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FEDOZZI, Luciano O poder da aldeia


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! 
O PODER DA AIDEIA · 
Gênese e História do 
Orçamento Pat·ticipativo de Porto Alegre 
Luciano Fedozzi 
© do autor 
l ª edição 2000 
Direitos reservados desta edição: 
Tomo Editorial Ltda. 
Capa: Roberto Silva 
Projeto Gráfico: João Carneiro 
Editoração Eletrônica: Paulo Furasté Campos 
Revisão: Moira 
Filmes: Pallotti 
Filmes da capa: Fotolito Digital 
Fotografias: Acervo do CAMP (Centro de 
Assessoria Multiprofissional) e acervo do autor 
F294p Fedozzi, Luciano 
O Poder da Aldeia : gênese e história do 
Orçamento Participativo de Porto Alegre/ Luciano 
Fedozzi - Porto Alegre : Tomo Editorial, 2000. 
240p. 
l. Governo Municipal : Participação Popular : 
Orçamento Participativo : Porto Alegre : Rio Grande do Sul. 
2. Administração Municipal : Administração Popular : Porto 
Alegre : Rio Grande do Sul. 1. Título. 
CDU 352.08164 
Catalogação na publicação: 
Bibliotecária Maria Lizete Gomes Mendes CRB 1 0/950 
Tomo Editorial Uda. 
Fone/fax: (51) 227.1021 E-mail: tomo@portoweb.com.br 
Rua Demétrio Ribeiro, 525 CEP 90010-31 O Porto Alegre/RS 
ou Caixa Postal: 1029 Agência Central 90001-970 Porto Alegre/RS 
O PODER DA ALDEIA 
Gênese e História do 
Orçamento Participativo 
de Porto Alegre 
Luciano Fedo7zi 
PUCRS/BCE 
\Ili\\\ 111\I\\\II\ \li\ 
0.675.282-8 
DittW 
Editorial 
36'1.. 08'1651 
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PRESERVE SUA FONTE 
DE CONHECIMENTO 
Hl .. f!::' «À h ,}[ft;;/ 'rt:J' 
À memória de Nagib Garcia Hassen 
:,:ti\:\\ .: : 7 
' '' i' li•,,·~ 1' 
l 't'j't,, ' , ,; '.},'e]), 
Numa pólis bem constituída, todos correm para as 
assembléias; sob um mau Governo, ninguém quer dar 
um passo para ir até elas, pois ninguém se interessa 
pelo que nelas acontece, prevendo-se que a vontade 
geral 1uio dominará, e porque, enfim, os cuidados 
domésticos tudo absorvem ... Quando alguém disser 
dos negócios do Estado: Que me importa?- pode-se 
estar certo de que o Estado está perdido. 
]-] Rousseau. 
Do Contrato Social, Capítulo XV. 
~~'~ 
~!. 
1.1 
1.2 
1.3 
1.4 
1.5 
2.1 
2.2 
2.3 
2.4 
2.5 
2.6 
2.7 
3.1 
3.2 
3.3 
3.4 
3.5 
3.6 
SUMÁRIO 
Prefácio: Reforma ou Revoluçüo? O Orçamento Participativo e a 
Revolução Democrática do Estado - Emir Sader ............................... 9 
Apt·esentação .................................................................................. 13 
I 
Participação populat· no governo municipal de Porto Alegre ... 1 7 · 
O contexto sócio-político que antecedeu a vitória da 
Frente Popular .................................................................................. 17 
1.1.1 A questão da habitaçfto e do acesso à cidade ...................... 19 
O surgimento de novos atores populares na esfera 
pública local ...................................................................................... 28 
Novas formas de açfto coletiva e de organização elos 
movimentos comunitários de Porto Alegre ...................................... 34 
O Projeto dos Conselhos Populares na gestão do 
Prefeito Collares (PDT) .................................................................... 49 
A Administração Popular e a Lei elos Conselhos Populares ............. 50 
II 
1989 - Iniciando a experiência do OP: a prática como 
critério da verdade? ....................................................................... 59 
Da expectativa à crise ...................................................................... 59 
A crítica dos atores populares .......................................................... 61 
Os limites ela cultura reivindicativa .................................................. 64 
Os limites ela Administração Popular ................................................ 67 
Novos dilemas e cultura política velha ............................................ 70 
O descrédito na participação popular .............................................. 7 6 
A crise de governabilidade ............................................................... 7 8 
m 
1990 - Retomando a governabilidadc: a superação da crise 
financeira, as mudanças na estrutura administrativa e na . 
t- l l . t . . · 81 ges ao e o p ane,amen o parttc1pattvo ...................................... . 
Reforma tributária e recuperação das finanças municipais .............. 81 
As mudanças no planejamento e na estratégia governamental ....... 84 
3.2.1 Os impasses no planejamento governamental ...................... 84 
3.2.2 A disputa sobre o caráter político da 
Administração Popular ........................................................... 90 
A Hora das Definições Estratégicas .................................................. 92 
A Reforma Administrativa e a proposta de Participação Popular .... 96 
Alguns conceitos da política de participaçfto da · 
Administração Popular .............. : ....................................................... 98 
As mudanças na estrutura do planejamento ....................... ; ........... 100 
IV 
A nova metodologia de planejamento participativo ............. 103 
4.1 A construção do novo modelo ele gestão cio planejamento ........... 103 
4.2 A discussão do orçamento de 1991 com as comunidades ............. 104 
4.3 A criação ela metodologia para a escolha elas prioridades 
nos investimentos ........................................................................... 107 
4.4 Orçamento 1992: a retomada ela participação popular e a 
consolidação do novo modelo de gestão dos 
recursos públicos ............................................................................ 114 
4.5 A regionalização como espaço social da participação ................... 118 
4.6 A sistematização da política de democratização do Estado 
e de participação popular .............................................................. 119 
4.7 Assembléias Regionais: consolidação da dinâmica de 
participação e representação popular ............................................ 122 
4.8 A evolução na metodologia para a escolha dos investimentos 
· ·, · , 124 pnont,lnos ........................................ · · · ... · · · · .. · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 
4.9 Os novos critérios para distribuição dos investimentos no 
Orçamento de 1992 ........................................................................ 12 5 
4.10 O Plano de Investimentos/92 ......................................................... 128 
4.11 A relação entre o Orçamento Participativo e a Câmara de 
Vereadores .............. : ....................................................................... 131 
V 
A consolidação da dinâmica e das instâncias de 
participação popular .................................................................. 137 
5 .1 A consolidação do Conselho Municipal do Plano de 
Governo e Orçamento .................................................................... 138 
5.2 A regulamentação legal do Orçamento Participativo ..................... 142 
5.3 A discussão do orçamento para 1993 ............................................. 144 
5 .4 A dinâmica de funcionamento das Assembléias Regionais ............ 14 5 
5.5 A dinâmica do Conselho Municipal do Plano de Governo e 
Orçamento ...................................................................................... 151 
5.6 A consolidação da metodologia para a distribuição dos 
recursos orçamentários ................................................................... 15 5 
5.7 Síntese do funcionamento e da metodologia do orçamento 
participativo .................................................................................... 15 7 
5.8 A continuidade do projeto participativo: aprovação e 
reeleição da Administração Popular ............................................... 159 
Comentários e conclusões ......................................................... 167 
Notas .............................................................................................. 191 
Referências bibliográficas .......................................................... 219 
Documentação............................................................................. 228 
lista de siglas ................................................................................ 230 
Anexos ........................................................................................... 231 
Prefácio 
REFORMA OU REVOLUÇÃO? 
O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO 
E A REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO 
EmirSader * 
Não é equivocado centrar a análise de uma formação so-
cial a partir do Estado. E~te condensa em si as co.ntradições soci-
ais, expressando sua relaçao de f?rças e a hege;11orna de_ uma delas. 
No entanto a condição para nao se deter a1, para nao cortar o 
Estado das ~·elações sociais que expressa, é abordá-lo como Esta-
do de uma sociedade concreta, que sintetiza politicamente suas 
relações econômicas, sociais e ideológicas. 
Desde que o "Manifesto Comunista" colocou os funda-
mentos da natureza de classe do Estado nas sociedades capitalis-
tas, aqueles que lutam pela so.cialização elo pocl~r _e da política se 
viram diante de duas alternativas - a da clestru1çao do a parelho 
de Estado e a construção de outra forma para expressar relações 
econômicas e sociais sem dominação, nem exploração - como 
foram os casos clássicos da Rússia, da China, de Cuba - ou da sua 
reforma radical. 
A primeira alternativa supõe uma via insurrecional na luta 
pelo poder e, portanto, a capacidade de acumulação de força não 
apenas social, política e ideológica, mas também militar. A clinftmica 
particular desta faz com que ela se transforme numa espécie de 
variável independente, com mecanismos próprios de acumulação, 
em que os aspectos técnico-materiais têm um papel decisivo. 
Na atualidade, por exemplo, significa que o poderio mili-
tar norte-americano - decisivo para bloquear a possibilidade de 
triunfos insurrecionais em El Salvador e na Guatemala, com a pre-
tensão de exercer o mesmo papel na Colômbia - torna-se um obs-
táculo determinante, na medida em que o fim da bipolaridade 
mundial, com a desaparição da URSS, deixa o campo praticamen-
te livre para a atuação sem fronteiras da força militar dos EUA. 
1 O Lucia110 Fedozzi 
Dessa forma, erige-se um obstáculo técnico-militar para ,~ :ia ~n-
surrecional, fazendo da ação violenta um instrumento pnvileg1a-
do das forças conservadoras, que não poupam vítimas civis no 
uso prioritário que passaram a reservar à aviação, como as guer-
ras imperiais dos anos noventa o demonstram. 
Ainda que se instalasse um Estado revolucionário pela via 
insurrecional seu caráter democrático adequado às novas rela-, ' 
ções econômicas e sociais nunca foi assegurado - como demons-
, ' 
tram os casos já citados. Dessa forma, resta o tema da transforma-
ção revolucionária do Estado pela ação política de massas, como 
um desafio para os que lutam por uma sociedade sem exploração 
e sem dominação de classes. 
Poucos passos positivos foram acumulados pelas forças 
anticapitalistas ao longo de suas lutas. A opção exclusiva entre a 
via insurrecional ou a de um reformismo assimilado e diluído den-
tro do Estado capitalista - inibiu ao invés de fertilizar - teórica e 
praticamente - o processo de construção de um poder pós-capi-
talista. O exemplo da falta de diálogo e até mesmo de aliança es-
tratégica durante o governo de Salvador Allende no Chile forne-
ce provas dramáticas da necessidade da superação da alternativa 
reforma ou revolução, como meio de forjar o espaço - teórico e 
político - para a construção de um poder democrático de massas. 
Em meio a graves retrocessos em tudo o que se refere à 
dimensão pública do Estado, mediante a mercantilização levada a 
cabo pelas políticas neoliberais durante as duas últimas décadas 
do século XX, conquistas democráticas importantes foram logra-
das em governos municipais e estaduais no Brasil, através das 
políticas de orçamento participativo. Estas, ao transferir para a ci-
dadania organizada um tema central como o do orçamento, per-
mitem redespertar o interesse pela política e pelas questões do 
Estado, ao superar a dicotomia estatal/privado, através da qual o 
liberalismo pretende desqualificar qualquer forma de regulação 
social, em favor da regulação pelo mercado. 
As políticas de orçamento participativo, ao contrário elo 
que certas posturas podem fazem supor, não são políticas setori-
ais ou de racionalização administrativa, mas são o núcleo de uma 
radical reforma política do Estado, na direção da socialização da 
política e do poder. De tal forma que nenhum direito social estará 
efetivamente garantido sem que a cidadania tenha, através do po-
der sobre o orçamento - não apenas o gasto, mas sobre a política 
tributária em geral - poder de decisão sobre esse mecanismo fun-
damental de distribuição ou de concentração e de renda - e, com 
ela, de poder - que é o orçamento público. 
O Poder da Aldeia 11 
Estudos como O Poder da Aldeia: gênese e história do Or-
çamento Participativo de Porto Alegre, ele Luciano Fedozzi, avan-
çam na direção de aprofundar a compreensão das dimensões re-
ais do que já foi conquistado, dos obstáculos e das vias para sua 
superação. Não é um exagero dizer que este é o tema mais im-
portante da reflexão política brasileira, se se deseja elaborar uma 
plataforma não somente alternativa ao neoliberalismo, mas às for-
mas de poder propiciadas por ele e que representam a roupagem 
do capitalismo no período histórico que estamos vivendo. 
De tal forma, que podemos dizer que, quem quiser se ca-
lar sobre o orçamento participativo, deveria abster-se também de 
falar de uma democracia real, com alma social, no Brasil de hoje e 
de amanhã. 
* Emir Sac.ler é professor de Sociologia e.la USP e e.la UERJ. 
I 
Apresentação 
No início dos anos 90, o Orçamento Participativo de Porto Ale-
gre se projetou como uma das experiências bem sucedidas de participa-
ção da população nas decisões sobre o destino dos recursos públicos 
municipais. Ao completar doze anos consecutivos de existência, o mode-
lo participativo de Porto Alegre vem servindo de inspiração para a im-
plantação de formas semelhantes de gestão dos orçamentos públicos em 
cerca de noventa cidades brasileiras, de porte grande, médio ou pequeno.1 
Fruto desse efeito-denwnstraçlio sobre as possibilidades de funcionamento 
da democracia participativa, o Orçamento Participativo (doravante OP) vem 
promovendo um intenso intercfünbio nacional e internacional entre a muni-
cipalidade de Porto Alegre e outros governos locais, instituições públicas e 
privadas, organizações não-governamentais, pesquisadores e intelectuais 
· do Brasil e de outros países da América Latina, dos Estados Unidos, da 
Europa e da África. 2 Esse reconhecimento internacional foi selado quando 
a experiência de Porto Alegre foi selecionada pelas Nações Unidas como 
uma das quarenta melhores intervenções urbanas merecedoras de apresen-
tação, em 1995, na Segunda Conferência Mundial sobre Habitação Humana 
(Habitat II), realizada em Istambul. A repercussão alcançada pelo OP de 
Porto Alegre não passou despercebida pelas instituições multilaterais de 
financiamento, tais como o Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamerica-
no de Desenvolvimento (BID), cujo interesse por formas de envolvimento 
da população no controle dos recursos públicos ficou evidente em recen-
tes atividades realizadas por essas instituições em Porto Alegre e nos Esta-
dos Unidos.3 
Em conseqüência da importància assumida por essa inovação de-
mocrática, diante da longa história de autoritarismo do Brasil e da Améri-
ca Latina, o OP tem sido objeto de estudos diversos, acadêmicos ou não , 
que tentam elucidar - a partir ele disciplinas distintas elo conhecimento -
as mais diversas facetas dessa prática sócio-política. Em estudo anterior 
dissertei sobre as contribuições elo novo modelo ele gestão sócio-estataÍ 
de Porto Alegre para a superação das formas tradicionais de gestão públi-
ca que caracterizam nossa formação social e política, autoritária e patri-
monialista, e, conseqüentemente, para a emergênciadas condições insti-
tucionais necessárias à prática da cidadania nas relações entre o Estado e 
a sociedade civil (Fedozzi, 1997). O presente estudo, entretanto, não tem 
l 
14 Luciano Fedozzi 
a intenção ele ser uma obra produzida a partir dos critérios metodológicos 
próprios às ciências sociais. Trata-se, isso sim, ele uma contribuição para 
preencher, ainda que ele forma provisória e necessariamente incompleta, 
uma lacuna na bibliografia existente até boje sobre OP-PoA: como surgiu e 
como foi construída essa forma ele gestão dos recursos públicos desde os 
seus primórdios; que tipo ele conflitos, contradições e dificuldades surgi-
ram no decorrer ele sua construção? São aspectos que aguçam a curiosidade 
ele todos interessados em conhecer melhor a história elo OP-PoA. 
Por isso, no presente livro, o leitor encontrará uma sistematização 
ele dados e uma reflexão política baseadas na experiência pessoal elo autor 
- como um elos integrantes ela equipe ele governo que iniciou a construção 
desse processo e, posteriormente, como pesquisador elo tema - através ela 
(re)construção histórica ela gênese elo OP até a forma como esse modelo se 
consolidou na primeira gestão ela Frente Popular em Porto Alegre 0989-
1992), uma coligação entre o Partido elos Trabalhadores e o ex-Partido Co-
munista Brasileiro (PCB), que formou a Administração Popular (doravante 
AP). Nessa (re)construção, para a qual são utilizados dados, relatos, docu-
mentos e entrevistas, poder-se-á acompanhar a evolução elo OP e perce-
ber que, longe ele um cenário pré-determinado pela vitória elas forças polí-
ticas ele esquerda e seu discurso participacionista, a democratização do or-
çamento de Porto Alegre é resultante de uma trajetória sócio-político, cuja 
construção foi sinuosa, inusitada e complexa. 
A apreensão histórica da dinâmica de desenvolvimento dessa in-
venção democrática, no contexto específico que caracterizou a primeira 
gestão da AP, revela-se melhor, dessa forma, quando são conhecidas as 
dificuldades, os conflitos e os limites elo processo ele sua construção, no 
poder Executivo e nas relações estabelecidas entre esse e as comunida-
des, e na relação de ambos com o poder Legislativo. 
Embora a gênese histórica do OP eleva ser localizada, em sua for-
ma latente, na cultura política e na prática social elos diversos atores locais 
(tais como os movimentos associativos das comunidades e os partidos de 
esquerda atuantes na esfera pública local, principalmente, a partir de mea-
dos da década de 70), o leitor poderá perceber que, antes de uma fórmula 
pronta - simples dedução político-programática do PT (partido hegemôni-
co na Frente Popular) ou da plataforma de reivindicações do movimento 
comunitário da cidade -, o OP é resultante de um complexo conjunto de 
fatores objetivos e subjetivos que caracterizaram a realidade sócio-política 
na capital gaúcha no final da década de 1980 e início dos anos 90. 
A conquista inédita pela esquerda socialista e comunista do go-
verno da capital gaúcha, após 220 anos de história da cidade, obrigou tanto 
os dirigentes da Frente Popular, como os integrantes dos movimentos 
comunitários, a refazerem seus discursos e reavaliarem suas estratégias e 
O Poder da Aldeia 15 
práticas, diante de urna realidade extremamente complexa e refratária a 
fórmulas simplificadoras e pré-concebidas. Esse duro aprendizado para 
ambos os atores, entretanto, não serviu como justificativa para o abando-
no de um ideário firmemente sustentado, mesmo nos momentos difíceis 
de crise de governabilidade e de credibilidade nos dois primeiros anos 
da AP. Era inarredável a idéia de democratizar essa fração do Estado, tor-
nando a Administração Municipal transparente e acessível ao cidadão, 
como forma de inverter a sua tradicional utilização para fins privados e/ 
ou particularistas e colocá-la a serviço dos interesses públicos e da pro-
moção da justiça distributiva. A própria prática indicou o caminho da de-
mocratização do orçamento público - principal instrumento de gestão do 
Estado moderno - como a melhor forma de efetivar esses objetivos. 
Resumidamente, cinco fases principais, desenvolvidas em forma 
de capítulos no livro, constituem a história do OP desde a sua gênese até 
a sua maturidade em 1992: (a) o surgimento de novos atores populares 
na esfera pública local no final da década de 70, baseados no associativis-
mo comunitário e nas práticas de enfrentamento do Estado para conquis-
tar direitos urbanos, e a seguir o desencanto dessas comunidades pelo 
não atendimento das demandas na gestão do PDT (1986-1989), primeiro 
governo eleito após o regime ditatorial; (b) o surgimento de um novo ci-
clo caracterizado por enormes expectativas seguidas de frustração com o 
governo da Frente Popular a partir de 1989, pela crise de governabilida-
de da AP e conseqüente descrédito dos atores comunitários na própria 
eficácia da participação popular; (c) a virada do jogo no mandato da AP 
quando, em 1990, foi superada a crise de governabilidade em decorrên-
cia de mudanças profundas na estratégia política e nas esferas financeira, 
de planejamento e de política comunitária da Administração Municipal; 
(d) a fase de construção do novo método de planejamento participativo 
juntamente com a retomada da participação popular na gestão do muni-
cípio; (e) o desabrochar da experiência de participação consolidando o 
modelo do OP que, em sua essência, é praticado até hoje em Porto Ale-
gre.4 
Cabe destacar ainda que, como se poderá acompanhar no de-
correr do texto, embora o OP tenha se tornado o principal meio de efeti-
var a e:,fera pública de co-gestào dos recursos públicos, a sua dinâmica de 
construção deve ser compreendida considerando-se o contexto específi-
co da primeira gestão da AP, bem como a história política, social e cultu-
ral que precedeu a vitória da Frente Popular nas eleições de 1988. Sem 
intenção de produzir uma avaliação geral sobre essa primeira gestão, o 
presente estudo não poderia deixar de abordar os diversos fatores que 
contribuíram para que o OP se tornasse uma espécie de fio condutor do 
conjunto das ações da Administração Municipal. Ao mesmo tempo, o trata-
16 Luciano Fedozzi 
mento de questões atinentes à estratégia geral da AP talvez seja útil para 
demonstrar que o sucesso e a continuidade dessa experiência, através de 
sucessivas reeleições da Frente Popular, deva-se, entre outros importan-
tes fatores, ao círculo virtuoso formado por uma estratégia política que 
combinou a inversão de prioridades nos investimentos - os quais passa-
ram a ser dirigidos preferencialmente para os bairros e as vilas de baixa 
renda - com a qualificação dos serviços e da infra-estrutura universalmente 
estendidos a toda a cidade. 
Ao completar doze anos consecutivos, o saldo do OP parece ser 
positivo: são cerca de e.luas mil obras e atividades aprovadas e em grande 
parte executadas principalmente a partir das necessidades reais aponta-
das pelas comunidades historicamente excluídas do desenvolvimento urba-
no.s Saneamento básico, regularização fundiária e habitação, pavimentação 
ele vias, educação, saúde e transporte são os setores prioritários elos inves-
timentos públicos que indicam a característica redistributiva e de inclusão 
social elo sistema criado pelo OP, em meio a uma realidade nacional ele 
crise e de desmonte elo Estado e elas políticas públicas, que tem levado à 
crescente exclusão social ele grandes contingentes humanos. 
Por isso, este livro tem a singela intenção de contribuir para his-
toriar a forma pela qual o porto-alegrense vem construindo a sua cidada-
nia, talvez, a obra mais importante semeada na árdua luta pela sobrevi-
vência das classes populares desde os anos 70, e ora inaugurada através 
das oportunidades desencadeadas pelo OP a partir ele 1989. 
I 
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO 
GOVERNO MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE 
1.1 O contexto sócio-político que 
antecedeu a vitória da Frente Popular 
O Brasil viveu profundas transformações econômicas, sociaise po-
líticas entre as décadas de 1950 e 1980. Nesse período, em que o país dei-
xou de ser agrário-exportador para tornar-se predominantemente urbano e 
industrial, responsável pelo oitavo PIB mundial, a população das cidades foi 
acrescida de mais de 60 milhões de pessoas, 29 milhões somente durante os 
anos 80, passando as áreas urbanas a concentrar 2/3 da população brasileira 
(Davidovich e Fredrich, 1988, p.16). Esse extraordinário processo migratório 
- um dos maiores do mundo contemporâneo - foi impulsionado pelo mode-
lo de niodernizaçào conservadora gestado no período de 1930-50 e intensi-
ficado pelo regime ditatorial a partir de 1964.6 Ligada à manutenção da secu-
lar estrutura fundiária no campo (herdada do período colonial), a moderniza-
çào urbana e industrial promoveu um processo de concentração de riquezas, 
de renda, de terras urbanas, de acesso seletivo aos equipamentos e serviços 
públicos, sem precedentes no país, tornando os pólos de desenvolvimento 
capitalista no Brasil, principalmente as capitais e as regiões metropolitanas, 
cenários emblemáticos da situação de desigualdade, de segregação urbana, 
de degradação ambiental e de escalada da violência que caracteriza o apar-
theid social em que está mergulhada a sociedade brasileira nesse final de 
século - uma das nações mais desiguais do mundo, conforme apontam os 
sucessivos relatórios da ONU.7 
Essa situação de crise social se agravou com o esgotamento do 
modelo autoritário-desenvolvimentista a partir da crise econômica e da re-
cessão no início dos anos 80, aprofundando a deterioração das condições 
de vida da maioria da população brasileira. Empobrecimento em níveis re-
cordes, fracasso das políticas públicas de saúde, de educação e de financi-
amento para a moradia popular, carência de infra-estrutura urbana e ele 
serviços, degradação do meio ambiente e aumento da violência avoluma-
ram-se na década ele 80. 
18 Luciano Fedozzi 
Além dos conhecidos fatores histórico-estruturais de nossa forma-
ção social, autoritária e excludente, também os sucessivos fracassos dos 
governos de transição e do período pós-transição contribuíram para a situ-
ação de cronicidade ela crise brasileira, em que a forma democrática e cons-
titucional dos governos que sucederam o regime militar "falhou em apare-
cer como instância política com credibilidade mínima para medir os confli-
tos mais amplos ela sociedade e os interesses em jogo, como também fra-
cassou em organizar eficaz e racionalmente o próprio funcionamento elo 
aparato ele Estado" (Paoli, 1992; Mello, 1993). A continuidade ele práticas 
tradicionais, patrimonialistas e clientelistas, de apropriação privada e/ou 
particularista elo Estado, a oligopolização e monopolização ela economia e a 
total submissão do país ao capital financeiro internacional, somados ao des-
monte das políticas sociais e elas funções públicas promovido pelo neoli-
beralismo, 8 det~rminaram um quadro ele fraqueza elo poder público e ele 
crise social sem precedentes na história brasileira. Como indicam os sinais 
e os sintomas sociais emanados elas ruas, especialmente nas metrópoles e 
nas grandes cidades brasileiras, essa crise vem acompanhada ela degrada-
ção dos padrões ele sociabilidade cotidiana, verificando-se um crescente 
processo ele "individualização alienada ou anômica, síndrome ele uma soci-
edade fragmentada" (Warren-Scherer, 1993), representada pela perda ele 
referências a valores que até então expressavam uma cultura aproximati-
va das pessoas e pela ausência ele "valores éticos ela coisa pública que 
impedem a criação ele horizontes coletivos mais duráveis, sociais e políti-
cos" (Paoli, 1992). Essa dupla crise nacional, elo Estado e elas formas ele 
sociabilidade, agravada pelo fenômeno ela globalização e ela reestruturação 
produtiva em curso no cenário internacional, revela um quadro novo na 
articulação elas instâncias federativas, em que o fim elo Estado-nação tende 
a ser complementado pela revigoração elas instâncias locais. 
Apesar ele o neolocalismo ensejar uma curiosa situação ele conver-
gência entre as agendas neoliberal e elas esquerdas em torno da descentra-
lização ela política social,9 diversos estudos têm mostrado que as mudanças 
provocadas pela globalização vêm promovendo processos ele "clesinclustri-
( alização, clesmetropolização e clesassociação profunda entre a reprodução 
elo capital e a reprodução ele um vasto contingente populacional cuja qua-
lificação não o habilita a entrar no novo sistema produtivo, desafiando os 
paradigmas ele gestão local diante das novas formas ele exclusão social, 
cujas conseqüências são mais graves elo que aquelas provocadas pelo pro-
cesso de 'espoliação urbana" (Ribeiro e Santos Júnior, 1994). Como se sabe, 
o processo ele espoliação urbana refere-se ao "somatório ele extorsões que 
se opera através da inexistência ou precariedade elos serviços ele consumo 
coletivo que - conjuntamente com o acesso ~1 terra e à habitação - se apre-
sentam como socialmente necessários a subsistência elas classes trabalhado-
ras" (Kowarick, 1979, p.59). A noção de "espoliação urbana decorre da 
O Poder da Aldeia 19 
constatação de que a industrialização e a urbanização periféricas fazem nascer 
amplas necessidades coletivas de reprodução, mas a intervenção do Estado 
é absolutamente limitada para atendê-las. Os fundos públicos são prioritari-
amente destinados ao financiamento imediato da acumulação do capital e, 
quando se dirigem ao consumo coletivo, privilegiam as camadas de maior 
renda" (Ribeiro, 1994, p.273-4 ln: Ribeiro e Santos Júnior, 1994). Ocorre 
que as transformações provocadas pela globalização e pela reestruturação 
produtiva - com a precarização das relações de trabalho, a terceirização e a 
proliferação da economia informal- acompanhadas do desmantelamento 
elo setor público nacional, acentuaram o processo ele fragmentação urbana 
no Brasil a partir dos anos 80, indicando que uma parcela considerável da 
população estaria passando de uma situação estrutural ele exploração - con-
forme descrita pela noção ele espoliação urbana - para uma posição estru-
tural de irrelevância, ou seja, de exclusão social, configurando-se uma nova 
categoria de pobreza urbana cujas implicações sociais, políticas e culturais 
são imprevisíveis (Ribeiro, 1994, p.273-4 ln: Ribeiro e Santos Júnior, 1994, 
p.261-289). 10 
Porto Alegre e a Região Metropolitana (RMPA), embora apresen-
tem indicadores sociais que as distinguem positivamente em comparação 
às outras regiões elo país, 11 não ficaram à margem das conseqüências oriun-
das elas profundas transformações na estrutura sócio-econômica do país. O 
fluxo migratório do interior, principalmente em busca da oportunidade de 
empregos e de renda, aliado ao descenso social gerado pela deterioração 
dos salários, levou a RMPA a aumentar a sua população, em relação à po-
pulação total do Estado do Rio Grande do Sul, de 18,9% em 1960, para 
31,5% em 1985 e 41,66% em 1991 (IBGE, 1991). Durante a década de 70, 
as taxas de crescimento demográfico da RMPA e da capital foram bem maiores 
que a média do Estado, sendo respectivamente de 45,8% e 27,1%, compa-
rativamente à taxa média de crescimento de 16,6% no RS. Composta por 
vinte e dois municípios que, em grande parte, cumprem funções de repro-
dução da força de trabalho a custos baixos, a RMPA abrigou a maior parte 
da população vinda do interior, comparativamente à capital (IBGE, 1980). 
1.1.1. A questão da habitação e do acesso à cidade 
A expansão dos núcleos favelados formados por assentamentos 
autoproduzidos (ocupações) em áreas irregulares ou clandestinas, públicas 
e/ou privadas, é uma das principais conseqüências do modelo desenvolvi-
mentista de caráter espoliador e excludente que hegemonizou a história do 
Brasil. Em Porto Alegre, as origens do processo de favelização remontam à 
década de 1940, por volta de 1946, quando se intensificaram o êxodo rural 
e também a migração para fora das fronteiras do Estado, em virtude das 
profundas transformaçõeseconômicas que alteraram as relações de produ-
( 
20 Luciano Fedozzi 
ção e de propriedade rural, levando à liberação de mão-de-obra nos mini-
fúndios e nos latifúndi~ Estudos sobre esse período (correspondente aos 
governos estaduais de -~tlter Jobim e de Ernesto Dorneles, de 1947 a 1955) 
demonstram qu~,~esar elo crescimento e do aumento da renda interna da 
economia gaúcha, na maioria desses anos, a situação econômica e social do 
Estado apresentava graves problemas: "êxodo rural, fuga para as cidades 
do RS e para as fronteiras agropecuárias do Brasil, extrema polarização da 
estrutura fundiária, esgotamento (apropriação prévia) de terras virgens no 
RS, aumento do desemprego e das favelas, dificuldades em aparelhar as 
cidades, em dotar o Estado de transporte e energia elétrica, dificuldades 
em alimentar a preços condizentes a maioria da população" (Müller citado 
por Ferretti, 1984, p.112-13). 
Nesse contexto de profundas transformações sócio-econômicas e de 
intensa migração, em que a precariedade da moradia popular e a desigualdade 
de acesso à ocupação e ao uso cio espaço urbano passam a ser considerados 
problemas políticos, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) criou a 
Superintendência da Habitação, em 1940, primeiro órgão estatal com funções 
específicas para executar a política habitacional de caráter social no município. 
Posteriormente modificada para Serviço da Habitação Popular, em 1951, e De-
partamento Municipal da Casa Popular, em 1952, essa unidade administrativa 
transformou-se, em 1965, no atual Departamento Municipal de Habitação (DE-
Fotografia 1. 
O Poder da Aldeia 21 
MHAB), por exigência do Sistema Financeiro da Habitação e do BNH, criado 
em 1964 pelo Governo Federal. Entretanto, a favelização em Porto Alegre 
tornou-se uma questão de relevância estatal somente por volta de 1951, quan-
do surgem os primeiros estudos tentando compreender e explicar esse fenô-
meno. Baseados, fundamentalmente, na análise de caráter psicossocial em voga 
na época, esses estudos são reveladores da concepção sociológica paternalista 
e moralizante que imperou no enfoque oficial do levantamento da realidade 
das vilas de malocas que cresciam na capital (Ferretti, 1984, p.117-24).12 A 
atuação da municipalidade através do DEMHAB, nesse período, deu-se basica-
mente através da constituição ele loteamentos para atender ao crescimento de-
mográfico e à pressão social e política por habitações. A criação das vilas pas-
sou a ocorrer através de uma lógica em que constituíam-se loteamentos, como 
solução emergencial, prevendo-se a futura instalação de infra-estrutura pela 
Prefeitura, com repasse dos custos para os proprietários. Entretanto, a prolife-
ração de situações irregulares de vilas implantadas pelo Departamento, 13 so-
mados à ampliação de loteamentos privados implantados de forma irregular 
nas adjacências elo perímetro central, 14 bem como à formação de novos núcle-
os ele vilas na zona periférica ela cidade, determinou um quadro ele ocupação 
caótica do espaço urbano na década ele 50, formado por vilas e por loteamen-
tos mal equipados ou sem qualquer tipo ele equipamento público. 
Esse processo ele crescimento urbano e ocupação desigual do es-
paço físico ela cidade foi acompanhado por intensa polarização política por 
meio elos pa1ticlos que disputavam o apoio elas massas no período (PSD, PL, 
UDN, PTB e clandestinamente o PCB): 
Os chamados 'maloqueiros'possuem consciência da situaçâo em que se en-
contram, em grande parte devido à açâo dos partidos políticos e dos comu-
nistas introduzidos no meio (. . .) nos demais bairros, a situaçâo geral é de 
acomodaçâo e passividade ( .. .) as atividades políticas sâo muito intensas e 
num estado de exaltaçâo nas vilas de malocas. Isto devido ao fato de situa-
çâo ser explorada continuamente em benefício de partidos legais (PTB) ou 
ilegais (PCB) (Comissâo Interestadi_wl da Bacia Parcmá-Uniguai. Estudo de 
uma capital: Porto Alegre. Sâo Paulo, 1958 citada por Ferretti, 1984, p.118). 
A partir de 1964, em Porto Alegre, após a cassação do prefeito 
trabalhista Sereno Chaise (PTB), 15 os sucessores passaram a ser nomeados 
pelo governo militar, dentro ela política elo novo regime. O regime ditatorial 
pautou as suas políticas urbanas basicamente a partir de padrões tecnocráti-
cos ele gestão, em que os atores populares não eram reconhecidos como 
sujeitos portadores ele direitos e nem como interlocutores legítimos para a 
negociação ele suas demandas perante o Poder Público. Nesse período, a 
administração municipal articulou-se prioritariamente com interesses empre-
sariais, realizando investimentos em áreas estruturadas da cidade, onde resi-
diam as classes niédia e alta, assim como em áreas urbanas, que, devido aos 
investimentos públicos e privados, foram valorizadas e integradas ao merca-
22 Luciano Fedozzi 
do imobiliário. A cidade não ficou imune ao vertiginoso aumento da faveliza-
ção que ocorreu nas capitais e nas metrópoles brasileiras. Como mostra a 
tabela a seguir, no início ela década ele 1970, a fisionomia urbana ela cidade 
apresentava 124 vilas ele subabitação, representando 11.14% ela população. 
No início dos anos 90, esse número saltou para 249 vilas e 33.66% da popu-
lação, ou seja, mais ele 400 mil pessoas vivendo em cerca ele 106 mil barra-
cos. A cidade irregular e informal cresceu a taxas ele 8% a 9% ao ano, en-
quanto a outra Porto Alegre, legal e formal, teve um crescimento anual ele 
apenas 1,9% (SPM/PMPA, 1990). 16 
Tabela A. Evolução das subabitacões em Porto Alegre. 
Ano Nº de N· Ili! barracos População 
· vilas favelada 
19~1 · 4 3.965 16.303 
1965 56 13.588 65.595 
1972173 · 124 20.152 105.833 
1980/81, 145 38.093 171.419 
1982/83 ·. 167 39.909 180.489 1987 .... 183 60.889 274.000 
1988 212 72.555 326.043 
1990 212 98.000 393.043 
1991 249 106.000 425.000 
Fonte. Secreta na do Planeiamento Municipal, 1991 (dados estimativas). 
*Dados oficiais de Censo-lBGE-1991. 
População % 
total pop. fav./ 
pop. total 
394.151 4,13 
748.878 8.76 
950.142 11.14 
1.125.901 15,22 
1.275.483 14,15 
1.307.562 20,95 
1.334.247 24,47 
1.387.588 28,32 
1.262.631 * 33,63 
.( 
,:.)· \ > \ Acrescente-se que, além elas conhecidas causas estruturais do pro-
i!-}· . 't. esso de espoliação - ligadas à migração à concentração de renda, à au-\t~"4. - ~ . d , 
\,{/( · ; , s,encia . e política habitacional para as camadas de baixa renda -, outros 
\\1.\ :f,:'.· / fatores intra-urbanos contribuíram para agravar a situação de desigualdade 
J.. n_o acesso aos direitos urbanos básicos e sua conseqüente segregação só-
. cro-espa~ial: o empobrecimento interno ela população de Porto Alegre 17 e 
o elevado número ele vazios urbanos especulativos. Na década de 80, um 
percentual de 41,88% da área total da capital estava nas mãos de grandes 
construtoras, incorporadoras e especuladores imobiliários. Mais grave é que 
os cem maiores proprietários de terra detinham 47 ,67% das áreas vazias da 
cidade, sendo que 18,6% dessas, utilizados como reserva de valor, estavam 
localizadas em áreas de ocupação intensa, por disporem de infra-estrutura 
e serviços_ públicos (Oliveira e Barcellos, FEE/RS, 1989).18 
\;À _expulsão de núcleos de subabitação das áreas ocupadas pela 
população de baixa renda, por meio de programas de erradicação para 
áreas longínquas e sem infra-estrutura urbana realizadas, inicialmente, atra-
vés de remoções forçadas e violentas, foi uma das formas da gestão urbana 
utilizadas nesse período (Guareschi, 1980; Ferretti, 1984, 1993; Liedke Fi-
lho e Ferretti, 1993; Baierle, 1992). Ao mesmo tempo, as administrações 
O Poder da Aldeia 23 
l 
', 1 
i 
Fotografia 2. Remoções violentas marcaram a ação do poder público na década de 1970. 
municipais do regime ditatorial buscaram cooptar parcelas das comunida-
des, por meio de práticas políticas tradicionais, clientelistas e patrimonialis-
tas, ou através da elaboração de uma série ele programas e projetos que 
buscavam neutralizar possíveis movimentoscontestatórios, assim como uti-
lizá-las no processo de disputa eleitoral (Guareschi, 1980; Ferretti, 1984). 
fse entre 1950 e 1972 foram removidas 62.151 pessoas pelo Departamento 
'-'"1vlunicipal de Habitação (DEMHAB), em apenas cinco anos, entre 1971 a 
1976, esse contigente chegou a 33.286 moradores e 7.741 famílias, sendo 
que desse número, 19.255 pessoas foram levadas para outros municípios 
da RMP A e o restante para áreas distantes, sem infra-estrutura urbana e 
sem oportunidades de emprego próximos ao local de moradia. Muitas des-
sas remoções acabaram constituindo núcleos de subabitações com alta con-
centração populacional na capital, a exemplo das Vilas Mato Sampaio e 
Fátima-Pinto, na Zona Leste, Maria da Conceição, no bairro Partenon, São 
Vicente Mártir e Restinga na Zona Extremo-S'@7(Guareschi, 1980:106). O 
caso da Restinga é emblemático. Localizada ,t22 Km do perímetro central 
e isolada dos equipamentos urbanos, a Restinga foi criadá a partir de 1964 
pela Prefeitura (com financiamento do Plano Nacional de Habitação Popu-
lar), para funcionar como centro de triagem da população. Entre os anos de 
24 Luciano Fedozzi 
1971-76 chegou a receber 2.020 famílias removidas de outras vilas (sendo 
1.273 na Restinga Velha e 747 na Restinga Nova), tornado-se, na década 
de 90, um bairro com mais de 100 mil moradores de baixa renda, cuja 
relação com o poder público (Executivo e Legislativo) foi marcada por for-
te conteúdo clientelista na distribuição das casas. i9 
Ainda na década de 70, foram lançados diversos programas e proje-
tos estatais relacionados direta ou indiretamente com o problema social e 
político da crescente favelização em Porto Alegre. Além do projeto CURA 
(Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada), instituído nacionalmente 
e financiado pelo BNH, em 1972, cuja intenção era promover a urbanização 
das cidades (não se destinando, portanto, à produção de unidades habitacio-
nais), destacam-se os programas Pró-Gente I e o Pró-Gente II, elaborados 
pela Prefeitura com financiamento do BNH, respectivamente em 1975 e 1977, 
quando assumiu o prefeito Guilherme Sociais Villela (da ARENA, depois PDS, 
hoje PPB), nomeado pelo regime e reconduzido para a gestão 1979-85. 20 
Destinados à população de baixa renda, os programas prometiam abastecer 
de infra-estrutura os núcleos de subabitação, especialmente do DEMHAB, 
sem remoções e sem reeditar o deslocamento das populações para áreas 
longínquas, a exemplo da Restinga. 
Entretanto, a prática da remoção pura e simples somente foi obsta-
culizada no final nos anos 70, em razão da intensa mobilização dos morado-
res das áreas de subabitação que, como será visto mais adiante, emergiu na 
esfera pública local como movimento social de massas nos anos 1978-79, 
momento de crescente contestação ao regime ditatorial e de fortalecimento 
da sociedade civil no país. Entretanto, outros dois projetos são reveladores da 
concepção autoritária predominante nas instftncias governamentais quanto ao 
tratamento dos problemas da expansão quantitativa e espacial da pobreza 
em Porto Alegre: a aprovação, em 1979, do Plano Diretor de Desenvolvi-
mento Urbano (I PDDU)21 e o PROMORAR. 
No processo de elaboração e aprovação do I PDDU, a prática au-
toritária do regime vigente beneficiou-se da concepção tecnocrática domi-
nante no corpo burocrático do setor de planejamento urbano. Ao se "orien-
tar pela noção tecnocrática da racionalidade máxima possível em condi-
ções econômicas tendencialmente monopolistas, o I PDDU veio ao encon-
tro dos interesses fundamentais elos grandes grupos econômicos imobiliári-
os, financeiros e da construção civil, ainda que regulando em parte suas 
áreas e formas de atuação" (Liedke Filho, Ferretti, 1993, p.167). 
Nesse processo, duas questões merecem ser destacadas. Elas são 
reveladoras ela concepção tecnocrática que orientou os dirigentes políticos e 
o corpo técnico ela Prefeitura - com o aval de parcela dos vereadores - no 
tratamento dispensando aos problemas ela ampliação ela segregação sócio-
espacial ela população pobre na cidade e do modelo autoritário que prevale-
ceu na relação entre o Executivo e os movimentos populares. 
O Poder da Aldeia 25 
Em primeiro lugar, a desatualização dos dados a respeito das áreas 
de subabitação tornou incompatíveis os princípios normativos de fixação 
da população de baixa renda e a definição do uso de áreas previstos no I 
PDDU. O crescimento da população por área de subabitação, nos anos en-
tre 1965 e 1981, o tempo de existência dessas áreas e o número de barra-
cos não foram compatibilizados pelo planejamento, para efeitos da destina-
ção do uso do solo urbano em conformidade com o Plano Diretor (Ferretti, 
1984). O desconhecimento, por parte da SPM, da real situação habitacional 
da população moradora em áreas entào definidas pelo Plano como de pre-
servação ambiental, lazer, etc. criou uma discrepância entre a formalidade 
legal e a situação real de uso das áreas, trazendo novos conflitos entre a 
administração municipal e os moradores de vilas irregulares ou clandesti-
nas, 22 que passaram a desenvolver lutas de autodefesa pela sua fixação nos 
locais de moradia, pela posse da terra e por bens e serviços públicos bási-
cos. Conforme apontou Ferretti a respeito da elaboração do PDDU em 1979: 
a última informaçâo mais completa sobre o problema da subabitaçâo em 
Porto Alegre é de 1973, quando o DEMHAB procedeu levantamento sócio-
econômico em todo o município. Tentativas de atualizaçâo foram feitas, 
inclusive contando com a participaçâo da SPM, porém, sem os resultados 
esperados. Em contrapartida, a fonte que poderia fornecer com maior cla-
reza cl situaçâo física das áreas de subabitaçâo, ou seja, o levantamento 
aerofotogrmnétrico, também se encontrava desatualizado, datando o últi-
mo de 1956. E foi utilizando estafante e mais informações do DEMHAB sobre 
vilas onde tinha jurisdiçâo, que se baseou o Plano Diretor na sua reavalia-
çâo em 1979. Em função disso, muitos locais onde havia subabitações foram 
destinados a usos não compatíveis com a habitação. Nesse mesmo tempo, 
começaram a surgir movimentos nas vilas pela recuperação das mesmas e con-
seqüente posse da terra. Por outro lado, o governo {federal] acenava esta pos-
sibilidade através da reabilitaçâo de alguns programas do BNH nâo implan-
tados até o momento, ressurgindo com o nome de Programa de Erradica-
çâo da Sttbabitaçâo- PROMORAR (Ferretti, 1984, p.110-11). 
O segundo aspecto diz respeito à exclusão política dos segmen-
tos populares no sistema decisório de gestão do espaço urbano e das 
políticas públicas do município. Aspecto que ficou evidenciado tanto pela 
representação meramente formal conferida à participação comunitária no 
Conselho do Plano Diretor, como também pela tentativa da Prefeitura de 
esvaziar as Associações de Moradores, retirando-lhes o caráter de instân-
cias autônomas e de reivindicação por bens e serviços públicos que ca-
racterizava uma parcela significativa da mobilização popular desde mea-
dos da década de 70. 
Referindo-se à participação da comunidade como princípio-coro-
amento do sistema de planejamento, o Plano previa que essa deveria ocor-
rer mediante a criação de Associações de Moradores (AMs) corresponden-
tes às UTPs (Unidades Territoriais de Planejamento),23 desde que reconhe-
~' 
26 Luciano Fedozzi 
cidas pela administração municipal segundo um estatuto-padrão e cuja fun-
ção básica seria encaminhar as questões atinentes à área de abrangência da 
UTP. "Ocorre que já existia e era de pleno conhecimento da administração, 
uma organização de AMs constituída pelo movimento autônomo da popu-
lação, em torno da FRACAB (Federação Rio-grandense ele Associações Co-
munitárias e Amigos de Bairro)" (Ferretti, 1984, 1993), entidade de atuação 
estadual. que, como se verá mais adiante, foi reorganizada em 1977. Na 
medida em que não havia coincidência entre a área de abrangência das 
AMs e a área das UTPs previstas no Plano, o movimento denunciou essú 
tentativade duplicação da representação. Essa prática, corrente no Estado, 
era utilizada para dividir os moradores das vilas e bairros populares e, com 
o Plano, pretendia institucionalizar-se. Todavia, a mobilização ele setores 
populares e de entidades democráticas (FRACAB, sindicatos, etc.) impediu 
a aplicação desse dispositivo de tutela do Estado, revogando-o quando o 
projeto de lei foi submetido à aprovaçfto da Càmara de Vereaclores.24 Não 
obstante, prevaleceu uma representação meramente formal da população 
no Conselho do Plano Diretor: vinte e um membros indicados pelo Prefeito 
e submetidos à prévia aprovação da Càmara, dentre os quais 9 represen-
tando o município, 8 representando as entidades de classe e organizações 
governamentais estaduais, e 4 escolhidos pelas entidades comunitárias re-
presentando as 4 zonas em que a cidade foi dividida, segundo critérios 
técnicos do Plano. 
Essa composição aliada à forma de indicação dos representantes -
através de listas submetidas à aprovação do Prefeito -, determinou uma 
situação de sub-representação da população, agravada pela assimetria de 
poder existente entre as forças sociais e econômicas que atuam no espaço 
urbano. Conforme analisaram Oliveira e Barcellos 0993, p.261-2), 25 "o fó-
rum constituído pelo Conselho espelhou uma composição semelhante ao 
jogo de dominação que se pode identificar no espaço urbano, na medida 
em que a cidade é o lugar onde se defrontam, de um lado, os proprietários 
fundiários e imobiliários, os incorporadores, as empresas da construção ci-
vil, os empreiteiros de obras e os concessionários de serviços públicos e, 
de outro lado, aqueles que nela buscam morar e viver seu cotidiano". A 
reflexão elas autoras, integrantes do Conselho do Plano Diretor, é bastante 
elucidativa do modus operandi dessa instància: 
Neste colegiado, observamos posições que manifestam claramente a exis-
tência de interesses fortemente articulados, corno é o caso da Sociedade de 
Engenharia e do Sindicato da Indústria da Construçiio Civil. Com relaçiio 
aos interesses das classes populares, verificamos que nem sempre os repre-
sentantes comunitários conseguem traduzi-los com a mesma sintonia que 
marca a presença das reivindicações dos setores privados. Entretanto, .al-
gumas entidades(. . .) atuam orientadas por princípios democráticos, a partir 
dos quais é possível desenhar urna cidade em que o acesso aos benefícios 
O Poder da Aldeia 27 
seja mais igualitário e a ocupação dos espaços seja menos especulativa(. . .) 
a exemplo do Instituto dos Arquitetos e da Ordem dos Advogados do Brasil 
(Oliveira e Barcelos, 1993, p.261). 
Quanto ao PRO MORAR, trata-se do Programa de Erradicação da 
Subabitação criado em 1979 pelo Governo Federal, através do BNH, com 
o objetivo anunciado de recuperar e urbanizar áreas faveladas e ouvir as 
Associações de Moradores. 26 Conforme indicam alguns estudos, esse pro-
grama de âmbito nacional objetivou responder a duas macrofunções do Es-
tado: uma de ordem política e outra de ordem econômica. A primeira ques-
tão dizia respeito à necessidade do regime autoritário de enfrentar o novo 
contexto político do país, no qual a rearticulação partidária e a ativação da 
sociedade civil, por meio do revigoramento de instâncias de organização, 
tais como as Associações de Moradores, detei-minava um papel político-
eleitoral maior das favelas que passaram a reivindicar e ter peso nas deci-
sões da política habitacional (Ferretti, 1984; Valladares, 1978; Singer, 1980). 
Ou seja, a conjuntura política não permitia mais que o problema da faveli-
zação crescente nas grandes cidades fosse tratado com o uso da força do 
Estado ou mediado apenas por critérios técnicos da burocracia estatal. Por 
outro lado, alguns estudos apontam para outro aspecto contido nos progra-
mas do SFH. Trata-se do papel desenvolvido pelo Estado na criação das 
condições estruturais para a acumulação do capital em geral e, nesse caso, 
especialmente do capital financeiro e imobiliário, ou seja, trata-se de per-
ceber, "entre as múltiplas facetas do SFH, a transformação gradual da polí-
tica habitacional em política financeira C.. .) a contagem e o acionamento de 
um complexo e gigantesco sistema financeiro, onde o Estado é o principal 
promotor da captação da poupança interna e seu administrador" (Lisboa 
Júnior et alii citados por Ferretti, 1984, p.108). 
Em Porto Alegre, através do DEMHAB, quase um terço das áreas 
de subabitação existentes no início dos anos 80 (46 dentre 146) foram in-
cluídas formalmente no PROMORAR (o Pró-Gente havia sido cancelado 
pela Prefeitura). Entretanto, o programa sofreu críticas e foi contestado pe-
las Associações de Moradores e pela FRACAB, principalmente porque as 
comunidades afetadas perceberam os aspectos de segregação social e es-
pacial contidos no modelo de urbanização proposto, qual seja: construção 
exígua das unidades habitacionais (sala e cozinha, sem banheiro), ausência 
de previsão de infra-estrutura, condições financeiras exigidas fora dos pa-
râmetros reais da população (renda fixa), previsão de remoção de famílias, 
além de exigências técnicas pouco flexíveis para construção e urbaniza-
ção. Em razão disso, o programa, ainda em 1979, sofreu alterações que 
implicaram o abandono da construção de moradias para concentrar-se ex-
clusivamente nas atividades de recuperação urbana com implantação de 
infra-estrutura e vias de acesso. Não obstante, a persistência de impasses 
quanto à remoção das famílias das áreas a serem recuperadas, somada aos 
( 
28 Luciano Fedozzi 
demais problemas apontados, acarretou que os resultados do programa fos-
sem pífios. O PROMORAR ficou na fase dos levantamentos de dados sen-
do que apenas três vilas receberam a implementação do plano (Guareschi, 
1980; Ferretti, 1984; Ribeiro, 1991). 
1 2 O surgimento de novos atores 
populares na esfera piíblica local 
A conjuntura pós-eleições de 1974, quando ocorreu a primeira der-
rota eleitoral do regime ditatorial para a oposição aglutinada no MDB, levou 
o regime a incorporar outros fatores de ordem política envolvidos com a 
questão urbana, já que o debate na esfera pública, apesar da repressão, ex-
trapolava a forma estritamente técnica que delimitava (e controlava) o trata-
mento dispensado ao tema do desenvolvimento urbano. Segundo Ferretti, a 
partir da metade da década de 70 até meados dos anos 80, a atuação da 
municipalidade, no discurso, foi ofensiva. Além dos Projetos Pro-Gente I e II 
já citados, a Prefeitura tomou a iniciativa de organizar diversos programas, 
sendo os mais importantes: (a) "elaboração, pela Secretaria Municipal de Obras 
e Viação (SMOV), do 'Plano Comunitário de Pavimentação' ( ... ) prevendo a 
partilha dos custos da pavimentação entre a comunidade interessada e o Es-
tado; (b) início, pelo Executivo Municipal, de programa de descentralização 
:nunicipal, com atendimento de audiências nos bairros da cidade; (c) elabo-
:ação, pelo Centro de Desenvolvimento Social, de projetos de educação na 
?eriferia de Porto Alegre - projeto a ser executado através dos Centros Soci-
ais Comunitários; (d) criação do Gabinete de Atendimento das Reivindica-
;;ões dos Bairros (GAREB)·, ligado às Associações de Moradores e à FRACAB 
Lcom a redemocratização da entidade, em 1977, o GAREB tentou desenvol-
ve~ uma organização comunitária paralela]; (e) reativação da Comissão de 
Bairros como parte das decisões do I Seminário de Obras em Vias Públicas; 
CO participação da população no Conselho do Plano Diretor; (g) tratamento 
urbanístico especial para áreas de subabitação, pelo I Plano Diretor" (Ferret-
ti, 1984, p.160-1). 
Não obstante o caráter ofensivo das políticas do regime autoritário, 
na segunda metade da década de 70, numa conjuntura nacional de avanço 
das lutas pela redemocratização do país, o movimento associativo elos mora-
dores de bairros de Porto Alegre constituiu-se, progressivamente, como um 
espaço público de desenvolvimento de práticas de organização das classes 
populares para a reivindicaçãode direitos relacionados ao acesso ao solo 
urbano, aos equipamentos de infra-estrutura e aos serviços públicos. Nessa 
época o movimento sindical, em geral, ainda se ressentia da vigilância e da 
repressão política por parte da ditadura. Um dos momentos marcantes de 
nova postura de autonomia e independência de parcela significativa das As-
sociações de Moradores (AM's) atuantes em Porto Alegre e no Rio Grande do 
O Poder da Aldeia 29 
Sul, diante das práticas autoritárias e clientelistas patrocinadas pelo poder 
público municipal e estadual dirigidos pela ARENA, foi a retomada e a rede-
mocratização da Federação Rio-grandense de Associações Comunitárias e 
Amigos de Bairro (FRACAB), em 1977. 
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Fotografia 3. Encontro da FRACAS em Porto Alegre. 
Fundada nos anos 50, a entidade encontrava-se nos anos de chumbo 
sob a influência política e sob a dependência financeira do Estado. Com a 
vitória da oposição para a diretoria ela FRACAI3, a entidade veio a fortale-
cer setores dos movimentos sociais que encaminhavam as suas lutas cotidi-
anas baseadas na noção elos direitos e não mais por meio ela pura sujeição 
aos favores elo poder político institucionalizado e elos seus representantes. 
Apesar ela forte disputa interna que se estabeleceu entre facções políticas 
após a sua retomada, na entidade 
tornou-se possível a centralizaçâo de recursos materiais, de apoio técnico, 
jurídico e político necessários para impulsionar, de forma autônoma e in-
dependente do Estado, a organizaçâo inicial dos movimentos urbanos e 
suas lutas. A partir de 1977, a sede da entidade tornou-se um lugar de re-
ferências, onde eram criadas as oportunidades para encontros, trocas de 
experiências e construçâo de redes de solidariedade dos movimentos entre 
si e destes com setores da sociedade que se ident{ficavmn com as propostas 
e promessas de mudanças que estes traziam. Profissionais liberais, técni-
( 
30 Luciano Fedozzi 
cos de nível superior, estudantes, igrejas, sindicatos, militantes de partidos 
clandestinos e políticos de oposição encontravam nos espaços da FRACAB 
um lugar para o debate político e encaminhamento de ações unitárias numa 
conjuntura em que, apesar da proclamada abertura, ainda ocorriam pri-
sões e perseguições políticas (Menegat, 1995, p.95-6).27 
O perfil oposicionista assumido pela entidade sofreu fortes repre-
sálias por parte do Estado e da Prefeitura. O poder público tentou impedir 
0 trabalho da Federação através de várias formas: primeiro, cortando o sub-
sídio, o que obrigou a entidade a buscar doações financeiras; segundo, o 
Estado realizou uma investigação com o objetivo de encontrar motivos para 
o fechamento da entidade; terceiro, a Prefeitura criou uma organização pa-
ralela, o Conselho Metropolitano de Porto Alegre (Conselhão), buscando 
articular todas as associações da capital e da Região Metropolitana e criar 
associações de bairros onde não havia; quarto, criou o Movimento Comuni-
tário Gaúcho (Guareschi, 1980, p.130-9). 
Apesar disso, as iniciativas de caráter mais abrangente, tais como o 
Conselhão, não tiveram o êxito esperado, provavelmente devido ~l falta de 
interesse da população. Não obstante, como mostram os estudos de Guares-
chi (1980) e de Ferretti (1984), a prática de cooptação de lideranças comuni-
tárias, principalmente pela ARENA através do poder público, e também por 
políticos do MDB, em troca de favores pessoais, era comum naquele contex-
to. Entretanto, no final da década de 70 e início dos anos 80, uma parcela 
significativa dos movimentos populares de Porto Alegre passou a desenvol-
ver formas de resistência às práticas de autoritarismo e de submissão ao po-
der público institucionalizado. Em resposta à distribuição desigual do espaço 
urbano e à apropriação seletiva dos recursos públicos em infra-estrutura e 
serviços, emergiram na esfera pública local atores populares que passaram a 
adotar novas práticas de enfrentamento com os órgãos administrativos do 
Estado. Embora práticas tradicionais de tutela tenham encontrado o consenti-
mento de setores do movimento comunitário, preocupados em obter, a qual-
quer custo, bens e serviços do Estado, esse tipo de interação foi rejeitada por 
uma parcela significativa dos movimentos sociais urbanos, especialmente 
aqueles organizados pelos moradores das áreas de subabitação. No final dos 
anos 70 e início dos anos 80, surgiram, ao lado de setores comunitários tradi-
cionais, submetidos às práticas patrimonialistas e clientelistas ele integração 
ao Estado e ao sistema político, novos atores que pautaram a ação coletiva 
apoiados em uma matriz discursiva que ressaltava os direitos sociais ela cida-
dania como algo a ser conquistado e universalizado, tais como o direito à 
moradia, ao saneamento básico; além da saúde, educação, transporte coleti-
vo, lazer, etc. 
Conforme mostram os principais estudos que analisam os movi-
mentos sociais urbanos desse período, essas mobilizações foram levadas 
a cabo, principalmente, pelas populações moradoras das áreas de subabi-
O Poder da Aldeia 31 
tação, em situação irregular e/ou clandestina (Guareschi, 1980, Ferretti, 
1984 e Ribeiro, 1985). Por meio dessas mobilizações, que ocorrem de 
forma intensa nos anos 1978-79 e se estenderam até 1984 (embora tenha 
havido um refluxo desses movimentos entre 1980-82), as populações das 
vilas e bairros demandavam, majoritariamente, questões ligadas à posse/ 
propriedade da terra e à resolução das carências em equipamentos urba-
nos e serviços públicos, assim como aspectos ligados à autonomia e à 
independência política das Associações dos Moradores. Como aponta a 
compilação desse período realizada por Menegat 0995), os três estudos 
antes citados - baseados, fundamentalmente, em notícias publicadas nos 
jornais da capital - descrevem a existência de um amplo processo de 
mobilização dessas comunidades que obrigou a opinião pública e as au-
toridades a reconhecerem os problemas vividos pelos núcleos de con-
centração de subabitações em Porto Alegre, não obstante também hou-
vesse mobilizações por reivindicações urbanas em outras áreas estrutura-
das da cidade. Praticamente metade dos núcleos de subabitação (61 den-
tre os 128 núcleos existentes naquele momento) realizaram, entre os anos 
de 1978-79, algum tipo ele mobilização por reivindicações urbanas. Os 
12 núcleos mais mobilizados, no período de um ano (entre outubro de 
1978 e setembro de 1979), foram alvo de 485 notícias nos jornais locais, 
número extraordinariamente expressivo, levando-se em consideração que 
nem todas as mobilizações foram noticiadas. Esses 12 núcleos abrigavam, 
em 1979, 71.571 pessoas e representavam 47,7% do total dos moradores 
em áreas de subabitação, a maioria das quais foram ocupadas nas décadas 
de 1960/70 (Guareschi, 1980, p 139-252).28 
A Figura 1 (na página seguinte) sintetiza as mobilizações registra-
das pelos três estudos citados. Ainda que a pesquisa de Ferretti não tenha 
diferenciado as mobilizações realizadas em 1978-79 (estudadas por Gua-
reschi, 1980) daquelas que ocorreram entre 1980-82, optou-se por inseri-
lo no quadro a seguir devido à riqueza das informações produzidas. O re-
gistro dos movimentos coletados por Ribeiro (1985) entre 1982-84, mos-
tram, por sua vez, uma possível continuidade das mobilizações realizadas 
pelas comunidades entre os anos de 1978 a 1984. A apresentação dos da-
dos através da divisâo regional do OP, que viria a ser construída quase dez 
anos após, entre 1990/91, mostra de forma categórica o elo histórico entre 
os movimentos surgidos no final da década de 1970 e a construção do OP 
na virada dos anos 80/90, pois as regiões mais mobilizadas desenvolveram 
um papel fundamental na construção do mesmo. 
Os estudos antes citados revelam um contexto rico em mobiliza-
ções de parcela das classes populares que passaram a se manifestar na esfe-
ra pública 29 local, no intuito de pressionar os órgãos governamentais e sen-
sibilizar a opinião pública,inclusive utilizando-se da mídia para a resolução 
dos problemas acumulados durante décadas dc.l}rbáni?ação espoli~ltiva ex-
'1 :, ,'I ·;1 ·:, ,.: i 1 : · .· ., ,, '. .· .~ ,, ./ 
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! 
32 Luciano Fedozzi 
Figura 1 - Movimentos reivindicatórios em Porto Alegre- 1978-84. 
. Regiões do OP · . , Guareschí* . Ferretti** 
. Rosa Ribeiro••• 
1978 (out.)-1979 (set.) · 1978-1982 1982-1984 
Ilhas·.,. Anchieta 
Huma\tá-Navegantes . Tio Zeca Teodora 
Teodora Tio Zeca Teodora 
A. J, Renner 
leste . Saturnino Brito Fátima (Pinto) Fátima (Pinto) 
Fátima li Mato Sampaio Mato Sampaio 
Fátima 1 (Pinto) Três Fazendas 
Bom Jesus Beco Resbalo ; 
Beco do Resbalo Mirim 
lomba do Pinheiro , 
' 
Chácara das Pedras Panorama N. S. das Graças 
r N. S. das Graças Tamancas 
Agrononia 
Beco do Davi Jardim Viçosa Viçosa 
Tamancas Beco do Davi Esmeralda 
Esmeralda Nova São Carlos 
Chácara das Pedras .... ... 
Nc,:i Nova Brasília Nova Brasllia União 
Sto. Agostinho Sto. Agostinho Elizabeth 
São Borja V. Elizabeth Nova Brasília 
Beco das Moças Nova Gleba São Borja 
Beco dos Maias Dois Toques Sta. Rosa 
~ 
Nova Gleba V. Ramos Nova Gleba 
Vila do Respeito Sarandi Vila Ramos 
Dois Toques 
Vila Ramos 
Sarandi 
Pt:'::;::::':: Maria da Conceição Campo da Tuca São Pedro 
Comunitária Ceres 
São José Maria da Conceição 
' Tuca 
Restinga Barro Vermelho Restinga Restinga Nova 
Restinga Figueira Barro Vermelho 
Glória 
Restin1e Nova 
Morro da Polícia São Francisco 1' de Maio 
Jardim Cascata 
Jardim Renascença 
N. S. Lourdes 
1' de Maio 
Cruzeiro Tronco Cruzeiro do Sul Cruzeiro do Sul 
Orfanotrófio 1 Vila Maria Orfanotrófio 1 
Orfanotrófio li Orfanotrófio li 
Cruzeiro do Sul Mato Grosso 
Vila Maria Mariano de Matos 
Pedreira 1 
Pedreira li 
Cristal Cristal Cristal 
Guaíba 
Centro-Sul Vila Montegia São Vicente 
São Vicente Monte Cristo 
Camaquã 
Monte-Cristo 
Vila Nova 
Extremo,Sul Guarujá Avipal Beco do Adelar 
Sargentos 
Eixo Baltazar Jardim Sabará 
Beco do Resbalo 
Jardim Mirim 
Chácara das Pedras 
Sul Assunção 
Centro Planetário 
Nordeste 
*Guareschi- O autor pesquisou nos 6 jornais diários da grande imprensa com circulação em PoA: Zero Hora, Folha da Manhã, Folha da 
Tarde, Correio do Povo, Diário de Notícias e Jornal do Comércio. Além disso, utilizou como fonte o jornal semanal D Rio Grande e dois 
jornais mensais da imprensa alternativa, CoojornaleBoletim dos Bairros (FRACAS). 
• *Ferretti- Pesquisa realizada nos jornais Zero Hora, Folha da Tarde e Folha da Manhã, 
***Rosa Ribeiro-Utifizou dados coletados nos jornais Zero Hora, Folha da Tarde, Correio do Povo e Jornal Denúncia. 
O Poder da Aldeia 33 
pressa, sobretudo, pelo abandono das vilas e bairros populares da capital. 
Segundo Ferretti, cinco fatores ou hipóteses podem explicar, ainda que par-
cialmente, as razões para a deflagração desses movimentos na forma intensa 
como eles ocorreram em 1978/79. O primeiro refere-se ao fato de que as 
eleições para os cargos legislativos possa ter funcionado como catalisador da 
vida política municipal, perpassando todos os níveis da sociedade, inclusive 
as vilas e suas organizações sociais; o segundo diz respeito às modificações 
propostas pelo Plano Diretor que, como se viu anteriormente, ao colocar as 
áreas de subabitação fora do sistema de planejamento, agudizou os conflitos 
com essas populações; o terceiro refere-se à percepção, pelas classes popu-
lares, da prática de alocação desigual dos recursos orçamentários por parte 
da Prefeitura, que privilegiava grandes investimentos em projetos urbanísti-
cos na área central ou nas áreas já estruturados, ao mesmo tempo em que 
adotava a partilha de custos nas [poucas) obras realizadas nos bairros e vilas { 
periféricos, especialmente para pavimentação de vias. Essa prática gerou ; 
inconformidade por parte das comunidades de baixa renda, uma vez que, · \\ 
oneradas pela partilha de custos, desejavam um tratamento equânime por '-'-
parte do poder público. O quarto fator deve-se à abertura relativa dos meios 
de comunicação de massa, os quais passaram a noticiar as ações reivindicati-
vas que vinham sendo realizadas silenciosamente em alguns bairros e vilas, 
contribuindo assim para disseminar a idéia da organização comunitária como 
um poder viável; e por fim, mas extremamente importante, o fato de que, 
tanto a Prefeitura como agentes particulares desencadearam, nessa época, 
ações ofensivas contra os assentamentos irregulares ou clandestinos. Por par-
te da Prefeitura houve a divulgação do término do prazo, estipulado no ano 
anterior, para a regularização dos prédios unifamiliares mediante apresenta-
ção da planta da casa, barraco ou apartamento, como condição para a cessão 
de benfeitorias. Quanto aos particulares, houve o ingresso de várias ações 
de reintegração de posse dos núcleos de ocupação clandestina. Essas medi-
das causaram incertezas quanto ao futuro das comunidades, pois condiciona-
vam a regularização das áreas à posse legal (Ferretti, 1984, p.166-7). 
Esse contexto local no final da década de 1970, no âmbito de uma 
conjuntura política nacional de crescente contestação ao regime autoritário, 
ensejou, juntamente com outros importantes fatores, o surgimento de um 
novo movimento popular em Porto Alegre, cuja parcela mais expressiva 
constituía-se de moradores dos núcleos de subabitação.30 Esse movimento 
por reivindicações urbanas, organizado basicamente em torno do problema 
da posse da terra, das carências de infra-estrutura urbana e serviços, assim 
como ela autonomia e independência política das AM's, passou a adotar 
práticas de enfrentamento com o Estado. Essas práticas eram orientadas por 
um discurso público que, por um lado, exigia do Estado e da sociedade o 
reconhecimento dos direitos de todos à cidadania e, por outro, se insurgia 
contra o estigma que comumente associava os moradores das favelas à con-
( 
34 Luciano Fedozzi 
dição de marginais. Como diziam os moradores da Vila União, assentamen-
to clandestino na região Norte, durante o momento em que se mobilizavam 
pela posse da terra em 1982: 
Nilo somos marginais desocupados como muita gente pensa. Pelo contrá-
rio, somos trabalhadores da construçilo civil, das fábricas, das lojas. Conz 
um salário minguado, damos duro, suamos muito para conquistar o pilo 
de cada dia. Por tudo isso, achamos que temos direito a um pedaço de chilo 
(Carta aberta à população. Menegat, 1995, p.82). 
O discurso em prol dos direitos assumidos por essa parcela das classes 
populares em Porto Alegre e a sua tematização na esfera pública local repre-
sentaram um salto qualitativo em direção à superação das práticas de submis-
são paternalista (o pedir) e/ou clientelista (a troca de favores) tradicional-
mente presentes na interação política entre as classes populares e os pode-
res Executivo e Legislativo, o que não significa que essas práticas tivessem 
sido eliminadas elos movimentos comunitários.31 Barricadas nas ruas, assem-
bléias nos locais de moradia, abaixo-assinados, concentrações em frente à 
Pre~eitura, cartas-abertas à população, denúncias na imprensa, mutirões para 
realizar obras, foram algumas das principais táticas utilizadas pelas comuni-
dade~ para resistir em seus locais de moradia e para obter do Estado o reco-
nhecimento dos seus direitos. Como concluiu Guareschi ao estudar esses m . 
ovimentos no momento em que aconteciam: 
Eles los moradores} estilo convencidos de que constituem um grupo com 
poder e que podem realizar mudanças se continuarem unidos e encontra-
rem estratégias de luta convenientes(. . .) Eles somente confiam na sua pró-
pria unidade como forma de ação, acreditando que só o que constróem 
pode permanecer. Eles sabem que têm poder e que podem se tornar inde-
pendentes e autônomos, tomando suas próprias decisões (Guareschi cita-
do por Menegat, 1995, /J.87 e 93). 
r' , 
1 ! .3; Novas formas de ação coletiva e de organização dos _r • 
movimentos comunitários de Porto Alegre 
Atuando nas AM's ou nas Comissões de Moradores, assim como na 
FRACAB,e contando com novas lideranças combativas que despontavam 
nas lutas, ~-se_movim~ri_tQ __ desenvolveu, em algumas regiões mais mobili-
zadas da cidade, prªti_c_<l§ __ c1~_foiiiris,i9)nt~r:-yi)ª~-que passaram a articular 
lI~_g1,1~_aJ11plg_~_pll1t~l_de associações yoluntárias (AM's, clubes de mães, 
centros de pais e mestres, entídades religiosas, culturais, esportivas, etc) 
atu~ntes em um mesmo espaçofísico da cidade. No início dos anos 1980, a 
solidariedade desenvdvida à partir das lutas concretas dos moradores, iden-
tificados por seu pertencimento às classes trabalhadoras e por reivindica-
rem melhorias urbanas em um mesmo espaço regional, produziu novos 
O Poder da Aldeia 35 
formatos de auto-organização das comunidades, surgindo assim as chama-
das Articulações Regionais, as Uniões de Vilas e os Conselhos Populares. Essas 
instâncias regionais surgiram principalmente nas regiões de alta concentra-
ção de núcleos de subabitação, as quais construíram níveis maiores de or-
ganização e mobilização, tais como as regiões Norte, Grande Cruzeiro, Lomba 
do Pinheiro, Grande Partenon e Glória. As demais regiões, entre as 16 atu-
ais, surgiram e foram delimitadas durante a dinâmica de construção do OP 
nos seus primeiros anos de existência (1989/90). Essas instâncias regionais 
e os seus limites sócio-espaciais, construídos por meio da identidade social 
e cultural dos próprios moradores, tornaram-se a base geopolítica sobre a 
qual foi construído e consolidado o sistema descentralizado do orçamento 
participativo. 
Não é por acaso que quase todas as regiões antes citadas, com alta 
concentração de núcleos de subabitação e com níveis maiores de organiza-
ção e mobilização social, verificados a partir do final dos anos 70 e início 
dos anos 80, foram as regiões escolhidas para a alocação prioritária dos 
investimentos orçamentários em 1991, momento em que foi criada, na evo-
lução histórica do OP, a metodologia de distribuição dos recursos orçamen-
tários mediante critérios objetivos de justiça distributiva. 
Há diversos relatos sobre as mobilizações realizadas no período 
de 1978-84.32 Ferretti, por exemplo, propõe uma tipologfa para explicar 
essas mobilizações a partir das contradições estabelecidas entre a apropri-
ação legal/ilegal e regular/irregular do espaço urbano e o tipo de ações 
prioritárias ou formas de mobilização utilizadas pelos moradores dessas áreas 
em suas reivindicações (Ferretti, 1984, p.142). Assim, em áreas legais, mas 
carentes de infra-estrutura urbana ou de serviços, os moradores geralmente 
utilizaram formas de luta como os abaixo-assinados às autoridades, os pedi-
dos de audiências, as denúncias pela imprensa, procurando encaminhar a 
solução dos problemas por meio dos canais legais e do diálogo com as 
autoridades públicas. Quando essas ações não surtiam efeito, recorriam às 
manifestações públicas e até a barricadas. Ou seja, a condição de proprie-
tário e, portanto, contribuinte, direcionava a ação coletiva para a denúncia 
da alocação desigual dos recursos públicos. A barricada foi bastante utiliza-
da principalmente para reivindicar calçamento de vias (mas também outras 
melhorias como água e esgoto, transporte coletivo), pois a interrupção do 
fluxo de trânsito repercutia imediatamente e, apesar da repressão do Esta-
do, geralmente esse tipo de ação resultava em resposta ou em atendimento 
a curto prazo pelas autoridades, ainda que através da partilha dos custos das 
obras entre a Administração Municipal e os moradores. Foi o caso, por 
exemplo, da barricada realizada na Vila Monte Cristo, bairro Vila Nova (Fer-
retti, p.142-3). Entretanto, nem sempre essas formas de ação obtiveram o 
resultado esperado. Por vezes, elas foram dispersadas pela ameaça da Pre-
feitura de não solucionar C?-S,~
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36 Luciano Fedozzi 
ção. Foi o que ocorreu nas Vilas Batilhanos, no Morro da Glória, na Safira 
(Região Nordeste) e no Bairro Rubem Berta, que realizaram barricadas rei-
vindicando solução para o problema da falta d'água em 1982 (Ribeiro, 1991, 
p.115). 
Nos casos das áreas irregulares, ou seja, quando a maioria das 
moradias não estava legalizada, os movimentos buscavam longas e extenu-
antes tentativas de regularização da propriedade, para em seguida reivindi-
car equipamentos urbanos. Entretanto, em diversas vilas ou núcleos passí-
veis de remoção, devido à situação irregular dos loteamentos, foram de-
sencadeadas ações coletivas dos moradores para permanecerem em suas 
áreas. Essas ações coletivas foram forjadas pela identidade de interesses e 
pela solidariedade entre os moradores de uma mesma comunidade, como 
foi o caso do loteamento irregular da Vila Viçosa na Lomba do Pinheiro,33 
ou entre moradores de vilas diferentes, mas ameaçados de remoção por se 
encontrarem na mesma situação irregular, a exemplo das Vilas Araçá e Chácara 
das Pedras, também localizadas na Lomba do Pinheiro. Atuando através das 
suas associações, essas duas vilas alcançaram razoável êxito encaminhando 
as lutas com o auxílio das demais vilas vizinhas (Ribeiro, 1991, p.115).31 A 
aprovação da Lei dos Loteamentos, que disciplinou o parcelamento do solo 
(Lei 6766/79), motivou um movimento de conscientização cm loteamentos 
não registrados, revelando uma articulação maior entre as lideranças comu-
nitárias, a exemplo do I Encontro de Moradores Irregulares, realizado em 
1982, na Câmara de Vereadores, em que 40 pessoas representaram 8 lote-
amentos irregulares da Grande Porto Alegre (Ferretti, 1984, p.169). 
Nos casos das áreas clandestinas as lutas dos moradores encami-
nhavam-se principalmente para a obtenção do direito de posse e, ao mes-
mo_ tempo, para resistir às tentativas de despejos ou remoções, para depois 
pleitear equipamentos básicos ou urbanização da vila. O caso da Vila Cam-
po da Tuca, por exemplo, área de concentração de subabitações existente 
desde 196635 e pertencente à região Grande Partenon, foi um dos episódi-
os de maior repercussão entre as comunidades. O Campo da Tuca distin-
guiu-se das demais vilas clandestinas não somente pela intensa mobiliza-
ção realizada desde a segunda metade da década de 70, mas por utilizar-se 
do mutirão como solução própria para resolver problemas e demandas, 
inclusive porque a condição de vila clandestina determinava uma dificulda-
de burocrática maior nas relações com a administração local e estadual. A 
organização via mutirão propunha a solução dos problemas pela comuni-
dade e o reforço das lideranças naturais na condução das decisões que 
afetassem a área. A construção de um pontilhão pela própria comunidade 
do Campo da Tuca foi um dos exemplos mais marcantes dessa prática. 
· Após reivindicar durante anos a construção de uma ponte para 
facilitar a circulação do ônibus na área ocupaéla pela vila, os próprios mo-
radores construíram a ponte e a inauguraram em meados de 1978, em pie-
O Poder da Aldeia 37 
no ano eleitoral. Na presença da imprensa, criticaram o descaso do poder 
público para com as vilas e condenaram as práticas políticas tradicionais: 
O prefeito e os políticos somente pensam em nós em época de eleições (. . .) 
Somos marginalizados e nào marginais(. . .) Isto [a execuçào da ponte} nào 
é resultado de promessas de políticos. Isto é resultado da nossa unidade 
Uornal Zero Hora, Porto Alegre, 31 jul. 1978. Guareschi citado por Mene-
gat, 1995, p.92). 
O processo de lutas no Campo da Tuca refletiu também o contex-
to político vigente na época de disputa entre os agentes político-adminis-
trativos do regime ditatorial e o atores situados no bloco de oposição. A 
formação de duas Associações de Moradores, uma fundada em 1975 e ou-
tra em 1978, representaram dessa forma 
a interveniência de dois outros agentes externos na área - [respectivamente} 
o DE.t'v!HAB e a FRACAB- consolidando e~paços de co11trole político e urba-
nístico. O exemplo da 7itca foi levado pela imprensa e por outros canais