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Introdução aos estudos históricos LUCIANA LAMBLET 1ª Edição Brasília/DF - 2018 Autores Luciana LAMBLET Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Livro Didático....................................................................................................................................... 4 Introdução ............................................................................................................................................................................. 6 Capítulo 1 O que é História? .......................................................................................................................................................... 7 Capítulo 2 O ofício do historiador ..............................................................................................................................................14 Capítulo 3 História: fatos, causalidade e verdade .................................................................................................................25 Capítulo 4 A relação entre História e memória .....................................................................................................................36 Capítulo 5 A história também tem sua História ....................................................................................................................48 Capítulo 6 Historiador no Brasil: debates contemporâneos .............................................................................................62 Referências ..........................................................................................................................................................................68 4 Organização do Livro Didático Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. 5 ORgAnIzAçãO DO LIvRO DIDátICO Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 6 Introdução Neste Livro Didático, você terá a oportunidade de conhecer a História como ciência, suas interseções com outros campos de conhecimento e a natureza do ofício do historiador. Mais do que saber fatos sobre o passado, a História nos instrumentaliza a compreendê-los. Mas não entenda a História como uma ciência que olha apenas para trás; você perceberá neste Livro Didático que ela também tem instrumentos que o ajudam a compreender o tempo presente. Objetivos Este Livro Didático tem por objetivos: » Discorrer sobre objetos, fontes e ofício do historiador. » Compreender os conceitos de fatos, causalidade e verdade. » Refletir sobre a relação entre História e memória. » Conhecer a história da História. 7 Apresentação Quando você contou aos seus amigos e familiares que faria Faculdade de História, provavelmente alguns deles lhe fizeram a seguinte pergunta: por que e para que se estuda História? Questionamentos que normalmente não são feitos aos estudantes de Medicina, Direito ou Arquitetura. A dificuldade de muitas pessoas em compreender o sentido de se pensar historicamente e de conhecer o passado tem inúmeras origens; porém, cabe a nós, professores da disciplina, diminuir essa distância entre o conhecimento histórico produzido academicamente e o conhecimento que circula entre os diletantes. Isso somente ocorrerá quando tivermos clareza sobre o que faz o historiador, qual o seu ofício, quais as especificidades do campo da História, o que nos une e o que nos aproxima das demais ciências humanas e como podemos atuar cotidianamente nas nossas salas de aula e fora delas. Este primeiro capítulo pretende ser uma contribuição às respostas a tais questionamentos, visando compreender o que é História e qual o papel do historiador. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de: » Definir o que é História. » Compreender o campo específico do historiador. Como definir História? Definir História pode, a princípio, nos parecer algo fácil. De forma geral, as pessoas associam os estudos históricos ao estudo do passado. Mas será mesmo apenas isso? Em primeiro lugar, estamos falando em passado do quê ou de quem? O que significa afirmar que estudamos o passado? 1CAPÍTULOO QUE É HIStÓRIA? 8 CAPÍTULO 1 • O QUE É HIStÓRIA? Provocação De forma geral, nos é questionada a importância e a relevância da História para o cotidiano e para os dias atuais. Por que olhamos para trás? Em que o passado pode ajudar o presente? A seguir seguem trechos de um artigo do historiador britânico Eric Hobsbawm, em que serão levantadas algumas provocações sobre tais questionamentos. O que a História tem a nos dizer sobre a sociedade contemporânea? [...] Durante a maior parte do passado humano – na verdade, mesmo na Europa Ocidental, até o século XVIII –, supunha-se que ela pudesse nos dizer como uma dada sociedade, qualquer sociedade, deveria funcionar. O passado era o modelo para o presente e o futuro. [...]. Daí o significado do velho, que representava sabedoria não apenas em termos de uma longa experiência, mas da memória de como eram as coisas, como eram feitas e, portanto, de como deveriam ser feitas. [...] [...] Admito que, na prática, a maior parte do que a história pode nos dizer sobre as sociedades contemporâneas baseia-se em uma combinação entre experiência histórica e perspectiva histórica. [...] [...] Por que [...] todos os regimes fazem seus jovens estudarem alguma história na escola? Não para compreenderem sua sociedade e como ela muda, mas para aprová-la, orgulhar-se dela, serem ou tornarem-se bons cidadãos dos EUA, da Espanha, de Honduras ou do Iraque. E o mesmo é verdade para causas e movimentos. A história como inspiração e ideologia tem uma tendência embutida a se tornar mito de autojustificação. Não existe venda para os olhos mais perigosa que essa, como demonstra a História de nações e nacionalismos modernos. É tarefa dos historiadores tentar remover essas vendas ou pelo menos levantá-las um pouco, ou de vez em quando,e, à medida que o fazem, poder dizer à sociedade contemporânea algumas coisas das quais ela poderia se beneficiar, ainda que hesite em aprendê-las. [...] (HOBSBAWM, Eric, 1998, p. 37-48) A partir dos trechos anteriores, seguem algumas questões para uma reflexão inicial: Se a História não deve ser vista como um modelo, nem para o passado e nem para o futuro, o que é e para que serve a História? De que forma a História pode ser utilizada por nações e nacionalismos, como aponta Hobsbawm? Como as sociedades contemporâneas poderiam se beneficiar com o conhecimento histórico? O historiador francês Marc Bloch (1997) contribuiu muito para que repensássemos o ofício do historiador. Em primeiro lugar, Bloch critica a tradicional visão de que História é simplesmente a ciência do passado, pois tal afirmativa retira do historiador os seus dois objetos centrais: o homem e o tempo. Dessa forma, o autor sugere que entendamos a História como a ciência dos homens no tempo. Ou seja, nosso objeto é o homem, mas não qualquer homem, como um ser único e comum, mas o homem em um determinado tempo histórico, na sua temporalidade específica. Tal assertiva merece, ainda, que nos debrucemos sobre ela, pois estudar os homens no tempo não é tão simples assim. Esse exercício exige de nós uma série de cuidados que perpassará toda a nossa disciplina. O primeiro cuidado que devemos ter é o que Bloch chama de “ídolo das origens”: a tentativa de explicar um fenômeno histórico buscando no passado a resposta, num eterno movimento 9 O QUE É HIStÓRIA? • CAPÍTULO 1 de causalidade. Segundo o autor, se seguirmos esse caminho chegaremos a Adão e Eva para explicarmos nosso contexto atual. O que Bloch pretende nos dizer é que encontramos a explicação de um determinado fenômeno histórico dentro do estudo do seu momento e não fora dele. Vamos a um exemplo? Se quisermos compreender o contexto europeu que levou à Grande Guerra devemos buscar as respostas na Europa oitocentista e nos anos iniciais do século XX, nos seus conflitos, nas suas tensões e animosidades, nos sistemas econômicos, sociais e políticos que regem seus países e nas relações internacionais entre eles. Pouco nos ajudaria retornarmos às disputas napoleônicas ou à Revolução Francesa e seus ideais espalhados pelo território europeu. Muito menos seria vantajoso nos remeter à formação das monarquias absolutistas europeias e às disputas territoriais entre esses Estados Nacionais. É o próprio contexto da Grande Guerra que nos ajudará a compreendê-la. É no momento em que ela se deu que estarão as respostas para o caminho do conflito mundial. Essa ideia de Marc Bloch parte do princípio na crença em um provérbio árabe: “Os homens se parecem mais com o seu tempo que com os seus pais” (BLOCH, 1997, p. 94). Com isso, o autor acredita que as pessoas são frutos do seu tempo histórico, sem esquecer que, ao mesmo tempo em que se parecem com seu tempo, também constroem um novo tempo, uma nova sociedade. Isso porque não somos meros reflexos da sociedade à qual pertencemos, somos também agentes históricos, influenciamos e somos influenciados pelos sistemas econômico, político e social aos quais pertencemos. Marc Bloch não percebe a sociedade de forma estática, parada, mas em um eterno movimento que é realizado pelos seus agentes históricos: nós mesmos e nossos homens no tempo (nossos objetos de pesquisa). Para refletir A tentativa de compreender o que é História não vem apenas dos historiadores. Poetas, compositores e dramaturgos também contribuíram para compreender melhor a nossa disciplina. Veja, a seguir, o exemplo da canção interpretada por Chico Buarque de Hollanda: E quem garante que a História É carroça abandonada Numa beira de estrada Ou numa estação inglória A História é um carro alegre Cheio de um povo contente Que atropela indiferente Todo aquele que a negue É um trem riscando trilhos Abrindo novos espaços Acenando muitos braços 10 CAPÍTULO 1 • O QUE É HIStÓRIA? Balançando nossos filhos Canción por unidad latinoamericana Pablo Milanés – versão de Chico Buarque/1978 O que você achou dessa definição de História? Por que o compositor afirmaria que a História atropela quem a negar? Além de já ter ouvido que a História é a ciência do passado, provavelmente já lhe disseram que estudamos História para compreender o nosso presente. Tal afirmativa não está de toda incorreta; na verdade, podemos dizer que ela está incompleta. Se, como nos diz Bloch, a ignorância do passado nega a compreensão do presente, também ela compromete a ação futura. Se não compreendemos o nosso presente, como podemos refletir criticamente sobre ele e propor ações e alternativas futuras? O historiador espanhol Josep Fontana escreveu um livro intitulado História: análise do passado, projeto social (1998), que resume bem a ideia lançada por Bloch. O conhecimento e a análise do nosso passado nos permite lançar bases para um projeto que desejamos para nós e para as gerações posteriores. Essa é a relação que podemos traçar entre História, passado, presente e futuro. Portanto, cuidado! Muitas vezes nossos alunos nos questionam sobre a “função” da História e é por aí que podemos encaminhar a nossa resposta. Também é muito comum sermos indagados se conhecendo o passado podemos prever o futuro. E a resposta claramente é não, não fazemos previsões futurísticas. E por quê? Porque, como vimos, as sociedades estão em constantes transformações, não são as mesmas; por isso, a História não se repete, não se dá como em um ciclo. A relação entre História e presente não se encerra aí. Ela é uma estrada de mão dupla. Ao mesmo tempo em que conhecer o passado contribui para a nossa compreensão do presente, conhecer o presente também corrobora para a compreensão do passado. Como? A resposta está no próprio sujeito do conhecimento: quem analisa o passado é o historiador, e ele é uma pessoa do presente e que, portanto, sofre influências e influencia a conjuntura em que vive. Assim, quando esse historiador olha para o passado, ele olha a partir da sua visão de mundo, do seu contexto histórico e faz perguntas ao passado a partir das suas vivências e experiências. Você conseguirá compreender melhor essa questão ao longo do curso, quando perceber que a um determinado fenômeno histórico podem ser atribuídas diversas análises, até mesmo bastante contraditórias. Isso porque a História é escrita por pessoas que carregam em si subjetividade. Quando estudamos e escrevemos sobre algum assunto, não deixamos para trás quem nós somos. Embora tentemos buscar o máximo de objetividade possível, sabemos que não conseguiremos alcançar a objetividade pura. Isso porque a História não é uma ciência pura, completamente objetiva. Ela carrega consigo um quê de subjetividade e de interpretação. 11 O QUE É HIStÓRIA? • CAPÍTULO 1 Prova disto é a afirmativa de Marc Bloch que o historiador faz escolhas. Tais escolhas se iniciam logo no primeiro momento da pesquisa: qual será meu corte cronológico? Que região abarcarei? Qual base teórica escolherei? Que metodologia seguirei? Estudarei grandes personagens ou trabalhadores anônimos? Optarei por História política, econômica ou cultural? Farei uma História a partir da perspectiva de gênero? Todas essas questões implicam realizar escolhas. E todas as escolhas envolvem subjetividade. Portanto, seria muito improvável escrever História puramente a partir de critérios objetivos. Atenção, isso não quer dizer que a História possa ser escrita como um livro de literatura, um romance ou poesia. História não é ficção, ela se utiliza de métodos (assunto que será estudado por você em outra disciplina) por rigor acadêmico, por pesquisa científica. Ela não é invenção, mas é, também, interpretação e análise, portanto, carrega um pouco de subjetividade. Provocação Como estamos discutindo, a História não é uma ciência neutra, puramente objetiva. Não negamos a ela o toque – e até mesmo a importância – da subjetividade. Issonos leva a outras questões: se não há objetividade absoluta, quem “decide” quais datas são importantes e se transformam em feriado? De onde vêm nossos heróis? Quem os escolhe? Essas questões são importantes para serem lançadas aos nossos alunos e ajudam a desnaturalizar as “datas importantes” e os feriados cívicos. Observe a charge a seguir e reflita sobre a crítica ali inserida. Qual a relação entre a galeria de heróis e as ovelhas? O que o autor da charge está querendo nos dizer? (http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=5455, último acesso em 20/08/2014) A seguir, seguem trechos em que o historiador Jamie Pinsky (2013) levanta pontos interessantes para essa discussão: De heróis e de História [...] Mitos de origem não são, pois, privilégios das nações – já que ocorrem nas religiões e nas famílias -, mas é aí que vemos o passado idealizado ser mais cultuado. Grandes nações não se conformam com um presente brilhante, precisam elaborar uma origem diferenciada, especial. Histórias fantásticas são criadas para sustentar passados desejados, nomes de pais e 12 CAPÍTULO 1 • O QUE É HIStÓRIA? mães da pátria são repetidos geração após geração, a ponto de fazer parte do imaginário coletivo. Heróis são glorificados (até santificados, como no caso de Joana D’Arc), sua presença é tão viva e próxima que questionar a perfeição deles provoca comoção e revolta entre a maioria de seus adoradores incondicionais. Há mesmo que se tomar certo cuidado ao se discutir a humanidade – e, portanto, as falhas – desses heróis. E no Brasil? Os mais velhos haverão de se lembrar de uma série de atividades assim chamadas “cívicas” que permeavam a vida dos estudantes há mais de quarenta anos: estudavam-se hinos, não só nosso belo, mas longo hino principal, como os da bandeira, da Independência e muitos outros. Nosso pendão (ou lábaro, como se dizia) era hasteado em diversas ocasiões, e as pessoas sabiam de cor o hino apropriado a cada solenidade. Dia 7 de setembro, na Sorocaba da minha adolescência, era dia de todos os colégios desfilarem: metade da cidade assistia, sob um sol inclemente, aos milhares de alunos que estufavam o peito e batiam com força o pé esquerdo no ritmo da fanfarra. O regime militar, instaurado em 1964, levou esse “civismo” ao extremo, diminuindo as aulas de História e criando uma aberração típica de ditaduras chamada “educação moral e cívica”. Como dizia o nome, o conceito era inculcar aquilo que os militares e seus aliados consideravam moral e cívico, com destaque para a comemoração dos feitos de Caxias e do aniversário do que eles chamavam de “Revolução” de 31 de março. [...] A tentativa de militarização do civismo resultou, a médio prazo, na negação do próprio civismo, tido e havido como coisa de militares reacionários e chauvinistas. O resultado da ópera é que, confundindo o bebê com a água do banho, as escolas e a população, como vingança, desenvolveram pouco apego à bandeira, não sabem cantar sequer o Hino Nacional e as pessoas acabam não cultivando as representações da identidade nacional. [...] Afinal, com todos os defeitos que possam ter tido, figuras como Tiradentes e José Bonifácio dedicaram grande parte do seu tempo e energia em favor de interesses coletivos. Suas figuras podem voltar a funcionar como elementos definidores do nosso passado comum – e a consciência do passado comum é que identifica os cidadãos de uma nação. Claro que junto a esses devemos trabalhar com figuras igualmente representativas de diferentes setores de nossa população, talvez alguém como Zumbi, Anita Garibaldi, elementos representativos das culturas indígenas e dos imigrantes que ajudaram a construir este país, assim como gente da cultura tipo Carlos Gomes e Villa-Lobos, Machado de Assis e Graciliano Ramos, e por aí afora. Agora, em pleno estado de direito, já é hora de repensar nossos símbolos. Exaltar nossos heróis, oferecê-los como traço positivo de união nacional e motivo de orgulho não precisa ser algo que faça referência a governantes ou mesmo ao Estado. Pode, simplesmente, estreitar os elos entre o povo e sua nação. (PInSKY, 2013, pp. 44-46) Pense no seu tempo de aluno do ensino básico e reflita acerca de símbolos e heróis que foram exaltados. Que importância e significado tais elementos tiveram na construção da sua identidade nacional e da sua cidadania? Como professor de História, você acredita na importância da construção de símbolos e heróis para a aprendizagem do processo histórico do Brasil? Por quê? Em suma, como Bloch nos apontou, podemos afirmar que as experiências do presente contribuem para a reconstrução do passado. O que quer dizer que o passado em si não se modifica, mas o conhecimento do passado é coisa em progresso, em mudança, em movimento. Ele se transforma porque os historiadores se transformam, possuem diferentes visões de mundo, estudaram em diferentes universidades, experimentaram diversas realidades materiais, escreveram e estudaram em espaços e tempos diferenciados. Tal fato é fácil perceber quando estamos em uma livraria. Se solicitarmos um livro sobre escravidão no Brasil, por exemplo, provavelmente o atendente trará vários títulos, de diversos autores, sendo eles historiadores ou não, brasileiros ou estrangeiros. Faça o teste de casa mesmo. Entre no site de uma boa livraria e escreva uma palavra-chave, como escravidão ou escravo, e veja quantas 13 O QUE É HIStÓRIA? • CAPÍTULO 1 opções de compra você terá. Isso ocorre porque nenhum tema se esgota em si mesmo e, no caso citado, do século XIX até os dias atuais muitos historiadores em diferentes contextos olharam para a escravidão carregando consigo suas experiências e vivências. Para refletir Observe o quadrinho a seguir. Nela, Calvin afirma que “História é uma ficção que nós criamos para nos persuadirmos que os eventos são conhecíveis e que a vida tem ordem e direção”. (http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/mylinks/singlelink.php?com_mode=flat&com_order=0&lid=21282&cid=13, último acesso em 15/08/2014) O que você acha dessa afirmação? Você concorda com ela? Por quê? Sintetizando Vimos até agora: » A História é a ciência do homem no tempo. Isso significa que a disciplina possui metodologia científica e que seu objeto de estudo é o homem em um determinado tempo histórico. » A História se relaciona com o passado, o presente e o futuro. Sendo análise do passado, a disciplina contribui para o conhecimento do presente (sem esquecer da relação de mão dupla). Conhecendo melhor o nosso presente, podemos traçar projetos para o futuro de forma mais consciente. » O historiador é alguém que atua no presente; por isso, conhecer a própria realidade contribui para a compreensão das perguntas que fazemos ao passado. » O historiador é uma pessoa que, como qualquer outra, carrega subjetividades. Assim sendo, não há a possibilidade de uma História neutra, plenamente objetiva. 14 Apresentação Neste capítulo discutiremos um ponto fundamental para o ofício do historiador: as fontes históricas e como devemos trabalhar com elas. É importante salientar que, por ora, a disciplina apenas o introduzirá na discussão das fontes, que será aprofundada em outras disciplinas, tais como Teoria e Metodologia da História. A forma como o historiador escolhe, trabalha e analisa as suas fontes irá influenciar diretamente na sua escrita e pesquisa histórica. Da mesma forma, um professor que consiga apresentar essas fontes históricas aos seus alunos e estimular a sua análise também perceberá mudança significativa no processo de ensino-aprendizagem. A seguir, discutiremos aquilo que o historiador Marc Bloch (1997) denominou “os pecados do historiador”, ou seja, perspectivas que devemos evitar quando estamos analisando as nossas fontes, seu tempo histórico e as relações sociais ali presentes. Ao final, propomos a você que pense e analise algumas fontes históricas: cartas, músicas e peças teatrais. Objetivos Esperamos que, após o estudodo conteúdo deste capítulo, você seja capaz de: » Identificar o que é uma fonte histórica. » Diferenciar o ato de compilar do ato de analisar fontes. » Compreender a necessidade de evitar julgamentos e anacronismos no estudo da História. » Perceber as diversas possibilidades de fonte histórica. 2CAPÍTULOO OFÍCIO DO HIStORIADOR 15 O OFÍCIO DO HIStORIADOR • CAPÍTULO 2 As fontes históricas Um ponto central no que diz respeito ao ofício do historiador é a sua relação com as fontes históricas. O que são fontes históricas? O que pode ser considerada fonte histórica? E o que não pode ser considerada fonte histórica? Quais são os critérios para selecionarmos uma fonte? Podemos começar a responder tais questões retornando ao capítulo anterior. Se a História é a ciência dos homens no tempo, as fontes históricas podem ser tudo aquilo que o homem produziu em seu tempo. E produção aqui não se resume apenas à transformação de matéria-prima em bens de consumo, mas tudo o que ele tocou e transformou. Nesse sentido, leis, manuscritos, discursos oficiais têm o mesmo valor para nós historiadores que cartas, diários, música, cinema, teatro e literatura. Pintura, dança, jornais, revistas, selos, enfim, tudo que a humanidade produziu se transforma em fonte histórica na mão do historiador. Já a seleção dessas fontes em uma determinada pesquisa histórica dependerá de múltiplos fatores: qual o seu objeto de pesquisa? Qual a sua problematização? Qual a sua base teórica e metodológica? Tais questões você aprofundará em outras disciplinas, como a de Metodologia. O que é importante considerarmos aqui é que não há uma hierarquia “natural” das fontes. Um manuscrito oficial, produzido por um determinado governo, não é mais “verdadeiro” e “confiável” que um poema escrito por um jovem trabalhador. Importante compreender que não há um grau de valoração entre as fontes; nenhuma é mais importante que a outra por princípio. O que irá determinar a seleção das fontes será o seu objeto de pesquisa e a sua metodologia, não o valor intrínseco do corpus documental. Um ponto fundamental levantado por Marc Bloch (1997) em relação às fontes é que a investigação histórica não é simplesmente um registro do que dizem as testemunhas. Ou seja, um bom historiador não é simplesmente um compilador de fontes, ele deve ir além da junção dos testemunhos: ele deve questionar as fontes, deve fazer perguntas a elas. Isso porque as fontes não falam por si mesmas, elas devem ser interrogadas. O que quer dizer que não há observação passiva: o historiador não olha para a sua fonte esperando que ela lhe diga alguma coisa, pois elas só falam se soubermos interrogá-las. Um exemplo é sempre esclarecedor. Suponhamos que daqui a duzentos anos um historiador deseje estudar a nossa sociedade atual. Ele escolhe começar pela nossa Constituição promulgada em 1988. Lá ele encontrará que o Estado deve garantir moradia e educação para todos. Se ele não perguntar, não questionar, chegará à conclusão que no Brasil, na década de dez dos anos dois mil, não havia moradores de rua e nem mesmo crianças e adolescentes fora da escola. É isso mesmo que ocorre? 16 CAPÍTULO 2 • O OFÍCIO DO HIStORIADOR Se for um bom historiador, escolherá outras fontes (jornais, por exemplo) e verá que mesmo com garantias constitucionais havia ainda moradores de rua e jovens sem estudar. E poderá se questionar: por que a lei não se fazia cumprir? Quais as dificuldades? Quais os interesses e conflitos que estavam por trás do não cumprimento da Constituição? Agora, observe a tirinha a seguir: (http://www.gramsci.org.ar/mafalda/mafalda.htm, último acesso em 30/08/2014) Nela, a personagem Mafalda lê no dicionário a definição de “Democracia”, solta uma gargalhada e não consegue mais parar de rir. Por que você acha que isso ocorreu? Porque ela observou que a definição da palavra não condiz com a realidade em si. Podemos dizer que, de certa forma, Mafalda fez a crítica da fonte. Ela não aceitou simplesmente o que estava escrito, ela observou o real e chegou à conclusão de que os dois aspectos (a definição e a sua realidade) não condiziam. O fundamental é não olharmos para um testemunho como uma fonte de verdade inquestionável, pois “até o policial mais ingênuo sabe que não se deve forçosamente acreditar naquilo que as testemunhas dizem” (BLOCH, 1997, p. 122). Bloch aqui nos alerta para algo essencial: a importância de saber duvidar. A dúvida deve estar na pergunta mais básica: essa fonte é verídica ou construída posteriormente, falsificada? Até nas questões mais profundas: quem a elaborou? Para quem? Quais interesses estavam por trás? Quem é o emissor, qual a mensagem e quem foi o receptor? É a isso que o historiador francês chama de crítica das fontes. Para refletir O historiador Jaime Pinsky também se preocupa com a necessidade de questionar as fontes e não somente reproduzi-las. Nos trechos a seguir, retirados do livro Por que gostamos de História (2013), você poderá analisar um exemplo dessa perspectiva, ainda que o autor se refira a um trabalho jornalístico: 17 O OFÍCIO DO HIStORIADOR • CAPÍTULO 2 Notícias de jornal [...] Para que a dignidade do registro não fique comprometida, o jornalista não pode reproduzir acriticamente releases de empresas, governos, ONGs, órgãos de classe e demais materiais produzidos por assessores de imprensa. Esse material pode ser ponto de partida para a elaboração da matéria, nunca ponto de chegada. E a prova de que esses releases são utilizados com muita frequência se evidencia em diversas matérias publicadas nos jornais não só com a mesma informação, ou orientação, mas até mesmo com a mesma redação. Copiar e colar é um comodismo que não condiz com o compromisso, com a verdade. Exemplo recente disso? Um conhecido e respeitado jornal da capital paulista, no início de 2011, estampava o resultado de uma pesquisa realizada pela fundação Perseu Abramo, segundo a qual teria havido, de alguns anos para cá, uma queda no número de mulheres agredidas por seus parceiros: “apenas” cinco a cada dois minutos, contra oito nos mesmos dois minutos, em pesquisa realizada anos atrás. O jornal ainda “informava” que um dos principais motivos das agressões era “o ciúme”. Não conheço a pesquisa, mas mesmo que ela tenha apontado o ciúme como uma das principais razões das agressões, não é difícil entender que ciúme não mata nem agride; o que mata e agride é o sentimento de propriedade que muitos homens ainda têm com relação às suas esposas, companheiras ou namoradas (algo que se estende a muitas ex-esposas, ex- companheiras e ex-namoradas). Um jornalista (e um editor?) um pouco mais cuidadoso diria, no mínimo, que ciúme foi o motivo alegado pelos agressores, o que muda muito, não é? Se o número de mulheres agredidas baixou, será que o sentimento de ciúmes teria baixado ou a sociedade está tendo sucesso em reprimir a violência, ou ainda, será que, finalmente, uma parcela de homens está percebendo que relações homem-mulher não podem mais ser baseadas em sentimentos e manifestações de posse? Mesmo assim, fazendo uma simples continha “de vezes”, continuamos tendo no Brasil cerca de 1 milhão e meio de mulheres agredidas por ano! Mas nada disso parecia relevante para o jornal. O historiador, necessariamente, deve lidar com esses dados (de fontes primárias e devidamente checados) dentro de uma perspectiva mais ampla da relação homem-mulher na história. Trabalhando com séries de dados confiáveis poderá entender o que se passou e, talvez, perceber tendências. E arriscar. Afinal, não só os economistas têm o direito de errar sobre o futuro. (PInSKY, 2013, pp. 38-39) A partir da leitura anterior, reflita: O jornalista realizou a crítica das fontes? Por quê? Ao transcrever apenas o que as testemunhas disseram no que isso pode ter prejudicado a análise? Como o historiador deveria abordar a questão, segundo Pinsky? Assim, o que está por trás desta relação entre historiador e fonte histórica é “o que procuramosconhecer”. Para explicar essa questão, Bloch recorre à metáfora do médico. Segundo o historiador, um médico, ao adentrar o quarto de um paciente, percebe seu estado, afere sua pressão, confere sua temperatura, examina seus olhos, garganta e reflexos. Provavelmente, ao sair do cômodo não saberá descrever a cor da cortina, os quadros, ou maiores detalhes do quarto. Isso porque apenas somos capazes de ver e ouvir bem aquilo que procuramos conhecer. Assim deve acontecer também com o historiador em relação à sua fonte, ao seu objeto de pesquisa: deve ver e ouvir profundamente em busca daquilo que deseja conhecer. 18 CAPÍTULO 2 • O OFÍCIO DO HIStORIADOR De forma geral, Bloch nos atenta que não há uma receita pronta para a crítica das fontes. Inicialmente, o que devemos “testar” é o princípio da contradição e o afastamento da prática comum: a escrita de tal testemunho é compatível com a forma de escrever de sua época? Ao contrapor com demais testemunho há contradições? Que tipo de contradições? Como elas aparecem e como afetam a pesquisa histórica? Saiba mais Em geral, olhamos os museus, centros de cultura e galerias de arte como espaço que abrigam fontes históricas. Assim, estariam depositados ali material para a análise de historiadores e visitantes. No entanto, tais espaços por si mesmos podem ser compreendidos como fontes históricas. Sim, podemos ter como análise a própria história e estrutura física do museu como objeto de pesquisa. O historiador Peter Burke em uma coluna para o jornal brasileiro Folha de São Paulo nos brinda com algumas reflexões acerca dessa temática. Observando museus Da próxima vez que entrar num museu, seja o do Ipiranga, o Louvre ou o Britânico, reserve algum tempo para observá-lo em si. Os museus são muito mais do que mero receptáculos dos objetos exibidos. Têm história e podem nos contar muita coisa sobre a época em que foram construídos. Um museu era orginalmente um lar para as Musas. A partir do Renascimento, o termo foi aplicado a coleções particulares de antiguidades, pinturas e criaturas exóticas, como crocodilos, tatus e peixes tropicais, que os europeus consideravam maravilhas da natureza. As coleções de alguns reis atingiram proporções enormes. Depois de 1789, porém, houve um movimento para abrir as galerias reais, aristocráticas e eclesiásticas e tornar seus tesouros mais disponíveis ao público (mais ou menos identificado com a classe média). [...] O sistema clássico precisa ser colocado na perspectiva histórica. Foi estabelecido por uma mistura de razões. Havia o ideal revolucionário de democratizar as artes, de arrebatar a cultura dos príncipes e torná-la disponível para um público mais amplo. [...] Os principais arquitetos eram empregados para projetar esses edifícios. O museu do Ipiranga, com suas estátuas dos heróis da história nacional e suas esferas de vidro contendo água dos principais rios brasileiros, faz parte de uma tendência internacional, a da construção de edifícios majestosos com a função de reforçar a identidade de uma nação (ou império), colocando seus tesouros em exibição pública. As novas instituições também refletiam uma preocupação dos líderes nacionais com a educação do povo, especialmente da classe operária urbana. O Victoria and Albert Museum foi fundado pelo casal real na época da Grande Exposição de 1851 a fim de encorajar as artes aplicadas, ou industriais, tornando exemplos tradicionais mais acessíveis aos artesãos. [...] Os principais museus eram apresentados ao público como palácios da cultura, templos para o culto das artes, locais sagrados ao qual os visitantes chegavam como peregrinos seculares, geralmente aos domingos, levando os filhos, mas tentando mantê-los quietos. Os objetos ali apresentados geralmente exemplificavam a alta cultura [...]. A arquitetura dos museus frequentemente revela as concepções dos fundadores com clareza. O museu Britânico, por exemplo, foi desenhado para parecer um templo grego antigo, enquanto o Victoria and Albert Museum se parece – em parte, pelo menos – com um palácio italiano do Renascimento. A decoração dos novos edifícios também nos diz muita coisa sobre as concepções contemporâneas de cultura. [...] Hoje, o cânone tradicional dos grandes escritores e artistas é rejeitado por muitos professores nos Estados Unidos e em outros lugares por causa daquilo que exclui – a cultura popular, o trabalho das mulheres, das minorias étnicas e assim por diante. Existem também críticas à exibição em redoma de objetos arrancados dos contextos originais em igrejas ou casas, assim como houve muitas críticas às tentativas de separar a esfera da arte da vida social. Poderíamos dizer que o museu 19 O OFÍCIO DO HIStORIADOR • CAPÍTULO 2 clássico do século XIX está se transformando numa peça de museu – mas uma peça que certamente é tão merecedora do nosso interesse e de nossa atenção quanto os objetos que contém. (BURKE, 2009, 290-293) Os “pecados” do historiador Marc Bloch aponta para dois erros comuns entre os historiadores que acabam por enfraquecer a análise histórica: o julgamento e o anacronismo. Vamos compreender esses dois “pecados” separadamente. É comum, quando dizemos que estudamos História, ou mesmo em sala de aula com nossos alunos, nos perguntarem algo como: afinal, Vargas foi bom ou ruim? Qual foi o melhor presidente? Quem você acha pior, Stalin ou Hitler? Os Estados Unidos erraram ao apoiar o Golpe Civil-Militar de 1964? Certo, errado, bom, mau, melhor ou pior são julgamentos de valores. E a História não é um tribunal. Não iremos redimir, absolver ou condenar ninguém. Não temos esses poderes e não objetivamos tê-los. Porque a tarefa do historiador é compreender e não julgar. Por mais que nos pareça óbvio repudiar o assassinato de cerca de seis milhões de judeus ocorrido durante o domínio nazista, ganharemos mais e colaboraremos mais com a sociedade se conseguirmos compreender por que ele ocorreu. Como pudemos chegar a esse ponto? Responder essa questão contribuirá mais do que simplesmente dizer que os nazistas eram maus, errados e injustos. Segundo Bloch, quando julgamos perdemos o gosto de explicar e a realidade humana, tão complexa e rica, ficaria reduzida a um quadro em preto e branco, dividido simplesmente entre heróis e bandidos, certos e errados, justos e injustos, bons e maus. O anacronismo – o mais imperdoável dos pecados, segundo Bloch – deve ser motivo de cuidado constante por parte do historiador. Tal pecado ocorre quando lançamos conceitos, visões de mundo e experiências de uma época para outro contexto histórico e acabamos por tentar compreender uma sociedade à luz de fenômenos históricos que não a pertenceram. De forma geral, o anacronismo leva ao julgamento, pois ao “exigirmos” de uma época aquilo que ela não pode nos “dar”, acabamos por julgá-la. Mais uma vez, seria interessante exemplificarmos. Suponhamos olhar para a guerrilha urbana que ocorreu no Brasil durante a ditadura militar. Passadas décadas, os próprios militantes em suas entrevistas geralmente afirmam a improbabilidade da vitória, pois não havia suficiente apoio popular para realizar a revolução, a repressão possuía um poder bélico e logístico muito superior ao deles, enfim, as condições históricas não eram favoráveis a um movimento daquela envergadura. Hoje, pode-se interpretar assim. Mas um historiador que for analisar a opção pela guerrilha nas 20 CAPÍTULO 2 • O OFÍCIO DO HIStORIADOR décadas de 1960 e 1970 não deve dizer que as escolhas foram mal feitas, que os revolucionários não compreendiam o contexto da época. Isso seria anacrônico. Os guerrilheiros vivenciavam uma realidade de Guerra Fria, num país repressor e autoritário, com movimentos sociais em expansão pela América Latina e a vitória da revolução Cubana, logo ali, lembrando a possibilidade de derrotar o “Grande Irmão”. Portanto, taxá-los simplesmente de sonhadores, inconsequentes ou até mesmo irresponsáveis não ajudaria muito na análise histórica. O ideal nessecaso seria tentar compreender a conjuntura histórica que possibilitou que muitos jovens acreditassem na via revolucionário para dar fim ao governo militar e transformar a realidade brasileira. Outro exemplo podemos retirar do quadrinho a seguir: (http://crv.educacao.mg.gov.br/sistema_crv/index.aspx?&ID_OBJETO=31830&tipo=ob&cp=000000&cb=, último acesso em 15/07/2014) Perceba que o aluno considera Colombo um “burro” por afirmar que a terra era redonda, embora os estudos da época afirmassem o contrário. Além do erro do próprio aluno, tais termos pejorativos não são incomuns nas salas de aula e devemos ficar atentos a eles, contribuindo para que nossos alunos não incorram no anacronismo. Assim, mais uma vez vale relembrar que ao historiador cabe a responsabilidade da análise e da compreensão histórica. Não julgamos pessoas, ações ou governos e também não os legitimamos, buscamos apenas compreender como ocorreram, quais fenômenos históricos possibilitaram a sua realização e as consequências trazidas pelos processos históricos. Pensando as fontes – exemplos No decorrer do seu curso de graduação você terá contato com diversos tipos de fontes históricas: entrevistas, documentos, leis, periódicos, músicas, literatura, teatro etc. Como vimos, toda a produção humana pode ser considerada fonte histórica e contribui para o conhecimento de um determinado período. Além de observar a diversidade do corpus documental utilizado por um historiador, também é importante que você perceba a forma como o estudioso interpretou e analisou as fontes escolhidas. E este é um verbo importante: escolher. O historiador seleciona as 21 O OFÍCIO DO HIStORIADOR • CAPÍTULO 2 fontes com as quais ele vai trabalhar e isto já diz muito acerca da sua percepção sobre o processo histórico e do seu fazer historiográfico. Assim, propomos a você uma breve reflexão sobre algumas fontes históricas que vamos apresentar agora. Pense um pouco sobre elas, imagine quais perguntas você faria às fontes e em qual caso você as utilizaria. Não deixe de dividir suas questões nos fóruns e espaços de debate, pois a análise das fontes é provavelmente o processo mais importante do ofício do historiador. Além disto, o trabalho com fontes em sala de aula contribui muito para o aprendizado dos nossos alunos, ajudando a elucidar questões mais complexas. Mas, para utilizá-las no ambiente escolar, é preciso que o professor tenha domínio sobre o manuseio das fontes e, para isso, tal exercício é fundamental. Vamos lá? *Cartas A seguir, duas missivas da década de 1870, nos Estados Unidos da América, em que mães solicitam às freiras que abriguem seus filhos: Nova York, terça-feira Bondosas Irmãs, As senhoras vão encontrar um menino que completa um mês de idade amanhã o pai não vai fazer nada e ele é um pobrezinho a mãe dele precisa trabalhar para sustentar outros três e não pode fazer nada com este o nome dele é Walter Cooper e ele ainda não foi batizado as senhoras tenham bondade de fazer isso eu não gostaria que ele morresse sem batismo pode ser que algum dia a mãe queira ele de volta sou casada há cinco anos e casei direitinho e não pensei que meu marido fosse um homem mau eu tive de deixar ele e não podia deixar as crianças com ele agora eu não sei onde ele está se não eu dava o menino para ele eu quero que as senhoras cuidem dele por três ou quatro meses e se ninguém aparecer para buscar ele nesse prazo podem ter certeza de que a mãe não pode sustentar ele pode ser que algum dia eu mande um dinheiro para ele não esqueçam o nome dele Respeitosamente, Sra. Cooper (USHER, 2014, p.77) Irmã Superiora, Sou uma pobre mulher e fui enganada com a promesa de cazamento; no momento estou sem condições e sem ninguém para sustentar meus filhos. E assim eu imploro pelo amor de deus que fique com meu filho até eu arrumar um emprego e ter o suficiente para poder criar ele. Espero que a senhora tenha a bondade de aceitar meu bebê e vou rezar pela senhora. Sua humilde servidora Teresa Perrazzo Nova York, 3 de dezembro de 1874 (USHER, 2014, p. 78) 22 CAPÍTULO 2 • O OFÍCIO DO HIStORIADOR Uma observação importante antes de passarmos para o próximo exemplo: quando transcrevemos uma fonte reproduzimos mesmo com seus erros de grafia e/ou gramaticais. Tais erros fazem parte da fonte e, por vezes, até mesmo da análise dela. Por isso, transcrevemos a fonte anteriores com seus erros originais, ok? Agora você poderá ler a carta de fãs de Elvis Presley solicitando ao presidente dos Estados Unidos da América a liberação do cantor do serviço militar. Na época, Presley havia sido convocado para servir na Alemanha ocidental: Caixa Postal 755 Noxon, Mont Prezado presidente Eisenhower, Minhas amigas e eu estamos escrevendo de Montana, Achamos que já é horrível Elvis Presley ter de servir o Exército, mas se cortarem as costeletas dele nós vamos morrer! O senhor não sabe o que sentimos por ele, eu realmente não entendo por que ele tinha de ir para o Exército, mas nós imploramos, por favor, por favor, por favor, não cortem o cabelo dele como o dos outros recrutas, ah, por favor, por favor! Se fizerem isso nós vamos morrer! Adoradoras de Elvis Presley Linda Kelly Sherry Bane Mickie Mattson (USHER, 2014, p. 118) Por último, propomos que você reflita sobre a carta enviada por Galileu Galilei a Leonardo Donato, doge de Veneza, apresentando sua mais nova invenção: Príncipe Sereníssimo, Galileu Galilei, humílimo servo de Vossa Alteza, sempre vigilante e provido de toda a boa vontade não só para satisfazer o tocante à cátedra de matemática em Pádua, como para escrever sobre a decisão de apresentar a Vossa Alteza um telescópio que será de grande serventia em atividades marítimas e terrestres. Asseguro-vos que guardarei segredo sobre essa invenção e a mostrarei unicamente a Vossa Alteza. O telescópio foi construído para o estudo mais acurado de objetos distantes. Esse telescópio tem a vantagem de permitir avistar navios inimigos duas horas antes de se tornarem visíveis a olho nu e de distinguir seu número e sua qualidade, avaliar sua capacidade e preparar-se para persegui-los, combatê-los ou fugir deles; em terra, em campo aberto, permite ver todos os seus detalhes e distinguir cada um de seus movimentos e preparativos. (USHER, 2014, p. 134) Após a leitura das cartas, retorne ao enunciado e reflita sobre as questões propostas. Compartilhe suas ideias e reflexões! *Músicas e Peças Teatrais O historiador Gustavo Alonso em seu livro Cowboys do asfalto (2015) discute a relação entre a música sertaneja e o processo de modernização do Brasil. Na obra podemos acompanhar a 23 O OFÍCIO DO HIStORIADOR • CAPÍTULO 2 polêmica que diferencia uma suposta música autêntica caipira dos sertanejos que incorporavam novos instrumentos musicais, novas temáticas e, por vezes, flertes com os governos constituídos. De Tonico & Tinoco, passando por Leandro & Leonardo, até chegar a Michel Teló, Alonso nos traz uma análise desse gênero musical, muitas vezes rechaçado pelos intelectuais dos grandes centros urbanos. O importante aqui é perceber que, para além das questões puramente artísticas e musicais, o historiador contribui para a compreensão do longo e árduo processo de modernização do país que se inicia ainda nos governos autoritários da ditadura militar e se estende pelo processo de democratização até aos dias atuais. Assim, a ligação entre cultura e política econômica se faz presente no livro. Com este exemplo, esperamos que você possa refletir sobre a produção cultural, como algo intrinsicamente ligado ao modo de o artista ver o mundo, de senti-lo e de experimentá-lo. Sendo ele um sujeito social, o que o envolve – a conjuntura de sua época, as questões daquele momento histórico – estarão de certa forma presentes na criação artística. Sendo produto e produtor de cultura, o sujeito histórico é influenciado e influencia o seu meio social. Isso também pode ser percebido nas peças teatrais. Vamos a dois rápidos exemplos:Calabar: elogio à traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra, aqui no Brasil, e As bruxas de Salém (1953), de Arthur Miller, nos Estados Unidos da América. As duas peças teatrais se apropriam de eventos históricos ocorridos em seus respectivos países. Calabar se passa durante a invasão holandesa no nordeste brasileiro, enquanto As bruxas de Salém se refere à perseguição por suposta bruxaria às mulheres de Massachusetts; ambos acontecimentos têm o século XVII como cenário. Podemos, então, concluir que os dramaturgos se apropriaram de fatos passados e os transformaram em peças. Seria a História se tornando teatro. Porém, uma análise aprofundada do texto nos aproximaria mais do contexto histórico dos escritores (segunda metade do século XX) que daquele encenado (século XVII). Ambos os textos estão carregados da crítica de Buarque, Guerra e Miller ao seu próprio tempo e não àquele apresentado na peça. Em Calabar, a discussão da traição está permeada por críticas ao patriotismo propagandeado pela ditadura militar no Brasil e sua repressão, enquanto As bruxas de Salém visam denunciar as perseguições e limitações à liberdade de expressão que estavam ocorrendo durante a década de 1950, nos Estados Unidos, em decorrência da Guerra Fria e do suposto perigo do comunismo. Assim, os dramaturgos utilizaram-se de eventos passados, de metáforas, analogias e alegorias para tecer críticas ao seu próprio contexto, à sua própria realidade. O olhar do historiador deve estar sempre atento a essas questões. No caso do teatro e das músicas, precisamos ir para além 24 CAPÍTULO 2 • O OFÍCIO DO HIStORIADOR das letras, do que está escrito. É necessário compreender o que está nas entrelinhas, o contexto que envolve aquela escrita, aquele artista. Agora, sugiro que você reflita sobre algum gênero musical que você goste e pense como poderia trabalhar historicamente com ele. Há dramaturgos de sua preferência? Já analisou o contexto histórico de sua escrita? Procure os textos de Calabar e As bruxas de Salém e tente realizar uma análise das fontes. Que perguntas você faria a essas peças? Sintetizando Vimos até agora: » Sendo a História a ciência do homem no tempo, toda e qualquer produção humana pode ser considerada uma fonte histórica. » As fontes não falam por si mesmas, elas devem ser questionadas e interrogadas pelo historiador. A análise das fontes é peça fundamental do ofício do historiador e também pode contribuir muito para o processo de ensino-aprendizagem no ambiente escolar. » A História não é um tribunal, portanto, o historiador não deve julgar sujeitos, fatos ou ações. É nosso papel compreender os processos históricos. » Um dos maiores pecados do historiador é o anacronismo que, em resumo, seria exigir de uma época histórica aquilo que ela não pode lhe oferecer. 25 Apresentação Neste capítulo, daremos continuidade à tentativa de responder às questões norteadoras de nossa disciplina: o que é História? O que faz o historiador? Num primeiro momento, trouxemos as contribuições do historiador francês Marc Bloch, no que tange à definição de História, aos “pecados” do julgamento e do anacronismo, às fontes utilizadas na pesquisa histórica, à relação entre História, presente, passado e futuro. Agora focaremos em três novas problemáticas que permeiam o ofício do historiador: os fatos, as causas e a relação da História com a verdade. Para tais discussões utilizaremos, especialmente, a obra de dois grandes pensadores: Edward Carr e Adam Schaff. Importante ressaltar que as visões apresentadas no Circuito 1 não são antagônicas às que vamos trabalhar agora, mas, ao contrário, são complementares e nos ajudam a compreender melhor a disciplina História e o papel do historiador. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de: » Compreender o que é um fato histórico e a relação entre o fato, o historiador e a disciplina histórica. » Identificar o papel do fato e da causalidade na análise dos objetos de pesquisa do historiador. » Questionar a presença ou não da verdade na disciplina histórica. 3 CAPÍTULO HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE 26 CAPÍTULO 3 • HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE A questão dos fatos e da causalidade na história Não é incomum ouvirmos que o historiador é alguém que nos conta os fatos ocorridos no passado. No entanto, tal perspectiva se apresenta deveras reducionista. Sendo apenas esta a nossa função, bastaria irmos aos arquivos e bibliotecas, compilarmos as fontes e narrarmos o que lemos. De certo, não precisaríamos de uma formação acadêmica para realizar essa tarefa. Duas questões se apresentam para refutarmos a ideia de um historiador que apenas “conta os fatos do passado”. A primeira já discutimos parcialmente nos capítulos anteriores e iremos aprofundar aqui. O historiador não olha passivamente para as suas fontes, ele as questiona, faz perguntas para elas, analisa, interpreta o contexto, pensa nas contradições e nos movimentos das sociedades. Nesse sentido, ele não é apenas um narrador, um reprodutor/transmissor de fontes produzidas no passado. Ele é alguém que pensa sobre o passado e o questiona. A segunda questão está na ênfase nos fatos. Como veremos a seguir, os fatos são materiais importantes a serem trabalhados e analisados pelo historiador, porém a análise do pesquisador não se encerra nele. Mais do que nos fatos, a atenção do historiador deve voltar-se para o processo, o movimento. Exemplifiquemos: na virada do mês de março para abril de 1964, ocorreu o Golpe Civil-Militar, instalando um processo ditatorial no Brasil. Isso é um fato extremamente importante para a história do nosso país. Qualquer pessoa que deseja estudar o Brasil contemporâneo deve levar esse fenômeno histórico em conta para que sua análise ganhe consistência. Porém, o Golpe foi a culminância de um processo e o início de outro. Assim, o historiador deverá compreender quais os movimentos, as ações, as disputas e conflitos que levaram ao Golpe. Qual era a conjuntura brasileira da década de 1960? A resposta a essa pergunta elucidará ainda mais questões do que o Golpe (o fato) em si. Edward Carr, em seu livro Que é história? (1996), também critica a visão de que caberia ao historiador somente “mostrar o que realmente passou”. Isso seria reduzir o nosso ofício a apenas compiladores de fontes, em uma narrativa linear, em que um fato seria seguido por outro e assim sucessivamente. Essa visão estaria ainda muito atrelada aos defensores do positivismo, que estavam focados na necessidade de a História alcançar o status de ciência. Para isso, ela deveria se apoiar em um rígido modelo metodológico baseado na coleta de fontes oficiais, pois somente nelas estaria contida a verdade dos fatos. Os positivistas defendiam que o historiador deveria se afastar de qualquer teor de subjetividade em seu trabalho. Para isso, ele precisava concentrar sua pesquisa fora do observador, independente dele, num processo passivo de recepção dos fatos. Assim, a História, segundo Carr, se transformaria 27 HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE • CAPÍTULO 3 em um somatório de fatos construído a partir do fetichismo de documentos oficiais, em que, supostamente, encontramos a verdade. E ao historiador caberia simplesmente “organizar os acontecimentos do passado numa sequência ordenada de causa e efeito” (CARR, 1996, p. 122). Edward Carr argumenta que tal pensamento contém equívocos já em sua premissa, pois nenhum fato fala por si, já que depende da tese e/ou interpretação do historiador. Em sua perspectiva, a própria escolha de que um acontecimento é um fato histórico já contém subjetividade. Afinal, quem define o que é e o que não é um fato histórico relevante senão os próprios pesquisadores, baseados obviamente nos contextos e na realidade material apresentados no fenômeno estudado? Em outras palavras, o fato não possui uma existência em si, ele também é uma construção histórica, portantohumana e, por fim, com um toque de subjetividade. O que é importante compreender por ora é que o fato depende do historiador para existir enquanto tal, ou seja, de alguém que diga que aquele fenômeno constitui um fato histórico. Assim sendo, o historiador não é somente um compilador de fontes, mas necessariamente um selecionador. Sendo ele um agente desse processo, fazer História não é um ato neutro como desejavam os positivistas, pois há a interferência do sujeito na seleção e, especialmente, na análise dos fatos. Este é outro ponto ressaltado pelo autor: o historiador não apenas registra fatos, ele os avalia e analisa, principalmente. Para Carr, a interpretação dos fenômenos históricos é justamente o “sangue vivo da História”. NESSE sentido, o fato não chega “puro” como desejaria um historiador positivista. Ele carrega também a subjetividade do agente da pesquisa. É por isso que Carr traz à tona a afirmação do filósofo italiano Benedetto Croce de que toda História é História contemporânea. Ela assim o é, na visão do autor, não porque trate somente do mundo contemporâneo, mas porque é produzida por historiadores que veem o passado por meio dos olhos do presente e à luz dos seus problemas. Para ilustrar essa percepção, Carr nos traz um exemplo muito interessante. Após a consolidação da Revolução Russa (1917), os estudos sobre a Revolução Francesa (1789) tomaram novos rumos, enfatizando a participação das massas, seu caráter transformador, dando ênfase à sua radicalidade, aos ideais de liberdade e igualdade. Atenção Nesses capítulos iniciais, afirmamos que o historiador não consegue ser plenamente neutro, que ele faz escolhas e que é alguém que, a partir do presente, olha para o passado e o questiona. Assim sendo, aqui segue uma dica importante: antes de começar a ler um livro de História, pesquise sobre o autor. Onde ele nasceu e estudou? Onde ele trabalha? Quais são suas influências? Ele milita em algum movimento social ou partido? Enfim, quem é esse sujeito da pesquisa? Lembre-se, também, que em um livro nós podemos ter três temporalidades diferentes: a primeira se refere à temática do livro, a segunda liga-se à época na qual ele foi escrito, a terceira diz respeito ao tempo do leitor, ou seja, ao seu. 28 CAPÍTULO 3 • HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE Enfim, Edward Carr propõe que olhemos a relação do historiador com os fatos, tal como a relação do homem com o meio. Num movimento dialético: da mesma forma que o meio influencia o homem, é também influenciado por ele. Assim, igualmente, ocorre com o historiador que influencia na construção dos fatos, ao mesmo tempo em que os fatos contribuem fundamentalmente para a análise histórica. Sendo assim, o fato é a nossa matéria bruta, mas o nosso ofício não se encerra nele. Outro olhar muito comum sobre o ofício do historiador é compreendê-lo como alguém que estuda as causas dos fatos passados. Quanto ao sentido e o papel dos fatos na História vimos, anteriormente, agora é importante nos determos no significado das causas na História. Edward Carr afirma que um bom historiador faz a pergunta “por quê?” sobre os fenômenos históricos. Como veremos em capítulos futuros, Heródoto, considerado o pai da História, definiu como propósito da sua obra compreender a causa do contexto de guerra entre gregos e persas. Portanto, o problema não está em compreender que as causas são fatores importantes na pesquisa histórica. A questão está em perceber o que é e como se trabalha com as causas. Em primeiro lugar, Carr alerta que o historiador precisa ter a consciência de que num único fenômeno histórico ele terá de lidar com uma multiplicidade de causas, ou seja, analisar diversas causas para o mesmo fato. Compreendido isso, o historiador deve realizar uma hierarquia das causas ao mesmo tempo em que precisa compreender as relações recíprocas entre elas. Isso é fundamental, pois, segundo o autor, o argumento histórico girará em torno da prioridade de causas atribuídas pelo historiador ao contexto analisado: “Esta é a sua [historiador] interpretação do tema; o historiador é conhecido pelas causas que invoca.” (CARR, 1996, p.124) A questão das causas, segundo Carr, nos leva a um dilema: até que ponto as ações humanas são determinadas ou são baseadas no livre-arbítrio? São escolhas realizadas espontaneamente ou impulsionadas por fatores que determinam o comportamento? Para Edward Carr, quando o historiador pensar em causalidade deve levar em consideração que essas duas características caminham juntas, ainda que isso pareça contraditório ou antagônico. O que o historiador britânico defende é que em toda ação humana há causalidade que está relacionada tanto às escolhas quanto às conjunturas nas quais o homem atua, age, reage e/ou é impulsionado a tal por um contexto determinado. Carr nos traz um exemplo que pode ser interessante na compreensão dessa questão: Vejamos como enfrentamos esse problema no dia a dia. No decorrer de seus afazeres cotidianos, você, habitualmente, encontra Smith. Você o cumprimenta amavelmente, com um comentário genérico sobre o tempo ou sobre a situação geral da faculdade ou da universidade; ele responde com uma observação 29 HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE • CAPÍTULO 3 igualmente amável e genérica sobre o tempo ou a situação geral. Mas, suponhamos que, numa determinada manhã, Smith, ao invés de responder ao seu cumprimento da maneira habitual, iniciasse uma violenta diatribe contra sua aparência ou seu caráter pessoal. Será que você daria de ombros e acharia que se tratava de uma prova do livre arbítrio de Smith e do fato de que tudo é possível quando se trata do homem? Acredito que não. Pelo contrário, provavelmente você diria mais ou menos o seguinte: “Coitado do Smith! Como você sabe, o pai dele morreu num hospício”. Ou então: “Coitado do Smith! Ele deve estar tendo os maiores problemas com a mulher”. Em outras palavras, você procuraria diagnosticar a causa do comportamento aparentemente inexplicável de Smith, na firme convicção de que deve haver uma causa. [...] Não é que algumas ações humanas sejam livres e outras determinadas. O fato é que todas as ações humanas são ao mesmo tempo livres e determinadas, de acordo com o ponto de vista de quem as considere. (CARR, 1996, pp. 128-129) Nesse exemplo, alguém que você conhece superficialmente decide lhe tratar de forma grosseira, realizando um comentário impróprio sobre sua aparência. Segundo Carr, há grandes possibilidades de que você não encare isso passivamente na crença de que os homens possuem livre-arbítrio e, por isso, podem agir como bem entenderem. Ao contrário, na visão do autor, você tentaria encontrar causas que lhe ajudassem a compreender a ação de Smith. Estaria influenciado pela morte do pai? Teria problemas com a esposa? Seriam questões levantadas com o objetivo de entender melhor a ação humana. Ao mesmo tempo, obviamente, nem todo mundo que possui problemas sai distribuindo grosserias por aí. Nesse sentido, o que Carr quer nos mostrar é a complexidade das causas: ela, ao mesmo tempo em que está imbuída dos contextos e da realidade material, também apresenta aspectos do livre-arbítrio e das escolhas que os agentes sociais fazem no seu cotidiano. Importante ressaltar também que Edward Carr nos remete à fundamental questão das causas, porém elas não significam inevitabilidade. O autor afirma que nada é inevitável na História e o historiador não deve trabalhar com essa categoria de análise, pois não há fatalidade no processo histórico. Assim, o historiador caminha na linha tênue entre a realidade material e o determinismo conjuntural. Em outras palavras, o historiador deve estar atento aos contextos que corroboram para que as pessoas tomem certas atitudes e optem por determinadas ações, ao mesmo tempo em que precisa se afastar do determinismo que leva à fatalidade, à ideia de que não haveria outra maneira para lidar com as questões apresentadas, aproximando, com isso, a Históriade uma visão linear. 30 CAPÍTULO 3 • HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE Para refletir Como estamos nesta disciplina tentando desvendar o que é História e qual o ofício do historiador, seguem mais algumas definições para você refletir acerca do “fazer História”. Historiador Veio para ressuscitar o tempo e escalpelar os mortos, as condecorações, as liturgias, as espadas, o espectro das fazendas submergidas, o muro de pedra entre membros da família, o ardido queixume das solteironas, os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas nem desfeitas. Veio para contar o que não faz jus a ser glorificado e se deposita, grânulo, no poço vazio da memória. É importuno, sabe-se importuno e insiste, rancoroso, fiel. (Carlos Drummond de Andrade, in ‘A Paixão Medida’) “O historiador nunca se evade do tempo da história: o tempo adere ao seu pensamento como a terra à pá do jardineiro.” (BRAUDEL, Fernand. A Longa Duração. In: _______ “História e Ciências Sociais”. Lisboa: Ed. Presença, 1986. p.33) (http://grabois.org.br/portal/cdm/noticia.php?id_sessao=30&id_noticia=13180, último acesso em 01/09/2014) A partir das nossas discussões, reflita acerca dessas definições: você concorda com elas? Por quê? O que elas contribuem para a compreensão do ofício do historiador? A relação entre História e verdade Muitos intelectuais acreditam que a História não seja uma ciência, pois em sua metodologia não consta a experimentação e a observação. De fato, não podemos testar nossos objetos de pesquisa e nem mesmo observá-los in loco. Ao mesmo tempo, vimos que o historiador precisa 31 HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE • CAPÍTULO 3 de metodologia e rigor na análise de suas fontes, pois a História não é ficcional, não é literatura e não conta apenas com a subjetividade do pesquisador. Tal questão também gira em torno da impossibilidade da História prever um futuro por meio do estabelecimento de leis. Na Química sabemos que, em condições normais de temperatura e pressão, uma água que é fervida a 100 graus celsius entrará em ebulição e passará do estado líquido para o gasoso. Em História, previsões desse tipo são impossíveis. Primeiro, porque a História não se repete, pois as sociedades estão em constantes mudanças e, segundo, porque não estabelecemos verdades absolutas. Essa última questão é a que nos interessa para a presente discussão. Antes de relacionarmos História e verdade é preciso compreender o que estamos entendendo como verdade: o que é verdade? Reflita sobre os quadrinhos a seguir e veja como a ideia de verdade se apresenta para Calvin. (http://astropt.org/blog/2009/02/27/astrologia/, último acesso em: 20/8/2014) No quadrinho, como no senso comum, a verdade está diretamente relacionada com a realidade. Ou seja, com a ideia de que tal evento ou questão podem ser aceitas como verdade se houver a materialidade da coisa – se aquilo puder ser visto e experimentado como real. Assim, para Calvin, o horóscopo diz a verdade quando as suas previsões se tornam realidade. Porém, ao mesmo tempo, a realidade possui uma relação ambígua com a crença. E, como sabemos, acreditar e crer carregam subjetividades, que nunca são neutras. 32 CAPÍTULO 3 • HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE Agora, observemos o poema Verdade de Carlos Drummond de Andrade: A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. No poema, Drummond defende a ideia de que não existe uma verdade, mas várias, divididas em metades. Apesar da discussão de qual delas seria a mais bela, não se chegou a nenhuma conclusão e, portanto, optaram por que cada um escolhesse a sua verdade mais bela, de acordo com “seu capricho, sua ilusão, sua miopia”. Interessante notar que, ao mesmo tempo em que o autor denuncia a inexistência de uma verdade única, ele atrela a crença em uma verdade à ideia de capricho, ilusão ou miopia. Assim, podemos compreender que, para Drummond, verdades são ilusórias e podem atrapalhar nossa visão para a complexidade do mundo. De outra forma, também podemos questionar juntamente com o poeta: se existem diversas verdades, o que significa ser verdade? Como várias verdades podem conviver? Será que elas não se anulam? Todas essas questões podem ser levantadas por meio dos quadrinhos e do poema e vão permear a discussão na historiografia: há a possibilidade de verdade na História, mesmo sabendo da forte presença subjetiva na sua construção? Que verdade pode estar relacionada à História? 33 HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE • CAPÍTULO 3 Adam Schaff (1978) ressalta que todo o processo de conhecimento é composto por três elementos: o sujeito que conhece, o objeto do conhecimento e o conhecimento enquanto produto da cognição. De forma geral, a relação entre esses três componentes fora compreendida por meio de três modelos: 1. O primeiro denominado mecanicista ou teoria do reflexo, em que o sujeito é visto de forma passiva, contemplativa e receptiva. Seu papel no processo de conhecimento seria apenas registrar as informações advindas do exterior, tal como um espelho (por isso teoria do reflexo). Nesse modelo há o predomínio do objeto sobre o sujeito. 2. O segundo modelo é chamado idealista e ativista. O predomínio agora se volta para o sujeito do conhecimento, que entende o objeto como uma produção sua. Schaff afirma que a atenção está tão concentrada no sujeito que é atribuída a ele a criação da realidade. 3. O terceiro modelo propõe compreender o processo do conhecimento de uma interação mútua entre sujeito e objeto. Segundo o autor, ambos possuem uma existência real e objetiva; porém, ao invés do domínio de um sobre o outro, temos aqui a atuação de um sobre o outro. Assim, o sujeito é ativo, mas está de certa forma condicionado às suas realidades sociais, às suas visões de mundo etc. Nesse sentido, o homem é ao mesmo tempo produto e produtor da cultura. Defensor do terceiro modelo de visão acerca do processo de conhecimento, Schaff afirma que, não sendo somente um “registrador passivo”, o sujeito introduz um fator subjetivo no conhecimento que, por sua vez, está ligado às suas determinações sociais – ao seu contexto sócio-histórico. Segundo o autor, é esse fator que traz diferentes interpretações, percepções, articulações e descrições sobre a realidade. Nesse sentido, Schaff pretende estabelecer duas definições essenciais: a) o indivíduo é um ser social; e b) o conhecimento é uma atividade concreta, prática. Nesse sentido, na ciência não existiria um conhecimento objetivo e sim objetivo-subjetivo. O sujeito tendo, portanto, um papel ativo na construção de conhecimento faz com que este esteja sempre em processo, em transformação. No que Schaff afirma que nenhum conhecimento é um dado pronto e definitivo. Assim, o que o autor propõe é que compreendamos a verdade como parcial, sendo variável haja vista estar ligada a um contexto determinado, a um espaço-tempo próprio. Entendido dessa forma, o conhecimento humano é percebido como cumulativo, num movimento temporal de desenvolvimento e mudança de várias verdades formuladas. A partir daí, o historiador não deve trabalhar com a ideia de uma verdade total ou absoluta, pois carregaria uma percepção de imutabilidade. Ao invés disso, Schaff propõe compreendermos o conhecimento como infinito, pois está sempre se chegando a novas verdades parciais. Tais 34 CAPÍTULO 3 • HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE verdades parciaisseriam o ponto de partida para novos desenvolvimentos que gerariam mais verdades parciais e assim por diante, num processo infinito de produção de conhecimento. Saiba mais A discussão sobre a verdade não está limitada à História. Outras ciências, humanas ou não, também se preocupam em compreendê-la. Apresentamos aqui um trecho da obra Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, que traz um pouco da visão do filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche sobre a verdade: Na medida em que o indivíduo, em oposição a outros indivíduos, se quer conservar, num estado natural das coisas, ele utiliza o intelecto na maioria das vezes somente para a dissimulação: mas porque ao mesmo tempo o homem, por necessidade e tédio, quer existir social e gregariamente, ele precisa de um tratado de paz e almeja que pelo menos o mais rude bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos] desapareça de seu mundo. Esse tratado de paz implica algo que lembra o primeiro passo daquele enigmático impulso à verdade. Agora é fixado aquilo que, a partir de então, deve ser “verdade”; quer dizer, é inventada uma designação das coisas igualmente válida e obrigatória, e a legislação da linguagem institui também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui, pela primeira vez, o contraste entre verdade e mentira. [...] Somente por meio do esquecimento o homem pode chegar a presumir que possui uma “verdade” no grau há pouco designado. Se ele não quer se contentar com a verdade na forma de tautologia, ou seja, com estojos vazios, então comprará eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? A representação de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir sobre um estímulo nervoso uma causa exterior a nós é já o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio da razão. Se só a verdade tivesse sido decisiva na gênese da linguagem, o ponto de vista da certeza nas designações, como poderíamos dizer: a pedra é dura – como se “dura” nos fosse conhecida de outra maneira e não apenas como um estímulo inteiramente subjetivo! [...] Chamamos uma pessoa de “honesta” porque hoje ela agiu honestamente? A resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isso significa novamente: a folha é a causa das folhas. Nada sabemos sobre uma qualidade essencial que se chamaria “honestidade”, mas sim das ações numerosas e individualizadas e, com isso, diferentes, que, com o abandono do diferente, agora designamos ações honestas; por último, a partir delas formulamos uma qualitas oculta com o nome: “a honestidade”. [...] Portanto, o que é a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim: uma soma de relações humanas poéticas e retoricamente potencializadas, transpostas e ornadas e que, depois de longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões sobre as quais se esqueceu tratar- se de metáforas que se tornaram usadas e sem força sensível, moedas que perderam sua impressão e agora são consideradas apenas metal, não mais moedas (nIEtzSCHE, F. W. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Editora Hedra, 2008.) Você concorda com as formulações do autor? Todas as verdades são ilusões? 35 HIStÓRIA: FAtOS, CAUSALIDADE E vERDADE • CAPÍTULO 3 Sintetizando Vimos até agora: » Os fatos podem ser compreendidos como matéria-prima do historiador. Isso quer dizer que a História não se encerra nos fatos. » A relação entre fato e historiador é, ao mesmo tempo, de separação e interdependência. » Uma das perguntas essenciais realizadas pelo historiador deve ser “por quê?”. As causas são fatores fundamentais para o conhecimento do processo histórico. » Para Adam Schaff, não há verdade absoluta na disciplina histórica, mas sim verdades parciais, construídas e superadas constantemente. 36 Apresentação É muito comum ouvirmos que o brasileiro não tem memória. Rapidamente esquecemos nossos problemas, nossas crises, a corrupção de alguns políticos que são sucessivamente eleitos, das obras que ficam pelo meio do caminho, enfim, seríamos uma nação de desmemoriados. Porém, é importante questionarmos sobre qual memória estamos falando. A memória não é uma, mas múltipla, pode ser individual ou coletiva, pode ser institucionalizada, ou pode estar escondida e esquecida. No campo da História, a memória pode ser fonte ou objeto de pesquisa, e é algo muito mais complexo do que simplesmente lembrar ou esquecer. A proposta aqui é problematizarmos essa questão. Duas perguntas nortearão o nosso capítulo: o que é memória? Qual a relação entre História e memória? Ao final do capítulo, propomos uma reflexão acerca do engajamento do historiador e solicitamos que você reflita sobre esta questão: até que ponto posicionamentos políticos do historiador podem/devem estar presentes em seu ofício? Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de: » Identificar as diferenças entre História e memória. » Compreender as possibilidades da utilização da memória para a História. » Refletir acerca dos lugares de memória da sua cidade. 4 CAPÍTULO A RELAçãO EntRE HIStÓRIA E MEMÓRIA 37 A RELAçãO EntRE HIStÓRIA E MEMÓRIA • CAPÍTULO 4 Provocação Na charge a seguir, além da crítica implícita à Lei da Anistia, há a ideia do engavetamento da História. Uma crítica à usurpação da História por parte dos arquivos militares. Isso vai ao encontro da nossa temática aqui, pois o foco também será compreender como a memória pode contribuir para “desarquivar” a História e trazer à tona muitas outras histórias. Observe atentamente a charge e, após a leitura do capítulo, volte a ela e reflita como a memória pode contribuir para ampliar nosso conhecimento sobre nossa História e, portanto ampliar nossa concepção de cidadania e nosso sentimento de identidade. (http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=1850:erundina-defende-mudan%C3%A7a-na-lei-da-anistia, último acesso, 02/09/2014) Memória e História Embora muitas vezes compreendidas como sinônimos, História e memória são processos diferenciados. Em primeiro lugar, a memória é viva num sentido amplo, haja vista aqueles que registram a memória como pessoas vivas, influenciadas pelas lembranças e pelo esquecimento, suscetíveis às sensações do momento em que expõem suas memórias. Na definição de Henry Rousso (2006), a memória é a presença do passado. Já a História é uma reconstrução do passado baseada em análise de fontes, de discurso, preocupada com criticidade e metodologia. O historiador pode utilizar a memória enquanto fonte histórica que é como fazem, por exemplo, aqueles que usam o método da história oral e/ou trabalham com a história do tempo presente. O problema está em saber como devemos interpretar esse material carregado de muita subjetividade. Portanto, já de início, gostaríamos de enfatizar que a memória não é simplesmente a história contada. Nesse sentido, assim como o historiador não é somente um compilador de fontes (como vimos nos capítulos anteriores), também não é um colecionador de memórias. O primeiro cuidado que devemos ter, como nos alerta Michael Pollak (1992), é que inicialmente acreditamos que a memória seja um fenômeno individual. Mas ela deve ser entendida acima 38 CAPÍTULO 4 • A RELAçãO EntRE HIStÓRIA E MEMÓRIA de tudo como coletiva e social, ou seja, construída coletivamente e submetida a constantes flutuações, transformações e mudanças. Nessa mesma perspectiva, Rousso afirma que a memória é uma reconstrução psíquica e intelectual que gera uma representação seletiva do passado de um indivíduo. Porém, esse agente não é somente um indivíduo, ele está inserido em um contexto familiar, comunitário, social e nacional. Portanto, corroborando com Pollak, toda memória é também memória coletiva. Em segundo lugar, devemos ter claro quais são os elementos constitutivos da memória: 1. os acontecimentos realmente vivenciados pelas pessoas; 2. os acontecimentos
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