Prévia do material em texto
AMANDA SILVA FERNANDES A (IN)CONVENCIONALIDADE DO CRIME DE DESACATO À VISTA DA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS PATOS DE MINAS 2020 AMANDA SILVA FERNANDES A (IN)CONVENCIONALIDADE DO CRIME DE DESACATO À VISTA DA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial de avaliação na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, do curso de Direito do Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), sob orientação do professor Me. Gabriel Gomes Canêdo Vieira de Magalhães. PATOS DE MINAS 2020 Se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir. George Orwell AGRADECIMENTOS Primeiramente, a Deus por abençoar cada caminho e cada escolha. Aos meus pais, Rosa Maria e Onilton César, por todo esforço, dedicação, amor e principalmente por não medirem esforços para ver sua filha bem e feliz, a todos os demais familiares que sempre buscam me apoiar e ajudar da melhor forma possível. Agradeço também a todos os meus amigos que estiveram comigo não só nesse momento, mas também em todos aqueles momentos de turbulência em que nada fazia sentido e tudo parecia desmoronar. Graças a todos vocês, em especial a Lorrany Alves, Lauanda Starley, Brenda Linkse e Brenda Linhares, eu pude ter a certeza de que conseguiria finalizar este trabalho e principalmente acreditar que tudo sairia da melhor forma possível. Ademais, além de agradecer pelo apoio gostaria de me desculpar pelas horas de reclamações, choros e desesperos. Além destes, não poderia deixar de agradecer e lembrar daqueles que já não estão aqui para partilhar este momento, mas que sempre foram pilares dessa caminhada e se fizeram fontes de inspiração, em especial a Dona Marli, por zelar sempre dos meus passos e clarear meus caminhos, e ao “Sô Hélio” por mesmo longe, ter acompanhado cada escolha, por ter sido do seu modo, o melhor avô que eu poderia ter e a quem eu dedico cada passo, cada conquista, cada crescimento e todo meu amor e admiração. Por fim, com muita gratidão e admiração, gostaria de agradecer ao meu orientador, Gabriel Gomes Cânedo Vieira de Magalhães, por ter sido, desde o início da graduação, uma fonte de inspiração, por todo apoio e auxilio no presente trabalho, além disso, deixo meu agradecimento especial a professora Wânia Alves Ferreira Fontes, por ter participado de forma efetiva de todo o desenvolvimento deste trabalho e por sempre estar disposta a ouvir, auxiliar e sanar dúvidas. 5 A (IN)CONVENCIONALIDADE DO CRIME DE DESACATO À VISTA DA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Amanda Silva Fernandes1 Sumário: 1 Introdução. 2 Contextualização histórica da criminalização do desacato. 2.1 Desacato no ordenamento jurídico brasileiro. 3 Os contornos jurídico-constitucionais da Liberdade de expressão. 4 Origem do conflito de entendimentos. 4.1 Decisão da Quinta Turma do STJ no REsp 1.640.084-SP. 4.2 Decisão do STJ (Habeas corpus 379.269/MS). 4.3 ADPF 496/DF proposta pela OAB. 4.4 Decisão do STF (Habeas corpus 141.949). 4.5 Julgamento da ADPF 496. 5 Previsão da CADH e sua aplicação jurídica no ordenamento jurídico brasileiro. 6 A (in)convencionalidade do art. 331 do Código Penal. 7 Conclusão. Referências. Resumo: Objetiva-se, com o presente trabalho, realizar uma análise constitucional do tipo penal desacato expressamente tipificado no artigo 331 do Código Penal, bem como das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça acerca da aplicação de tal tipo penal. Deste modo, pretende-se também, investigar a possível (in)convencionalidade deste instituto tendo em vista as disposições presentes na Convenção Americana de Direitos Humanos e os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal como a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. Palavras-chave: Desacato. Controle de Convencionalidade. Liberdade de expressão. Convenção Americana de Direitos Humanos. Constituição Federal. Supremo Tribunal Federal. Superior Tribunal de Justiça. 1 INTRODUÇÃO Com altos índices de cometimento, o crime de desacato tem se tornado cada vez mais frequente no Brasil, por diversos fatores, dentre eles o recente histórico de descontentamento social, político e financeiro que traz por consequência um crescimento das manifestações sociais, sejam à favor ou contra quem está governando, ou no que diz respeito a atos do poder público que muitas vezes geram enormes divergências, ou também referentes à criação de leis e reformas que afetam diretamente os interesses da população. O desacato, no atual ordenamento jurídico brasileiro, tem previsão expressa no Código Penal, mais precisamente em seu artigo 331, fazendo parte portanto do título “Dos Crimes Contra a Administração Pública”, mais especificadamente do capítulo que trata dos 1 Aluna do 8° Período do curso de Direito do Centro Universitário de Patos de Minas – UNIPAM E-mail: amandasilvaf123@gmail.com 6 crimes praticados por particulares contra a Administração em geral, deste modo, de acordo com texto legal, comete desacato quem: “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, contudo, em uma análise as condutas que podem se enquadrar no verbo “desacatar” é possível observar que trata-se de um tipo penal de forma livre e extremamente aberto que portanto pode ser executado por meio de incontáveis condutas, o que tende a comportar diversas formas de interpretação no caso concreto, tornando-se portanto perigoso à ordem jurídica, uma vez que tal amplitude tem o condão de dar margem a subjetividades no momento da análise da conduta e de gerar uma insegurança jurídica, podendo inclusive admitir arbitrariedades em sua aplicação. Neste sentido, crescem as discussões acerca deste tipo penal, uma vez que para muitos a sua tipificação como crime não condiz com os preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito e nem mesmo com a ordem jurídica brasileira, tal posicionamento é pautado na tese de que a sua tipificação estaria em sentido contrário à previsão constitucional do direito à liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento, bem como, traria violações ao princípio da isonomia, uma vez que estar-se-ia colocando o funcionário público em um prisma de proteção superior aos particulares. Assim, a pesquisa ora proposta é de suma importância diante das recentes discussões a respeito da temática, fazendo-se necessário um estudo mais detalhado a respeito dos aspectos principais do crime de desacato, de sua criação e incidência na sociedade no decorrer dos tempos e, é indispensável discutir se no cenário social e jurídico atual existe espaço para a sua criminalização, buscando a responder a seguinte indagação: estaria o desacato na contramão do humanismo? Seria este crime uma forma de ressaltar e garantir a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo? Visando uma resposta a estas indagações serão analisadas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça que deram início ao conflito de entendimentos, de modo especial as decisões da Quinta Turma do STJ no REsp 1.640.084-SP, do STF no Habeas corpus 141.949, a ADPF 496/DF proposta pela OAB e a decisão proferida pelo STJ no Habeas Corpus 379.269/MS, bem como dos argumentos que fundamentaram tais decisões, discorrendo também a respeito dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, do respeito à liberdade de expressão e à livre manifestação do pensamento, e dos bensjurídicos protegidos pela norma do artigo 331 do Código Penal que trata do desacato. A presente pesquisa é do tipo téorico-bibliográfica, visto que foi desenvolvida com base no estudo de matérias doutrinários e jurisprudenciais, sendo realizada com a utilização do método dedutivo. 7 2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA CRIMINALIZAÇÃO DO DESACATO Tendo em vista, que o assunto principal deste trabalho se relaciona ao tipo penal desacato, atualmente previsto expressamente no artigo 331 do Código Penal, como ponto de partida faz-se necessário uma breve análise do surgimento deste delito na sociedade, bem como de como se deu suas primeiras tipificações no ordenamento jurídico brasileiro. Desde a antiguidade, já era possível notar a existência de punições referentes à prática de atos que tivessem o condão de atingir a integridade física ou a moral da autoridade pública, inicialmente tais condutas não eram tratadas como um delito autônomo mas, como uma causa majorante do crime de injúria nos casos em que a vítima era uma autoridade pública específica. Neste mesmo sentido, no direito romano existiam as chamadas injuria atrox, expressão que ao ser traduzida tem o significado voltado a retratar situações em que ocorriam lesões terríveis, e que por consequência lógica, também traziam penas de caráter graves, de forma que são encontrados registros de penas de deportação e até mesmo de pena de morte para alguns casos. Essa previsão foi mantida com advento da Idade Média onde foi inclusive, estendida, de modo a proteger também os sacerdotes que viessem a ser vítimas de tais atos. Assim, a partir dos Códigos penais franceses de 1791 e 1810 ocorrera uma ampliação de codificação do delito de desacato, como explica o doutrinador: A partir dos Códigos Penais franceses de 1791 e 1810, já na era da codificação (seguidos pelos códigos de diversos países), ampliaram, de modo geral, essa figura delituosa para alcançar a todos os funcionários públicos, com a denominação de autrage, e, de modo geral, fundamentaram a criminalização dessas condutas na necessidade de assegurar aos agentes públicos a possibilidade de exercerem de modo eficaz suas funções e, assim, atingir a finalidade superior, de caráter eminentemente social, que a Administração procura. . (BITENCOURT, 2019, p.216) Desta forma e levando em consideração o contexto social, político e ideológico das referidas épocas, é possível notar que o objetivo da criminalização das condutas que viessem a configurar o desacato era diferente do que motiva a criminalização no dias atuais, ou seja, garantir o prestígio da função pública, como Cesare Beccaria demonstra, em tempos mais remotos criminalizar o desacato não era uma forma de proteger a função ou a administração pública: 8 Um governo autoritário, para se manter no poder, inicia sua dominação pelo controle de opinião, pois tem receio de que as pessoas que tem coragem de falar mal do governo influenciem outros com suas ideias e, assim, consigam tirar do poder quem lá está. (BECCARIA, 2013, p.79 apud MOURA, 2017, p.14).2 Logo, em se tratando da antiguidade, tal tipo penal estava relacionado a um meio de se assegurar a moral e o poder de grupos considerados privilegiados e superiores, e que muitas vezes tinha por resultado a intimidação e o controle das classes menos favorecidas, de modo que, o tipo penal desacato estava na grande maioria dos casos ligado a ações arbitrárias de quem estava no poder, contra aqueles que com ele discordava. 2.1 Desacato no ordenamento jurídico brasileiro No Brasil, os primeiros contornos históricos da criminalização do desacato foram ser percebidos com o advento das Ordenações do Reino Português que estiveram vigentes até o ano de 1830. Nelas estavam previstas a incriminação de injúrias que fossem praticadas contra os julgadores e seus oficiais. Também é possível encontrar resquícios de tipificação no Código Criminal de 1830 que tratava da calúnia ou injúria agravadas “quando fossem cometidas contra qualquer depositário ou agente da autoridade pública, em razão de seu ofício” (Bitencourt, 2019, p. 216). Esteve o desacato presente também no Código Penal de 1890, que apesar de trazer a nomenclatura atual, adotava um conceito diferente do adotado pelo Código de 1940, uma vez que conforme seu artigo 134, era punida a conduta de: “desacatar qualquer autoridade, ou funcionário público, em exercício de suas funções, ofendendo-o diretamente por palavras ou atos, ou faltando à consideração devida e à obediência hierárquica” . Deste modo, chega-se a atual previsão do desacato, que foi dada pelo advento do Código Penal de 1940 em seu artigo 331, e que estendeu sua aplicação às ofensas proferidas contra o funcionário público no exercício da função ou em razão dela, de modo que, “a ação nuclear consiste no ato de desacatar, ou seja, ofender, humilhar, menosprezar ou desprezar” (Estefam, 2019, p. 659). Já no que diz respeito a quais condutas podem caracterizar o cometimento do crime de desacato, o texto legal continuou pecando, uma vez que manteve a abstração e 2 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 7. ed. São Paulo: Martin Claret, 2013. 9 indeterminação acerca de como delimitar o que pode ou não configurar desacato, consoante as preleções abaixo transcritas: Pode o ato ser cometido por qualquer meio, tais como por meio de palavras (p. ex., xingamentos, sarcasmo), gestos (p.ex., apontar o dedo médio), risos debochados, vias de fato (p.ex., tapa na cara) etc. que deverão ser detalhadamente descritos na denúncia, sob pena de inépcia. Não se admite, contudo, a forma escrita. (ESTEFAM, 2019, p.659). No que se refere ao sujeito ativo, prevalece o entendimento de que se trata de um crime comum, logo qualquer pessoa poderá figurar no polo ativo da infração, desde que tenha o dolo específico de ofender o funcionário ou a função exercida. Apesar das discussões, o entendimento consolidado é no sentido de que, até mesmo o próprio funcionário público poderá cometer desacato, esse entendimento se consolidou por meio de uma decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça prevendo que: O crime em questão, de natureza comum, pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive, funcionário público, seja ele superior ou inferior hierárquico à vítima. Isto porque o bem jurídico a ser tutelado é o prestígio da função pública, portanto, o sujeito passivo principal é o Estado e, secundariamente, o funcionário ofendido. (STJ, HC 104.921/SP, Relatora: MIN. JANE SILVA, Data de julgamento: 21/05/2009, Sexta Turma) Para que a conduta praticada se caracterize como desacato, também será, segundo Estefam, (2019, p.661), “indispensável a ciência de que o destinatário da ofensa seja funcionário público”. Ademais, no que diz respeito a consumação, a doutrina entende que se trata de um crime formal, que consequentemente, se torna consumado no momento em que o funcionário toma conhecimento das ofensas ou atos. Por fim, no que se refere a possibilidade de admitir-se ou não a forma tentada, ainda não existe uma unanimidade doutrinária, de modo que para alguns doutrinadores, como Estefam (2019, p.662), “não é admitida a forma tentada, uma vez que o delito é unissubsistente”, ou seja, que se configura mediante um único ato de execução e não admite tentativa. Porém, existem entendimentos em sentido contrário, dentre eles é possível destacar o posicionamento de Bitencourt (2019, p.232) prevendo que: “A tentativa é, teoricamente, admissível, embora, por vezes, de difícil caracterização. Será admissível, contudo, quando o desacato for praticado oralmente” e de Andreucci (2018, p.540) entendendo que: “em tese, é admissível a tentativa”. Há também aqueles que, como Nucci (2020, p.1494), defendem que a tentativa “é admissível na forma plurissubsistente”, onde o crime para seconfigurar necessitará 10 de dois ou mais atos, e é justamente essa pluralidade de atos executórios que assegura a possbilidade de admissão da forma tentada. 2 OS CONTORNOS JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO Um dos elementos cruciais que fomentam e, devem sempre ser observados quando se refere à discussão acerca da (in) convencionalidade da tipificação do desacato como um ilícito penal, é o direito a liberdade de expressão e a livre de manifestação do pensamento. Porém, em primeira análise, cumpre destacar que embora o referido direito tenha sido verdadeiramente efetivado apenas no atual texto constitucional, já era possível encontrar resquícios de sua previsão desde a Carta Imperial de 1824 cujo artigo 179, IV, prevendo que todos poderiam comunicar seus pensamentos desde que respondessem pelos abusos que cometessem no exercício de seu direito. Ademais, não só nesse momento, mas também é possível encontrar disposições a respeito da liberdade de manifestação de pensamento na Constituição de 1891 e 1934, ambas regulamentando seu exercício, vedando a censura e responsabilizando os titulares pelos seus excessos, porém, nesta também era assegurado o direito de resposta. Assim, a previsão do direito à liberdade de expressão e de manifestação de pensamento continuou sendo prevista constitucionalmente com diferentes contornos a depender do contexto social de cada época, como por ser visto no artigo 122, n.15 alíneas a, b e c da Constituição de 1937, onde a ideologia trazia preceitos menos liberais e admitia maiores restrições ao direito. Limitações também existiram na Constituição de 1946 e na de 1967 e de 1969, nas quais o direito seguia assegurado, a cesura permanecia sendo vedada e assegurado o direito de resposta, porém não eram toleradas propagandas de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe. Nesta última também é necessário destacar a restrição da manifestação do pensamento no que diz respeito a diversões e espetáculos públicos, e a proibição de publicações e exteriorizações de pensamentos que fosses contrários a moral e aos costumes da época. À vista disso, é possível notar a grande importância desse direito no decorrer dos tempos e que atualmente pode ser verificada pela leitura do texto constitucional, mais especificadamente, do artigo 5°, IV da Constituição Federal, de modo que estar-se-á diante de 11 um direito e uma garantia fundamental que asseguram um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito brasileiro. Desta forma, não só a expressa previsão constitucional da liberdade de expressão, mas também a sua observância e aplicação tem sido um dos argumentos basilares daqueles que defendem a tese de que a criminalização do desacato afronta diretamente tal direito. Assim, extrai-se das preleções de Nunes Júnior que: Estamos diante de um direito e de uma garantia fundamental, previstos ambos na primeira e na segunda parte do inciso, respectivamente. A primeira parte (“é livre a manifestação do pensamento”) é um direito individual, ou liberdade pública ou direito negativo, ou seja, o Estado não poderá, em regra, interferir em nossa liberdade de expressão. (NUNES JÚNIOR, 2019, p.981) Cabe destacar que, é justamente a excepcional interferência do Estado na liberdade de manifestação da população que fomenta a discussão acerca do desacato, visto que ser livre para manifestar seus pensamentos, é essencial não só para a individualização e formação da personalidade do indivíduo e de assegurar a própria dignidade da pessoa humana, como também é extremamente importante para garantir a democracia e a pluralidade de ideias e posicionamentos. Porém, apesar de tamanha importância do referido direito, cumpre ressaltar que o mesmo não pode ser considerado como um fim em si mesmo, e nem mesmo aplicado de maneira absoluta, visto que, a depender do caso concreto, até mesmo os direitos fundamentais de maior importância podem sofrer relativizações, o que ocorre também com a liberdade de expressão. Assim sendo, “a liberdade de expressão há de se prestar à realização pessoal, à formação individual, à livre opção de cada um. Com efeito, não pode ser ela instrumento contrário à realização pessoal” (TAVARES, 2020, p. 628) e por isso mesmo e por não se tratar de um direito de caráter absoluto, as relativizações a este direito são admitidas. Assim é que “a liberdade de expressão comporta restrições, desde que previstas em lei, proporcionais e respeitadoras do seu núcleo essencial” (STF, ADPF 496, Voto do Min. e Rel. BARROSO, Data de Julgamento: 19/06/2020). 3 A ORIGEM DO CONFLITO DE ENTENDIMENTOS As discussões referentes a existência do crime de desacato e de sua possível (in)convencionalidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos e com o ordenamento jurídico brasileiro, surgem principalmente quando tal delito é colocado frente ao 12 direito à liberdade de expressão e da manifestação do pensamento bem como quando analisado tendo por base não só o ordenamento jurídico pátrio como também os tratados e convenções internacionais referentes aos direitos humanos. Assim, sendo o Brasil um país democrático, adepto do Estado Democrático de Direito e com enorme pluralidade de ideais e culturas, é comum a existência de divergências de posicionamentos não só da população mas também de seus representantes, e quando o assunto é o crime de desacato, tais divergências de posicionamentos parecem estar longe de se encerrarem. Conforme já mencionado, o desacato está previsto no âmbito jurídico mundial desde as épocas mais remotas, o que também ocorreu no ordenamento jurídico brasileiro. Atualmente, sob a égide do Código Penal de 1940, a tipificação penal passou a ser ampliada de modo a abranger ofensas proferidas contra o funcionário público no exercício da função ou em razão dela, e segundo Cleber Masson, a razão de ser e a justificativa principal para a criação do tipo penal previsto no artigo 331 do Código Penal, está ligada basicamente a proteção do exercício legitimo do cargo, de modo que: Todo funcionário público, do mais humilde ao mais graduado, representa o Estado, agindo em seu nome e em seu benefício, buscando sempre a consecução do interesse público. Consequentemente, no exercício legítimo do seu cargo, o agente público deve estar protegido contra investidas violentas ou ameaçadoras. Esta é a razão da criação do crime de desacato pelo art. 331 do Código Penal. (MASSON,2018, p. 805) Tal justificativa para a criminalização da conduta de desacatar foi aceita por muito tempo, porém, considerando que não são apenas as leis internas que regem um país, e que o Brasil é adepto de diversos tratados e convenções de direito internacional. Dentre esses tratados e convenções, e que tem enorme importância no debate acerca do desacato, é necessário destacar a Convenção Americana de Direitos Humanos que, ao ser incorporada no ordenamento jurídico brasileiro e reconhecida como uma norma de caráter supralegal, pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário de número 466.343, trouxe e deu ainda mais força à tese de que o artigo 331 do Código Penal seria incompatível com os princípios basilares do Estado Democrático de Direito e também da própria CADH, em especial ao seu artigo 13 que assegura o direito à liberdade de expressão. Neste prisma surgem diversas indagações a respeito do desacato e das recentes decisões a ele referentes, uma vez que, em se tratando de um delito destinado a proteger a honra e a função administrativa, seria realmente necessária à sua tipificação como um ilícito penal? 13 Ademais, tendo por parâmetro o famoso binômio necessidade e proporcionalidade, seria o desacato uma restrição necessária e proporcional à liberdade de expressão? Além disso, sendo o direito penal a ultima ratio, e tendo por basea já existente tipificação dos delitos contra a honra, é imprescindível para a boa atuação e exercício da função do funcionário público a existência de um delito específico para tais condutas? Essas e outras questões fomentam ainda mais o debate dos tribunais brasileiros acerca da convencionalidade do desacato. 4.1 Decisão da Quinta turma do STJ no REsp 1.640.084 – SP O primeiro e um dos marcos principais da discussão envolvendo o crime de desacato e a sua aplicação no ordenamento jurídico atual foi a tese acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Recurso Especial número 1.640.084, em 15 de dezembro de 2016. Tal importância se dá porque em se tratando do desacato, esta foi a primeira manifestação de um tribunal superior no sentido de buscar o afastamento de sua aplicação. O recurso ora analisado, decorre de um processo penal instaurado em desfavor do senhor Alex Carlos Gomes que, teria subtraído mediante grave ameaça, através do emprego de um vergalhão de ferro, uma garrafa de conhaque “Dreher”, configurando o crime de roubo. Posteriormente, ao ser preso em flagrante teria o réu desacatado os policiais militares no exercício de sua função, por meio de gestos e palavras além do que teria, posteriormente, se exaltado ainda mais dificultando a sua prisão chegando inclusive a ameaçar e agredir fisicamente os policiais. Inicialmente cumpre ressaltar que, apesar de certa feita ter sido considerada válida a tese de que haveria exclusão do crime de desacato nos casos em que o autor proferisse as ofensas sob influência do estado de embriaguez ou agisse movido por forte exaltação e estado de fúria, sendo tal entendimento pautado no fundamento de que o núcleo do tipo penal desacato pressupõe que o autor tenha o propósito de humilhar a função pública exercida pelo agente estatal, o que não seria possível caso nos casos de embriaguez e alteração do estado emocional, atualmente tal entendimento encontra-se superado, como explica o autor: Igualmente, a emoção e a paixão não excluem a imputabilidade penal (CP, art. 28, inc. I). Estará configurado o crime de desacato nas situações em que o sujeito se encontra acometido de um estado de cólera ou de ira, até porque é justamente nesses momentos de descontrole que as pessoas em regra se revelam e atentam contra bens jurídicos alheios. (MASSON, 2018, p. 812) 14 Posto isso, para melhor entendimento acerca da decisão, faz-se necessário uma breve análise dos fundamentos da tese acolhida. De modo inicial, o recorrente ao interpor o recurso especial baseou-se no fundamento de que haveria uma incompatibilidade entre o tipo desacato com a Convenção Americana de Direitos Humanos, convenção esta que traz em seu texto legal um conjunto de normas a serem usadas para solucionar divergências que tendem a comportar limitações ao livre exercício de direitos e a garantias fundamentais. Neste cenário, destaca-se o julgamento do REsp 914.253/SP3 e do RE 466.3434 que, ao tratarem da prisão do depositário infiel acabaram por reconhecer pontos importantes para a celeuma por ora discutida, dentre eles a tese de que os tratados internacionais de direitos humanos tem hierarquia superior às leis ordinárias, de modo que: “ Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada.” (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO n° 466.343 – SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO, Data de julgamento: 03/12/2008, Tribunal Pleno). Outro pilar fundamental da discussão acerca do desacato, citado na presente decisão é a possibilidade de realização do controle de convencionalidade, com o intuito de buscar uma compatibilização das normas pátrias com os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, controle este que, conforme explica o Nunes Júnior (2019, p. 577): “O controle de verificação da compatibilidade das leis com os tratados e convenções supralegais é o controle de convencionalidade.” Neste cenário, o Ministro Relator partindo do pressuposto da supralegalidade do Pacto San José da Costa Rica aduz que o referido Pacto seria hierarquicamente superior ao Código Penal onde está previsto o crime de desacato e que possui natureza de lei ordinária, razão pela qual não haveria empecilho à realização do controle de convencionalidade com intuito de sanar a divergência ora exposta. Ademais, fora citado pelo relator que, a liberdade de expressão é um dos mecanismos essenciais para se garantir uma democracia, de modo que assegurar aos funcionários públicos uma proteção especial que, no caso seria a tipificação do desacato como ilícito penal é na verdade uma grave violação ao sistema democrático, uma vez que, de acordo com o Ministro e Relator, “ Não há dúvida de que a criminalização do desacato está em contramão ao humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus 3 https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8606935/recurso-especial-resp-914253-sp-2006-0283913-8/inteiro- teor-13677531 4 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444 https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8606935/recurso-especial-resp-914253-sp-2006-0283913-8/inteiro-teor-13677531 https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8606935/recurso-especial-resp-914253-sp-2006-0283913-8/inteiro-teor-13677531 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444 15 agente- sobre o indivíduo” (STJ, Recurso Especial n. 1.640.084/SP, Relator: MIN. RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento:15/12/2016), ademais, seria também uma legitimação da desigualdade entre particulares e funcionários públicos, o que fere diretamente o Estado Democrático de Direito assegurado na Constituição Federal de 1988. Por fim, fora citado ainda um importante aspecto na presente discussão, de modo que reconhecendo-se a incompatibilidade do crime de desacato em face dos parâmetros da Convenção Americana de Direitos Humanos, de modo especial com seu artigo 13, não ficaria o funcionário público desprotegido em sua atuação, de modo que excluindo-se o desacato, haveria ainda a possibilidade de responsabilização do ofensor no âmbito civil e até mesmo na espera criminal, visto que, a depender do caso, os abusos no exercício da liberdade de manifestação, seja por gestos, palavras ou atos, poderão resultar em uma adequação típica às figuras que protegem a honra como calúnia, injúria e difamação. 4.2 Decisão do STJ (Habeas Corpus 379.269-MS) Porém, a decisão de afastar a aplicação do desacato não encontrou aceitação por muito tempo, sendo que, em nova decisão proferida em 24 (vinte e quatro) de maio de 2017 a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Habeas Corpus n° 379.269 de Mato Grosso do Sul, decidiu que a criminalização do desacato “preenche de forma plena todos os requisitos exigidos para que se admita a restrição ao direito de liberdade de expressão” (STJ, HC: 379.269/MS, Relator: Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, Voto do Min. Antônio Saldanha Palheiro. Data de Julgamento: 24/05/2017, Terceira Seção). Neste sentido, o Ministro Rogerio Schietti Cruz, acompanhando o voto vencedor ressalta que a manutenção do crime de desacato no ordenamento jurídico brasileiro não implica em descumprimento do artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do princípio da liberdade e expressão, visto que para ele os servidores ao exercerem sua função pública necessitam de uma proteção especial, de modo a garantir o respeito os funcionários que representam o estado. Além disso, pondera que os precedentes invocados para afastar a aplicação do desacato não se assemelham com os casos concretos analisados, o que consequentemente resultaria em um tratamento desigual a casos desiguais, neste sentido, o Ministro Nefi Cordeiro também optou por acompanhar o votovencedor expondo que não existe incompatibilidade do desacato com a liberdade de expressão, tendo em vista que, muitas vezes o caso concreto não 16 reproduz manifestações do direito a liberdade de expressão ou de crítica à atuação estatal mas sim, claras ofensas ao funcionário público. Por fim, destaca-se o voto vencido do Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, no sentido de que, conforme a manifestação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a criminalização do desacato contraria os princípios previstos na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos em especial o princípio 11 que trata da liberdade de expressão, ademais em se tratando de conflito entre normas internas e tratados incorporados ao direito interno com natureza supralegal, este prevaleceria em relação àquele. 4.3 ADPF 496/DF proposta pela OAB Assim, diante de um cenário com muitas controvérsias no âmbito dos tribunais superiores, coube ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil de Brasília através da propositura da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 496, manifestar sua discordância em ralação a manutenção da previsão da conduta de desacatar como um ilícito penal e buscar uma pacificação para a celeuma hora apresentada. Deste modo, tendo como fundamentos principais para a propositura da referida ação, e que foram alvo de discussões na presente pesquisa, cabe destacar a abstração do texto legal previsto no artigo 331 do Código Penal, uma vez que o dispositivo em momento algum especifica quais condutas se enquadram no verbo “desacatar’, de modo que tal amplitude acaba por conferir aos intérpretes um leque de possibilidades de interpretação e que portanto tende a acarretar a possibilidade de severas reprimendas ao direito que os cidadãos tem de expressar frente as condutas praticadas pelos agentes públicos, de modo que: Trata-se, portanto de norma que viola preceitos fundamentais, destacadamente, da liberdade de expressão (art. 5º, incs. IX e 220, da CF), republicano (art. 1º, parágrafo único), da legalidade (art. 5º, inc. XXXIX), da igualdade (art. 5º, caput, da CF) e do Estado Democrático de Direito (art. 1º, da CF). ADPF 496, CONSELHO FEDERAL DA OAB- BRASÍLIA-DF, data da propositura: 27/10/2017) Ademais, fora abordado a previsão do já mencionado artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, demonstrando que a liberdade de expressão garante aos cidadãos o direito de participar e de manifestar acerca dos atos dos agentes públicos visto que tal atuação é extremamente importante para controlar a atuação dos servidores públicos, e que 17 portanto, a tipificação do desacato como ilícito penal seria uma clara forma de restringir tais manifestações. Por fim, partindo das decisões acima analisadas, em especial do Recurso Especial n. 1.640.084 – SP e do Habeas Corpus n. 379.269-MS, a ADPF 496 ressalta ainda a importância de se estabelecer uma tese firme e se encerrar as divergências com relação ao desacato, de modo a principalmente preservar e garantir a segurança jurídica além de proteger a liberdade de expressão e manifestação do pensamento dos indivíduos. 4.4 Decisão do STF (Habeas Corpus 141.949-DF) Frente a um cenário de incertezas e contraditórias decisões, a celeuma em torno da criminalização do desacato e de sua possível (in)convencionalidade frente à Convenção Americana de Direitos Humanos, também foi apreciada pelo Superior Tribunal Militar ao julgar por maioria de votos o Habeas Corpus 141.949 no Distrito Federal. O julgado em questão, discute de modo especial se a condenação de um indivíduo pela Justiça Militar por cometimento do crime de desacato, estaria ou não ofendendo o previsto no artigo 13 da CADH, bem como os artigos 5°, incisos IV, V e IX e do artigo 220, ambos da Constituição Federal, que garantem o direito à liberdade de expressão e manifestação do pensamento. Tal condenação resultou de uma situação fática em que o réu proferiu ofensas a um Sargento do Exército que se encontrava no exercício da função, inclusive chamando-o de “palhaço”, o que resultou em sua condenação pelo STM, pelo crime de desacato a militar, nos termos do artigo 229. Deste modo, partindo da tese de que os tratados de direitos humanos podem equivaler a emendas constitucionais ou a normas supralegais, a depender da forma com que forem aprovados, e baseando-se ainda, na análise do texto do artigo 13 da CADH como parâmetro para o controle de convencionalidade, o relator proferiu seu voto no sentido de que a criminalização do desacato não afrontaria tal Convenção. Em seguida, prossegue o Ministro Gilmar Mendes, no sentido de que a liberdade de expressão mesmo estando assegurada na Constituição Federal e na Convenção Americana de Direitos Humanos, não possui um caráter absoluto em relação aos outros direitos, de modo que, seriam admitidas restrições à liberdade de manifestação do pensamento para fazer valer também os demais direitos. 18 Dentre essas limitações permitidas estaria a previsão no desacato, de modo que: “A ninguém é lícito usar de sua liberdade de expressão para ofender, espezinhar, vituperar a honra alheia.” (STF, HABEAS CORPUS n° 141.949 – DF, voto do Rel. Min. GILMAR MENDES, Data de julgamento: 13/03/2018, Segunda Turma), concluindo assim que a criminalização do desacato é compatível com Estado Democrático de Direito e que não haveria constrangimento ilegal que fundamentasse a procedência do Habeas corpus impetrado, voto este que fora acompanhado pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, que também participaram do julgamento. Em sentido contrário cumpre destacar o voto vencido do Ministro Edson Fachin, que está alicerçado na previsão do artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos e na incompatibilidade da criminalização do desacato com o direito fundamental à liberdade de expressão e manifestação do pensamento. E por fim, partindo do pressuposto de que o Brasil adotou o Estado Democrático de Direito e o princípio republicano o Ministro demonstrou que um dos motivos para que o desacato seja considerado incompatível com a ordem jurídica é a busca histórica por meios de repelir quaisquer privilégios que tenham o condão de dar aos funcionários públicos privilégios e tratamentos diferenciados em relação às demais pessoas, e que deste modo, “a justificativa dada para a criminalização da conduta não encontra respaldo na ordem democrática brasileira, seja ela analisada sob o prisma do texto constitucional ou do bloco de constitucionalidade.”. (STF, HABEAS CORPUS n° 141.949 – DF, voto do Min. EDSON FACHIN, Data de julgamento: 13/03/2028, Segunda Turma). 4.5 Julgamento da ADPF 496 Neste cenário e diante das diversas decisões ora analisadas faz-se necessário ressaltar a recente e importante decisão proferida, em uma sessão virtual, devido à pandemia mundial da Covid 19, pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da já analisada ADPF 496, decisão na qual, por 9 votos favoráveis e apenas 2 em sentido contrário, decidiu-se pela fixação da tese de que: “Foi recepcionada pela Constituição de 1988 a norma do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato ”(STF, ADPF 496. Relator: Min. LUÍS ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 19/06/2020). Os votos vencidos, dos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, defendendo a não recepção do art. 331 do Código Penal, foram pautados na tese de que: “Não há, pois, fundamento constitucional para a criminalização do desacato, seja pela relevância do direito à 19 liberdade de expressão, seja pela desnecessidade de se renovar a tipificação de condutas já criminalizadas.” (STF, ADPF 496, Voto do Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 19/06/2020). Neste sentido, dentre os fundamentos em sentido contrário à tese fixada, coube ao Ministro Edson Fachin esclarecer que a ADPFdeveria ser julgada procedente principalmente porque a manutenção do desacato como ilícito penal seria uma ofensa não só ao texto constitucional como também aos tratados internacionais, tratados esses que para ele, assim como para o Ministro Celso de Mello possuem hierarquia constitucional, e neste ponto cumpre ressaltar que: Não se invocam direitos fundamentais para descumprir direitos humanos. Direitos humanos são direitos fundamentais. Os valores democráticos almejados pelo constituinte de 1988 ecoam as experiências democráticas de outras nações e de outros povos e se alinham a elas. Não por acaso, a mesma constituição que prevê, entre os seus princípios, a prevalência dos direitos humanos impõe às autoridades públicas o dever de propugnar pela criação de um tribunal internacional de direitos humanos. (STF, ADPF 496, Voto do Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 19/06/2020). Em seguida, ressalta que em decorrência da própria função, os funcionários públicos devem estar sujeitos a maiores críticas e consequentemente demonstrar uma maior tolerância a tais críticas de modo que criminalizar tais manifestações de descontentamento seria uma grave forma de se evitar o uso legítimo da liberdade de expressão. Além disso, segundo Fachin, para que exista uma compatibilidade do desacato com a Constituição Federal e com os tratados de direitos humanos é necessário um fundamento normativo que tenha o condão de amparar a especial proteção concedida aos funcionários públicos, o que não foi apresentado em nenhum momento. Deste modo, o Ministro demonstra que: O exercício da tolerância com opiniões negativas é mais do que simples dever da Administração Pública: a tolerância é parte constitutiva de sua legitimidade. Por essa razão, em uma sociedade democrática, não há como justificar a maior reprovabilidade da conduta que atinge a honra da Administração ou de seus funcionários. Não há como defender que os agentes privados tenham menor proteção da lei. O que desonra a Administração Pública não é a crítica, mas a conduta de seus funcionários. (STF, ADPF 496, Voto do Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 19/06/2020). Em sentido contrário, faz-se necessário destacar os principais aspectos do voto do Ministro e Relator Luís Roberto Barroso inicialmente destacando que os precedentes muitas vezes invocados não podem ser aplicados no âmbito nacional, uma vez que tratam-se contextos 20 fáticos e concretos diferentes, e que o próprio texto da convenção admite limitações a liberdade de expressão nos casos em que seja necessária uma maior proteção a honra principalmente para assegurar a ordem e a moral pública. Assim sendo, o Relator demonstra que, assim como qualquer outro direito fundamental previsto constitucionalmente, a liberdade de expressão também não pode ser vista e aplicada de forma absoluta, sendo que, desde que exista previsão legal, são admitidas restrições proporcionais e que não violem o núcleo essencial do direito. Deste modo, o desacato não violaria a liberdade de expressão principalmente porque não haveria crime nos casos em que a ofensa não for relacionada com o exercício da função e nem mesmo bastaria para a configuração do desacato que o funcionário se sentisse ofendido em sua honra, logo, apenas se configuraria desacato caso o ato menosprezasse a função pública de modo a perturbar e obstruir a execução da função pública. 5 PREVISÃO DA CADH E SUA APLICAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Dentre os fundamentos essenciais e que foi alvo de debate em todas as decisões apresentadas sobre o desacato é necessário destacar a celeuma envolvendo a previsão e a aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos frente ao ordenamento jurídico brasileiro. De modo inicial, a análise acerca do assunto deve partir do pressuposto de que atualmente Constituição não se resume apenas ao texto constitucional, de modo que princípios previstos implicitamente e tratados internacionais de direitos humanos incorporados nos termos do artigo 5°, §3º da Constituição Federal, isto é, tratados aprovados por 3/5 dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, por votação em dois turnos, também fazem parte das normas constitucionais, tendo portanto hierarquia e força constitucional e completando o chamado bloco de constitucionalidade. Porém, no que diz respeito a hierarquia assegurada aos tratados internacionais que tratem de direitos humanos e que não tenham sido aprovados nos termos citados, a Constituição foi omissa, e é justamente em decorrência desta omissão que surge o debate entorno da Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim, uma corrente minoritária, formada pelos doutrinadores Celso de Mello, Flávia Piovesan, Valério Mazzuolli e outros, entende que todo e qualquer tratado internacional que verse sobre direitos humanos deem ter força e hierarquia se norma constitucional uma vez 21 que com base na previsão do artigo 5º, §2º da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Porém, a contrário senso, e segundo a maioria dos ministros do STF, os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos e que não forem aprovados nos moldes do artigo 5º, §3º da Constituição, têm hierarquia de norma supralegal e infraconstitucional, logo estão acima das demais leis e abaixo da Constituição Federal. Portanto, sendo a Convenção Americana de Direitos Humanos um dos tratados internacionais que não foram aprovados nos termos do artigo 5º, §3º da Constituição, é possível concluir que, de acordo com entendimento do STF, e desde o julgamento do Recurso Extraordinário 349.703, de 2008, que julgou inválida a prisão civil do depositário infiel, ela possui força de norma supralegal e infraconstitucional estando portanto abaixo da Constituição e acima das demais leis brasileiras, inclusive do Código Penal. 6 A (IN) CONVENCIONALIDADE DO ART. 331 DO CÓDIGO PENAL Verifica-se, pois, a existência de duas formas de controle de validade das leis, de modo que para que uma lei seja considerada válida, é preciso que esteja de acordo com as demais normas previstas na Constituição e no bloco de constitucionalidade, além de ser necessário que estejam de acordo com os tratados supralegais. Assim, a análise de compatibilidade e validade de uma lei tendo por base a Constituição Federal é feita através do controle de constitucionalidade, ao passo que a verificação da compatibilidade de leis com tratados supralegais, tem sido chamada pela doutrina e pela jurisprudência de Controle de Convencionalidade. Logo, para que uma lei seja válida, ela terá de ser compatível não só com a Constituição, mas também com os tratados internacionais. Assim, partindo da tese de que a Convenção Americana de Direitos Humanos tem caráter supralegal por não ter sido incorporada ao direito brasileiro nos moldes do artigo 5º, §3º da Constituição, a discussão em torno da previsão do desacato como um ilícito penal deve ser analisada a partir do Controle de convencionalidade, uma vez que este mecanismo busca adaptar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e que criam deveres no plano internacional e reflexos práticos no plano do direito interno, buscando portanto verificar se a tipificação do artigo 331 do Código Penal seria ou não uma forma de 22 restringir e violar o direito fundamental à liberdade de expressão previsto não só na Constituição, mas também no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. 7 CONCLUSÃO Cumpre finalizar a presente pesquisa fazendo reflexões acerca da seguinte indagação: a criminalização do desacato é inconvencional? Em caráter inicial, é necessário destacarque tal indagação segue rendendo diversas discussões, isso porque, embora as últimas decisões proferidas no âmbito dos tribunais superiores tenham sido no sentido de que é plenamente constitucional a criminalização do desacato, ainda não é possível verificar uma unanimidade. Assim sendo, e tendo em vista os apontamentos das diversas decisões ora analisadas é possível verificar a existência de fortes argumentos tanto dentre aqueles que defendem a manutenção da tipificação do desacato como ilícito penal, quanto daqueles que entendem ser esse delito inconvencional por violar os preceitos fundamentais da Convenção Americana de Direitos Humanos. Deste modo, apesar das decisões proferidas no âmbito dos tribunais superiores, é necessário analisar o debate partindo de algumas ideias ainda não abordadas, de modo que, tendo por base o Direito Penal mínimo, defendido por grandes expoentes, dentre eles Ferrajoli, em especial o princípio da intervenção mínima, o Estado apenas deveria valer-se do direito penal como forma de intervir na autonomia e liberdade do indivíduo em situações de extrema necessidade, nas quais não houvessem outros meios de se exercer o controle estatal. Neste prisma, considerando que já existem tipos penais capazes de proteger a honra dos indivíduos, como por exemplo os artigos 138, 139 e 140, a manutenção do artigo 331, além de parecer desnecessária, se mostra inadequada, uma vez que sua utilização não tem demonstrado efeitos práticos e nem mesmo tem tido o condão de concretizar do objetivo pretendido, qual seja a proteção da administração pública. Verifica-se que o ato de criminalizar o desacato tem sido utilizado de forma arbitrária, se mostrando uma abertura perigosa para atuações desproporcionais e violadoras de direitos fundamentais do indivíduo. Assim sendo, além de sua tipificação violar a liberdade de expressão e manifestação do pensamento, se revela inconvencional frente à Convenção Americana de Direitos Humanos e desproporcional ao ordenamento jurídico, uma vez que os motivos que fundamentam sua criminalização não justificam as restrições a direitos fundamentais tão importantes aos cidadãos e a um Estado Democrático de Direito. 23 REFERÊNCIAS AFONSO DA SILVA, Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50. Disponível em: < https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2002- RT798-Proporcionalidade.pdf>. Acesso dia 17 de agosto de 2020. ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Manual de direito penal. 12ª. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. ARTICLE 19. Defesa da liberdade de expressão: Teses jurídicas para da descriminalização do desacato.2018. Disponível em: : <https://artigo19.org/centro/wp- content/uploads/2018/02/Defesa-da-Liberdade-de-Expressao-teses-juridicas-para-a- descriminalizacao-do-desacato-ARTIGO-19.pdf>Acesso em: 13 de mar. 2020. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 5: parte especial (art. 312 a 359-H). 13ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. BRASIL. Código Penal. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 16 abril. 2020. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. ADPF n°496, de 27 de outubro de 2017.Brasília, DF,2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/adpf-496- oab-desacato.pdf> Acesso: 7 mar 2020. BRASIL: Superior Tribunal de Justiça (3º turma). Habeas Corpus Nº 379.269 – MS (2016/0303542-3). Impetrante: Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul. Paciente: Magno Leandro Santos Angelico. Impetrado: Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 24 de maio de 2017. Jurisprudência do STJ. BRASIL: Superior Tribunal de Justiça (5º turma). Processo penal. Recurso Especial Nº 1.640.084 - SP (2016/0032106-0). Recorrente: Alex Carlos Gomes. Recorrido: Ministério Público de São Paulo. Relator: Ministro Ribeiro Dantas, 15 de dezembro de 2016. Jurisprudência do STJ. BRASIL: Superior Tribunal de Justiça (6ª turma). Penal e Processo Penal. Habeas Corpus N° 104.921 – SP (2008/0088013-7). Relatora: Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJMG), 21 de maio de 2009. Jurisprudência do STJ. BRASIL: Superior Tribunal de Justiça (CE-Corte Especial). Processo Civil. Tributário. REsp Nº 914.253- SP (2006/0283913-8). Recorrente: Fazenda do Estado de São Paulo. Recorrido: Marja Artefatos Técnicos de Borracha Ltda. Relator: Ministro Luiz Fux, 02 de dezembro de 2010. Jurisprudência do STJ. BRASIL: Supremo Tribunal Federal (2ª turma). Habeas Corpus 141.949-DF. Crime de desacato a militar. Impetrante: Rafael de Deus Garcia em favor de Admys Francisco de Sousa https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2002-RT798-Proporcionalidade.pdf https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2002-RT798-Proporcionalidade.pdf https://artigo19.org/centro/wp-content/uploads/2018/02/Defesa-da-Liberdade-de-Expressao-teses-juridicas-para-a-descriminalizacao-do-desacato-ARTIGO-19.pdf https://artigo19.org/centro/wp-content/uploads/2018/02/Defesa-da-Liberdade-de-Expressao-teses-juridicas-para-a-descriminalizacao-do-desacato-ARTIGO-19.pdf https://artigo19.org/centro/wp-content/uploads/2018/02/Defesa-da-Liberdade-de-Expressao-teses-juridicas-para-a-descriminalizacao-do-desacato-ARTIGO-19.pdf https://www.conjur.com.br/dl/adpf-496-oab-desacato.pdf https://www.conjur.com.br/dl/adpf-496-oab-desacato.pdf 24 Gomes, contra decisão do Superior Tribunal Militar. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 05 de setembro de 2017. Jurisprudência do STF. BRASIL: Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 466.333-SP. Prisão Civil. Depósito. Recorrente: Banco Bradesco S/A. Recorrido: Luciano Cardoso Santos. Relator: Ministro Cezar Peluso, 03 de dezembro de 2008. Jurisprudência do STF. CENTRO UNIVERSITÁRIO DE PATOS DE MINAS. Manual para normalização de trabalhos acadêmicos. 6. ed. rev. e ampl. Patos de Minas, 2019. ESTEFAM, André. Direito penal, volume 3: parte especial (arts.235 a 359-H):6ª.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. JUS BRASIL. Princípios informadores do Direito Penal Mínimo. Disponível em: < https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/976055/principios-informadores-do-direito-penal- minimo#:~:text=O%20Direito%20Penal%20M%C3%ADnimo%20ou,interven%C3%A7%C3 %A3o%2C%20com%20m%C3%A1ximas%20garantias%22.&text=Os%20princ%C3%ADpi os%20informadores%20do%20Direito,ser%20tutelados%20pelo%20Direito%20Penal.>. Acesso em 17/08/2020. MASSON, Cleber. Direito penal: volume 3: parte especial arts. 213 a 359-H. 8ª. ed. São Paulo: Forense, 2018. MOURA, Breno de Lacerda. Desacato, STJ e controle de convencionalidade. 2017. 66 f. Monografia (Graduação em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017. Disponível em: <http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/29377>. Acesso em: 15 de mar. 2020. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal, 16ª. ed. Rio de Janeiro: Forense,2020. NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de direito constitucional. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. Pacto São José da Costa Rica. CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOSHUMANOS. De 22 de novembro de 1969.Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm> Acesso dia 16 abril. 2020. TAVARES, André Ramos, Curso de Direito Constitucional, 18ª.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/976055/principios-informadores-do-direito-penal-minimo#:~:text=O%20Direito%20Penal%20M%C3%ADnimo%20ou,interven%C3%A7%C3%A3o%2C%20com%20m%C3%A1ximas%20garantias%22.&text=Os%20princ%C3%ADpios%20informadores%20do%20Direito,ser%20tutelados%20pelo%20Direito%20Penal https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/976055/principios-informadores-do-direito-penal-minimo#:~:text=O%20Direito%20Penal%20M%C3%ADnimo%20ou,interven%C3%A7%C3%A3o%2C%20com%20m%C3%A1ximas%20garantias%22.&text=Os%20princ%C3%ADpios%20informadores%20do%20Direito,ser%20tutelados%20pelo%20Direito%20Penal https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/976055/principios-informadores-do-direito-penal-minimo#:~:text=O%20Direito%20Penal%20M%C3%ADnimo%20ou,interven%C3%A7%C3%A3o%2C%20com%20m%C3%A1ximas%20garantias%22.&text=Os%20princ%C3%ADpios%20informadores%20do%20Direito,ser%20tutelados%20pelo%20Direito%20Penal https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/976055/principios-informadores-do-direito-penal-minimo#:~:text=O%20Direito%20Penal%20M%C3%ADnimo%20ou,interven%C3%A7%C3%A3o%2C%20com%20m%C3%A1ximas%20garantias%22.&text=Os%20princ%C3%ADpios%20informadores%20do%20Direito,ser%20tutelados%20pelo%20Direito%20Penal https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm