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MARITAIN E AS CONFUSÕES - sociedade política e o estado

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MARITAIN E AS CONFUSÕES 
Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 13 de janeiro de 1979 
 
Nada é mais necessário, para conformar uma filosofia política, do que a exata 
definição do que é Nação, corpo político (ou Sociedade Política) e Estado. Em 
exposições coloquiais permite-se usar indistintamente estes três conceitos como 
sinônimos. Muitas manifestações essencialmente políticas, porém, insistem em 
confundir Nação com Sociedade Política, Sociedade Política com Estado e Estado 
com Nação. 
Uma revisão clara faz-se necessária de modo a impedir que a imprecisão de 
significados conduza a lamentáveis e desastrosos enganos de concepção e ação. 
Primeiro temos que distinguir comunidade de sociedade. Estes termos atraem-se 
com frequência mas é lícito consigná-los a dois grupos sociais distintos. Uma 
comunidade é mais obra da natureza e da biologia, enquanto que sociedade é 
resultado da razão e relaciona-se com as inclinações intelectuais do homem. As 
essências destes agrupamentos não coincidem, muito menos suas esferas de 
realização. 
A vida social gira em torno de um objeto. Numa comunidade este objeto é um fato. 
Numa sociedade, o objeto é uma tarefa, ou um fim. Grupos regionais, étnicos, ou 
mesmo classes sociais são comunidade, assim como as tribos e os clãs. A 
comunidade é produto do instinto e de circunstâncias. A sociedade, no entanto, é 
um corpo político: sindicatos, entidades de classes, associações científicas. É um 
produto da razão e da determinação moral. A comunidade nasce da natureza, isto 
é, do ajustamento da natureza humana a um determinado ambiente ou 
circunstância. A sociedade nasce, por sua vez, da liberdade de consciência. Uma 
sociedade sempre gera comunidades e espírito comunitário mas uma comunidade 
necessariamente não cria sociedades. 
Nação, assim, é uma comunidade e não uma sociedade. Nação é a mais importante 
e mais complexa comunidade engendrada pela civilização moderna. A palavra 
Nação origina-se do latim "nasci", nascimento, mas Nação não é um fato apenas 
biológico, como raça. É ético-social. Padrões idênticos de sentimentos quando se 
transformam num estado de autoconsciência - traçando uma individualidade - 
produzem uma Nação. Nação é uma comunidade cônscia do seu passado que se 
auto-estima de uma forma convencionada. 
Nações possuem territórios, língua, instituições, mas apesar disto Nações não são 
sociedades. Uma Nação é acéfala - não tem liderança, nem princípios de ordem. Um 
corpo político pode desenvolver-se numa comunidade nacional mas esta é apenas o 
solo propício para seu florescimento. A idéia de corporificação política pertence a 
uma outra ordem, superior. 
Desenraizada de sua concepção essencial e assim perdendo seus limites naturais, a 
Nação em muitos casos converteu-se em divindade terrena com autonomia 
absoluta e, sobretudo, arrebatando poderes políticos. Um Estado quando se 
confunde com Nação passa a ter poderes exacerbados. A Nação convertida em 
Estado - sem a devida diferenciação - torna-se Estado totalitário, perdendo o senso 
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de ordem objetiva e da lei. Quando uma sociedade política se forma gradualmente, 
adquirindo genuína fraternidade cívica, gera uma comunidade nacional de alto grau. 
Assim, ao contrário do princípio das nacionalidades, uma Nação depende da 
existência de um corpo político e, não, o contrário. Uma Nação não se transforma 
em Estado mas o Estado faz a Nação possível. 
O corpo político ou a sociedade política é o todo. O Estado é a parte - situada no 
ápice - do todo. 
A sociedade política, requerida pela natureza e alcançada pela razão, é a mais 
perfeita das sociedade temporais. O homem por inteiro - espírito e atividade - faz 
parte da sociedade política. Assim, todas as suas ações comunitárias, bem como as 
pessoais, são consequências do todo político. 
O Estado é apenas aquela parte do corpo político comprometida com a manutenção 
da lei, do bem-estar coletivo, da ordem e da administração dos negócios públicos. 
O Estado especializa-se na defesa dos interesses do todo, mas ele não é o todo. 
Não pode ser um homem ou um grupo de homens, é um complexo de instituições 
combinadas. Esta obra de arte chamada Estado é fruto da mente e energia 
humanas, mas constitui uma corporificação superior da razão, uma estrutura 
permanente e impessoal. 
O Estado não é a suprema encarnação de uma idéia, como Hegel acreditava. O 
Estado não é um super-homem. O Estado é uma agência conduzida por 
especialistas em bem-estar, um instrumento a serviço do homem. Colocar os 
homens a serviço deste instrumento é perversão política. A pessoa humana, como 
indivíduo, pertence à pessoa humana, como pessoa. Mas o homem não pertence ao 
Estado. O Estado, sim, pertence ao homem. 
 
Jacques Maritain (1882-1973), pensador, considerado o mais importante filósofo 
católico francês do século, assim como o mais eminente interprete do pensamento 
de S. Tomás de Aquino. Foi criado num ambiente protestante e racionalista. Mas 
sob a influência de Henri Bergson, seu professor na Sorbonne. Maritain e sua noiva, 
a judia Raissa Coumansoff, converteram-se ao catolicismo. Casaram-se em 1904 e 
foram batizados em 1906 sob a proteção de Léon Bloy. Maritain interessou-se 
muito pela biologia mas o estudo sobre S. Tomás absorveu-o. Foi embaixador da 
França no Vaticano e professor das mais importantes universidades americana. A 
tônica metafísica de Maritain é o "ser como ser". Mas muito do seu tempo foi 
dedicado a desenhar uma filosofia política e social verdadeiramente cristã. Enfatizou 
o ser humano como indivíduo e pessoa, colocando-se assim frontalmente contra as 
doutrinas totalitárias que muitas vezes se arrogam o título de defensores do 
cristianismo. Sua posição é verdadeiramente humanista, sem permitir que a 
devoção religiosa permeasse sua concepção do Estado democrático e secular. Em 
matéria de arte, outra de suas paixões, Maritain diz que quando esta se afasta da 
aventura humana e existencial condena-se à esterilidade, rejeitando todas as 
experiências formalistas e puristas. O texto abaixo foi adaptado do capítulo inicial 
de "Homem e Estado", escrito em inglês pelo próprio Maritain, utilizada a edição da 
Univ. of Chicago Press. 
 
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