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Claudio Cezar Henriques 2009 LÍNGUA PORTUGUESA: Semântica e Estilística IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. © 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Comstock Complete CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ H449l Henriques, Claudio Cezar, 1951- Língua portuguesa : semântica e estilística / Claudio Cezar Henriques. – Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2009. 256 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-0661-8 1. Língua portuguesa – Semântica. 2. Língua portuguesa – Estilo. 3. Linguagem e línguas. I. Título. 09-1785. CDD: 469.5 CDU: 811.134.3’36 Pós-Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP); Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em Letras pela Uni- versidade Federal Fluminense (UFF); Licenciado e Bacharel em Letras pela Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Claudio Cezar Henriques Sumário Estilística, a ciência da expressividade .............................. 11 A palavra “estilo” ......................................................................................................................... 11 As origens da Estilística ........................................................................................................... 12 Principais correntes da Estilística ......................................................................................... 14 Aplicações da Estilística aos estudos do português ..................................................... 18 Estilística fônica ......................................................................... 27 Distinção entre letra e fonema ............................................................................................. 27 Expressividade das vogais e das consoantes .................................................................. 30 Relações expressivas entre a fala e a escrita .................................................................... 33 Figuras de linguagem .............................................................................................................. 34 Estilística léxica .......................................................................... 45 Conceituação de léxico ........................................................................................................... 45 Palavras lexicais e palavras gramaticais ............................................................................ 47 Neologismos lexicais e semânticos .................................................................................... 49 Figuras de linguagem .............................................................................................................. 52 Estilística sintática – I ............................................................... 65 Conceituação de sintaxe da frase ........................................................................................ 65 Organização das palavras na oração .................................................................................. 68 Extensão das frases ................................................................................................................... 71 Referenciação intrafrásica ...................................................................................................... 72 Figuras de linguagem .............................................................................................................. 74 Estilística sintática – II ............................................................. 83 Conceituação de sintaxe do período ................................................................................ 83 Organização das orações (no período) ............................................................................. 85 Referenciação interfrásica ..................................................................................................... 87 Figuras de linguagem ............................................................................................................. 92 Estilística da enunciação ......................................................101 Adequação sintática e adequação semântica .............................................................101 As pessoas do discurso e as pessoas gramaticais .......................................................106 Tipos de discurso ....................................................................................................................109 Semântica, a ciência das significações ...........................121 Significante e significado ....................................................................................................121 Principais correntes da Semântica ...................................................................................123 Semântica do texto e do contexto ...................................................................................127 Relações semânticas – I ........................................................137 Noções de Lexicologia, Lexicografia e Terminologia ..................................................137 Dicionários gerais e específicos .........................................................................................138 Sinonímia e antonímia ..........................................................................................................144 Homonímia e paronímia .......................................................................................................146 Relações semânticas – II .......................................................153 Campos associativos, conceituais e semânticos .........................................................153 Hiperonímia e hiponímia .....................................................................................................155 Antonomásia e eponímia ....................................................................................................158 Relações semânticas – III .....................................................171 Paráfrase .....................................................................................................................................171 Perífrase ......................................................................................................................................174 Ambiguidade e polissemia ..................................................................................................176 Características do texto ficcional ......................................189 Ficção e verossimilhança ......................................................................................................189 Narratividade, descritividade e argumentatividade ..................................................192 Estudo semântico-estilístico de texto ficcional ...........207 Digressão ....................................................................................................................................207 Intertextualidade .....................................................................................................................212 Estilística aplicada ao texto ficcional ................................................................................217 Gabarito .....................................................................................231 Referências ................................................................................243 Anotações .................................................................................255 Apresentação Nos estudos de Língua Portuguesa dedicamos uma boa parte do tempo aos conteúdos tradicionais da gramática, em especial a sintaxe, amorfologia e a fono- logia. Além disso, temos sempre de nos atualizar quanto às questões da ortogra- fia, fazer muitas leituras e redações. É, em suma, um grande aprendizado. Quando juntamos todas essas informações e refletimos seriamente sobre nossa vida escolar, podemos fazer um balanço dos proveitos que tanto estudo nos trouxe. Feito com dedicação, esforço, disponibilidade, as aulas e as orien- tações devem ter deixado em cada um de nós a certeza de que estamos mais conscientes de nosso papel na sociedade e de nosso compromisso com a língua portuguesa. De todas as ferramentas aprendidas após tantas aulas, as duas que fazem parte deste livro se sobressairão: a ferramenta estilística e a ferramenta semântica. Elas sin- tetizam, ou melhor, elas sublimam tudo que se estudou nas muitas disciplinas dos estudos linguísticos, desde as primeiras letras até estas Letras superiores. A ciência da expressividade e a ciência das significações. Ambas percorrem este volume, chamando de volta aquelas aulas, pesquisas e conteúdos gravados nas nossas lembranças – e agora mais repisados, amadurecidos, disponíveis para uso e para uma mudança de posição no ato de aprender e ensinar. A Estilística e a Semântica – o leitor confirmará – são disciplinas da vida acadê- mica e da vida real, levando-nos em busca de um lugar expressivo e significativo, compelindo-nos ao entendimento e à explicação, à indagação, cogitação, novas sendas filológicas, pragmáticas, discursivas. Na estrutura deste livro, optamos por trabalhar em conjunto, sempre que possível, o binômio estilística/semântica. Embora as separemos didaticamente na organização dos capítulos, uma e outra estarão muito perto nas explicações, comentários e propostas de atividades, imbricando-se nos dois últimos capítulos, quando tratamos das características do texto ficcional e fazemos dele a matéria incisiva para a aplicação dos estudos semântico-estilísticos. Carpe librum! O objetivo deste capítulo é conceituar os termos “estilo” e “estilística” e destacar a importância dos estudos estilísticos para a compreensão do funcionamento da língua portuguesa. A palavra “estilo” O termo “estilo” (registrado pela primeira vez em nossa língua no século XIV) provém do latim stilus: “qualquer objeto em forma de haste pontiagu- da, ponteiro de ferro para escrever sobre tabuinhas enceradas”, definição que reúne as informações de duas obras homônimas, o Dicionário Etimo- lógico da Língua Portuguesa, de J. P. Machado (1977), e o de A. Nascentes (1955). De instrumento empregado para escrever, passou a significar, por um processo metonímico, a própria escrita e, depois, a linguagem considera- da em relação ao que ela tem de característico. Por fim, expandindo seu campo de significação, estilo passou também a representar qualquer con- junto de tendências e características formais, estéticas, que identificam ou distinguem uma obra, artista, escritor, ou determinado período ou movi- mento, ou até mesmo um objeto. Daí, é possível encontrarmos essa palavra acompanhada de muitas e variadas referências (poema em estilo parnasiano; móvel em estilo co- lonial; atriz com um estilo afetado; filme no estilo europeu) e, generica- mente, como sinônimo de “maneira” e “elegância” (esse é o meu estilo de vida; ela não tem estilo). Estilo: qualquer objeto em forma de haste pontiaguda, pon- teiro de ferro para escrever sobre tabuinhas enceradas. IE SD E Br as il S. A . Estilística, a ciência da expressividade 12 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística Dessa palavra deriva, por exemplo, o substantivo estilete: utensílio com lâmina móvel e bastante afiada, protegido por invólucro de plástico, usado para cortar pa- pelão, couro, borracha, etc. Deriva também o substantivo estilística, tema que se aplica a variados campos de estudo, inclusive aos estudos linguísticos e literários. Nos estudos de língua, pode-se definir estilo como o modo pelo qual um in- divíduo usa os recursos fonológicos, morfológicos, sintáticos, lexicais, semânticos, discursivos da língua para expressar, oralmente ou por escrito, pensamentos, senti- mentos, opiniões, etc. Ou seja: nos estudos de língua portuguesa... estilo é escolha linguística. Essa es- colha depende da capacidade e sensibilidade de cada usuário de responder a estas perguntas: – O que tem a dizer? – Para quem vai dizer? – Como vai dizer? – Quando vai dizer? Por isso, não é exagero afirmar que: QUEM NÃO TEM O QUE ESCOLHER NÃO TEM ESTILO... ...TEM CACOETE QUEM TEM O QUE ESCOLHER, MAS ESCOLHE MAL, TAMBÉM NÃO TEM ESTILO... ... TEM MAU GOSTO... As origens da Estilística As definições de Estilística variam conforme o recorte teórico a que pertence o analista, mas não se pode negar que sua existência tem uma conexão histórica e semântica com a Poética (enquanto “teoria geral das obras literárias”) e a Retó- rica (enquanto “teoria do discurso”). As definições que seguem foram extraídas do Dicionário Houaiss: Poética – parte dos estudos literários que se propõe a investigar os proces- � sos que dizem respeito às normas versificatórias dos textos, os componen- tes teóricos de que se revestem, bem como os compêndios de poética que, desde Aristóteles até os nossos dias, abordaram o assunto (POÉTICA, 2004). Estilística, a ciência da expressividade 13 Retórica – a arte da eloquência, a arte de bem argumentar; a arte da pa- � lavra; conjunto de regras que constituem a arte do bem dizer, a arte da eloquência; oratória (RETÓRICA, 2004). A Estilística se baseia sobretudo em duas das três funções primordiais da linguagem depreendidas pelo alemão Karl Bühler (1879-1963): representação, expressão e apelo (BÜHLER, 1934). A elas correspondem, respectivamente, as faculdades de inteligência, sensibilidade e desejo ou vontade, centrando-se a Estilística na expressão e no apelo. As funções da linguagem segundo Karl Bühler representação � linguagem referencial denotativa eixo sintagmático (= posição no texto) expressão � exteriorização psíquica de nossos anseios e sentimentos denotativa / conotativa eixo paradigmático (= posição no sistema) apelo � exercício de influência sobre os interlocutores denotativa / conotativa eixo paradigmático (= posição no sistema) Exemplos: 1. “Jornalista é a pessoa que trabalha como redator, repórter, colunista ou diretor em órgão da imprensa, ou programa jornalístico no rádio ou na televisão.” (JORNALISTA, 2004). 2. “Jornalista é um homem que sabe explicar aos outros o que ele próprio não entende.” (CARPEAUX, 1967). 3. “Jornalista, você tem uma missão importante na sociedade.” (Chamada pu- blicitária). Na prática, essas três funções se integram, tanto no texto informativo quanto no literário, embora possa ocorrer o predomínio de uma ou de outra, dependen- do do gênero textual ou do tipo de discurso. Nas três frases dadas, cada uma exemplifica uma das funções do quadro, na ordem. Seguindo o esquema das funções da linguagem de Karl Bühler, a Estilística é – como dissemos – a disciplina que estuda a língua nas suas funções expressiva e apelativa. Seu criador, Charles Bally (1865-1947), “pretendeu chamar a atenção para o lado afetivo do discurso”, como explica Melo (1976, p. 16). Outros teóricos, sobretudo Karl Vossler (1872-1949) e Leo Spitzer (1887-1960), apontaram para uma linha diversa da Estilística. 14 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística Enquanto Bally, discípulo de Ferdinand de Saussure (1857-1913), buscava es- tudar a língua como expressão do pensamento que reflete determinada afeti- vidade nos atos da fala, Vossler e Spitzer optaram por estudar as relações entre expressão e indivíduo. Podemos dizer que são duas concepções excludentes: uma centrada na langue (a de Bally), outra na parole. Dessas duas origens depreendem-se obviamente dois perfis de comentários es- tilísticos: um que se aproxima, comparativa e contrastivamente, da gramática des- critiva; outro que dela se afasta para se aproximar dos estudos específicos de litera-tura, e que chegou a ser chamado de Estilística genética. Com o passar do tempo, cada perfil foi recebendo adesões e adaptações, variantes de abordagem que per- correram vertentes estatísticas, estruturais, semióticas, psicanalíticas, sociológicas. Principais correntes da Estilística As duas grandes vertentes da Estilística são chamadas de “descritiva” e “idea- lista” e têm como principal diferença o enfoque dado ao objeto de seu estudo, ou seja, o texto. A Estilística descritiva (Estilística linguística) A Estilística descritiva volta-se para os aspectos afetivos da língua, os quais estão a serviço do homem de forma viva, espontânea, porém sujeitos a um siste- ma expressivo que pode ser descrito e interpretado. Para exemplificar, vejamos uma frase citada por José de Alencar (1829-1877) no “Posfácio” de Iracema como expressão bem popular de sua terra: 4. “A mãe diz do filho que acalentou ao colo: Está dormindinho.”(ALENCAR, s.d., p. 273) O vocábulo “dormindinho” não é o diminutivo de “dormindo”, mas uma forma nominal do verbo acrescida da ideia de afetividade e carinho expressada pelo sufixo -inho, assim interpretada estilisticamente pelo escritor cearense: “Que ri- queza de expressão nesta frase tão simples e concisa! O mimo e ternura do afeto materno, a delicadeza da criança e sutileza do seu sono de passarinho, até o receio de acordá-la com uma palavra menos doce; tudo aí está nesse diminutivo verbal.” (ALENCAR, s/d, p. 273). Estilística, a ciência da expressividade 15 Nos estudos de língua portuguesa, podemos citar algumas obras que seguem essa corrente, entre as quais merecem menção: Manuel Rodrigues Lapa – � Estilística da Língua Portuguesa (1.a ed. 1945); J. Mattoso Câmara Jr. – � Contribuição à Estilística Portuguesa (1.a ed. 1952); Gladstone Chaves de Melo – � Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa (1.a ed. 1976); José Brasileiro Vilanova – � Aspectos Estilísticos da Língua Portuguesa (1.a ed. 1977). O que a Estilística descritiva tem como alvo é a sistematização dos meios que a língua nos oferece para exteriorizarmos nossas necessidades afetivas, isto é, os elementos emocionais que acompanham o enunciado. Comparemos a expressividade dos versos de uma canção de Chico Buarque com a objetividade de uma variante referencial: 5. Dorme, minha pequena / Não vale a pena despertar / Eu vou sair / Por aí afora /Atrás da aurora / Mais serena (“Acalanto para Helena”) 6. Dorme, minha filha, não precisa acordar. Eu vou sair para o trabalho. Comentário estilístico: embora o conteúdo informativo seja idêntico, apenas o exemplo (5) mostra o sentimento e a densidade da cena, comparti- lhando com o leitor a escolha revelada do sintagma “minha pequena” e a longa representação de sua “saída para o trabalho” (= eu vou sair por aí afora atrás da aurora mais serena). Como se vê, ao se ocupar da descrição dos recursos expressivos da língua como um todo, independentemente de sua ocorrência em obras literárias, a Esti- lística descritiva não está voltada exclusivamente para a literatura e se desdobra em outras vertentes, sobretudo a chamada estilística funcional, que tem Roman Jakobson (1896-1982) como seu principal representante. Jakobson examina, a partir do processo de comunicação, a participação do emissor, do contexto, da mensagem, do contato, do código e do destinatário. E cada um desses componentes, conforme o caso, justifica a existência de funções predominantes ou concorrentes, a saber: emotiva ou expressiva (centrada no emissor), referencial ou informativa (no contexto), poética (na mensagem), fática (no contato), metalinguística (no código) ou conativa (no destinatário). 16 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística O processo básico da comunicação verbal envolve uma situação fundamen- tal de construção, que pode ser exemplificada na seguinte simulação: José pretende avisar a João que vai viajar. Em tal situação, temos seis fatores envolvidos na comunicação verbal. Partin- do da frase do exemplo, identificamos: A – José diz que vai viajar. Ele é o... ... emissor B – A ideia que vai ser proferida por José é algo abstrato e só vai ser concretizada quando for dita por ele. Essa ideia abstrata é o... ... contexto C – Ao concretizar o contexto, isto é, ao dizer: “Vou viajar”, José se vale da... ... mensagem D - Esta mensagem, para ser entendida por João, precisa ser dita de uma forma que ele conheça, isto é, com elementos que sejam comuns a ambos, no caso, as palavras, que são o... ... código E – José fala e João escuta. Isto representa o... ... contato F – João é o objeto/alvo/indivíduo a ser alcançado por José na conversação; João é, portanto, o... ... destinatário A esquematização desses seis fatores pode ser estabelecida da seguinte maneira: EMISSOR DESTINATÁRIO CONTEXTO MENSAGEM CONTATO CÓDIGO FUNÇÃO EMOTIVA FUNÇÃO CONATIVA FUNÇÃO REFERENCIAL FUNÇÃO POÉTICA FUNÇÃO FÁTICA FUNÇÃO METALINGUÍSTICA Em suma, a Estilística linguística pretende organizar e interpretar os dados expressivos “que se integram nos traços da língua e fazem da linguagem esse conjunto complexo e amplo” (CÂMARA JR., 1979, p. 15). Estilística, a ciência da expressividade 17 A Estilística idealista (Estilística literária) A Estilística idealista parte da reflexão, de cunho psicológico, a respeito dos desvios da linguagem em relação ao uso comum e considera que qualquer afas- tamento do uso linguístico normal decorre de alguma alteração do estado psíqui- co normal do escritor. Nesse sentido, a maneira pessoal de alguém se expressar é seu estilo, que reflete o mundo interior e a experiência de vida de quem escreve. Voltada especificamente para a produção literária, a Estilística idealista consi- dera que toda obra encerra um mistério cuja compreensão depende basicamen- te da intuição de quem se investe do desejo de desvendar “os mistérios de criação de uma obra e dos efeitos dessa obra sobre os leitores” (MARTINS, 1989, p. 9). Essa dimensão serviu como argumento para que alguns estudiosos defen- dessem a complementaridade entre as duas correntes principais. Amado Alonso (1896-1952), por exemplo, chega a afirmar que a Estilística literária tem como base a Estilística linguística justamente porque é esta quem cuida do lado afeti- vo, imaginativo das formas da língua, encontráveis tanto na fala como na escrita, pois são esses indícios que se sobrepõem aos signos. A partir de tais elementos, a Estilística literária examinará como é constituída a obra literária e considerará o prazer estético que ela provoca no leitor. Como tudo se engloba no valor esté- tico da obra, ela está impregnada do próprio prazer do autor ao criá-la e isso vai suscitar no leitor um prazer correspondente. Entre as obras disponíveis em língua portuguesa que seguem a corrente ide- alista, merecem citação: Vítor Manuel de Aguiar e Silva – � Teoria da Literatura (1.a ed. 1967); Eduardo Portella – � Teoria da Comunicação Literária (1.a ed. 1970); Affonso Romano de Sant’Anna – � Análise Estrutural de Romances Brasileiros (1.a ed. 1973); Luiz Costa Lima – � Dispersa Demanda (1.a ed. 1981). Eis alguns exemplos de comentários estilísticos sob o viés idealista: Até o momento presente, os mais importantes estudos sobre o lirismo drummondiano só trataram de aspectos parciais (temáticos ou formais) de sua obra, enquanto que a maior parte das visões de conjunto permanece excessivamente sintética. (MERQUIOR, 1975, p. 3) 18 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística No caso de Guimarães Rosa, embora sua obra seja das mais estudadas entre nós, o problema do magismo e de suas implicações com a apreensão estética da realidade parece completamente inexplorado. Isso propicia mal-entendidos, que mais se agravam se a ausência desta análise se combina a observações que, sendo válidas, sejam, no entanto, também tratadas parcialmente. (LIMA, 1991, p. 510) A leitura do conjunto das obras de Rubem Fonseca nos leva a destacar a existência de dois grandes núcleostemáticos: a violência e a busca da verdade. Poderíamos mesmo dizer que a íntima relação estabelecida entre esses núcleos é fonte geradora de força da ficção do autor, na medida em que determina o tipo de tratamento que será dado aos temas e a consequente busca de soluções formais adequadas. (FIGUEIREDO, 1994, p. 73) Roger Fowler (1993, p. 237) nos dá uma boa definição do que se deve en- tender por Estilística literária, dizendo que ela é “uma subdivisão historicamente isolada da crítica com seus próprios princípios e métodos”, sendo “menos difusa, mais coerente, mais mecânica do que a crítica em geral”. Em suma, a Estilística literária desvencilha-se às vezes da linguística e assume um aspecto quase genético, propondo-se a recuperar a gênese, a criação po- ética, convivendo desafiadoramente com as relações entre forma e conteúdo, materiais e estrutura. Aplicações da Estilística aos estudos do português “A Estilística vem complementar a gramática,” diz Mattoso Câmara Jr. (1979, p. 14). Por isso, para examinar que aplicações tem a Estilística nos estudos de uma língua, é preciso deixar claros seus vínculos com a gramática, ou seja, com o léxico, com a sintaxe, a morfologia, a fonética e a fonologia. Daí falarmos em estilística fônica (fonoestilística), em estilística da palavra (morfoestilística), em estilística sintática e até em estilística da enunciação. Afinal, [...] ler ou escrever um texto é muito mais do que apenas compreender ou organizar palavras em frases e parágrafos. É algo que envolve um amplo mecanismo a partir do qual o pensamento e as pretensões comunicativas do autor se apresentam para reflexão e avaliação do leitor. Como se constroem esses textos? Com palavras, sintagmas, termos e orações – elementos que mantêm entre si um relacionamento interno de concordância, de regência, de atribuição. (HENRIQUES, 2008a, p. 15) A Estilística é parceira de todos os componentes do texto, desde os fone- mas que constroem morfemas e palavras até os períodos e parágrafos que constroem a totalidade do texto. E a adequação gramatical de uma obra preci- sa estar “compatível com as pretensões e intuitos de seu autor, que – se assim julgar pertinente – procurará atingir o nível de exigência da linguagem padrão Estilística, a ciência da expressividade 19 praticada por escrito pela comunidade culta em que se insere” (HENRIQUES, 2008a, p. 16). As relações dentro de um texto são micro ou macro, conforme o ponto de vista de quem examina o objeto de estudo. Nessa tarefa, caberá notar que tipo de expressividade se percebe, se descreve e se explica nas passagens escolhidas de um texto concreto, real – produto que se tem em mãos e aos olhos para com ele se estabelecer uma “negociação de entendimento”. Para ilustrar essas considerações, vejamos dois trechos da canção intitulada “Ci- garra”, escrita por Ronaldo Bastos e Milton Nascimento e interpretada por Simone. 7. Porque você pediu uma canção para cantar / Como a cigarra arrebenta de tan- ta luz / E enche de som o ar / [...] Porque ainda é in- verno em nosso coração / Essa canção é para cantar / Como a cigarra acende o verão / E ilumina o ar / Si, si, si, si, si, si, si, si... Os versos mostram uma ex- pressiva identificação que começa na coincidência sonora que existe entre a primeira sílaba da palavra “cigarra” e do nome da cantora “Simone”. Seria coincidência, se não notássemos que a letra da música fala de alguém que “pediu uma canção para cantar”, sendo lícito supor que a onomatopeia que encerra a canção tanto poderia estar grafada com “c” como com “s” (si,si,si e ci,ci,ci). SIMONE CIGARRA SI, SI, SI... CI, CI, CI... Importa também observar que o verso inicial dos dois blocos tem uma estru- tura sintática idêntica, com uma oração adverbial que faz uma espécie de eco à composição, talvez como esboço de um estribilho, reforçado na repetição do sintagma “para cantar” e do substantivo “canção”, reiterado morfológica e se- manticamente com o verbo “cantar”. Va ne ss a Li m a. 20 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística Porque você pediu uma canção para cantar Porque ainda é inverno em nosso coração Essa canção é para cantar Esses pequenos comentários comprovam como são determinantes para a compreensão do conteúdo da canção os elementos fônicos (si/ci), os aspectos sintáticos (porque...), a escolha morfológica e lexical (canção + cantar), apenas para ficarmos nos que aqui focalizamos. Podemos, então, concluir, concordando com Mattoso Câmara Jr. (1981, p. 110), que a Estilística é uma “disciplina linguística que estuda a expressão em seu sentido estrito de expressividade da linguagem, isto é, a sua capacidade de emocionar e sugestionar.” Em resumo: Estilística considera e analisa a linguagem afetiva. Gramática considera e analisa a linguagem intelectiva. Texto complementar As tarefas da Estilística (GUIRAUD, 1978, p. 149-151) A tarefa mais urgente da Estilística é a de definir seu objeto, sua natureza, seus fins e seus métodos, começando pela própria noção de estilo. Reduzidas ao seu denominador comum, as diversas concepções de estilo limitam-se à seguinte definição: O estilo é o aspecto do enunciado que resulta da escolha dos meios de expressão determinada pela natureza e intenções do indivíduo que fala ou escreve. Definição muito ampla, que engloba a expressão, seu aspecto, o sujeito falante, sua natureza e suas intenções. 1. Os limites da expressão – As definições do estilo diferem, conforme se tome a expressão no sentido mais amplo da palavra ou numa acepção limitada: Estilística, a ciência da expressividade 21 a. A arte do escritor, que é o sentido tradicional, o emprego consciente de meios de expressão com fins estéticos ou literários. b. A natureza do escritor, a escolha espontânea, mais ou menos in- consciente, através da qual se exprimem o temperamento e a ex- periência do homem. c. A totalidade da obra, que transcende a simples forma verbal e com- preende a atitude do homem na totalidade da sua situação. 2. Os limites dos meios de expressão – O estilo é o emprego dos “meios de expressão”, termo este que pode ser tomado num sentido mais ou menos restrito: a. As estruturas gramaticais – sons, formas, palavras, construções. b. Os processos de composição – forma dos versos, gêneros, descrição, narração. c. O pensamento em sua totalidade – temas, visões do mundo, atitu- des filosóficas. 3. A natureza da expressão – A comunicação linguística comporta dife- rentes valores que se superpõem e traduzem, seja a atitude espontâ- nea do sujeito, seja o efeito que este quer produzir sobre seu interlo- cutor: a. Valores nocionais – o estilo pode ser claro, lógico, correto. b. Valores expressivos – o estilo pode ser impulsivo, infantil, provincial. c. Valores impressivos – o estilo pode ser imperioso, irônico, cômico. 4. As fontes da expressão – Numa perspectiva vizinha da precedente e que a confirma, poderemos distinguir: a. Uma psicofisiologia da expressão – estilos segundo o temperamen- to, o sexo, a idade; estilo bilioso (mal-humorado) ou melancólico. b. Uma sociologia da expressão – estilo das diversas classes e profis- sões, estilos provincianos. c. Uma função da expressão – estilo literário, administrativo, legal, oratório. 22 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística 5. O aspecto da expressão – Da natureza e das fontes da expressão surge nova série de definições puramente descritivas e baseadas sobre: a. A forma da expressão – estilo elíptico, metafórico, etc. b. A substância da expressão, o pensamento – estilo terno, triste, enér- gico, etc. c. O sujeito que fala e sua situação – estilo arcaico, poético, etc. Dicas de estudo MONTEIRO, José Lemos. “O Escopo da Estilística”, capítulo do livro A Estilística. O capítulo examina com clareza e objetividade os problemas que envolvem a delimitação do campo de estudo da Estilística e apresenta explicações didáticas para as investigações estilísticas. HENRIQUES, Claudio Cezar.“A Primeira Margem do Rio”, capítulo do livro Litera- tura: esse objeto do desejo. O capítulo trata das relações entre as palavras “estilo” e “estilística” e aborda como se processa a análise do texto literário, sob as perspectivas linguístico- -gramatical e teórico-literária. Estudos linguísticos 1. Os três comentários transcritos a seguir se referem à poesia de João Cabral de Melo Neto. Reconheça se eles se enquadram na vertente descritivista (linguís- tica) ou na vertente idealista (literária) da Estilística. Justifique sua resposta. a) Os instrumentos e meios de trabalho do projetista [João Cabral] revelam uma lúcida atividade mental que se vale da geometria como modelo de pensamento ativo, como metáfora de uma linguagem precisa que, pro- jetando formas ideativamente puras, cria mundos paralelos às realidades concretamente dadas. Estilística, a ciência da expressividade 23 b) João Cabral de Melo Neto elegeu a pedra como símbolo maior do atrito, traço ao mesmo tempo formal e temático que perpassa obsessivamente sua poesia. O atrito é adivinhado metonimicamente em seres, espaços e objetos de acidentada anatomia (esqueletos, corpos ossudos, paisagens escalavradas), evocado potencialmente em certos instrumentos (bisturi, espada, faca, forja), ou encaixado no discurso como nós ou arestas do texto (cacofonias, transgressões morfológicas, anomalias sintáticas). c) Em relação às questões propostas pelas obras anteriores, a novidade [em O Engenheiro] está na articulação que passa a existir entre a cons- trução da imagem poética e a problematização da poesia. Ou seja, o tratamento da imagem poética passa a ser a estratégia pela qual o po- eta problematiza o poema enquanto elemento de mediação entre ele e a realidade. 2. Leia atentamente o poema de João Cabral “Catar Feijão” (MELO NETO, 1994, p. 346-347) e assinale as alternativas que contêm comentários estilísticos coe- rentes a respeito do texto. Justifique suas respostas. Catar feijão se limita com escrever: jogam-se os grãos na água do alguidar e as palavras na da folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo; pois catar esse feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. Ora, nesse catar feijão entra um risco: o de que entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com o risco. 05. 10. 15. 24 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística a) No verso 2, o pronome se tem função apassivadora e, por isso, obriga o verbo a estar na 3.a pessoa do plural, para concordar com o sujeito “os grãos”. b) O poema busca, na inter-relação de seus elementos fônicos, semânticos e sintáticos, a projeção significativa das ações de catar feijão e catar palavras. c) A pedra do feijão e a pedra do papel são iguais porque são pedras e por- que são, ambas, indigestas e imastigáveis. d) A sequência de palavras com o fonema /g/ em “jogam-se os grãos na água do alguidar” marca o ritmo de leitura desse verso. e) Os dois últimos versos empregam três verbos transitivos diretos dispos- tos em ordem lógica, direta. f) Os três últimos verbos do texto contêm uma gradação importante para a compreensão do poema, colocando o verbo “iscar” como culminante da ideia de “colher”, “captar” o sentido “mais vivo” da frase. Estilística, a ciência da expressividade 25 3. Considerando a vertente funcional dos estudos estilísticos e os componen- tes envolvidos no processo de comunicação citados por Roman Jakobson, complete as lacunas analisando corretamente a função da linguagem do tre- cho destacado. a) No mercado de cerveja, o Brasil só perde, em volume, para a China (35 bilhões de litros/ano), Estados Unidos (23,6 bilhões de litros/ano), Ale- manha (10,7 bilhões de litros/ano). O consumo da bebida, em 2007, apresentou crescimento em relação ao ano anterior, totalizando 10,34 bilhões de litros. Função __________________: na totalidade do parágrafo. b) Beba com moderação! & Se for dirigir, não beba! Função __________________: no uso dos verbos no imperativo. c) Eu bebo, sim, e vou vivendo. Tem gente que não bebe e está morrendo [...] Função __________________: no uso da primeira pessoa. d) Inventaram um verbo popular que é o mais lindo exemplo de criativida- de sob o efeito do álcool: bebemorar. Função __________________: na explicação do neologismo. e) Alô, garçom! Você está aí?! Alguém aí pode me trazer uma cerveja gelada? Função __________________: na tentativa de confirmação de que há um interlocutor. f) Cerveja... rios e mares de cerveja... O rádio toca canções de amor, mas o telefone segue mudo e as paredes continuam no lugar. Cerveja... essa é a única coisa que há. Função __________________: na escolha e organização das palavras de modo original. O objetivo deste capítulo é observar a expressividade dos aspectos fô- nicos no estudo estilístico da língua portuguesa. Distinção entre letra e fonema O estudo da Estilística fônica (ou fonoestilística, como alguns preferem) envolve necessariamente o conhecimento e domínio de um dos assuntos abordados nos estudos gramaticais, isto é, o fonema. Por esse motivo, é preciso lembrar o tema da arbitrariedade do signo linguístico e também as vinculações entre a articulação das palavras e frases no português e a convenção gráfica praticada. Em resumo: Fonema é � [...] considerado como o conjunto de articulações dos órgãos fonadores, seu efeito acústico estrutura as formas linguísticas e constitui o mínimo segmento distinto numa enunciação, o que também significa que o fonema é uma subdivisão da sílaba. (HENRIQUES, 2008b) A imagem do aparelho fonador identifica partes do corpo humano que atuam na produção dos chamados “sons da fala”, oriundos da corrente ex- piratória proveniente de nossos pulmões. Estilística fônica 28 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística IE SD E Br as il S. A . fossas nasais lábios lábios cordas vocais laringe língua faringe epiglote cavidade bucal véu palatino dentes dentes Letra – “É um sinal gráfico com � o qual se constroem na língua escrita os vocábulos. Ao con- junto de letras de uma língua chama-se alfabeto.”(grifo do autor) (HENRIQUES, 2008b) – a foto ilustrativa mostra a capa da edição de 2009 do Vocabu- lário Ortográfico da Língua Por- tuguesa (VOLP), publicado pela Academia Brasileira de Letras, obra reeditada com as novas normas ortográficas aprovadas em 29 de setembro de 2008 e com efeito desde 1.o de janeiro de 2009. Portanto, fonemas são sons da fala usados para estruturar as formas linguísticas, mas que isolados não têm signifi- cação. Um som da fala só é fonema quando tem pertinência, ou seja, valor lin- guístico, como prova a comutação praticada na série de palavras seguinte: D iv ul ga çã o A BL . Estilística fônica 29 1. [ ‘b r ã k a ] x [ ‘t r ã k a ] Comentário: a troca de [b] e [t] nos dá duas palavras (branca e tranca) e confirma que /b/ e /t/ são fonemas do português. 2. [ ‘ã d a ] x [ ‘õ d a ] Comentário: a troca de [ã] e [õ] nos dá duas palavras (anda e onda) e con- firma que /ã/ e /õ/ são fonemas do português. 3. [‘d i v a ] x [ ‘dƷ i v a ] Comentário: a troca de [d] e [dƷ] não nos dá duas palavras, mas duas pos- síveis pronúncias para uma única palavra (diva) e não confirma a perti- nência de ambos como fonemas do português, mas de apenas um deles – neste caso, o /d/, que tem o [dƷ] como seu alofone (registra uma pronún- cia típica de algumas regiões brasileiras). Alofone = variante de fonema. 4. [ ‘k u s t a ] x [ ‘k u ʃ t a ] Comentário: a troca de [s] e [ʃ] não nos dá duas palavras, mas duas possíveis pronúncias para uma única palavra (custa) e não repete a pertinência de ambos como fonemas do português (encontrável por exemplo no par “taça/ taxa”) – nesse ambiente fonético de final de sílaba, os dois fonemas sempre se neutrali- zam e caracterizam o que se chama arquifonema. Arquifonema = neutralização permanente da oposição de fonemas. 5. [ ‘p l ã t a ] x [ ‘p r ã t a ] Comentário: a troca de [l] e [r] não nos dá duas palavras, mas duas possíveis pronúncias para uma única palavra (planta) e não repete a pertinência de ambos como fonemas do português (encontrável por exemplo no par “mola / mora”) – os dois fonemas se neutralizam, neste exemplo, sem risco de confusão, mas caracterizam um caso de debordamento (e não de arquifonema), porque se o par fosse “planto / pranto” a neutralização se mostraria ambígua. 30 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística Debordamento = neutralização eventual da oposição de fonemas. O sistema ortográfico da língua, em sua versão oficial, reproduz as palavras de acordo com a convenção em vigor. Observar como acontecem as relações entre a ortografia e a sonoridade é a tarefa do estudioso da expressividade, ou seja, da Estilística. Expressividade das vogais e das consoantes Não obstante sejam portadores de um ou mais significados, os vocábulos (e seus componentes) se constituem de sons e ruídos e assim atuam no mundo físico, estando “sujeitos às mesmas análises acústicas das notas musicais e dos produtos erráticos de vibrações irregulares” (MELO, 1976, p. 57). Os valores estilísticos podem ter uma natureza sonora e se expressam tanto no âmbito das palavras como dos enunciados. Assim, além de sua concretização fonética, também atuam o ritmo, a intensidade e a entonação. Ritmo: é a distribuição de sons num enunciado, considerando de que � modo eles se organizam ou se repetem a intervalos regulares, ou a espa- ços sensíveis quanto à duração e à acentuação. Intensidade: é o maior grau de força expiratória com que o som da fala é � proferido, força que se manifesta acusticamente na maior ou menor am- plitude de vibrações. Atenção! O acento característico da língua portuguesa é a intensidade, sendo chamada de tônica a vogal ou sílaba sobre a qual recai a intensidade e de átona a vogal ou sílaba inacentuada. Além da intensidade, também atuam na articulação dos sons da fala o timbre (efeito acústico resultan- te dos diversos graus de abertura da cavidade bucal), a altura (sensação auditiva relacionada à intensidade do som) e a quantidade (duração da emissão de um som). Entonação: é a variação de � tom (fenômeno caracterizado por variações de altura no corpo do vocábulo, resultantes da velocidade e vibração das cordas vocais) que tem como domínio a sentença (oração, período ou frase). Estilística fônica 31 Tomemos como exemplo dessas referências à camada sonora o trecho abaixo, inédito: Lá vai a bola, solitária e devagar, na direção da última linha do campo. Incerteza... A alegria subterrânea se mistura com a raiva recôndita. O orgulho, com o medo. A dor pode ser uma felicidade passageira, eterna. Suspense. Angústia. Prazer. Por um breve momento, um único monossílabo pode conter todas as emoções: a palavra GOL. Ela tem três letras, mas pode ter quatro, dez… Dependendo do seu fôlego e da sua alegria, ela pode ter o tamanho do papel, pode até nem acabar: GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLL… IE SD E Br as il S. A . Imaginando vários modos de se narrar um gol num jogo de futebol, percebe- -se que a intensidade da vogal “o”, sua duração e até sua musicalidade têm força expressiva potencial, ainda mais se comungarmos com a emoção do locutor. Porém, mesmo que o gol não seja a nosso favor, por ser o gol de uma derrota in- desejada, a sonoridade dessa palavra nos marcará, impregnando-nos de tristeza tanto quanto impregnará de alegria os corações dos torcedores favorecidos pela simples passagem da bola por sobre a linha que fica debaixo da baliza. O comentário acima explica uma das possibilidades de a sonoridade da língua se manifestar. Mas há outras situações em que a massa sonora tem papel importante. Na rima de um poema ou de uma letra de música: � 6. De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto. (MORAES, 1998) 32 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística 7. Que jamais seja um sofrimento viciosamente cultivado para transformar-se em momento de verso, espúrio intento da arte. Mas a arte que, a cumprir seu fado, por força de sonho ou tormento se volva num momento dado coisa divina, imensa e à parte... (MEIRELES, 1993) Comentário: em (6) “pranto” e “branco”; “bruma” e “espuma” rimam simetrica- mente no esquema ABBA e causam um efeito de ritmo e musicalidade; já em (7) a rima não é simétrica (o esquema é ABACBABC), mas também há ritmo e musicalidade. Numa mensagem publicitária: � 8. “Plá, plé, pli, pló, plus vita! Plus Vita! Na nossa mesa tem Plus Vita todo dia!” Comentário: a progressão vocálica em série cria um ambiente descontra- ído e apropriado para veicular o produto e causar uma reação favorável no destinatário. Na repetição de palavras ou de sílabas: � 9. Eu quero a estrela da manhã Onde está a estrela da manhã? Meus amigos meus inimigos Procurem a estrela da manhã. (BANDEIRA, 1958) Comentário: a ênfase ocorre pela reiteração do sintagma “estrela da manhã”, demonstrando a posição do “eu lírico” diante de sua (in)certeza. Na escolha estratégica de palavras com consoantes ou vogais iguais ou � semelhantes: 10. “Acalanto e acalento. Calo e canto por encanto. Enquanto encontro o es- quecimento, conto a calma escuridão.” (Canção de Cezar de Souza e N. Bulhões) Comentário: a sucessão de palavras paroxítonas com as vogais nasais e a con- soante /k/ traz um efeito especial que se encerra na palavra oxítona final. Estilística fônica 33 Na invenção de palavras imitativas ou carinhosas: � 11. “É na boca do trabuco, é no té-retê-retém... E sozinhozinho não estou.” (ROSA, 1986). 12. “E a fonte a cantar, chuá, chuá; e a água a correr, chuê, chuê.” (Canção de Pedro Sá Pereira e Ary Pavão) Comentário: a observação dos sons da realidade serve como suporte para sua reprodução ou para a afetividade de um trecho. Relações expressivas entre a fala e a escrita Uma sequência sonora realizada na emissão de uma frase se decompõe em grupos onde prevalece uma única pauta acentual (com uma sílaba tônica, uma ou mais sílabas átonas pré-tônicas ou pós-tônicas e, eventualmente, alguma sílaba subtônica). Cada um desses grupos se chama “palavra fonológica”, e esta se forma em função da relação sintagmática de seus membros. Na frase “Aquele quadro fez sucesso”, observam-se com nitidez duas palavras fonológicas e quatro palavras ortográficas. As duas palavras fonológicas são: 13. [ a k e l i ’k w a d r u ] – a sílaba tônica é [kwa], as demais são átonas. Essa palavra fonológica se formou a partir de duas palavras ortográficas. 14. [ f e ʃ s u ’s ɛ s u ] – a sílaba tônica é [sɛ], a subtônica é [feʃ], as demais são átonas. Essa palavra fonológica também se formou a partir de duas palavras ortográficas. Como se vê, a palavra fonológica é delineada por um contorno prosódico que parte de seu acento primário (no caso, das palavras quadro e sucesso). Ela repre- senta, na hierarquia da prosódia, o primeiro nível de interação entre a fonologia e a morfologia, e ultrapassa os limites da palavra lexical. 34 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística Prosódia = o estudo da variação na altura, intensidade, tom, duração e ritmo da fala, vinculando-se pois à ortoepia, que estuda a pronúncia correta das palavras. “A expressividade dos fonemas poderia passar despercebida, se os poetas não os repetissem a fim de chamar a atenção para a sua correspondência com o que exprimem” , diz Nilce Sant’Anna Martins (1989, p. 38), e podemos estender a afirmação aos publicitários, aos compositores, aos jornalistas e a qualquer um dos usuários da língua, quando agimos no processo de comunicação com o in- tuito de criar harmoniano que falamos. Figuras de linguagem Os sons, como vimos, podem sugerir dentro da frase um valor expressivo para o que dizemos. Quando isso acontece, temos figuras de linguagem. Dife- rentemente, a utilização inexpressiva ou caótica da massa sonora caracterizará desvios a que chamamos vícios de linguagem. No campo da fonoestilística, esses recursos podem ter as seguintes denominações: Aliteração – é a repetição continuada dos mesmos sons consonantais, � independente da posição que ocupam nas palavras, distribuídas em se- quência ou com proximidade. 15. “Escuta-me, não te demoro. É coisa pouca como a chuvinha que vem vin- do devagar.” (ANDRADE, 2000). Comentário: o poeta utiliza intencionalmente em quatro palavras segui- das a consoante /v/, visando a criar um efeito expressivo, afetivo. Atenção! O vício de linguagem correspondente é a colisão: repetição de- sagradável de consoantes iguais – que pode até ter como finalidade o hu- mor ou a estranheza do interlocutor. 16. Pela primeira pesquisa, percebeu-se por que as pessoas procuram o perigo. 17. Três trabalhadores tentaram trocar o turno do trabalho. Comentário: observa-se a gratuidade da repetição, sem nenhuma preten- são estilística. Estilística fônica 35 Assonância – é a repetição vocálica em sílabas tônicas. � 18. “Sou um mulato nato no sentido lato mulato democrático do litoral.” (Can- ção de Caetano Veloso) Comentário: o compositor utiliza intencionalmente uma série de palavras cuja vogal tônica é /a/, visando a criar um efeito sonoro e musical. Atenção! O vício de linguagem correspondente é o hiato: sucessão de- sagradável de vogais – que pode até ter como finalidade o humor ou a estranheza do interlocutor. 19. Ou há o aumento, ou há a autogestão. Comentário: observa-se a gratuidade e o desconforto da repetição, sem nenhuma pretensão estilística. Harmonia imitativa – ocorre quando a aliteração, combinada ou não com � assonância, se associa à ideia que expressa. 20. Trovões trombeteavam pelas trevas, Trastes turvos tonitruantes De um turbilhão tortuoso Como a turba triste da morte. (SOUZA, 2005) 21. O vento varria as folhas, O vento varria os frutos, O vento varria as flores... E a minha vida ficava Cada vez mais cheia De frutos, de flores, de folhas. (BANDEIRA, 1958) Comentário: a sonoridade das consoantes /t/ e /r/, em (20), e /v/, /f/ e /s/, em (21), tem relação coerente com a ideia da forte tempestade, acentua- da pelas variadas possibilidades articulatórias da consoante vibrante – em (20), e da ação do vento – em (21). Homeoteleuto – é a coincidência de terminação, sobretudo em pontos � sensíveis da cadeia sonora. 22. “Ainda canto o ido o tido o dito o dado o consumido o consumado / Ato do amor morto motor da saudade... Diluído na grandicidade... / Idade de pedra [...]” (VELOSO; DUPRAT, 1969). 36 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística Comentário: a escolha de palavras com sonoridade interligada (série 1: ido/ado + t/d; série 2: ...mido/...mado; série 3: mor + t) cria um efeito de sentido, mas tem força sonora identitária. Atenção! Um dos vícios de linguagem correspondentes é o eco: repetição desagradável de terminações iguais. 23. Na frente da gente, há somente um ambiente diferente. 24. O cadeado estragado foi consertado ao lado do mercado. Comentário: observa-se a gratuidade e o desconforto das sequências -ente e -ado, sem nenhuma pretensão estilística. Onomatopeia – é a imitação acústica de um som ou ruído ou da voz de um � animal, e pode ser criada segundo três possibilidades: 25. tique-taque; zás-trás; bum; ploft; miau; cocoricó – onomatopeias puras. 26. tilintar; pifar; o cacarejo; grunhido – palavras onomatopaicas. 27. bem-te-vi; quero-quero; estou-fraco – onomatopeias interpretativas. Comentário: no primeiro grupo (25), as palavras são criadas a partir da uti- lização de fonemas que reproduzam o som; no segundo (26), há marcas morfológicas na construção de verbos, substantivos e adjetivos; no tercei- ro (27), palavras preexistentes são agrupadas sem razão semântica para tentar reproduzir o som. BAN G! zz zz z POU! PLOFT! IE SD E Br as il S. A . Estilística fônica 37 Percebe-se então que o objetivo de causar algum impacto expressivo pela es- colha da camada sonora está carregado de subjetivismo e sensibilidade. Isso sig- nifica que o êxito na construção de uma determinada combinação de sons não é algo automático e garantido, pois sempre se corre o risco de produzir um efeito malsucedido, ou seja, um vício de linguagem, cabendo ainda citar os casos de: Cacoépia – é o erro de pronúncia (que vira cacografia na escrita). � 28. *piscicologia, em vez de psicologia, ou *mortandela, em vez de mortadela. Cacófato – é o descuido no encadeamento de palavras, gerando um som � obsceno ou vulgar. 29. *Entregue-me já o relatório porque essa resposta ele já havia dado. Cacofonia e parequema – é o descuido no encadeamento de palavras, ge- � rando um som de significado concorrente ou desagradável. 30. *Já que tinha, na vez passada se interessado, apresentei-lhe uma prima minha. 31. *Deixa a chapa esquentar; *Comprei uma vaca cara; “Você fez a torta tarde”. Atenção! Como sempre, os vícios de linguagem podem ter como finali- dade produzir um efeito de humor ou de estranheza/admiração no inter- locutor. Na canção “Cálice”, de Chico Buarque e Milton Nascimento, observa-se a interessante estratégia de escrever uma palavra, o substantivo “cálice”, e sugerir o entendimento da exclamação “Cale-se!”, em versos que têm essa palavra fonológica como palavra-eco, como: 32. Quero perder de vez tua cabeça. [‘kalisi] Minha cabeça perder teu juízo. [‘kalisi] Quero cheirar fumaça de óleo diesel. [‘kalisi] Me embriagar até que alguém me esqueça. [‘kalisi] Comentário: no lugar onde transcrevemos a pronúncia, qual significação caberia melhor, a da taça de vinho ou a da ordem de silêncio? Ou ambas? Os autores, certamente, trabalharam com a palavra fonológica única, con- trastando-a com a duplicidade da palavra ortográfica (cale-se e cálice). O efeito é expressivo, sem dúvida. 38 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística Além das figuras de linguagem que aqui apresentamos, a exploração da massa sonora das palavras ainda pode produzir expressividade de muitas outras maneiras. Para nossos objetivos, basta mencionar por exemplo as questões ine- rentes à linguagem falada, em suas múltiplas variedades sociais e regionais, ou os temas específicos da arte poética ou musical, em que se pode trabalhar os conteúdos de versificação e de harmonia melódica. Enfim, as relações entre som e estilo são um caminho aberto à imaginação e arte, sempre a serviço da pre- tensão criativa, comunicativa, literária, jornalística de quem emprega a língua portuguesa na vida concreta. Texto complementar O vocábulo como massa sonora (MELO, 1976, p. 79-80) Começaremos por insistir numa distinção conhecida mas tantas vezes es- quecida: a que se deve fazer entre vocábulo e palavra. No primeiro, conside- ramos só a estrutura fônica. É uma sílaba, ou duas, ou mais, subordinadas ao mesmo acento intensivo Na cadeia da frase os vocábulos frequentemente se unem, fundindo-se a terminação de um no começo de outro, decorrendo daí fenômenos diversos, que recebem nomes adequados, mas aqui dispensáveis. Assim, “ainda agora” ou “com uma semana de espera”, por exemplo, soam como aindagora, cuma semana dispera. Há mesmo certos vocábulos que já perderam, ou ocasional- mente perdem a tonicidade, e, então, apoiam-se no acento do vocábulo an- terior ou no do seguinte. Chamam-se clíticos, distinguindo-se em enclíticos, num caso, proclíticos noutro: chamou-me; o livro. O mesmo vocábulo pode ser suporte de várias palavras, como se vê em rio, “curso d’água”, e forma do verbo rir; manga, “parte do casaco” e fruto. Para quem não conheça o significado de oscofórias ou de liço, estas duas formas são meros vocábulos. Nos casos de polissemia, isto é, multiplicidadede significados por força de um natural desdobramento, não se pode falar, creio, em multiplicidade de palavras, porque um liame, mais ou menos estreito, une esses significados. Normalmente, pois, a cada vocábulo corresponde um conceito ou um feixe de conceitos vizinhos. Tal correspondência é de si arbitrária e gratuita, segun- Estilística fônica 39 do o princípio maior, definidor da língua. Nenhuma relação natural existe entre o quadrúpede amigo do homem e a palavra cão, cachorro ou dog. No entanto, estilisticamente se pode falar em adequação ou inadequação entre a massa sonora do vocábulo e o conteúdo significativo. Assim, grito é mais expressivo que brado. Entre “por muito pouco ele não morreu” e “por um tris ele não morreu”, é preferível a segunda solução, dado que estejamos preocupados com uma forma adequada. É que a massa sonora de tris sugere melhor a mínima dependência em que ficou a vida do Fulano. Se dissermos que alguém entrou solenemente no recinto, passo cadenciado e lento, sob os olhares reverentes e admirativos da multidão, teremos escolhido um vo- cábulo cuja massa sonora quadra bem ao efeito: pentassílabo paroxítono (ou grave), com tônica média e nasal e uma combinação de /l/ e /n/ muito apropriada. Um vocábulo como abreviadamente é, com certeza, inadequado, maior, por assim dizer, do que o seu conteúdo. Arredondamento fica bem para o sentido que tem; é vocábulo adequado. Nesta sequência – grande, enorme, gigantesco – os três vocábulos traduzem a gradação do tamanho: cada sílaba a mais acrescenta, sensivelmente, uns quilates de intensidade. Os poetas são muito sensíveis à adequação da massa sonora ao significa- do, e é natural que assim seja, porque a poesia é essencialmente palavra, é o esplendor da palavra. Muitas das correções que, sobretudo os parnasianos, inserem nas suas retomadas têm por base o ajuste da massa sonora. A pro- pósito, é muito instrutiva a alteração feita por Raimundo Correia no último terceto de seu poema “Banzo”. Era assim a primeira versão, de 1885: Dos monolitos cresce a sombra infame... Tal em minh’alma vai crescente o vulto Desta tristeza aos poucos, lentamente A terceira (versão), que modifica levemente a segunda, de 1891, ficou assim: Vai co’a sombra crescendo um vulto enorme Do baobá... E cresce n’alma o vulto De uma tristeza imensa, imensamente... Além de ganhar em musicalidade e em cor local, com a substituição de “monolitos” por “baobá”, o fecho ainda se beneficiou muito com a dupla “imensa, imensamente”. 40 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística A massa sonora é adequada e há uma espécie de ilusão de ótica, digamos assim, que faz parecerem coordenadas as duas palavras, que na realidade não o são. Imensa é adjunto adnominal de “tristeza”, e imensamente é ad- junto adverbial de “cresce”: a inteligência da frase deixa isso muito claro. No entanto, a sequência faz com que se tenha a impressão do crescimento, do alongamento, de profundidade maior, de dor mais pungente. Temos, portanto, um duplo efeito, um intelectual, outro sensível, produzi- do pela boa utilização da massa sonora. A síntese final seria esta: “cresce cada vez mais uma tristeza cada vez maior”, com sólido apoio no material fônico. Dicas de estudo MARTINS, Nilce Sant’Anna. “A Estilística do Som”, capítulo do livro Introdução à Estilística. O capítulo examina minuciosamente o papel da sonoridade das palavras e dos fonemas na produção de sentido e na busca da expressividade. CÃMARA JR., Joaquim Mattoso. “Estilística Fônica”, capítulo do livro Contribuição à Estilística Portuguesa. O capítulo aborda temas como os traços estilísticos, acento e quantidade, va- riantes de estilo e a motivação sonora, entre outros. Estudos linguísticos 1. Os três comentários transcritos a seguir se referem a trechos de poemas bra- sileiros. Reconheça se o recurso estilístico indicado está adequadamente in- terpretado. Justifique sua resposta. a) Quando lemos os versos de Guilherme de Almeida “O sol é uma bola de enxofre fervendo, pondo empolhas redondas como gemas de ovos en- tre as folhas das laranjeiras”, observamos a expressividade da assonância, construída a partir da sucessão de palavras com a vogal tônica O. b) O compositor Paulo Ricardo começa uma de suas canções dizendo: “Virada do século, alvorada voraz, nos aguardam exércitos que nos guardam da paz (que paz?).” O aposto “alvorada voraz” utiliza as consoantes /v/ e /r/ Estilística fônica 41 que também estão presentes na primeira palavra da música. A repetição intencional dessas consoantes caracteriza uma figura de linguagem cha- mada onomatopeia. c) Em “Pedro pedreiro, pedreiro esperando o trem que já vem, que já vem, que já vem, que já vem...”, Chico Buarque utiliza a massa sonora da expres- são “que já vem” repetidas vezes para enfatizar o cansaço de quem está à espera do trem na estação, o que constitui um exemplo de harmonia imitativa. 2. Leia atentamente o poema de Solano Trindade “Tem Gente com Fome” (s.d., p. 7-8) e assinale as alternativas que contêm comentários fonoestilísticos coe- rentes a respeito do texto. Justifique suas respostas. Trem sujo da Leopoldina, correndo, correndo, parece dizer: tem gente com fome, 05. tem gente com fome, tem gente com fome... Piiiii! Estação de Caxias, de novo a correr, 10. de novo a dizer: tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome... IE SD E Br as il S. A . 42 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística Tantas caras tristes, 15. querendo chegar em algum destino, em algum lugar... Só nas estações quando vai parando, 20. lentamente começa a dizer: se tem gente com fome, dá de comer... se tem gente com fome, 25. dá de comer... se tem gente com fome, dá de comer... se tem gente com fome, dá de comer... 30. Mas o freio de ar, todo autoritário, manda o trem calar: Psiuuuuuuuuu...... a) A repetição do trecho “tem gente com fome” cria um ambiente de mo- notonia e tédio, incompatível com o movimento de um trem ao partir da estação. b) A onomatopeia “Piiiii!” (v. 07) e a interjeição “Psiuuuuuuuuu......” (v. 33) es- tão conjugadas pela intensificação da vogal, o que permite entender a palavra que termina o poema como uma condensação entre a interjei- ção e a onomatopeia. c) A maioria dos versos se constrói com duplas de palavras fonológicas (trensujo + daleopoldina // correndo + correndo // tengente + cunfome // estação + dicaxias // dinovo + acorrer // dinovo + adizer // sitengente + cunfome // dá + dicomer), mantendo um ritmo coeso que produz a harmonia imitativa predominante no poema. d) Na estrofe final, a referência ao trem é substituída pela participação do freio de ar, o que justifica o uso da conjunção “mas”, adversativa. Estilística fônica 43 e) Como a temática do poema é humana e social, é correto interpretar que as onomatopeias usadas como estribilho nas estrofes 1, 2 e 4 se valem de palavras preexistentes agrupadas sem razão semântica para tentar re- produzir o som do trem. f) O advérbio “lentamente”, isolado no verso 20, tem uma massa sonora e um valor semântico que destoam expressivamente do restante do poema. 3. Assinale as alternativas que contêm recursos expressivos da Estilística fônica e identifique as respectivas figuras de linguagem. a) “A gente almoça e se coça e se roça e só se vicia.” (Chico Buarque) b) “Ouço o tique-taque do relógio: apresso-me então.” (Clarice Lispector) c) “Minha vida é uma colcha de retalhos, todos da mesma cor.” (Mário Quin- tana) d) “Não serei o poeta de um mundo caduco.” (Carlos Drummond de Andrade) e) Dentro dos meus braços, os abraços hão de ser milhões de abraços.” (Vi- nícius de Moraes) f) “Sou caipira, Pirapora, Nossa Senhora de Aparecida,” (Renato Teixeira). O objetivo deste capítulo é observar a expressividade dos aspectos le- xicais no estudo estilístico da língua portuguesa. Conceituação de léxico O estudo da Estilística lexical (ou morfoestilística, como algunsprefe- rem) envolve necessariamente o conhecimento e domínio de alguns dos assuntos abordados nos estudos de morfologia, isto é, as classes gramati- cais e os morfemas. A palavra léxico é sinônima de “vocabulário”, e indica portanto o reper- tório total de palavras existentes numa determinada língua, mas pode também ter uma significação mais restrita, referindo-se, por exemplo, a uma relação de palavras usadas por um autor ou por um grupo social ou profissional. As obras que se dedicam ao estudo do léxico constituem dois campos de pesquisa bastante importantes para a sociedade: a lexicografia, ou seja, a técnica e o trabalho de elaboração de dicionários, vocabulários, glossários e afins; e a lexicologia, ou seja, o estudo do vocábulo quanto ao seu significado, estrutura morfológica e possibilidades flexionais, sua classificação em relação a outros vocábulos da mesma língua ou de outra, em perspectiva sincrônica ou diacrônica. Lexicografia e Lexicologia: estudo das palavras, a partir da obser- vação de suas relações com a gramática e com a vida. Como se pode depreender dessas explicações, a ferramenta funda- mental com que trabalham os lexicógrafos e os lexicólogos é o dicionário, palavra que está assim definida no Dicionário Houaiss: Dicionário – compilação completa ou parcial das unidades léxicas de uma língua (palavras, locuções, afixos, etc.) ou de certas categorias específicas suas, organizadas numa ordem convencionada, geralmente alfabética, e que fornece, além das definições, informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia, pronúncia, classe gramatical, etimologia, etc. ou, pelo menos, alguns destes elementos. A tipologia dos dicionários é bastante variada; os mais correntes são aqueles em que os sentidos das palavras de Estilística léxica 46 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística uma língua ou dialeto são dados em outra língua (ou em mais de uma) e aqueles em que as palavras de uma língua são definidas por meio da mesma língua. (DICIONARIO, 2004) D iv ul ga çã o Ed ito ra O bj et iv a. Como diz Correia (1995), [...] a propriedade geral da linguagem humana que melhor se aplica ao léxico de uma língua é a arbitrariedade, ou seja, o fato de os signos que constituem as línguas não serem icônicos, isto é, a relação que se estabelece entre eles e as entidades da realidade que denotam ser meramente arbitrária ou convencional. Por isso não se deve entender o léxico apenas como uma lista de palavras que está contida num dicionário. Afinal, uma observação mais atenta dos verbe- tes dessas obras de referência mostrará que os lexicógrafos, quando redigem as definições de cada componente da nominata, fazem uso das regularidades do léxico, adotando uma estrutura redacional quase sempre simétrica e coerente. Nominata: relação de entradas de uma enciclopédia, dicionário, vocabu- lário, glossário, etc.; relação de nomes ou palavras; nomenclatura. Outro ponto a considerar começará a delinear as relações mais estreitas que o léxico mantém com o estilo, pois sabemos que a língua oferece recursos para que qualquer pessoa, escolarizada ou não, fale sobre qualquer aspecto da rea- lidade. A despeito disso, as palavras usadas para expressar a realidade vivida ou imaginada são arbitrárias e variam não apenas de língua para língua, mas de modalidade para modalidade e de uso para uso. Estilística léxica 47 Portanto, o conhecimento lexical resulta não apenas da memorização de palavras, mas também de um princípio de economia na gestão desse acervo, pois cada falante se apropria de um vocabulário compatível com o seu grau de estudo e leitura, utilizando-o, em termos numéricos variados, conforme o em- pregue na oralidade ou na produção escrita. No conjunto do léxico de uma língua existem certamente mecanismos que permitem alcançar a expressividade da comunicação, e devemos considerar que o princípio de economia linguística não é unicamente o princípio de contabilizar palavras, mas de reconhecer a forma mais adequada para se estabelecer o en- tendimento mais eficiente entre as pessoas. Palavras lexicais e palavras gramaticais O léxico, como vimos, é o conjunto de palavras de uma língua, mas é preciso distinguir nesse conjunto os elementos lexicais “plenos” e os elementos lexicais de natureza gramatical. Tomemos duas pequenas listas de palavras do português: 1. certo, hoje, torre, ver. 2. com, os, quando, se. Saberíamos explicar o que cada uma das palavras da série (1) significa? Ainda que pudesse haver algumas divergências na definição de palavras de significa- ção mais ampla ou vaga, a resposta certamente seria “sim”. E quanto às palavras da série (2)? Provavelmente, as explicações ficariam restritas aos conhecimentos gramaticais de cada um, cabendo até retrucar: de que “os” ou de que “se” você está falando? A série (1) contém as chamadas “palavras lexicais”; a série (2) contém as cha- madas “palavras gramaticais”. Na primeira, temos um adjetivo, um advérbio, um substantivo e um verbo; na segunda, temos uma preposição, um artigo, uma conjunção e um pronome. Na lista (1) poderíamos acrescentar quantos adjeti- vos, advérbios, substantivos e verbos? O número é aberto, pois a todo momento novas palavras lexicais podem ser formadas (talibanizar? / argentinização? / pa- lestra incomodacional? / chororosamente?). 48 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística O GLOBO: 29/10/2008 Palestra “incomodacional” é a novidade da vez de René Simões Técnico tricolor tem priorizado a conversa com os jogadores antes dos treinamentos Já na lista (2) o conjunto é finito, sua dimensão é relativamente reduzida, enu- merável em extensão e praticamente restrito – embora os processos de grama- ticalização permitam que as palavras se “movimentem” entre os grupos. Assim, a conjunção “porque” pode se substantivar e virar “motivo” (Não entendi o porquê de sua dúvida); o substantivo “tipo” pode vir a se gramaticalizar como conjunção (Vocal feminino possante tipo Ivete Sangalo procura banda = como) ou como preposição (Passo na sua casa tipo meio-dia = perto de). D iv ul ga çã o M K. Blogue da internet anuncia “Vocal feminino possante tipo Ivete procura banda “. “As palavras gramaticais são pouco numerosas, mas de altíssima frequência nos enunciados, desempenhando funções de grande importância”, frisa Nilce Sant’Anna Martins (1989, p. 72). Essas funções são elementos-chave na cons- trução de um texto e, paradoxalmente, embora sejam desempenhadas por um contingente pouco numeroso, carregam a responsabilidade de dar à mensagem Estilística léxica 49 que se quer transmitir o exato valor pretendido pelo emissor – a quem compete, em última análise, dominar plenamente o uso das palavras gramaticais. Em síntese, elas servem para: relacionar o enunciado com a situação de enunciação, indicando os par- � ticipantes da comunicação, o espaço e o tempo em que ela se dá (são os dêiticos: eu, tu, e suas variantes, aqui, aí, agora, possessivos e demonstrati- vos referentes à primeira e à segunda pessoas, etc.); substituir ou referir algum elemento presente no enunciado (são os anafó- � ricos ou representantes: ele, demonstrativos não relacionados à primeira e à segunda pessoas, etc.); atualizar os nomes, transformando-os de elementos do paradigma ou � palavras de dicionário em termos da frase (são os determinantes: artigos definidos e indefinidos); relacionar palavras no sintagma (preposições) e orações na frase (conjun- � ções e pronomes relativos); estabelecer coesão textual, seja dentro de uma frase, seja entre frases di- � versas (anafóricos, conjunções, operadores argumentativos, etc.). Palavras lexicais: referem-se a processos ou objetos existentes no mundo real = verbos, nomes e advérbios. Palavras gramaticais: restringem-se ao âmbito interno da língua e de seus enunciados = artigos, preposições, conectivos e palavras dêiticas. Neologismos lexicais e semânticos A criação expressiva de palavras é uma prática bastante comum na línguaportuguesa. Todos os dias observamos o emprego de palavras novas, derivadas ou formadas de outras já existentes, e a atribuição de novos sentidos a pala- vras já existentes: “melancia” e “laranja” deixam de ser apenas os nomes de duas frutas e passam a funcionar como qualificador feminino ou testa de ferro, res- pectivamente; o torcedor que vai para a geral dos estádios vira “geraldino”, a passarela do samba é o “sambódromo”... E assim a lista vai se expandindo dia 50 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística a dia, propiciando que as situações da vida sejam retratadas pelo léxico. Se os neologismos serão duradouros ou efêmeros, nunca se sabe, pois tudo depende do uso que deles se fará. Trataremos aqui de dois tipos de neologismos: os lexicais e os semânticos. Neologismos lexicais No livro Morfologia: estudos lexicais em perspectiva sincrônica, assim definimos os neologismos lexicais (ou formais): Palavras novas, isto é, não dicionarizadas ou recém-dicionarizadas, que podem ser objetivamente caracterizadas tomando-se como referência, no caso do Português do Brasil, o léxico oficial consignado no VOLP, embora os dicionários Aurélio, Houaiss e Michaëlis também possam ser fonte de consulta para esse fim. (HENRIQUES, 2008c, p. 138, grifos do autor) Formados a partir de critérios muito variados, os neologismos lexicais podem constituir-se, num extremo, como a própria invenção de uma palavra, sem ne- nhuma lógica linguística aparente, a não ser a simples junção de sons ou de letras. É o caso que Ieda Maria Alves (1990) denomina “neologismos fonológicos” (pela criação de um item lexical cujo significante é criado sem tomar como base nenhuma palavra preexistente). No samba “Idioma Esquisito”, Nélson Sargento (1996) nos mostra com muita engenhosidade uma série de palavras proparoxítonas cuja pretensão poderia ser resumida na discussão do seguinte slogan: “se beber, não componha”: Fui fazer meu samba na mesa de um botequim, Depois de umas e outras, o samba ficou assim: Estrambonático, palipopético, cibalenítico, estapafúrdico, Protopológico, antropofágico, presolopépico, atroverático, Batunitétrico, pratofinândolo, calotolético, carambolâmbolo, Posolométrico, pratofilônico, protopolágico, canecalônico. Os adjetivos que descrevem o samba feito “depois de umas e outras” se asso- ciam ao estado de embriaguez do eu poético. Alguns ainda conservam um ves- tígio de “lucidez vernacular”: antropofágico, cibalenítico (< cibalena, um compri- mido para dor de cabeça), atroverático (< atroverã, remédio para enjoo). Outros parecem pedaços cambaleantes de palavras: estrambonático (< estrambólico? + lunático?), prosolométrico (< ? + métrico), protopolágico (< proto? + ??), palipo- pético e presolopépico (< ???). Estilística léxica 51 Neologismos que não deixam pistas morfológicas nem fonológicas nem se- mânticas são palavras perdidas, como os “gratifonísticos e os pseudoferilídicos que se tengam com frédios de antimalefania”, que agora inventamos. É compre- ensível então que o eu poético do samba de Nélson Sargento, ao final daquela estrofe, confesse: “É isso aí, é isso aí / Ninguém entendeu nada / Eu também não entendi / (Eu então vou repetir)[...]”(SARGENTO, 1996). Podemos entretanto afirmar que os neologismos lexicais, na maior parte das vezes, são palavras que têm nítida inspiração em outra(s): bebemorar (para fazer par com comemorar) associa as ideias de beber e comer, embora a segunda não faça parte da estrutura do verbo (co+memorar); paitrocínio se baseia na aproxi- mação fonética com a primeira sílaba da palavra patrocínio. Caracteriza-se assim o que Ieda Alves (1990, 11-80) chama de “neologismos sintáticos” (criados a partir da combinação de elementos já existentes no idioma). Por essa denominação, só haverá neologismos sintáticos nos casos que envolverem o uso de afixos ou de combinação de radicais, ou seja, a derivação e a composição. Por esse motivo, a autora considera outro tipo de neologismo, de um lado, a conversão (ou deri- vação imprópria) e, de outro, os “processos menos produtivos” (a abreviação, a reduplicação e a regressão). Um neologismo lexical pode, em alguns casos, gerar outros neologismos le- xicais, pelos mesmos princípios. É o que ocorre em palavras geradas a partir da mencionada paitrocínio, como se vê nos exemplos (3) e (4): 3. E essa simplicidade é colocada pelo elenco como um dos méritos do su- cesso. “Começou como de brincadeira, sem dinheiro. Conseguimos na época R$ 1 mil de ‘tiotrocínio’ (empréstimo da família)”, conta a atriz Thaís Lopes da peça “Surto” (FM DIÁRIO, 2006). 4. Caro Diogo, não querendo acabar com a tua esperança, deixo-te a seguinte mensagem que um piloto de automóveis me disse num desses fóruns de inter- net. Ele disse-me o seguinte: Em Portugal há três tipos de patrocínios: o paitro- cínio ou tiotrocínio e o autotrocínio, a troca de favores (exemplo: eu patrocino-te porque a empresa do teu pai compra milhares de euros de material à minha!!!!). Por isso é melhor começares a contactar o teu familiotrocínio para poderes correr nesse troféu [...] (MOTONLINE, 2005) São situações criativas que podem testemunhar o início da gramaticalização de um radical “-trocínio” = “financiador”, embora caiba lembrar que o substantivo patrocínio contenha na sua etimologia a referência a “pai”, pois é formado pelo radical culto “patrocin-”, cuja raiz é “pater-”. Isso mostra como muitas vezes o usu- 52 Língua Portuguesa: Semântica e Estilística ário contemporâneo já não tem consciência da informação diacrônica acerca de um vocábulo ou expressão. Mas um neologismo lexical pode igualmente produzir uma segunda nova formação com vínculos mais fonológicos do que semânticos. Um exemplo muito utilizado pela mídia nos anos 2005 e 2006 ocorreu com a palavra valerioduto, po- pularizada pela imprensa para se referir a um dos muitos e grandes escândalos da política brasileira. Seu segundo componente (-duto) serviu de base fonológi- ca para a formação de valerioindulto, onde o novo radical adicionado dá mostras de que, apesar de o “condutor” ser réu confesso, os “conduzidos” nem sempre são condenados. Neologismos semânticos No livro Morfologia: estudos lexicais em perspectiva sincrônica, assim defini- mos os neologismos semânticos (ou conceituais): Incorporar significados novos a vocábulos já existentes é o que caracteriza a criação de neologismos semânticos, tomando-se como referência, no caso do Português do Brasil, obras como os dicionários Aurélio, Houaiss e Michaëlis, pois o VOLP é uma fonte que não tem o objetivo de registrar as acepções das palavras. (HENRIQUES, 2008c, p. 146, grifos do autor) É bom frisar, porém, que os limites de identificação de valores semânticos novos como neológicos podem esbarrar com os do reconhecimento de valores metafóricos também novos. Por exemplo, o neologismo semântico rato prati- cado em Portugal não foi adotado no Brasil, que preferiu incorporar o estran- geirismo mouse. É nítido aqui que a palavra “rato” (ainda que por uma relação metafórica) representa um novo significado, uma peça usada em computadores. A notícia de jornal que lamenta a existência de inúmeros ratos na política nacio- nal serve também como exemplo de neologismo semântico? A datação desse significado não é nova, mas não é isso apenas que exclui a resposta afirmativa. Certamente, a metáfora dos “dinossauros”, que é muito mais recente (está regis- trada no Dicionário Houaiss, e não no Dicionário Aurélio) nos servirá como dado representativo dessa fronteira nem sempre muito demarcada entre neologismo semântico e metáfora conceitual. Figuras de linguagem Tudo o que diz respeito à construção, ao uso e à escolha das palavras, como vimos, pode sugerir dentro da frase um valor expressivo para o que pretende- Estilística léxica 53 mos comunicar. Quando isso acontece, temos figuras de linguagem. No campo da morfoestilística, esses recursos podem ser sintetizados a partir do estudo de duas figuras,
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