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História e Ética em Cirurgia “A história da cirurgia é uma história dos últimos cem anos. Iniciou-se em 1846, com a descoberta da anestesia e, portanto, a possibilidade da operação indolor. Tudo o que existia antes eram apenas trevas de ignorância, de sofrimento e tentativas infrutíferas na escuridão.” – Bertrand Gosset CIRURGIA NA ANTIGUIDADE Yajur Veda: prática da medicina e cirurgia hindu em 4.000 a.C. – Sushruta Incisão, escarificação, punção, drenagem, excisão e extração. Amputação, rinoplastia, correção do lábio leporino, abertura da cavidade abdominal para tratamento de obstrução intestinal. Agulhas eram feitas de osso. Suturas feitas com fibras de linho, cânhamo, casca de árvore e crina de cavalo. Serviu de base para o desenvolvimento da cirurgia egípcia, babilônica, grega e árabe. Medicina Egípcia era desenvolvida a partir de um elemento racional e outro mágico- religioso. Papiro de Edwin Smith (1.700 a.C.) – abordagem racional e científica. Métodos de higiene, tratamento de afecções do ouvido e do nariz, fraturas, remoção de tecido cerebral por trepanação, excisões de tumores. Faz referência às suturas “aproximar os dois lados”. Curativos com resina de mirra e mel. Medicina Hipocrática 460 – 330 a.C. Corpus Hippocraticum. Não há muita referência à cirurgia, mas algumas descrições relacionadas úlceras cutâneas, abscessos, fraturas e deslocamentos ósseos, fístulas e hemorroidas. Instrumentos cirúrgicos descritos eram facas, sondas, agulhas. Fios de linho, ouro e tiras de intestino de animais herbívoros. Expansão Macedônica 336 a.C. – 323 a.C. Alexandre incorpora a cultura grega à macedônica e com a expansão militar ele conquista o Egito, a Itália e Leste Europeu, Oriente médio e a Pérsia. Ptolomeu cria em Alexandria a Escola de Filosofia e Medicina de Alexandria, atraindo os “médicos” dos territórios conquistados. Expansão do Império romano e conquista dos povos germânicos, gauleses, ibéricos e todo o império macedônico absorvendo a cultura grega e, consequentemente, a cultura médica. De Re Medica - Aurelius Cornelius Celsus 14 – 17 d.C. Conhecimentos referentes a anatomia, ferimentos, doenças, diagnósticos e tratamentos. Descreve: ✓ Correção de fraturas ósseas ✓ Controle de hemorragias com ligadura de vasos ✓ Drenagem de abscessos ✓ Tratamento de úlceras cutâneas com cauterizações ✓ Sangrias, ✓ Ligaduras de veias varicosas ✓ Cauterização de hemorroidas ✓ Drenagem e incisão de fístulas perianais ✓ Litotomia para tratamento de litíase vesical ✓ Sutura de hérnia inguinal ✓ Tratamento de catarata ✓ Tratamento de lesões de nariz com ritinoplastia ✓ Amputações Celsus descreve o tratamento com suturas. Instrumentos cirúrgicos como facas, serras para amputação, cautérios de ferro, sondas metálicas, agulhas e fios cirúrgicos. Até o momento a medicina era realizada com base nos princípios hipocráticos descritos por Celsus. Galeno de Pérgamo 150 d.C. reuniu, catalogou, contestou, modificou e completou os ensinamentos médicos pré-hipocráticos e hipocráticos. Norteou os ensinamentos médicos até a ascensão da doutrina cristã. A LONGA NOITE Século IV e V a cultura romana ocidental está fortemente influenciada pelos dogmas cristãos e desvinculada dos princípios hipocráticos e galênicos. Desenvolvimento na medicina no oriente (Pérsia) devido a imigração de refugiados que eram ligados a cultura greco-romana clássica e na escola médica de Galeno. A Partir do século X a criação das primeiras universidades cristãs europeias e retomada das doutrinas hipocráticas e galênicas por intermédio de árabes do sul da Espanha (expansão do império persa), intelectuais gregos, judeus oriundos de Constantinopla e Alexandria. Aplicação da medicina estava restrita aos monastérios praticada por monges e alguns poucos hospitais. A Escola médica da Universidade de Salerno – Itália no séc. IX teve seu apogeu durante o século XII. Tratado de prática cirúrgica (Ruggierio Frugardi) descreve diversos procedimentos realizados pelos cirurgiões de Salerno: sutura de ferimentos, tratamento de faturas, ligadura de veias varicosas e aneurismas de artérias, herniorrafia, litotomia vesical, ressecção de bócio, sutura de lábio leporino. Frugardi afirma que não há como obter cura para ferimentos do fígado, coração, pulmão e coluna vertebral. Outras escolas médicas: Toledo (Espanha) e de Bolonha (Itália). O auxílio aos monges era realizado por leigos, à medida que se dedicavam aos afazeres iam aprendendo procedimentos médicos e cirúrgicos. A medicina fora dos mosteiros começou a ser a praticada por esses leigos que ficaram conhecidos como barbeiros-cirurgiões executando a medicina “prática” por toda a Europa. Uma gravura satírica, datada de 1570, demonstra bem a imagem que o público possuía dos barbeiros-cirurgiões, nela aparecem macacos utilizando os instrumentos dos barbeiros para tirar sangue, extrair dentes e cortar cabelos. O DESPERTAR DA LUZ Renascimento: fase de intenso desenvolvimento social, artístico e científico. Independência política e religiosa das cidades do norte da Itália. As universidades se dedicavam ao ensino médico a partir das doutrinas de Hipócrates e Galeno. Dissecção humana passou a ser praticada para o estudo da anatomia. De Humani Corporis Fabrica - 1543 (Andreas Vesalius). Preocupação em conhecer a verdadeira anatomia humana. Contestações em relação aos dogmas de Galeno. O ensino e a aprendizagem da anatomia e da cirurgia são eficazes somente por meio da dissecção do corpo humano. Descrição dos ossos, músculos, sistema venoso e arterial, dos nervos, do abdômen, aparelho digestório e urogenital, tórax e conteúdo intracraniano. CIRURGIA MODERNA Século XVII os fenômenos da natureza e do organismo humano passaram a ser explicados não somente pela observação metódica e acurada, mas também através da experimentação científica. Discours de la méthode – 1637 (Renê Descartes): uma observação dedutiva experimental de caráter mecanicista e matemático. Willian Harvey (1578 – 1657) descreveu as características anatomofisiológicas da circulação sanguínea no livro Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (1628). Os conhecimentos de anatomia e da circulação sanguínea publicados por Vesalius e Harvey foram difundidos por um grande número de anatomistas, médicos e cirurgiões ainda no final do século XVII e durante todo o século XVIII. Na primeira metade do século XIX os cirurgiões já estavam aptos a propor e realizar os mais diversos procedimentos cirúrgicos, graças aos conhecimentos anatômicos, histológicos, fisiológicos, patológicos e clínicos. Quatro fatores persistiam como fatores intransponíveis: dor, infecção, hemorragia e choque. Impossibilidade de superar a dor da operação e as mortíferas infecções. “Nunca se conseguirá praticar a ablação dos tumores internos, estejam eles localizados no útero, no estômago, no fígado, no baço ou nos intestinos. Neste campo, Deus marcou limites ao cirurgião. Ultrapassá-los é praticar um assassínio...” ANESTESIA Haxixe, mandrágora, ópio e o álcool eram usados pra aliviar a dor. Óxido nitroso e o clorofórmio começaram a ser testados. Em 16 de outubro de 1846 (Boston), Willian Thomas Green Morton (dentista) utilizou o éter no que é considerada a invenção da anestesia e a primeira cirurgia indolor. Antes da descoberta da narcose, a cirurgia era o sofrimento associado a alguns conhecimentos básicos. CONTROLE DE INFECÇÃO As infecções eram responsáveis por elevadíssima taxa de mortalidade. Os agentes não eram conhecidos. Em 1847, Oliver Wendell Holmes, nos EUA e, Ignaz Semmelweis, na Hungria, propunhama lavagem das mãos com água clorada. Joseph Jackson Lister (1827-1912), na Inglaterra, foi quem pesquisou maneiras de evitar a infecção cirúrgica e determinou os antissépticos adequados, criando, assim, os primeiros métodos de antissepsia e assepsia cirúrgica. Em 1864, passou a utilizar o ácido fênico para lavagem das mãos do cirurgião e para antissepsia local dos abscessos, ferimentos e fraturas expostas. Em 1865, começou a utilizar o mesmo ácido para lavagem dos instrumentos cirúrgicos e fios. Considerado o criador e introdutor da antissepsia cirúrgica. Louis Pasteur (1822-1895) desenvolvia pesquisas que lhe permitiram concluir que a putrefação era promovida por microrganismos e que eles poderiam ser mortos quando submetidos a temperaturas acima de 55ºC Em 1878, propôs a Teoria dos germes. Em 1878, Robert Koch (1843 – 1910), na Alemanha, demonstrou que a infecção cirúrgica poderia ter como causa seis tipos diferentes de microrganismos e propôs métodos de assepsia e antissepsia com utilização de cloro, bromo e iodo. Em 1890, Willian Stuart Halsted (1852-1922), nos EUA, apresentou luvas de borracha para proteger as mãos da sua ajudante. Bernhard Von Langenbeck (1810-1887), na Alemanha, propôs o uso da máscara cirúrgica. Alexander Fleming descobre em 1928 que o fungo Penicillium notatum causava a morte dos estafilococos nas placas de Petri. Ao esquecer umas das placas por longo tempo no seu laboratório, observou que havia crescido um “mofo” e que este, levou a lise bacteriana dos estafilococos. Howard Walter Florey e Ernst Boris Chain em 1941 foram os responsáveis por extrair e purificar transformando a penicilina em antibiótico. Gerhard Johannes Paul Domagk, funcionário da IG Farben, utilizou em 1932 um composto chamado sulfonamida em ratos infectados com estreptococos e percebeu que todos sobreviveram. ASPECTOS ÉTICOS DO EXERCÍCIO DA CIRURGIA “O ato cirúrgico, independentemente de sua complexidade, exige disciplina e consciência ética de quem o pratica.” “Encontrar e aceitar a justa medida entre o possível e o impossível, entre o sonho e a realidade.” Binômio médico-paciente não deve ter sua relação despersonalizada pela tecnologia. O ato cirúrgico está alicerçado em bases anatômicas, fisiopatológicas, sistematização dos procedimentos e efeitos da agressão cirúrgica. O cirurgião deve estar de posse desses conhecimentos para “aplicar o tratamento em benefício dos doentes de acordo com sua capacidade e consciência, evitando-lhes qualquer malefício”. Não basta o profissional estar tecnicamente habilitado a executar determinado ato cirúrgico, é preciso ponderar os danos e benefícios que a intervenção pode causar determinando a melhor conduta para o doente. Tão importante quanto saber indicar uma cirurgia é saber quando não indicar. RELAÇÃO CIRURGIÃO X COLEGAS Compete à equipe cirúrgica o tratamento de rotina durante o período pós-operatório imediato. A intercorrência de complicações estranhas ao ato cirúrgico pode exigir a participação de outros especialistas. A internação do paciente cirúrgico, em nome de profissional estranho á equipe cirúrgica, pode atribuir a este uma falsa responsabilidade pelo desenvolvimento e resultado da intervenção. CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA Resolução de CFM nº1.246/1988. Contém as normas éticas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício da profissão, independentemente da função ou cargo que ocupem. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS Art. 1º A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza. Art. 2º O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. Art. 3º Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa. Art. 4º Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão. Art. 5º Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente. Art. 7º O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. Art. 16 Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente. Art. 18 As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente. DIREITOS DO MÉDICO Art. 21 Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. Art. 23 Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais. Nesse caso, comunicará imediatamente sua decisão à comissão de ética e ao Conselho Regional de Medicina. RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL É vedado ao médico: Art. 29 Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. Art. 30 Delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão médica. Art. 31 Deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente. Art. 32 Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal. Art. 33 Assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou. Art. 42 Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País. Art. 46 Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 47 Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto. Art. 48 Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. Art. 56 Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz fisica e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá- la. Art. 57 Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. Art. 58 Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo. Art. 59 Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. Art. 102 Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único. Permaneceessa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Art. 103 Revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente. Art. 104 Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Se constitui em dever da classe médica uma formação histórica suficiente, rigorosa e profunda, a ponto de constituir um hábito intelectual e conhecer e respeitar as conquistas do passado. A evolução da cirurgia é uma das histórias mais fantásticas da humanidade. Venceu os órgãos intratorácicos, o cérebro, substituiu artérias por material sintético, hibernou o homem e, por fim, atingiu o coração, considerado intocável.
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