista (a troca de favores) tradicional- mente presentes na interação política entre as classes populares e os pode- res Executivo e Legislativo, o que não significa que essas práticas tivessem sido eliminadas elos movimentos comunitários.31 Barricadas nas ruas, assem- bléias nos locais de moradia, abaixo-assinados, concentrações em frente à Pre~eitura, cartas-abertas à população, denúncias na imprensa, mutirões para realizar obras, foram algumas das principais táticas utilizadas pelas comuni- dade~ para resistir em seus locais de moradia e para obter do Estado o reco- nhecimento dos seus direitos. Como concluiu Guareschi ao estudar esses m . ovimentos no momento em que aconteciam: Eles los moradores} estilo convencidos de que constituem um grupo com poder e que podem realizar mudanças se continuarem unidos e encontra- rem estratégias de luta convenientes(. . .) Eles somente confiam na sua pró- pria unidade como forma de ação, acreditando que só o que constróem pode permanecer. Eles sabem que têm poder e que podem se tornar inde- pendentes e autônomos, tomando suas próprias decisões (Guareschi cita- do por Menegat, 1995, /J.87 e 93). r' , 1 ! .3; Novas formas de ação coletiva e de organização dos _r • movimentos comunitários de Porto Alegre Atuando nas AM's ou nas Comissões de Moradores, assim como na FRACAB,e contando com novas lideranças combativas que despontavam nas lutas, ~-se_movim~ri_tQ __ desenvolveu, em algumas regiões mais mobili- zadas da cidade, prªti_c_<l§ __ c1~_foiiiris,i9)nt~r:-yi)ª~-que passaram a articular lI~_g1,1~_aJ11plg_~_pll1t~l_de associações yoluntárias (AM's, clubes de mães, centros de pais e mestres, entídades religiosas, culturais, esportivas, etc) atu~ntes em um mesmo espaçofísico da cidade. No início dos anos 1980, a solidariedade desenvdvida à partir das lutas concretas dos moradores, iden- tificados por seu pertencimento às classes trabalhadoras e por reivindica- rem melhorias urbanas em um mesmo espaço regional, produziu novos O Poder da Aldeia 35 formatos de auto-organização das comunidades, surgindo assim as chama- das Articulações Regionais, as Uniões de Vilas e os Conselhos Populares. Essas instâncias regionais surgiram principalmente nas regiões de alta concentra- ção de núcleos de subabitação, as quais construíram níveis maiores de or- ganização e mobilização, tais como as regiões Norte, Grande Cruzeiro, Lomba do Pinheiro, Grande Partenon e Glória. As demais regiões, entre as 16 atu- ais, surgiram e foram delimitadas durante a dinâmica de construção do OP nos seus primeiros anos de existência (1989/90). Essas instâncias regionais e os seus limites sócio-espaciais, construídos por meio da identidade social e cultural dos próprios moradores, tornaram-se a base geopolítica sobre a qual foi construído e consolidado o sistema descentralizado do orçamento participativo. Não é por acaso que quase todas as regiões antes citadas, com alta concentração de núcleos de subabitação e com níveis maiores de organiza- ção e mobilização social, verificados a partir do final dos anos 70 e início dos anos 80, foram as regiões escolhidas para a alocação prioritária dos investimentos orçamentários em 1991, momento em que foi criada, na evo- lução histórica do OP, a metodologia de distribuição dos recursos orçamen- tários mediante critérios objetivos de justiça distributiva. Há diversos relatos sobre as mobilizações realizadas no período de 1978-84.32 Ferretti, por exemplo, propõe uma tipologfa para explicar essas mobilizações a partir das contradições estabelecidas entre a apropri- ação legal/ilegal e regular/irregular do espaço urbano e o tipo de ações prioritárias ou formas de mobilização utilizadas pelos moradores dessas áreas em suas reivindicações (Ferretti, 1984, p.142). Assim, em áreas legais, mas carentes de infra-estrutura urbana ou de serviços, os moradores geralmente utilizaram formas de luta como os abaixo-assinados às autoridades, os pedi- dos de audiências, as denúncias pela imprensa, procurando encaminhar a solução dos problemas por meio dos canais legais e do diálogo com as autoridades públicas. Quando essas ações não surtiam efeito, recorriam às manifestações públicas e até a barricadas. Ou seja, a condição de proprie- tário e, portanto, contribuinte, direcionava a ação coletiva para a denúncia da alocação desigual dos recursos públicos. A barricada foi bastante utiliza- da principalmente para reivindicar calçamento de vias (mas também outras melhorias como água e esgoto, transporte coletivo), pois a interrupção do fluxo de trânsito repercutia imediatamente e, apesar da repressão do Esta- do, geralmente esse tipo de ação resultava em resposta ou em atendimento a curto prazo pelas autoridades, ainda que através da partilha dos custos das obras entre a Administração Municipal e os moradores. Foi o caso, por exemplo, da barricada realizada na Vila Monte Cristo, bairro Vila Nova (Fer- retti, p.142-3). Entretanto, nem sempre essas formas de ação obtiveram o resultado esperado. Por vezes, elas foram dispersadas pela ameaça da Pre- feitura de não solucionar C?-S,~ 1 ~,obletr1~~"~'~q 1 lJanto COíltinuass~,.~~ffi891liza- ~'"t,J, t)A, ftJ{i\lt\J,~ê t",,Â5t fiJ,tr;:}v.f!&.,;)\J"'\, 36 Luciano Fedozzi ção. Foi o que ocorreu nas Vilas Batilhanos, no Morro da Glória, na Safira (Região Nordeste) e no Bairro Rubem Berta, que realizaram barricadas rei- vindicando solução para o problema da falta d'água em 1982 (Ribeiro, 1991, p.115). Nos casos das áreas irregulares, ou seja, quando a maioria das moradias não estava legalizada, os movimentos buscavam longas e extenu- antes tentativas de regularização da propriedade, para em seguida reivindi- car equipamentos urbanos. Entretanto, em diversas vilas ou núcleos passí- veis de remoção, devido à situação irregular dos loteamentos, foram de- sencadeadas ações coletivas dos moradores para permanecerem em suas áreas. Essas ações coletivas foram forjadas pela identidade de interesses e pela solidariedade entre os moradores de uma mesma comunidade, como foi o caso do loteamento irregular da Vila Viçosa na Lomba do Pinheiro,33 ou entre moradores de vilas diferentes, mas ameaçados de remoção por se encontrarem na mesma situação irregular, a exemplo das Vilas Araçá e Chácara das Pedras, também localizadas na Lomba do Pinheiro. Atuando através das suas associações, essas duas vilas alcançaram razoável êxito encaminhando as lutas com o auxílio das demais vilas vizinhas (Ribeiro, 1991, p.115).31 A aprovação da Lei dos Loteamentos, que disciplinou o parcelamento do solo (Lei 6766/79), motivou um movimento de conscientização cm loteamentos não registrados, revelando uma articulação maior entre as lideranças comu- nitárias, a exemplo do I Encontro de Moradores Irregulares, realizado em 1982, na Câmara de Vereadores, em que 40 pessoas representaram 8 lote- amentos irregulares da Grande Porto Alegre (Ferretti, 1984, p.169). Nos casos das áreas clandestinas as lutas dos moradores encami- nhavam-se principalmente para a obtenção do direito de posse e, ao mes- mo_ tempo, para resistir às tentativas de despejos ou remoções, para depois pleitear equipamentos básicos ou urbanização da vila. O caso da Vila Cam- po da Tuca, por exemplo, área de concentração de subabitações existente desde 196635 e pertencente à região Grande Partenon, foi um dos episódi- os de maior repercussão entre as comunidades. O Campo da Tuca distin- guiu-se das demais vilas clandestinas não somente pela intensa mobiliza- ção realizada desde a segunda metade da década de 70, mas por utilizar-se do mutirão como solução própria para resolver problemas e demandas, inclusive porque a condição de vila clandestina determinava uma dificulda- de burocrática maior nas relações com a administração local e estadual. A organização via mutirão propunha a solução dos problemas pela comuni- dade e o reforço das lideranças naturais na condução das decisões que afetassem a área. A construção de um pontilhão pela própria comunidade do Campo da Tuca foi um dos exemplos mais marcantes dessa prática. · Após reivindicar durante anos a construção de uma ponte para facilitar a circulação do ônibus na área ocupaéla pela vila, os próprios mo- radores construíram a ponte e a inauguraram em meados de 1978, em pie- O Poder da Aldeia 37 no ano eleitoral. Na presença da imprensa, criticaram o descaso do poder público para com as vilas e condenaram as práticas políticas tradicionais: O prefeito e os políticos somente pensam em nós em época de eleições (. . .) Somos marginalizados e nào marginais(. . .) Isto [a execuçào da ponte} nào é resultado de promessas de políticos. Isto é resultado da nossa unidade Uornal Zero Hora, Porto Alegre, 31 jul. 1978. Guareschi citado por Mene- gat, 1995, p.92). O processo de lutas no Campo da Tuca refletiu também o contex- to político vigente na época de disputa entre os agentes político-adminis- trativos do regime ditatorial e o atores situados no bloco de oposição. A formação de duas Associações de Moradores, uma fundada em 1975 e ou- tra em 1978, representaram dessa forma a interveniência de dois outros agentes externos na área - [respectivamente} o DE.t'v!HAB e a FRACAB- consolidando e~paços de co11trole político e urba- nístico. O exemplo da 7itca foi levado pela imprensa e por outros canais