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Da terceira margem eu so(u)rrio: sobre história e invenção (Durval Muniz de Albuquerque Júnior)

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ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Da terceira margem eu so(u)rrio: sobre 
história e invenção. In: História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da 
história. Bauru: Edusc, 2007. pp. 19-39. 
 
 “Há pelo menos três décadas uma palavra começou a aparecer com frequência nos títulos 
e subtítulos das obras publicadas não só pelos historiadores, como pelos profissionais de 
áreas como as Ciências Sociais, a Filosofia, a Pedagogia, a Educação Física, a Crítica 
Literária, a Psicologia, a Comunicação e até mesmo como a Literatura, a Religião e a 
Gastronomia, a palavra invenção. Mais do que fruto de uma coincidência ou de um 
modismo, o uso deste termo parece indicar que estes campos do saber partilham, no 
momento, concepções comuns acerca da construção social da realidade e de sua 
apreensão pelas diversas formas de conhecimento. O uso desta expressão parece indiciar 
mudanças paradigmáticas no campo da produção do conhecimento e das concepções 
filosóficas que a embasam. A palavra invenção, embora possa se referir ou enfatizar 
aspectos distintos do que seria fundamental na construção do conhecimento sobre o 
sublunar, remete este conhecimento e os objetos e sujeitos que dele participam para o 
plano da História, afastando-os de qualquer forma de naturalização. Ao usar a palavra 
invenção, os autores estão enfatizando a dimensão genética das práticas humanas, 
independentemente do que considerem ser as ações determinantes ou fundantes da 
realidade ou de suas representações. Os homens inventariam a História através de suas 
ações e de suas representações. Esta expressão remete a uma temporalização dos eventos 
(p. 19), dos objetos e dos sujeitos, podendo se referir tanto à busca de um dado momento 
de fundação ou de origem, como a um momento de emergência, fabricação ou instituição 
de algo que surge como novo. O termo invenção, portanto, também remete a uma dada 
ruptura, a uma dada cesura ou a um momento inaugural de alguma prática, de algum 
costume, de alguma concepção, de algum evento humano” (p. 20). 
“Com a chamada virada linguística, que chega ao nosso campo a partir dos anos sessenta 
do século 20, com a aproximação da história de disciplinas como a Antropologia, a 
Etnografia, a Psicanálise e a Linguística, questiona-se a ideia de universalidade do homem 
e da razão ou da consciência, da racionalidade do sujeito, tanto do agente dos eventos 
históricos, como do próprio historiador e se enfatiza o caráter político, interessado, 
construtivo do próprio saber histórico. O sujeito do conhecimento, em História, deixa de 
ser pensado como uma presença ausente, uma consciência plena que fala e vê sem a 
interferência de dimensões irracionais, afetivas, morais, ideológicas ou inconscientes” (p. 
20). 
“Objetos e sujeitos se desnaturalizam, deixam de ser metafísicos e passam, pois, a ser 
pensados como fabricação histórica, como fruto de práticas discursivas ou não, que os 
instituem, recortam-nos, nomeiam-nos, classificam-nos, dão-nos a ver e a dizer” (p. 21). 
“Mas o uso do termo invenção por diversos historiadores está longe de indicar que haja 
concordância entre eles quando se trata de definir o que cada uma entender por invenção” 
(p. 21). 
“Bruno Latour e Michel Foucault nos falam que esta separação ou distinção radical entre 
o mundo das coisas e o mundo das representações, entre a natureza e a cultura, entre o 
que seria material e objetivo e o que seria simbólico e subjetivo, entre a coisa em si e a 
construção social do conhecimento, entre o objeto e o sujeito é um produto da sociedade 
moderna e um dos seus pressupostos fundamentais. Os pensadores modernos e os 
conquistadores ocidentais vão considerar que os pensadores, sociedades e povos pré-
modernos eram atrasados justamente por não discernirem, por não separarem as esferas 
da natureza, da sociedade, da cultura e da divindade. A produção do conhecimento, no 
ocidente, caminhou para separar radicalmente estas esferas, negando as relações ou 
hibridações que pudessem haver entre elas. Embora sendo sempre um misto de natureza, 
cultura e sociedade, o homem foi colocado do lado da cultura e pensado como o vencedor 
da natureza, inclusive da sua própria” (p. 22). 
“É a esta divisão moderna e pretensamente irreconciliável, é a esta incomensurabilidade 
entre os pólos da natureza e da sociedade/subjetividade que remete à divisão exposta por 
[Arno] Wehling no texto citado anteriormente [A invenção da História], que aparece em 
texto de Ciro Flamarion Cardoso como sendo os paradigmas rivais ou que se materializa 
em nossa área na canhestra divisão entre história social e história cultural” (p. 23). 
“A história social seria aquela que não poria em questão a materialidade, a objetividade, 
a realidade do fato histórico, mesmo já não considerando possível apreendê-lo em sua 
totalidade ou tal como ele foi. Mas o defeito estaria do lado do pólo do discurso, que, por 
ser mediado por inúmeras variáveis, não seria capaz de espelhar fielmente a coisa em si. 
Por ser humano, social, cultural, simbólico, ideólogo, subjetivo, este não conseguiria 
dizer as coisas tais como elas são, os fatos tal como aconteceram, embora não se tenha 
dúvida de que estes aconteceram em si mesmos. O momento de invenção de qualquer 
objeto histórico seria o próprio passado e caberia ao saber histórico tentar dar conta dos 
agentes desta invenção, definindo que práticas, relações sociais, atividades sociais 
produziram um dado evento. Os documentos históricos são tomados como pistas através 
das quais se tenta rastrear o momento desta invenção, os interesses que estavam na raiz 
de dado acontecimento, os conflitos e as contradições que levaram à sua emergência. 
Muitas vezes, como sugere Hobsbawm, o historiador terá que discernir entre o que é uma 
invenção, como ação genética e instituinte dos grupos sociais na História, é uma invenção 
puramente ideológica, ou seja, uma falsificação propositada, mitificação sem base na 
realidade, que visa a justificar uma dada dominação social ou política. Mas nesta 
historiografia o discurso do historiador e, muitas vezes, o próprio discurso do documento, 
não são interpelados enquanto partícipes da invenção do evento que é narrado. A invenção 
do acontecimento se dá numa instância extradiscursiva, passa-se antes, além ou aquém 
dos discursos que o enunciam, é parte de uma realidade entendida como materialidade 
extradiscursiva e aprisionada no passado, que vai ser descoberta, decifrada, revelada, 
resgatada, retomada, explicada, interpretada pelo discurso do historiador, que a interpela. 
Cabe ao historiador ir ao passado e interrogar as evidências que este deixou com as 
perguntas adequadas, munido dos conceitos e métodos apropriados, para este passado 
oculto revelar-se em sua lógica subjacente, agora por ele percebida, embora, muitas vezes, 
ignorada por seus próprios agentes” (p. 24). 
“Já para a chamada história cultural não se pode confundir empiria e evidência, nem 
empiria e realidade, como parece fazer Thompson, pois nada é evidente em si mesmo. A 
evidência, ao contrário do que faz parecer a argumentação de Thompson, não é uma 
empiria pura que está ali esperando para ser capturada pelo conceito adequado, algo que 
tem voz própria esperando que alguém faça a pergunta correta para se manifestar. A 
evidência é produto de uma certa vidência, é construção de uma forma de ver, de uma 
visibilidade e de uma dizibilidade social e historicamente localizada. É o próprio conceito, 
é o discurso lançado sobre a empiria que a transforma em evidência. Nada é evidente 
antes de ser evidenciado, ressaltado por alguma forma de nomeação, conceituação ou 
relato. Os documentos são formas de enunciação e, portanto, de construção de evidências 
ou de realidades. A realidade não é uma pura materialidade que carregaria em si mesma 
um sentido a ser revelado ou descoberto, a realidade além de empírica é simbólica, é 
produto dadotação de sentido trazida pelas várias formas de representação. A realidade 
não é um antes do conceito, é um conceito” (p. 25). 
“Talvez possamos sair desta necessidade de nos filiarmos de um lado ou de outro destes 
pretensos paradigmas rivais se, inspirados nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa, 
buscarmos pensar a possibilidade de uma terceira margem, uma margem onde as duas 
anteriores, fruto das atividades de purificação, de racionalização, de construção humana 
e social de objetos e de sujeitos como entidades separadas vêm se encontrar, vêm se 
misturar no fluxo, no turbilhonar das ações e práticas humanas. Talvez superemos este 
impasse se pensarmos como Guimarães, que toda história começa com um 
acontecimento, e que este se define, como faz Lacan, por uma quebra da rotina, pela 
emergência de algo, pela ruptura com a lei e com a semelhança. As primeiras estórias só 
começam por um acontecimento, por mais banal que seja, mas este acontecimento, que 
no início é só inquietude, desconforto, choque sensível, signo sem sentido, 
desnorteamento, potência viril, loucura senil ou inocência infantil, começa a fazer 
sentido, começa a se tornar fato, começa a ganhar contornos quando começa a ser 
contado, narrado, relatado. O fato, o evento, não pode ser reduzido nem somente à 
irrupção real de uma ação, de uma prática sem sentido, sem significado, incômodo 
sensível que nada significa, nem somente à sua barroca e grandiloquente narrativa. Como 
propõe Lacan, o real é o insuportável, o inapelável, o irrecorrível, é o pai cumpridor, 
ordeiro, positivo, repetitivo, que um dia toma a canoa e entra no rio para não mais voltar. 
Mas nenhum ser humano suporta o real se não trabalha-lo simbolicamente, se não aplacar 
sua estranheza através da dotação de sentido e de significado, se não tornar a coisa, a 
natureza, em algo cultural. A dor de partida do pai logo deve ser explicada, entendida, 
justificada, deve tornar-se estória, relato, escritura. Todo fato é, ao mesmo tempo, 
natureza, sociedade e discurso, pois é materialidade, relação social e de poder e produção 
de sentido. Todo evento histórico está constituído por variáveis naturais, que quase 
sempre os historiadores têm ignorado. Nunca nos lembrarmos de dizer o clima que fazia 
quando um evento histórico ocorreu, embora às vezes tomemos a qualidade do solo como 
elemento de explicação de uma dada forma de produção. Não há evento histórico que não 
seja produto de dadas relações sociais, de tensões, conflitos e alianças em torno do 
exercício do poder, de dada forma de organização da sociedade, produto de práticas e 
atitudes humanas, individuais e coletivas. Estas práticas nunca podem ser reduzidas a um 
dado aspecto da realidade, nunca uma prática econômica pode ser desligada de um 
conteúdo político ou deixa de carregar concepções filosóficas, políticas, uma simbologia, 
representações acerca do que seja o preço justo, o salário adequado, o lucro devido. Todo 
evento histórico é cultural e simbólico e precisa de alguma forma de linguagem ou de 
simbologia para acontecer, para estabelecer os laços de comunicação entre os homens, 
sem os quais não haveria economia, política ou sociedade, nem mesmo objeto ou sujeito” 
(p. 27). 
“Os eventos, como nos diz Veyne, são estes icebergs, estas irrupções que permitem 
inventariar momentaneamente as diferenças entre os tempos; são ilhas de história, como 
diria Sahlins, em que podemos estacionar nossa canoa provisoriamente para podermos 
divisar horizontes de expectativa e analisar o espaço de experiência, como nos diz 
Koselleck, e fazermos um diagnóstico relativo deste momento em que nos encontramos, 
dos fluxos que nos arrastam, dos abismos em que podemos naufragar, momento de 
descanso onde podemos elaborar projetos e buscar alternativas de caminhos neste rio do 
tempo que é a historicidade. Mas, como nos lembra Ginzburg, temos que nenhuma ilha é 
uma ilha, há sempre conexões que a sustentam, relações que a desmancham. A História 
não é apenas fluxo, processo, evento: é também cristalização, entre estrutura, processo e 
evento. No rio, como na História, diferentemente do que pensavam os modernos, nem 
sempre tudo passa, nem sempre tudo se transporta para frente, nem tudo se arrasta para 
um télos oceânico. Há redemoinhos, há espirais, há retornos, há águas paradas, há águas 
que saem do curso, que se bifurcam e se esquivam em furos, igarapés, riachos, pequenos 
braços de rio que vão dar em nada ou em lugar nenhum. No rio (p. 30), como na História, 
há multiplicidade, pois um rio é composto de muitos outros e de muitas águas, embora 
pareça superficialmente homogêneo. Embora pareça uma superfície lisa, o rio, como 
diriam Deleuze e Guatari, é estriado, não apenas pelas canoas humanas que o percorrem 
e fazem dele caminho, mas por outras matérias várias, inclusive naturais, muitas águas 
que o vêm compor. Todo rio é encontro entre Negro e Solimões. Também a História, 
embora possa parecer, às vezes, homogênea, contínua, habitada pela semelhança, pela 
heterogeneidade, pela descontinuidade, pela justaposição de elementos, por relações, por 
eventos de distintas características. Como podemos acreditar ser possível isolar um fato 
econômico, de um fato cultural, ou um fato humano, de um fato natural. Nós humanos 
não somos animais, portanto, natureza?” (p. 31). 
“A ciência moderna enfatizou exageradamente o resultado final do processo de produção 
do conhecimento, momento em que os objetos e os sujeitos apareciam nem definidos e 
classificados, identificados, graças ao processo de análise, de separação, de ordenamento, 
de racionalização, silenciando ou escondendo as etapas intermediárias, as experiências 
falhadas, os híbridos, os monstros, os elos perdidos, os erros, as manipulações que foram 
necessárias antes que se chegasse a este estado de pureza e separação. Os fatos históricos 
antes de aparecerem como figuras definidas, após o trabalho de seleção, ordenamento, 
racionalização, conceituação e escritura realizado pelo historiador é uma congerie de 
múltiplos elementos, uma nuvem composta pela poeira dos detalhes, da singularidade dos 
nomes e das coisas. Quando ao final de nossa narrativa, se o evento aparece em seu corpo 
inteiriço e bem amarrado, é porque escondemos as costuras, os chuleados, os nós e as 
laçadas que precisamos realizar e, como numa linda blusa de tricô, precisamos esconder 
e disfarçar no seu avesso. Tecer, como narrar, é relacionar, pôr em contato, entrelaçar 
linhas de diferentes cores, eventos de diferentes características, para que se tenha um 
desenho bem ordenado no final. Este trabalho de tessitura é, no entanto, obra da mão de 
quem tece, da imaginação e habilidade de quem narra. Não podemos pensar (p. 31) que a 
História escreve a si mesma, que os fatos se impõem ao historiador, que se impõe como 
evidência. Pensar assim seria pensar a possibilidade de o bordado fazer-se a si mesmo. 
Todavia, também não podemos achar que se pode tecer sem linha ou agulha, que somente 
a concepção da blusa que estava ideada pela cabeça brilhante de bordadeira realiza a 
própria blusa. Não podemos escrever a História sem documentos, nem sem as ferramentas 
que a cultura historiográfica nos proporciona, inclusive os conceitos” (p. 32). 
“Desde os textos dos fundadores da Escola dos Analles que invertemos a relação entre 
passado e presente, aprendemos que é o presente que interroga o passado e o conecta com 
a nossa vida, com as suas problemáticas; o passado, como a História, é uma invenção do 
presente, embora ancorada nos signos deixados pelo passado. Passado que está longe de 
estar morto, de estar acabado, passado que é parte do próprio presente. No rio, como na 
História, águas passadas movem moinhos e destinos. Cabe ao historiador, profissional do 
presente e não do passado, como dizia Bloch, construir em suas narrativas a mediação 
entre os tempos e diferenciar, como queria Kant, o queé atual, o que é próprio do nosso 
tempo, do que é apenas contemporâneo, o que está do nosso lado, mas vem de outros 
tempos, e talvez intuir, abrir a possibilidade de horizontes outro para o futuro” (p. 33). 
“Este trabalho de mediação, de tradução, exercido pelo historiador, tem como principal 
instrumento a narrativa, a linguagem, que é o recurso fundamental de mediação, de 
mistura, de relação do homem com o mundo. Não existe evento humano e humanizado 
que não passe pelo conceito, pelo significado, pela significação” (p. 34).

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