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1 SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO INSTITUTO BENJAMIN CONSTANT DEPARTAMENTO TÉCNICO-ESPECIALIZADO DIVISÃO DE CAPACITAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS APOSTILA ALFABETIZAÇÃO ATRAVÉS DO SISTEMA BRAILLE Elaboração: Professora Maria da Glória Revisada em 2015 2 SUMÁRIO 1. Apresentação......................................................................................pág. 2 2. Inclusão e cidadania...............................................................................pág. 4 3. A família frente à criança cega: como entender esta relação.................pág. 7 4. Educação e deficiência visual...............................................................pág. 10 5. Alfabetização: uma reflexão necessária...............................................pág. 23 6. Fundamentos da alfabetização: uma construção sobre quatro pilares...............................................................................................pág.29 7. Princípios da educação do deficiente visual ......................................pág. 44 8. Período de desenvolvimento global......................................................pág. 47 9. Guia teórico para a alfabetização em Braille........................................pág.65 10. Métodos de ensino..........................................................................pág.81 11. Noções de fonética...............................................................................pág. 93 12. Caderno de pré-leitura do Sistema Braille.................................................................................................pág. 100 13. A cela simulada..................................................................................pág. 110 14. A literatura na sala de aula.................................................................pág.125 15. Projeto aplicado à literatura infantil...................................................pág.144 16. Referências bibliográficas..................................................................pág.154 3 APRESENTAÇÃO O universo interno da criança cega, tanto quanto a realidade que a rodeia e o despertar e alargamento de sua imaginação, precisam ocupar as preocupações do professor frente ao processo de desenvolvimento global desta criança. A compreensão exata da construção do pensamento de uma criança com deficiência visual deve pautar-se em estudos cientificamente comprovados. Juízos prévios e precipitados necessitam ser banidos para que antigos mitos não sejam reforçados nem novos e danosos preconceitos sejam instalados. O universo interno da criança cega, de um modo geral, sofre uma sensível baixa no âmbito das significações. Os desdobramentos naturais do pensamento infantil podem de forma drástica perder sua capacidade de extensão e profundidade. O universo externo torna-se pequeno em grau de conhecimento e significado real, sendo tais questões negligenciadas. Como perceber essa criança? Como entender a formação dessas duas instâncias que precisam interpenetrar-se para que construam os alicerces da cognição e da subjetividade? A criança cega ou com baixa visão possui estruturas mentais idênticas às da criança vidente. Entretanto, a maneira de acioná-las, fazendo-as válidas e autossuficientes é que irá estabelecer as diferenças perceptivas e conceituais que entram em seu desenvolvimento produtivo e funcional. Assim, não se pode rotular a deficiência visual simplesmente como única responsável pela restrição dos aspectos cognitivos e imaginativos do pensamento da criança cega, em particular. A cegueira é um fator importante a considerar. Todavia, pode esse fator interveniente ser minimizado em grande parte e, certamente, até mesmo eliminado, quando se oferece uma educação que de fato atenda às necessidades e especificidades desse aluno com deficiência visual. A forma de conduzir o processo de desenvolvimento cognitivo e da imaginação da criança com deficiência visual necessita firmar procedimentos pertinentes às condições de aprendizagem da criança em questão. É importante ressaltar que há grandes diferenças entre as crianças cegas. É preciso evitar a generalização que, normalmente, tenta padronizar os educandos. A apreensão do mundo que a cerca, depende de como esse mundo chega ao seu entendimento e concretização. 4 Vive-se sob o “império da imagem”. O elemento visual é supervalorizado e a faculdade de ver (enxergar), transforma-se na via primordial para a aquisição do conhecimento. O olhar traz consigo a “chave mágica” que abre as portas a fim de que sejam deslindados todos os mistérios do mundo e desvendados todos os segredos da vida. O ato de ver passa a ter um poder absoluto. Fora dele, o que resta é muito pouco. Tal reducionismo deve ser revisto, principalmente, referindo-se aos postulados geradores e regentes da Educação Especial. A compreensão do mundo dos objetos, das pessoas, dos lugares, da natureza, o mundo externo que agrega tantas diferenças é também percebido e apreendido pelos cegos através de meios próprios que são instalados e desenvolvidos pelo concurso das sensações, das percepções e dos sentidos criteriosamente trabalhados. Os sentidos remanescentes (audição, tato, olfato, paladar) bem aguçados, são repositórios onde o cego encontra vias fundamentais de aprendizagem. A relação entre a pessoa cega e o mundo, estabelece-se por esses mecanismos e, por eles, o “mundo do saber” faz-se presente e materializado na sua ascensão intelectual e humana. A visão sobre a cegueira é sempre carregada de concepções desfavoráveis e, muitas das vezes, equivocadas e cruéis. A figura do cego é desenhada com traços antitéticos e hiperbólicos, tanto nos aspectos positivos quanto nos aspectos negativos. A cegueira é metaforizada em diferentes campos e abordagens, guardando em si distorções altamente prejudiciais. Compreender, pois a cegueira é um caminho seguro para oferecer à criança cega reais oportunidades e maiores possibilidades de crescimento efetivo, dando-lhe condições de ombrear-se à criança vidente no que concerne ao exercício do seu direito ao desenvolvimento pleno de suas verdadeiras potencialidades. Este trabalho reúne assuntos que, pretendemos, sirva de apoio ao professor alfabetizador na condução do processo educativo da criança com deficiência visual. À criança cega ou com baixa visão é possível, é viável, desde que lhe sejam dadas oportunidades de aprendizagem. A educação precisa atingir a criança como um todo. O homem é construído por vários compartimentos e cada um deles deve ser conhecido e analisado para que a ação pedagógica possa agir e obter os resultados desejáveis, promovendo assim, a formação de um “sujeito” inteiro e identificado consigo mesmo e com o grupo social ao qual pertence. 5 INCLUSÃO E CIDADANIA Uma sociedade inclusiva exige a formação dos cidadãos que compreendem seu verdadeiro papel na ordem vigente. Fala-se exaustivamente em cidadania, mas o que se vê na prática, é o uso dessa palavra circunscrita a um mero conceito subjetivo, um instrumento muitas vezes de manipulação política que não alcança o foco real: a afirmação do homem. A cidadania pressupõe um tratamento igualitário, atingindo a todos. É uma forma de abrirem-se oportunidades iguais, mesmo para aqueles que parecem “diferentes”. A cidadania forja-se na consciência do “eu”, constrói-se nos deveres e valores herdados, fortifica-se no exercício de direitos conquistados, amplia-se na inserção do indivíduo no espaço social que lhe pertence. Um cidadão pleno é aquele que se reconhece como um ser inteiro, como um ser capaz, a despeito da possível “falha” ou “déficit” que carrega. A pessoa com deficiência, tanto quanto outros indivíduosque integram grupos vítimas da exclusão em vários níveis, não se pode deixar amesquinhar pela deficiência que o afeta, antes, precisa estar cônscio das suas possibilidades, precisa aprender a enfrentar obstáculos, precisa aceitar desafios, precisa entender e conviver com limites e impedimentos. A construção da cidadania enfeixa em si uma gama variada de questões complexas e estruturais. Banaliza-se o termo e esvazia-se o conceito. As ações, em sua maioria, tornam-se estéreis e, por essa razão, vemos que o discurso, sempre extremamente teórico é dissociado de uma realidade efetiva. Vemos ainda a exclusão expressa em diversas formas sufocando os anseios de muitos e proibindo a ascensão de tantos outros. A educação é a via mais segura para que se possa garantir o crescimento global do ser humano. Educar é abrir caminhos, é apontar probabilidades, é fazer projetos, é trabalhar ideias, é respeitar o homem ante seu meio e as condições que o rodeiam. Como nos revela a raiz da palavra, educar é conduzir. Não entendamos conduzir dentro de um sentido arbitrário, mas como uma atitude de orientação e busca de situações favoráveis de aprendizagem. A atuação do professor nesse processo de desenvolvimento é de suma importância. A ação docente deve estar em consonância com a responsabilidade que lhe é conferida. Assim, faz-se imperativo o preparo desse profissional. 6 A Educação Especial, através dos tempos, trabalhou sobre modelos onde o educando era percebido como um aprendiz condicionável cuja evolução era medida pelo volume de habilidades e comportamentos adquiridos. As correntes comportamentalistas ganharam força e ditaram normas. Os valores intrínsecos, a bagagem sociocultural e a capacidade criativa desse indivíduo eram postas de lado, não tinham qualquer relevância. Tal postura pedagógica vem perdendo terreno ao longo das últimas décadas. É preciso ficarmos atentos e revermos constantemente objetivos e estratégias educacionais. É necessário, portanto, que se reflita sobre o momento histórico por que passamos. A INCLUSÃO chega como uma reparação. Impõe-se como uma necessidade. Para que possamos lograr êxito nesse projeto humanístico, é imprescindível que a ESCOLA alargue seus horizontes para que sejam estabelecidos novos rumos. É uma questão polêmica e delicada. Estarão os professores aptos para encetar essa caminhada? Estarão os professores imbuídos desse desejo? Sabe-se que a educação brasileira vive graves problemas. O magistério debate-se no caos da desmotivação e fica a mercê do esvaziamento da profissão. O ensino da Rede Pública Regular espelha a falta de perspectivas. No âmbito da Educação Especial vê-se ainda uma carência bastante grande de profissionais realmente qualificados para atender a alunos com necessidades educativas especiais. Os cursos de formação de professores não suprem a diversificação desse tipo de atendimento. A procura pela Rede Regular de Ensino cresce. No entanto, o professor sente-se desconfortável diante de uma situação nova, diante de uma realidade infelizmente, um tanto desconhecida. É importante que se discuta a formação do profissional de ensino. Capacitá-lo para o exercício docente especializado deve ser obrigação de todas as esferas que estabelecem e incrementam as políticas educacionais. É hora de mudar atitudes, é hora de rever postulados, é hora de fixar metas. O desenho da sociedade dos nossos dias reflete um perfil altamente competitivo. O conhecimento acumula-se rápido e quase sem controle. O professor destes novos tempos precisa estar instrumentalizado para cumprir sua tarefa: conduzir o educando na via do saber, levar o educando a construir sua identidade, incentivar o educando a interagir com o mundo que o cerca, fazer o educando perceber-se útil e com autonomia para desenvolver suas potencialidades, trabalhar o educando a fim de sentir-se digno perante si mesmo e perante a vida. 7 É um projeto ousado, entretanto, fundamental. A inclusão está diretamente ligada à aceitação do “outro”. Somente um professor que entenda em profundidade esta questão, poderá seguir em frente. A Educação Especial vem a muitos anos sendo mobilizada por diferentes linhas de ação: - NORMALIZAÇÃO – maneira de encarar a pessoa com deficiência dentro de um padrão de normalidade. A educação atua fazendo com que a criança adquira comportamentos vistos como “normais”, afetos a crianças videntes. - INTEGRAÇÃO – maneira de encarar a pessoa com deficiência já preparada para integrar-se à sociedade e à educação. - INCLUSÃO – maneira de perceber a sociedade já pronta para receber o indivíduo com deficiência. Agora a sociedade e a educação estão abertas para cumprirem o seu papel como veículos de cidadania. São três conceitos, três posicionamentos que cristalizam um único desejo: VER O HOMEM CRESCER ACREDITANDO EM SI MESMO, REALIZANDO SONHOS, BUSCANDO IDEAIS. Não se educa apenas com benevolência ou espírito altruísta. A educação reclama competência, largueza de horizontes e agudo senso profissional. A qualidade do ensino é o alicerce firme no qual se deve apoiar qualquer processo educativo. Caso contrário, o que se espera é o fracasso. O professor tem de estar aberto ao novo, disponível para a discussão, consciente da importância do seu ofício. CIDADANIA E INCLUSÃO: duas palavras, dois conceitos, um direito, jamais uma concessão. 8 A FAMÍLIA FRENTE À CRIANÇA CEGA: COMO ENTENDER ESTA RELAÇÃO? Ao longo do processo da evolução humana, as relações interpessoais e sociais despertam interesse de estudiosos de diferentes campos do conhecimento. O homem é forjado a partir da conjugação de inúmeros fatores que o tornam um “elemento superior” frente à natureza e aos demais seres existentes. No decurso do tempo e da investigação científica, constata-se que a HUMANIDADE só se revela e sedimenta no contato social. As relações humanas convertem-se no marco inicial de grupos que têm de uma forma peculiar, objetivos, necessidades e anseios parelhos. O homem é um ser gregário, assim, pessoas unem-se somando experiências, espelhando diferenças, repartindo possibilidades, construindo rumos, disseminando práticas, criando hábitos, armazenando saberes, buscando mudanças. A sociedade formou-se, desde as mais remotas épocas, tendo por fundamento pequenos núcleos, as famílias, que estabelecem regras comportamentais e acumulam uma bagagem de valores éticos, morais, religiosos e mesmo materiais. Depreende-se, pois, que a família, como primeiro grupo social a que o indivíduo pertence, exerce um papel de cunho formador. Sua personalidade, os princípios estruturais do seu caráter, seu comportamento afetivo alicerçam-se nos modelos exibidos por seus pares e vivenciados por ele desde o nascimento. Neste novo milênio, onde a complexidade indica uma nova ordem vigente em todos os níveis, a sociedade adquire múltiplos perfis: paradigmas desgastam-se e rapidamente outros tomam a dianteira da história com a velocidade vertiginosa da tecnologia que invade as últimas décadas do século XX. A família reflete a mutação dos preceitos básicos que a regiam no passado. O desenho desta instituição altera-se de acordo com os valores intrínsecos dos membros que a compõem. Entretanto, não se pode prescindir dela. O homem nasce no regaço de um conjunto de pessoas que lhe transmite uma herança de vida, um legado cultural (não importa se pobre ou rico), um feixe de características próprias que o fazem um ser único no mundo. Eis a preponderante atuação desse grupo social na formação e no desenvolvimento do ser humano. Modifica-se a configuração da família (estrutura externa), porém, a essência mais pura transcende os limites de modismos impostos pela massificação de atitudes e de desejos. 9 Toda criança necessita de apoiofamiliar. Quando nos deparamos então com as circunstâncias adversas que geralmente cercam uma criança com deficiência visual, seja cega ou com baixa visão, verificamos que a ação da família junto a ela é de fundamental importância. Nas etapas evolutivas do homem, a qualidade do seu crescimento global, mede-se pelo volume de oportunidades e estímulos que lhe é oferecido. Neste caso, a desvantagem entre uma criança privada da visão, ainda que parcialmente, e outra vidente, faz-se clara e precisa ser encarada com realismo e coragem. A aquisição de capacidades e de conhecimento, na maioria das vezes, tão natural e previsível para uma criança que enxerga, transforma-se numa caminhada penosa para uma criança quando totalmente cega. Os pais devem ser alertados para ficarem atentos à realidade que têm de enfrentar. A tomada dessa consciência é dura, no entanto, o problema existe e reclama uma solução. O nascimento de um bebê sempre suscita grandes expectativas. A gravidez guarda em si um símbolo de renovação; é um novo ente que se forma; é um ser que chega como um signo de recriação do ciclo de vida. Ao nascer uma criança que foge aos padrões estabelecidos como normais, o choque é inevitável. Os castelos antes sonhados desmoronam-se e erguem barreiras de inconformismo e de negação. Comiseração ou amor? Frustração ou esperança? Rejeição ou entendimento? Conformismo ou aceitação? Tais questões exigem uma análise lúcida e sem subterfúgios. No conflito desses sentimentos, firma-se o relacionamento entre a criança com deficiência e a família. Aquele membro que chega ao grupo quebra a ordem natural das coisas. Como agir com ele? O que fazer com ele? Mesclam-se desespero e incertezas. Aquela criança escapa aos sonhos acalentados, à realização interna dos pais, à projeção mais íntima de suas fantasias, a um futuro imaginado promissor. Passado o primeiro impacto, a família sabe que aquela criança é responsabilidade sua e apesar do sofrimento, alguém precisa assumi-la tal qual é. Pais, avós, irmãos, tios, etc., formam o universo onde a criança vai desenvolver-se e construir sua identidade. Nos primeiros tempos é difícil o entendimento daquela situação 10 inesperada. O que se pode observar, é que mesmo nas famílias em que a deficiência visual pode vir a ocorrer por uma questão de hereditariedade ou gravidez de risco, as reações, espantosas que sejam não são muito diferentes. Assim, faz-se imperativa a orientação segura e competente aos que estarão à frente da educação desta criança. A má condução e os equívocos desastrosos no período evolutivo de uma criança cega ou com baixa visão trarão danos muitas vezes irreversíveis a ela. Por isso, educadores, psicólogos, terapeutas de modo geral, escolas, precisam aparelhar-se para darem o suporte psicológico e técnico de que as famílias necessitam. É preciso que entendamos a problemática da família. Mostrar-lhe caminhos, saídas, possibilidades ficam a cargo dos profissionais envolvidos na problemática da criança com deficiência. Quando família e educadores olharem uma criança com deficiência, despindo-a pura e simplesmente da deficiência que carrega, percebendo-a como um ser em estágio de crescimento, incentivando-a a crer em si mesmo, impelindo-a a extinguir estigmas, impulsionado-a a procurar a alegria, encorajando-a a viver, poderemos reformular a visão que temos a seu respeito. Não devemos amesquinhar um ser por considerá-lo “diferente”. Não devemos apequenar um ser por julgá-lo “incapaz”. Não devemos ignorar um ser por imaginá-lo “menor”. Se substituirmos o preconceito pelo amor, a resignação pela força de luta, a frustração pela suplantação de limites, teremos cumprido nossa tarefa. A sociedade contemporânea é utilitária e altamente competitiva. Dentro deste contexto, educar uma criança com deficiência demanda preparo e discernimento. Mais uma vez, pais e educadores deverão juntar-se para que possam trabalhar pelo surgimento de um indivíduo melhor, inteiro na potencialidade que possui independente, cônscio do espaço que pode conquistar, fortalecido para lutar contra o descrédito, disposto a vencer desafios. Conclui-se, portanto, que a relação da família ante uma criança com deficiência passa por várias crises e estados emocionais: perplexidade, dor, autopiedade, revolta, complexo de culpa, sensação de impotência. O amor mal direcionado simbolizado pela superproteção é tão danoso quanto o abandono refletido pela rejeição. Muitas vezes, os pais tentam compensar a deficiência sem se aperceberem de que deficiência não se compensa, enfrenta-se. Todavia, se houver ajuda, se alguém apontar um caminho, se houver capacidade de superação, a adversidade converter-se-á em sucesso. Pensemos criticamente sobre o assunto e reflitamos: 11 A Deficiência Traz Obstáculos e não Impõe Impedimentos Irremediáveis. EDUCAÇÃO E DEFICIÊNCIA VISUAL I – INTRODUÇÃO A educação é o alicerce em que se fincam as bases da evolução humana. No decurso da História, desde seus primórdios, o homem necessita seguir princípios norteadores que lhe servem como suporte para a construção do seu crescimento e plena tomada de consciência do mundo, do “outro”, de si mesmo. Nas diversas fases dessa trajetória histórica, percebe-se a complexidade e as múltiplas faces reveladas por esse processo de humanização. Os instintos primários, o sentido de autopreservação, o sentimento de perpetuidade mesclam-se. Formam-se grupos, e deles, ramificam-se inúmeros outros. Aglomeram-se seres; confrontam-se, sobrepõem-se, anulam-se, forjam a sobrevivência e a continuidade. Das experiências vividas, das diferenças ressaltadas, da supremacia física, da força criadora, da capacidade de adaptação, nasce no ser humano o dom de transmudar-se. Na escalada evolutiva a autopreservação vai cedendo lugar, pouco a pouco, à convivência (vivência compartilhada). Os seres integram-se, dividem espaços, aceitam aproximações, desenvolvem sentires, apreendem saberes, agregam valores. Despertam-se ideias, avolumam-se desejos, rompem-se barreiras, abre-se um veio de infindáveis possibilidades. O homem adquire pois, condições de pensar, de modificar situações, de criar novos paradigmas, de projetar sua imaginação na concretização de ações fomentadas por seus sonhos e necessidades. Dos aglomerados primitivos, emergem os grupos sociais, as comunidades, a grande sociedade. Com a aquisição e o desenvolvimento da linguagem, estabelece-se a comunicação. Os grupos ou comunidades passam a irmanar-se por interesses comuns, traços culturais afins que fortalecem relações, formulam conceitos e ampliam conquistas. A fala articulada pode considerar-se como o elemento deflagrador da legítima ascensão intelectual da humanidade. O homem só cresce quando em contato com outro homem. O vínculo social firmado através da comunicação une indivíduos, constrói pensamentos, incrementa discussões, diferencia juízos, alarga as fronteiras do conhecimento e aprimora o burilamento do espírito. A educação, desde os movimentos iniciais, tem por função precípua, a humanização do ser. Humanização no seu estágio mais profundo e delicado. Educar, não é tão somente ensinar. Buscando-se a raiz da palavra, provinda do latim educère, “conduzir”, compreende-se que o ato 12 de educar merece uma ampla revisão. Revisão essa que os educadores precisam assumir como um compromisso de renovação de propósitos para a consecução de uma postura pedagógica compatível com a contemporaneidade e os anseios e demandas do homem desses primeiros anos do século vinte e um. Conduzir não é impor, ensina Paulo Freire: “Não há educação imposta, como não há amor imposto.” O processo educativo tem de apoiar-se nos pilares da formação e da transformação do homem. É um processo que só se fará representativo e verdadeiro, quando construído emperfeita harmonia entre educador e educando. A sociedade dos nossos dias apresenta-se extremamente competitiva. O avanço da tecnologia e a vertiginosa velocidade da informação tornam os valores voláteis e o conhecimento massificado e sem a consistência de uma análise profunda. A educação exige bom senso. O êxito escolar prende-se a formação do educador e a formulação das políticas que estruturam os sistemas educacionais. É preciso que a Escola se coadune com a contemporaneidade, entretanto, é imprescindível que o conhecimento formal não seja relegado a planos secundários, é necessário que não sejam adotadas concepções descartáveis que negligenciam o ensino e negam ao educando a oportunidade de uma escolarização de qualidade, fato que irá impedi-lo de galgar patamares mais elevados na sociedade e no mundo do trabalho. II - ASPECTOS HISTÓRICOS Na Antiguidade, o indivíduo cego, por ser impossibilitado de manusear armas, era considerado como uma pessoa inútil, improdutiva, quando não era decretada sua morte ao nascer. No processo evolutivo da humanidade, dentro da formação das sociedades, muitos séculos se passaram, ao longo da história dos povos, sendo a cegueira e o trabalho considerados como incompatíveis. As pessoas cegas não tinham o direito nem a oportunidade de participar das atividades normais da vida humana; vítimas de profundos preconceitos e discriminações que determinavam sua marginalização social. Isto ocorreu desde os tempos mais remotos da história da civilização, passando pelos períodos da Idade Antiga, da Idade Média, até o término da Idade Moderna, na fase em que se inicia a Idade Contemporânea. Ainda assim, inúmeros são os registros históricos, em diferentes épocas, de personalidades cegas que superam as adversidades sociais e a própria deficiência visual, conseguindo destacar-se em diversos ramos do conhecimento, na literatura, nas artes, na filosofia e nas ciências em geral. 13 É digno de nota, ver-se no século XVI a questão da integração dos cegos através da formação e do trabalho que assumem grande importância, pelo menos, no plano teórico. O humanista hispano-flamengo Juan Luis Vives (1492-1540), publica em 1526, em Bruges (Bélgica), o primeiro tratado que apresenta uma proposta de política de assistência social global: “De Subventione Pauperum”. Com o mesmo espírito dos companheiros Thomas More e Erasmo, Vives ataca o ócio, fonte geradora dos mais terríveis vícios e exalta o poder do trabalho que se converte em “remédio de todo o mal”. Segundo este teórico, ninguém é completamente inepto para o trabalho, inclusive, os cegos; em sua concepção, eles são capazes de suprir suas necessidades vitais: “Não permitiremos, nem sequer aos cegos, ser ou conseguir estar desocupados; há muitas coisas a que se podem dedicar: alguns têm aptidões para as letras, desde que alguém leia para eles. Que estudem, já que observamos em um grande número deles, alguns progressos na erudição, nada desprezíveis. Outros estão aptos para a música: que cantem e toquem instrumentos de corda ou de sopro; que outros engrenem tornos e mecanismos; que outros trabalhem nas prensas, ajudando a manejá-las; que outros abanem foles nas oficinas de ferreiros. Também sabemos que os cegos fabricam caixas, cestas, canastras e gaiolas, e que as mulheres cegas tecem e enovelam. Em poucas palavras, se não querem ficar parados nem fugir do trabalho, encontrarão facilmente a que se dedicar; a preguiça, a desídia, e não o defeito do corpo é o único motivo que podem alegar para não fazer nada”. Tal passagem mostra-nos as atividades a que se poderiam dedicar os cegos naquela época e, sobretudo, as aptidões que fariam deles pessoas produtivas. É interessante ressaltar que a capacidade literária não ficou relegada a plano inferior. Juan Vives, sem qualquer dúvida, conhecia por sua fama um ou outro erudito flamengo cego que frequentava os círculos humanistas parisienses: Charles Fernand (1450-1517), Pierre de Ponte (1475-1529), Perceval Van Belleghem (primeiros anos do século XVI). Ao pretender aplicar aos cegos como a “todo o gênero humano” as virtudes formadoras e regeneradoras do trabalho, Juan Luis Vives converteu-se, provavelmente, no primeiro teórico que expressou a ideia da integração social dos cegos a partir da educação e do trabalho. Sem margem de erro, sua obra “De Subventione Pauperum” teve uma influência determinante nas práticas sociais; os cegos como os inválidos em geral, se isentavam das medidas de limitação e incapacidade ante o trabalho obrigatório, medidas essas aplicadas à maioria dos mendigos e outros necessitados em numerosos centros urbanos. Estavam em pleno Renascimento, portanto, o homem colocava-se no centro das discussões, independentemente de quaisquer desvalias que o atingissem. A origem da educação dos cegos começa, efetivamente, nos dois últimos séculos da Idade Moderna, séculos XVII e XVIII. É nesse período, que se começou a cogitar da 14 necessidade de as pessoas cegas terem oportunidades de serem atendidas educacionalmente, utilizando-se meios próprios para que fossem supridas as especificidades desses indivíduos. A primeira notícia que se teve a respeito dessa nova postura, foi um livro descrevendo as características e implicações da cegueira e suas respectivas consequências, publicado na Itália, em 1646, de autoria desconhecida; tinha um caráter de uma carta dirigida a Vicente Armani e que foi traduzida para o francês, ganhando na França, grande repercussão, bem maior do que em seu país de origem. Poucos anos mais tarde, ainda na Itália, em 1670, o jesuíta Lana- Terzi publicou outro livro, agora tratando do problema da instrução de deficientes visuais. A divulgação desses livros provocou na Inglaterra e na França, em especial, grande interesse sobre essa deficiência, sobretudo em relação aos aspectos especulativos e filosóficos da cegueira e os efeitos causados a respeito da aquisição do conhecimento das coisas, advindos das percepções e sensações fornecidas pelos sentidos remanescentes. A matéria foi tratada e discutida em várias obras por filósofos e escritores, como, Jean Locke, William Molinet, Etienne Condillac e os enciclopedistas Voltaire e Diderot, este último, escrevendo as famosas “Cartas sobre os cegos para uso dos videntes”. Todas as obras dos autores citados, no entanto, não foram além do aspecto especulativo da questão. Coube ao enciclopedista Jean Jacques Rousseau tratar o assunto de maneira realmente objetiva, mostrando a necessidade de se criar, de fato, condições especiais para atender às peculiaridades educacionais dos cegos. A proposição de Rousseau teve como resultado prático a ação de Vallentin Haüy, filantropo francês, que se interessou vivamente pela educação das pessoas cegas. Este processo iniciou-se com a idealização de uma forma que tornasse possível ensinar uma pessoa cega a ler. Muitos meios já tinham sido tentados, mais ainda não haviam logrado êxito: letras formadas com ripas de madeira; pequenos pregos firmados em madeira, servindo de ponto de apoio para fios ou arames finos estendidos; caracteres desenhados em folhas de metal maleável; representação de letras em baixo relevo, em papel, argila etc. Estes são exemplos de alguns procedimentos que foram experimentados, às vezes, com muita imaginação, todavia, sem muita eficácia. Haüy concebeu um sistema de leitura tátil, com base na representação em relevo dos caracteres comuns, impressos numa folha de papel; experimentou este sistema e conseguiu alfabetizar um jovem cego esmoler, François Lesueue, que era capaz de reconhecer, com o tato, o valor das moedas que recebia. Após a experiência de alfabetizar com sucesso, uma pessoa cega, lançou uma campanha para arrecadar fundos para a construção de uma escola para cegos. Arregimentou crianças e jovens cegos e fundou, em 1784, o Instituto Real dos JovensCegos, em Paris. Deflagrava-se, ali, a educação para os cegos no mundo com a fundação da primeira escola especializada. 15 A partir dessa escola, outras surgiram na Europa no início do século XIX – Prússia (Alemanha), Áustria, Inglaterra e, um pouco mais tarde, em países da América do Norte e do Sul. Temos como sistemas de leitura e escrita, três iniciativas que vieram de Haüy, Barbier e Braille. Sistema Linear em Relevo (Literal) O invento de Vallentin Haüy possibilitou a produção de livros com caracteres em relevo e a formação de classes especiais onde os cegos eram alfabetizados e desenvolvidos na leitura tátil. O relevo produzido dos caracteres comuns dos livros impressos permitia o reconhecimento tátil, mantendo analogia do modelo característico das letras da escrita em tinta, formadas por linhas com segmentos retilíneos, curvos e entrelaçados. A característica linear do sistema não possibilitava a identificação das letras com facilidade, tornando a leitura tátil morosa, cansativa, portanto, bastante penosa. Apesar de tais inconvenientes, esse sistema foi usado como o único recurso, neste particular, por mais de trinta anos, no processo ensino- aprendizagem dos alunos do Instituto dos Jovens Cegos. Tal sistema foi de grande importância para o início do processo educacional dos cegos, embora não permitisse a escrita. O reconhecimento dessa importância coloca Vallentin Haüy como primeiro nome de destaque na história da educação dos cegos. Sistema de Pontos em Relevo (Fonético) Em 1819, um antigo oficial do exército de Napoleão, Charles Barbier de La Serre, trouxe um sistema fonográfico de leitura e escrita para ser testado no Instituto dos Jovens Cegos. Era um sistema de sinais, formado por pontos para reconhecimento tátil, também denominado de “Leitura Noturna” ou de “Sonografia”, fora idealizado por Barbier para a comunicação, à noite, de pequenas mensagens entre oficiais e soldados, quando, em campanha; este invento não teve acolhida por parte dos militares. O invento de Barbier tinha por base, doze pontos, seis linhas e trinta e seis símbolos representativos dos principais fonemas da língua francesa. O sistema tinha a vantagem de possibilitar a leitura pela identificação mais fácil das letras, com sinais em pontos; outra vantagem era possibilitar a escrita em um aparelho especial, inventado pelo próprio Barbier. Mas tinha também a desvantagem de ser apenas fonético (representação de sílabas) isto dificultava a aprendizagem da ortografia das palavras. Tal dificuldade motivou certa resistência ao seu uso, porém, considerando as vantagens referidas, acabou sendo adotado pelo Instituto de Paris, em caráter experimental para suplementar o sistema de Haüy. Por tal razão, Charles Barbier fica também na galeria daqueles que favoreceram o processo evolutivo de comunicação na leitura e na escrita de pessoas cegas, tendo como destaque o 16 reconhecimento das vantagens de seu sistema, pela maior facilidade de identificar sinais através do tato, com pontos e a possibilidade da pessoa cega ter acesso à escrita. Sistema de Pontos em Relevo (Literal) Louis Braille nasceu em 4 de janeiro de 1809 numa pequena cidade nas cercanias de Paris, chamava-se Coupvray. O menino perdeu a visão quando contava apenas três anos de idade. Em 1819, aos dez anos, foi matriculado no Instituto dos Jovens Cegos, em Paris, para estudar e aprender a ler pelo sistema de Vallentin Haüy. Anteriormente, Louis teve oportunidade de frequentar, como aluno ouvinte, durante dois anos, um colégio para videntes na localidade onde nascera. Desde muito cedo, demonstrou ter aguda inteligência e uma curiosidade viva em conhecer todas as coisas que pudessem ser alcançadas por suas mãos. Havia um ímpeto extraordinário que o impelia a explorar o mundo que o rodeava. Neste colégio, destacou-se pela facilidade de aprender as lições, de memorizar e recitar, oralmente, tudo que lhe era ensinado, ainda que não pudesse nem ler nem escrever. Quando mais tarde, ingressou no Instituto de Jovens Cegos, aprendeu a ler nos caracteres comuns, em relevo, no sistema de Haüy e se interessou, enormemente, pelo sistema de pontos idealizado por Barbier, então, em uso naquele Instituto. Seu interesse pelo sistema de Barbier veio por ter percebido, como pessoa cega que era, a maior facilidade de reconhecer pelo tato, os sinais em relevo formados com pontos do invento de Barbier, em relação aos caracteres comuns do sistema de Haüy. Além disso, havia a grande possibilidade da escrita, ainda que, em pequena escala, propiciando somente mensagens reduzidas. Louis Braille, pouco mais que um menino, dedicou-se integralmente ao estudo, à análise, à pesquisa e à identificação dos aspectos positivos e negativos do sistema de Barbier. Compreendeu que havia necessidade de se fazer algumas alterações que tornariam o sistema, mais objetivo e acessível para o uso dos cegos. Tentou muitas vezes, sugerir as possíveis alterações a Barbier, que, no entanto, jamais admitiu fazer qualquer mudança no seu sistema. Assim, Braille resolveu fazer um novo sistema, sem qualquer relação com o de Charles Barbier; aproveitou apenas a idéia de utilizar pontos em relevo na formação dos sinais. Com inteligência e empenho, estruturou um novo código de sessenta e três sinais, mediante a combinação de seis pontos, atribuindo valores simbólicos a esses sinais para serem utilizados na literatura, na música, na aritmética e na geometria. Em 1825, quando estava com dezesseis anos apenas, Braille fez o lançamento do seu invento, dando a conhecer seu extraordinário e genial sistema; sistema de leitura tátil e escrita que tirou o cego do obscurantismo e lhe deu a 17 condição de tornar-se um indivíduo inteiro, capaz de dirigir sua existência através da educação, da cultura e do trabalho. Após esse lançamento, Braille alterou a estrutura do invento inicial, através de duas versões: uma, em 1829 e outra, em 1837, versão definitiva e consagrada universalmente, que permanece íntegra até os nossos dias. Louis Braille faleceu em 6 de janeiro de 1852, aos quarenta e três anos, sem ter assistido a consagração e a oficialização do seu invento, fato ocorrido, em 1854. III - A EDUCAÇÃO DOS CEGOS NO BRASIL A educação dos cegos no Brasil inicia-se em 1854, com a criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, ao mesmo ano em que o Sistema Braille teve sua oficialização na França. O Brasil detém o orgulho de ter sido o primeiro país da América Latina a fundar uma escola especializada para cegos e se encontra entre os primeiros países do mundo a realizar tal empreendimento. Durante mais de cinco décadas, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos foi a única escola a oferecer escolarização aos cegos, em todo o território brasileiro. No período inicial, ao longo de aproximadamente cem anos, o atendimento educacional foi algo limitado, mas, desde seus primeiros movimentos, brasileiros cegos foram educados conseguindo projeção na sociedade, destacando-se em diferentes áreas de conhecimento e ramos profissionais. O desejo de educar-se os cegos no Brasil, surgiu do idealismo de um jovem cego, José Álvares de Azevedo, natural da cidade do Rio de Janeiro, nascido em 8 de abril de 1834. Cego, desde a primeira infância, aos 10 anos de idade, foi enviado para a França a fim de estudar no Instituto de Jovens Cegos de Paris. Após seis anos, tendo concluído seus estudos, regressou ao Brasil, chegando à cidade do Rio de Janeiro a 14 de dezembro de 1850, trazendo no espírito inquieto o ideal de criar, no Rio de Janeiro, uma escola especializada para cegos, nos moldes da escola parisiense onde se preparara com afinco e esmero. Para tanto, começou desde a chegada, a demonstrar com seu exemplo, em reuniões na comunidade e nos salões da nobreza da corte, as possibilidades reais que as pessoas cegas têm de ler e deescrever através do Sistema Braille. Com grande competência, passa a escrever artigos em jornais da cidade sobre questões que envolviam a cegueira e começa a ensinar o Braille a algumas pessoas, tendo inclusive, a oportunidade de ensinar a leitura e a escrita deste sistema a uma jovem cega, Adélia Sigaud, filha do médico da corte imperial, Dr. Francisco Xavier Sigaud. Por intermédio do Dr. Xavier Sigaud, foi levado à presença do Imperador Dom Pedro II, que o acolheu com respeito e admiração, após ter assistido a demonstração da leitura tátil e escrita feitas pelo jovem Azevedo. Na ocasião, Álvares de Azevedo expressou seu ideal e apresentou um projeto para a 18 criação de uma escola que atenderia os cegos. O Imperador sensibilizou-se e aderiu à ideia e, em seguida, autorizou que fossem tomadas as providências necessárias à fundação daquela escola idealizada por Azevedo na cidade do Rio de Janeiro. Dentre as medidas administrativas normais e junto ao Poder Legislativo, o Governo do Império mandou adquirir, na França, os primeiros materiais e equipamentos especializados: livros em Braille, máquina de escrever (regletes), punções, máquinas especiais para montagem de uma oficina, além de autorizar a procura de um espaço para a instalação da escola. Álvares de Azevedo não pôde ver seu ideal concretizar-se. Vitimado por uma doença grave, faleceu a 17 de março de 1854, exatamente seis meses antes da fundação da escola por ele idealizada. Dia 17 de setembro de 1854, numa grande solenidade, com a presença de Sua Majestade o Imperador D. Pedro II, de Sua Majestade, a Imperatriz Teresa Cristina, de Ministros de Estado e dos mais proeminentes homens do Império, inaugurava-se o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atualmente Instituto Benjamin Constant, denominação que lhe foi dada a partir de 1891, após a morte de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, um dos maiores nomes de sua história. Assim, nasceu a primeira escola para cegos na América Latina. Por tantas razões, considera-se o Instituto Benjamin Constant a matriz da Educação Especial não apenas no Brasil, mas na América Latina. IV – DEFICIÊNCIA VISUAL: CARACTERIZAÇÃO O conceito de deficiência refere-se a qualquer perda ou anomalia da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica. Desses fatores, pode ocorrer uma limitação ou incapacidade do desempenho normal de uma determinada atividade. Tais fatores não dependem de faixa etária, sexo, condições sociais e meio cultural. A limitação ou incapacidade caracterizam uma “deficiência” em qualquer nível e sob qualquer manifestação. Reportando-nos a visão, uma patologia ou trauma que atinjam a estrutura e o funcionamento do sistema visual, podem provocar no indivíduo a incapacidade de “ver” (deficiência total) ou de “ver com limitações” (deficiência parcial). Nos dois casos, havendo impedimentos ou limitações, o indivíduo se vê frente a problemas quanto à aquisição de conceitos, acesso direto à escrita e à leitura, desembaraço necessário à orientação e mobilidade independente, à interação social e ao controle do meio ambiente. Estudos na área revelam que, ocorrendo falhas na construção desses fatores, poderão acontecer significativos atrasos no desenvolvimento normal do indivíduo. 19 A criança com deficiência visual precisa contar com um conjunto de medidas que lhe dê possibilidades de desenvolver-se satisfatoriamente, segundo suas potencialidades reais. Dentre essas medidas, impõem-se: professores especializados, escolas aparelhadas, adaptações curriculares, metodologias específicas e materiais didáticos adicionais que apoiem os conteúdos das diferentes disciplinas que compõem o currículo escolar. Os alunos com deficiência visual não constituem um grupo homogêneo. A deficiência não determina, como muitos supõem, uma padronização no comportamento geral dessas pessoas. Em se tratando do processo de aprendizagem, é outro erro imaginar-se que todas as crianças com deficiência visual tenham as mesmas características. Essa visão distorcida cria mitos e aprofunda o conceito de generalização, no qual as diferenças individuais não são consideradas. Assim, é importante que o professor perceba esse grupo com toda a sua gama de possibilidades e diferenciações. As necessidades educacionais básicas são iguais para crianças com deficiências visuais ou videntes. As pessoas com deficiência visual também apresentam grandes diferenças quanto ao aspecto das perdas da visão. São variações que se manifestam em diferentes graus da acuidade visual, que podem ir desde a ausência total da percepção de luz, até 0,3 “Snellen”, conforme detalhamento contido nas definições médica e educacional. No processo educativo de crianças cegas ou com baixa visão, é preciso que se tenha conhecimento tecnicopedagógico de cada um dos grupos. Esse conhecimento propiciará a formulação de planos educacionais verdadeiramente ligados ao atendimento das peculiaridades e necessidades desses educandos. Nesse trabalho, o concurso da família ou responsáveis pela criança é de suma validade. O histórico da criança, suas características, reações, desempenho fornecem informações que devem ser acolhidas e analisadas. As expectativas dos familiares ante essa criança podem servir, da mesma forma, como índices reveladores do estágio evolutivo em que se encontra o educando e as linhas de ação pedagógica pelas quais ele deverá ser trabalhado durante as etapas do desenvolvimento de sua aprendizagem. Além dos efeitos da deficiência visual, que atingem diretamente o indivíduo, Lowenfeld e Ochaita alertam quanto à existência de algumas variáveis intervenientes que afetam o grau da perda visual. Pode-se apontar, dentre elas, algumas que foram destacadas por Scholl em 1982, são elas: A idade em que se manifestou o problema visual; Forma como se manifestou o problema; Etiologia; 20 Tipo e grau de visão, quando há resíduo visual. Idade em que se manifestou o problema visual Uma criança afetada por cegueira congênita, precisa, fundamentalmente, dos sentidos da audição e do tato para adquirir conhecimentos e formar imagens mentais. Já uma criança que adquiriu a cegueira ou perda significativa da visão depois do nascimento, pode reter imagens visuais e ser capaz de estabelecer relação entre elas e as impressões recebidas através dos outros sentidos. Segundo Lowenfeld (1963), as crianças que perdem a visão antes dos cinco anos, não são capazes de reter qualquer imagem visual. Outro ponto relevante é verificar se a deficiência foi adquirida antes ou depois do período de alfabetização. Isto ocorre porque a criança, já alfabetizada, pode rejeitar ou mesmo sentir maiores dificuldades diante da necessidade de aprender o Sistema Braille. Tais informações são indispensáveis, tanto visando os aspectos educacionais, bem como os aspectos psicológicos, uma vez que efeitos danosos podem verificar-se no aparecimento da deficiência e afetar gravemente o estágio de desenvolvimento em que se acha a criança. Forma como se manifestou o problema A criança ou o jovem com baixa visão, quando afetados por uma patologia progressiva, podem receber com menor trauma a perda total da visão. Todavia, aqueles que a perdem abruptamente, sofrem reações, via de regra, bastante fortes. A aceitação da deficiência torna-se mais difícil e compreender essa nova situação em que se encontram demanda mais tempo e requer maior apoio por parte de todos. Fica claro, contudo, que em ambos os casos, acontecem problemas emocionais cujo ajustamento do equilíbrio interno não é fácil, e às vezes, transforma-se numa passagem longa e penosa. A experiência no trabalho com crianças, jovens ou adultos cuja perda da visão é recente, mostra que somente havendo aceitação da deficiência este trabalho poderá obter êxito. O indivíduo precisa convencer-se do seunovo estado físico e aprender a conviver com a deficiência, principalmente quando esta tiver um caráter definitivo. Etiologia Há certos tipos de patologias que necessitam cuidados especiais, com observação atenta e controle permanente. 21 O glaucoma congênito, além de doloroso, em muitas ocasiões, interfere no comportamento da criança. O mal estar causa mudanças de humor, sonolência, uma certa irritabilidade, desconforto geral. Os cuidados especiais com algumas patologias ou problemas decorrentes dessas afecções que modificam a conduta da criança precisam ser do conhecimento do professor, para que ele possa ter a compreensão exata do comportamento do aluno e tenha condições de ajudá- lo. Vê-se, por exemplo, nos problemas provenientes de doenças sexualmente transmissíveis, interferências no comportamento entre os pais e entre esses e a própria criança. Outro fator de desequilíbrio familiar, em relação à criança com deficiência visual, é a hereditariedade. O sentimento de culpa ou a troca de acusações, perturba, significativamente, a trajetória da criança em busca do seu crescimento global. Outro aspecto frequente que poderá interferir no grau de eficiência da visão, é o fator iluminação. Há patologias que requerem pouca incidência de luz, ao passo que outras exigem maior incidência de iluminação. É tarefa do professor observar e decidir, juntamente com o aluno, em que lugar deverá ele sentar-se na sala de aula. No que diz respeito à iluminação, é bom ressaltar que os problemas trazidos pela catarata, glaucoma, aniridia, cseratocone e albinismo encontram melhor resposta em ambientes cuja intensidade de luz é menor. Em contrapartida, alguns problemas de refração, retinose pigmentar, atrofia óptica e degeneração macular precisam de maior intensidade de luz. Tal intensidade estimula as células da fóvea (componente do sistema visual). Esses estímulos melhoram a clareza e eficiência visual. No entanto, afirma Barraga (1971) que dois indivíduos acometidos pela mesma etiologia poderão ter variações em suas necessidades de iluminação: um poderá exigir mais luminosidade, o outro, precisará de menos luminosidade. Tipo e grau de visão residual O grau de baixa visão, acrescido do tipo de afecção existente, poderá ocasionar interferências no desempenho e aproveitamento do aluno, levando-se em conta o grande esforço que faz para enxergar longe de suas condições reais. São tentativas muitas vezes dolorosas que acarretam sérias frustrações. Acrescente-se ainda, que este aluno acaba por sofrer enorme tensão física e emocional. 22 A necessidade da utilização de materiais impressos e tipos ampliados, o uso de recursos ópticos, às vezes, pouco estéticos, trazem dificuldades para esse indivíduo aceitar tal situação e tão grandes diferenças em relação aos demais colegas de classe. Constrangimento e inadequação ao contexto escolar, provocam o baixo rendimento educacional desse aluno. Alguns estudos demonstram que alunos com cegueira, ajustam-se melhor à escola do que alunos com baixa visão. Este fato pode explicar-se através da dicotomia entre indivíduos videntes e cegos. O educando com baixa visão vive deslizando entre essas duas realidades. Outro ponto a ser considerado, é que os pais, como também os professores, acreditam no maior sucesso dessas pessoas por terem na visão, ainda que apresentando déficits, uma fonte mais rica de probabilidades positivas. “É uma interpretação defeituosa e equivocada, pois não analisa as particularidades e características que cercam esta deficiência”, alerta-nos Zimmerman (1965). Oportunidades de aprendizagem Uma pessoa, principalmente uma criança privada da visão, sentido que propicia um volume extraordinário de informações e dados na construção do conhecimento, necessita do concurso dos demais sentidos a fim de que possa vivenciar experiências de aprendizagem no mundo concreto que a rodeia. Tais experiências precisam ser significativas para enriquecer o processo de aquisições que viabilizarão os meios de interpretação que serão responsáveis pela formulação dos conceitos básicos que estruturam o “saber” do homem. Norris e colaboradores realizaram um estudo com a duração de cinco anos, tendo como campo de pesquisa o conjunto de trezentas crianças da Educação Infantil; os pesquisadores concluíram que essas crianças precisavam, fundamentalmente, de oportunidades de aprendizagem e não, de meros trabalhos de estimulação. Entenderam assim, que a estimulação prendia-se a algo que se dá a criança como conhecimento prévio dos seus mecanismos de motivação, aquilo que lhe é apropriado pelo seu grau de desenvolvimento. Oportunidade para aprender implica “um clima emocional dentro do qual é dada à criança orientação e liberdade em proporções justas e relativas às suas necessidades como uma personalidade em desenvolvimento” (Norris et al, 1957). De acordo com tais colocações, depreende-se como uma criança com deficiência visual pode ser mal conduzida em seu processo evolutivo de aprendizagem, quando fica a mercê do despreparo, insegurança, superproteção e mesmo, rejeição das pessoas que com ela convivem. 23 Um dos aspectos mais importantes trazidos pela falta de oportunidades de aprendizagem é o desenvolvimento de comportamentos e atitudes indesejáveis e atípicas que foram denominadas como ceguismos ou anopcismos. Alguns cegos apresentam procedimentos dessa natureza, fato que marca negativamente sua presença. Ceguismos ou anopcismos mais frequentes: a) Balançar o tronco para frente e para trás; b) Movimentar a cabeça para os lados em movimentos circulares; c) Sacudir ou esfregar as mãos; d) Pressionar um ou ambos os olhos, com as mãos ou as pontas dos dedos; e) Estar sempre com a cabeça baixa. Essas atitudes ocorrem pela falta de atividades e interesses mais imediatos e compatíveis com seu grau de desenvolvimento. O indivíduo adquire estes comportamentos para descarregar em si mesmo as energias acumuladas. É uma forma, em última análise, de ele se autoestimular. Eis a importância de uma educação de qualidade e especializada desde os primeiros dias de vida do bebê com deficiência visual. A intervenção através de um bom programa de estimulação precoce favorecerá o melhor desempenho das etapas evolutivas dessa criança. 24 ALFABETIZAÇÃO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA A partir do Construtivismo abordado nas pesquisas de Jean Piaget, surge a proposta de uma nova visão na construção do período de alfabetização da criança cega ou com baixa visão. A Educação Especial caracterizou-se sempre, por oferecer um atendimento um tanto padronizado aos indivíduos que reclamavam atendimento a necessidades educativas especiais. Considerando-os a todos como pessoas capazes de se desenvolverem através do concurso de teorias da aprendizagem comportamentalista, fortaleceram-se os estigmas que rotulam cada deficiência. Sem sombra de dúvida, o período de alfabetização é aquele em que afloram os mais graves problemas verificados no correr do desenvolvimento mental da criança cega. Nessa fase, acionam-se esquemas interpretativos de fundamental importância; a ocorrência de falhas na construção das estruturas cognitivas durante as etapas evolutivas desse desenvolvimento trará ao alfabetizando graves dificuldades e irremediáveis fracassos. Sabe-se, todavia, que o processo de aprendizagem de uma criança com deficiência visual requer procedimentos e recursos especializados. Para que seu crescimento global se efetive, verdadeiramente, faz-se necessário que lhe sejam oferecidas muitas oportunidades de experiências e inúmeras competências devem ser trabalhadas. Isto significa que uma criança cega não deve ser educada sob a orientação de vários mecanismos e exercícios de mero condicionamento. Este enfoque, antigo e superado,deve ser mudado. A criança cega precisa ser percebida como um ser inteiro, dona dos seus pensamentos, e construtora, ainda que em condições peculiares, do seu próprio conhecimento. Vê-la como um produto de treinamentos milagrosos é uma distorção que exige uma revisão urgente. Em meio a diversas propostas educacionais, surge o Construtivismo. Ao tentar compreendê-lo, buscam-se novos rumos para que se ampliem as probabilidades de sucesso na alfabetização de crianças cegas. A importância do aprofundamento dessa procura liga-se à necessidade de inserir a educação de pessoas com deficiência visual a discussões educacionais mais amplas. A 25 educação em si, bem sabemos, não é “especial”. Especiais, pode-se afirmar, são os procedimentos e recursos didático-pedagógicos. O período de alfabetização suscita muito cuidado e impõe esmerado preparo aos professores. As dificuldades e os frequentes fracassos dos educandos nessa fase escolar exigem uma mudança de atitude, e a busca de outros caminhos. A escola precisa dinamizar sua atuação, os educadores precisam acreditar no seu ofício, a criança precisa ser levada a descobrir o seu verdadeiro papel no processo de ensino- aprendizagem. A educação, como elemento transformador, precisa provocar a participação e a interação entre escola, educadores e educandos. Assim, a validade dessa discussão prende-se ao fato de que é necessário compreender o processo de aprendizagem de uma criança cega: apreendendo passo a passo suas descobertas, promovendo seu desenvolvimento como um indivíduo capaz de crescer e realizar-se a despeito da deficiência que carrega. Novas concepções aparecem para que os alfabetizadores possam refletir. São princípios a serem analisados e não soluções apontadas, modelos experimentados ou aprovados. No entanto, é preciso levantar tais questões e procurar uma nova pedagogia que atenda os anseios do homem nesse novo milênio. A educação espelha a ideologia de seu tempo. Não é mais possível deixar uma criança cega à margem do seu próprio crescimento, fora do momento histórico em que vive. Ela tem que tomar consciência de si mesma, de suas reais possibilidades. Como qualquer outra criança, deverá perceber que constrói seu conhecimento, interpreta e reinterpreta a realidade que a rodeia, e cria e recria as coisas do seu mundo infantil. O Construtivismo vem como um novo caminho, uma fonte de análise para que os educadores repensem profundamente as práticas pedagógicas. É imprescindível examinar essas questões. Tendo em vista os grandes problemas verificados durante o processo de alfabetização de crianças cegas, é importante que os alfabetizadores revejam a relação com seus alunos, reflitam sobre suas metas de ensino, despertem para objetivos claros e bem definidos, a fim de que a ação educativa esteja, realmente, em consonância com as necessidades do educando. É um momento em que alfabetizandos e alfabetizadores se debatem em meio a múltiplas dúvidas e enormes tropeços. É um período de desafios e de descobertas imprevisíveis, tanto nos aspectos negativos quanto nos positivos. Por tais razões, é preciso que os professores que desejam dedicar-se a esse campo educacional tenham o preparo que se exige, para que os resultados obtidos sejam, na realidade, os mais proveitosos. A esses profissionais fica a tarefa de estudarem os três eixos principais onde seu trabalho deve ser apoiado, conforme demonstrados no quadro abaixo: 26 EIXO LINGUÍSTICO – Quem alfabetiza transmite os fundamentos básicos que estruturam uma determinada língua. Por isso, alguns princípios linguísticos precisam ser trabalhados com critério e competência. EIXO SOCIAL – Entende-se que a língua e a linguagem são dois instrumentos sociais. O homem fala e se comunica porque pertence a um determinado grupo social no qual se desenvolvem valores culturais específicos. A escrita é um objeto socialmente estabelecido e a análise a respeito do assunto deve merecer destaque. EIXO CONSTRUTIVISTA – O Construtivismo deverá ser estudado, como não poderia deixar de ser, a partir das pesquisas de Jean Piaget. A aquisição do conhecimento, ao correr das etapas evolutivas da criança, deverá constituir-se no alicerce dessa nova postura pedagógica. Os aspectos cognitivos da criança cega precisarão ser vistos e cotejados com os da criança vidente. Fazendo-se o confronto entre o processo do desenvolvimento mental de crianças videntes e de crianças cegas, pode-se estabelecer um paralelo de como se processa a aprendizagem dos dois grupos. Finalmente, é de suma importância verificar a aplicação do Construtivismo e fazer o estudo comparativo entre as possibilidades, e, principalmente, o volume de oportunidades de aprendizagem entre crianças videntes e cegas. À luz da linguística, da sociologia, da epistemologia e da psicologia genética deve-se buscar a explicação do fenômeno “alfabetização”, ampliando sua abordagem. Mesclando todas essas correntes do conhecimento humano, aos educadores é oferecida uma gama de saberes e pensamentos. Aquilata-se assim, a complexidade que envolve a Educação Especial. Educar uma criança cega não é uma missão simples: é a opção profissional imposta por uma grande vocação e deve estar baseada na consciência da responsabilidade de alguém que precisa investir no seu próprio trabalho, para que essa escolha se transforme num desempenho digno que infunda respeito e credibilidade. É preciso refletir: o que é alfabetizar? Por que essa etapa, dentro do processo educacional, externaliza as mais profundas preocupações de educadores, psicólogos, cientistas sociais? Como envolver crianças, jovens e adultos nessa conquista? Tais perguntas poderiam juntar-se a outras mais, que, no entanto, convergiriam para um único ponto: a ascensão do indivíduo. Fala-se de cidadania, justiça social, de liberdade e de democracia. Inscrevem-se nestas palavras conceitos concretos, ainda que complexos, que deverão ser os pilares onde a educação, em todos os níveis, necessita apoiar-se. Faz-se necessário estudar a problemática da alfabetização sob a inspiração dessas quatro vertentes. De forma contrária, a tarefa esvazia-se de conteúdos significativos, forja discussões inócuas, incrementa ideias distorcidas, gera uma visão superficial de assuntos tão relevantes. 27 A alfabetização passa pelo aprofundamento de vários fatores que inserem o homem no “mundo das letras”. Alfabetizado não é só aquele que reconhece sinais gráficos, aprende fonemas, mecaniza procedimentos de leitura e de escrita. Os alfabetizadores necessitam preparar-se e estar atentos à responsabilidade que lhes cabe. Alfabetizar é rasgar horizontes, abrir atalhos, apontar saídas, descobrir soluções, criar situações concretas e propor desafios. É fazer o educando trilhar o caminho do conhecimento formal, e levá-lo a apreender o “saber consciente”. Não se trata de uma mera linguagem metafórica, em cujo cerne repousam comparações de efeito literário: essas palavras guardam a justeza do exercício de uma verdade irrefutável. O vislumbre de novas possibilidades provém da consciência; é essa consciência que deveria perpassar todas as coisas, que precisaria estar viva e clara na proposta de trabalho do professor alfabetizador. O fracasso escolar levanta questionamentos importantes e, então, aparecem inúmeros fatores que procuram explicar o fato. A abordagem desse problema é larga e pede diferentes instrumentos de interpretação. Dessa forma, a falência da educação revela-se em muitas frentes. O despreparo dos professores, a repetência e a evasão escolar apontam para uma realidade insustentável: desqualifica-se o ensino e amesquinha-se o homem. É preciso ver o processo educacional como resultante da conjugação de ações recíprocas. Assim, o educando deixará de ser o dono das culpas absolutas, e o aprendiz um incapaz, detentor de todasas deficiências. É hora de investir num novo rumo, numa outra postura ante a educação. O período da alfabetização é responsável pelo insucesso de educandos e educadores. Tal barreira existe e tem de ser transposta. O estudo de uma nova conduta filosófica, de uma nova diretriz educacional nesse campo, poderá servir de suporte para a implantação de outra linha pedagógica que favoreça o alfabetizando, fazendo-o sujeito e não objeto de sua aprendizagem, de forma a integrar-se em sua comunidade cultural, descobrindo o mundo que o cerca, decodificando os muitos contextos existentes, enfim, tornando-se um ser possuidor de senso crítico. É necessário promover o debate e acionar os mecanismos mobilizadores de uma ação participativa, criando instrumentos e fomentando recursos que ergam uma escola capaz de trabalhar o educando como um todo, pesquisando suas potencialidades e respeitando suas diferenças. A educação especial não pode afastar-se dessa nova visão, visto que as pessoas com deficiência visual precisam compartilhar, como quaisquer outras, da construção do seu saber. Para tanto, devem ser criados ambientes educacionais ricos de estímulos e experiências, onde se promovam situações renovadas de aprendizagem. Constantes mudanças devem ser provocadas, propiciando atitudes criativas, estimulando atividades que favoreçam o desenvolvimento global de educandos cegos. 28 A educação deve estribar-se no mais sério propósito existente: a ascensão do ser humano. Compreendendo esse propósito, o educador entenderá o seu papel e buscará exercê-lo com competência e visão crítica. A ação educativa impõe constantes transformações e procura novas tentativas. Através dos tempos, desde épocas mais remotas, o homem luta para aprender. Aprender no sentido mais amplo da palavra, o que passa pelo instinto de preservação (a sobrevivência), e alcança seu ápice no refinamento mais elevado do espírito. Quando se fala em Educação Especial pensa-se logo em alunos “especiais”. Como se poderia entender o vocábulo “especiais”? Pessoas difíceis? Crianças problemáticas? Aprendizagem diferente? Aquele que pretende ingressar nesse campo de ensino precisará saber que uma criança cega é um ser que se desenvolve, que constrói, que aprende. Entretanto, ela apresenta necessidades específicas que reclamam um atendimento especializado e basicamente dirigido a essas especificidades. Uma criança não é mais ou menos capaz por ser cega. A cegueira não confere a ninguém nem qualidades menores nem possibilidades compensatórias extraordinárias. Seu crescimento efetivo dependerá exclusivamente das oportunidades que lhe forem dadas, da forma pela qual a sociedade a vê, da maneira como ela própria se aceita. É de fundamental importância que o professor não veja nesta criança um aprendiz de segunda categoria, um educando treinável, cujo adestramento de certas áreas promoverá um desempenho educacional satisfatório. Penetrando-se mais profundamente na teoria da construção do conhecimento de Jean Piaget, compreende-se que a educação construtivista fornecerá dados concretos para que se cumpra, em essência, o desenvolvimento intelectual de uma criança cega. Interagindo com os objetos, com o meio físico e com as pessoas, essa criança terá o seu crescimento mais facilitado e mais firme. Tomando-se as ideias construtivistas aplicadas à educação, diríamos, num primeiro momento, ser de todo impossível alfabetizar uma criança cega dentro de tais moldes. De maneira inversa a da criança vidente que incorpora assistematicamente, hábitos de escrita e de leitura desde muito cedo, a criança cega demora muito tempo a entrar no universo do “ler e do escrever”. O Sistema Braille não faz parte do dia-a-dia, como um objeto socialmente estabelecido. Somente os cegos se utilizam dele. As descobertas das propriedades e funções da escrita tornam-se impraticáveis para ela. 29 As crianças cegas só tomam contato com a escrita e com a leitura no período escolar. Falta ao cego a possibilidade de vivenciar a chamada “leitura incidental”, fator de extrema valia para despertar o interesse da criança para a aquisição desse extraordinário bem sociocultural. Esse impedimento, sabe-se, pode trazer prejuízos e atrasos no processo da alfabetização. É a hora da educação fazer-se mais forte e cumprir com seus reais objetivos: abrindo frentes de conhecimento, suprindo lacunas, minimizando carências. Os professores que seguem a linha construtivista consideram até certo ponto desnecessários exercícios prévios, que preparam o educando para ingressar no processo da alfabetização propriamente dito. Eles não acreditam na chamada “prontidão para a alfabetização” O que deve ficar claro, entretanto, é que no caso da educação de crianças cegas esse procedimento não pode ser adotado. Como já foi mencionado, o desenvolvimento global de uma criança cega requer técnicas e recursos especializados. Dentro do processo educacional de crianças cegas, é importante que sua evolução seja acompanhada de forma precisa e venha propiciar-lhe realmente uma evolução, fazendo-a adquirir um grau mais alto de eficiência. Por isso, nessa fase, dá-se grande ênfase ao desenvolvimento de um conjunto de capacidades e habilidades que são pré-requisitos para a leitura e a escrita do Sistema Braille. Capacitar uma criança não é condicioná-la, transformando-a num ser automatizado, com respostas previsíveis e resultados esperados. A capacitação ressaltada nasce da independência do perfeito domínio de si mesmo. Quando se fala na importância de desenvolver capacidades básicas, fala-se da finalidade máxima da Educação Especial: dar ao indivíduo com qualquer deficiência as condições essenciais para torná-lo um ser harmônico, uma pessoa plena, um homem com consciência de si mesmo. Esses pré-requisitos são trabalhados a partir das dificuldades geradas pela própria cegueira. Assim, ao acionarem-se mecanismos capazes de mobilizar estruturas internas, pode- se: ampliar movimentos corporais, fortalecer músculos, refinar percepções, estimular a memória, a concentração e a atenção, amadurecer condutas. Para o alfabetizador conquistar êxito em sua tarefa é fundamental que seu trabalho se revista de inúmeros aspectos: conteúdos bem definidos, métodos e técnicas adequados, material didático apropriado, enriquecimento de informações reais, liberdade de criação e de expressão. Não há uma receita pronta e infalível para educar esta ou aquela criança. O alfabetizador tem de conhecer o educando que tem diante de si e sobre o qual recai sua atenção pedagógica. No preparo e na coerência da prática docente pode-se encontrar solução para grandes problemas. 30 FUNDAMENTOS DA ALFABETIZAÇÃO: UMA CONSTRUÇÃO SOBRE QUATRO PILARES I - INTRODUÇÃO O conhecimento humano forja-se na fusão de muitos elementos, saberes múltiplos que determinam a natureza do patrimônio adquirido. Aspectos de diferentes ordens agregam-se, fatores de diferentes esferas crescem em grau de importância, cruzam-se áreas, entrelaçam-se ciências; nasce a “consciência do saber”. O pensamento torna-se instrumento de transformação, ponto de apoio em cujo cerne repousa o poder criador, o senso estético, a formulação de conceitos, a fonte geradora do raciocínio lógico, como também extravasamento da emoção. A educação enfeixa em si a multiplicidade de um conjunto de enriquecimento de largo espectro, que trabalha sobre objetos materiais e imateriais. A cognição, a cultura, o desempenho corporal e a afetividade mesclam-se, promovendo a inteireza de um projeto educacional que conduz o homem à inserção na sociedade, fazendo dele um membro efetivo e responsável pelo papel social que lhe cabe dentro do grupo a que pertence. O processo de alfabetização coloca educadores e educandos diante de um amplo campo de aquisições. É uma construçãomultifacetada, uma etapa onde os desafios andam lado a lado com as descobertas e com a busca da autoconfiança. Aquele que se alfabetiza desvela segredos, soluciona enigmas, desvenda mistérios, conquista espaços. Aquele que alfabetiza rasga horizontes, oferece oportunidades, desata nós, solta amarras. É uma fase de profundas mudanças, de incontáveis ganhos, mas que impõe constante reflexão e aprimoramento. Esperamos que este trabalho traga alguma contribuição aos alfabetizadores que pretendem atuar no atendimento a crianças cegas. Ao longo do seu desenvolvimento, discutiremos a necessidade da adoção de uma linha pedagógica mais aberta, novos procedimentos didáticos e os fundamentos essenciais que levam o alfabetizando a perceber com 31 maior consciência e prazer a construção da escrita e da leitura, aquisições primordiais para ser ingresso no processo educativo dentro de padrões mais rígidos. O período da alfabetização finca as bases da aprendizagem. A relevância que lhe devemos conferir é ilimitada. Lembremo-nos de que, no decurso desse processo, desenvolve-se um indivíduo. Faz-se imperativo, portanto, trabalhar para que se integrem satisfatoriamente os vários compartimentos que compõem esse ser em estágio de crescimento humano e intelectual. AS DIFERENTES FACETAS DA ALFABETIZAÇÃO É importante que os professores alfabetizadores tenham uma formação diversificada e sólida para que possam compreender em profundidade os mecanismos intrínsecos e extrínsecos do processo de alfabetização. Dentro da vida escolar, é inquestionável ser esse período aquele que suscita maiores dúvidas e pede cuidados especiais. O alfabetizando é o indivíduo no “estado bruto”. Através de muitos estudos e de diversos enfoques, sabe-se que, ao chegar à escola, a criança já traz consigo um considerável conjunto de saberes. Entretanto, essa bagagem de conhecimento armazenou-se sem um direcionamento verdadeiramente educacional. A aprendizagem, nesse caso, ocorreu empiricamente, sem haver o rigor de qualquer sistematização. Levando-se tal fato em conta, é preciso que o professor descubra na criança suas reais potencialidades, respeite sua cultura de origem e compartilhe com ela o acervo que lhe pertence e que foi acumulado desde o nascimento. Esse procedimento integra, efetivamente, o alfabetizando ao processo educativo. É uma tarefa de fôlego e que reclama uma permanente atitude de vigilância. Compreende-se então que, para lograr êxito, o alfabetizador necessita perceber uma permanente atitude de vigilância. É preciso formar melhor os professores, é preciso mostrar-lhes a importância de um bom embasamento profissional a fim de que seu desempenho junto ao aluno seja realmente satisfatório. Quando se alfabetiza, transmitem-se os fundamentos que estruturam uma determinada língua. Desse foco de análise, a estrutura linguística, ramificam-se algumas variáveis como o ambiente social, a herança cultural, os registros locais da fala, fatores de ordem física e até emocionais, que ajudam a compreender a intrincada aquisição da faculdade de ler e escrever. A educação, como via de desenvolvimento e superação de obstáculos, determina ações conscientes e planejadas no sentido de que o processo educativo ganhe corpo e exerça funções bem definidas. Quando se educa, firmam-se compromissos, responsabilidades são assumidas. 32 Entende-se assim, que o professor não deve ser um mero repassador de informações, um simples repetidor de modelos já experimentados e de conteúdos diversos e, muito menos, uma presa ingênua de modismos educacionais estéreis. Seu papel é muito mais relevante. De sua atuação, exige-se desenvoltura, de sua prática pedagógica, impõe-se uma compreensão exata e profunda do ofício que exerce. Na caminhada educacional de uma criança cega, podem ocorrer inúmeras dificuldades que, se não forem sanadas a tempo, hão de trazer-lhe graves prejuízos e, às vezes, irrecuperáveis danos. As pesquisas demonstram, a partir dos estudos de Jean Piaget (1971), que a função cognitiva de crianças portadoras de deficiência visual desenvolve-se bem mais lentamente, comparando-se com o desenvolvimento de crianças videntes. Assim, é normal observar-se alguma falha do desenvolvimento entre os aspectos operacional e simbólico do seu pensamento. Isto traz, como consequência mais séria, a dificuldade na formulação de conceitos. As pesquisas enfatizam a necessidade de as crianças cegas terem experiências físicas e diretas com os objetos reais e interagirem verbalmente com adultos e também com crianças, membros do seu próprio grupo para aprenderem sobre o “mundo” que as rodeia. A obra de Piaget oferece à educação especial uma base de referência para o entendimento das manifestações comportamentais e do funcionamento cognitivo. Tais estudos a respeito do desempenho do pensamento ajudam a compreender o potencial intelectual de crianças cegas e a analisar as estruturas e os processos do pensamento pré-operacional e operacional. Afirma Lowenfeld (1977): “Uma operação é definida como uma ação capaz de ocorrer internamente, e da qual, segundo Piaget, a característica essencial é a reversibilidade”. (pág. 302) Isto serve de dado para que se possa diferenciar mais facilmente entre o potencial intelectual e certas deficiências na imagem mental simbólica. Estudos nesse campo parecem indicar que crianças cegas sofrem um atraso no seu desenvolvimento, isto é, há uma comprovada lentidão no desenvolvimento através dos diferentes estágios evolutivos. Dessa forma, pode abrir-se uma lacuna de desenvolvimento entre o aspecto operativo e figurativo do pensamento. O conhecimento dos atrasos, das falhas cognitivas e das dificuldades de formar conceitos simbólicos leva os professores a compreenderem como se dá o processo de aprendizagem da maioria das crianças cegas e as dificuldades que nele se verificam. Conhecer as necessidades desse educando é a base do trabalho na sala de aula. 33 Compreender as condições de aprendizagem desse educando é o ponto de partida para que a ação pedagógica se faça dentro de uma visão mais crítica e consequente. Promover o crescimento global desse educando é a luta pela consecução de um objetivo humanístico, a realização de um projeto de cidadania que visa à construção de um indivíduo inteiro e capaz de suplantar limites e de enfrentar impossibilidades. O educador precisa estar cônscio da grandeza e da complexidade dessa empreitada, deve ser um observador severo de si mesmo, necessita ficar atento à trajetória evolutiva do aluno, tem de ser um estudioso permanente da área educacional em que milita. ASPECTOS EDUCACIONAIS IMPORTANTES Percebe-se, desde muito cedo, que a criança cega vai deparar-se com sérios entraves nas etapas evolutivas do seu desenvolvimento. Não havendo um trabalho criterioso e imediato de estimulação dos sentidos remanescentes e um adequado programa de psicomotricidade dirigido às dificuldades naturais trazidas pela cegueira, essa criança sofrerá, certamente, perdas significativas no armazenamento de conhecimentos e na aquisição de capacidades. Tais déficits deverão ser o mais rápido possível trabalhados ou mesmo evitados. Avalia-se mais profundamente essa questão quando se faz o cotejo entre o processo evolutivo de uma criança vidente e de uma criança cega. Com referência à incursão pelo “caminho da escrita”, nota-se que a criança vidente se apropria desse bem cultural sem que disso se dê conta. Os “objetos de escrita” ali estão ao seu redor, ao alcance de sua mão, fazendo parte do seu cotidiano. Caneta, lápis, giz, etc. são instrumentos de descobertas, veículos mágicos que estimulam sua curiosidade e instigam sua imaginação. Pelo fenômeno da imitação, a criança, ainda muito pequena, penetra no “mundo da escrita”; reproduzindo atos, incorporando atitudes, formando juízos a partir
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