Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Amanhã 1 – Quando a Guerra começou Autor: John Marsden Sinopse: O que você faria se descobrisse que todo o mundo que conhece deixasse de existir da noite para o dia? Ao voltar de uma semana de acampamento, Ellie e seus amigos descobrem que a cidade em que viviam foi invadida por um inimigo desconhecido. Suas famílias foram aprisionadas e uma guerra está acontecendo em seu país. Agora, eles estão sozinhos em uma cidade sitiada, lutando para descobrir o que aconteceu com seu país e tentando sobreviver. Amanhã, quando a guerra começou é o primeiro livro da série que foi escolhida como a mais fascinante pelos jovens leitores nos EUA, na Suécia e Austrália. Uma história que prende o leitor do início ao fim. Amanha, quando a guerra começou vai ficar na sua memória para sempre. Capítulo 1 Faz só meia hora que alguém – acho que foi a Robyn – sugeriu que a gente anotasse tudo o que aconteceu. Faz só vinte e nove minutos que fui escolhida para a tarefa e, há exatos vinte e nove minutos, está todo mundo em volta de mim, olhando para as páginas em branco e berrando uma porção de idéias e conselhos. Saiam de perto, gente! Ou eu não vou conseguir escrever nada. Não tenho a menor idéia de por onde começar e não consigo me concentrar com essa barulheira toda. Bom, assim está melhor. Eu disse para me deixarem sossegada e o Homer me deu o maior apoio. Finalmente eles saíram de perto e estou conseguindo raciocinar. Não sei se vou conseguir. Acho melhor deixar isso claro desde o começo. Sei porque eles me escolheram: porque, de todos, sou eu quem escreve melhor. Mas tem algumas coisinhas que podem atrapalhar. Coisinhas como sentimentos, emoções. Mas a gente fala disso depois. Talvez. Vamos ter de esperar para ver. Estou na beira do riacho agora, sentada sobre um tronco de árvore. Uma árvore bonita, que deve ter caído há pouco tempo. O tronco ainda não foi roído por lagartas, por isso a casca está lisa e avermelhada e as folhas ainda estão verdes. Não dá pra saber por que ela caiu – parece tão saudável -, mas pode ter sido porque cresceu perto demais do riacho. É agradável aqui. O riacho forma uma piscina de uns 10 metros de comprimento e 3 de largura, surpreendentemente funda – no meio da piscina a água bate na altura da cintura. Círculos concêntricos aparecem constantemente sobre a água quando a superfície é roçada pelos insetos que sobrevoam. Fico imaginando onde eles dormem e quando, se fecham os olhos quando dormem e como se chama esses insetos agitados, anônimos, incansáveis. Para ser honesta, estou escrevendo sobre a piscina para evitar fazer o que tenho de fazer. Pareço até o Chris, arrumando desculpas para não fazer suas obrigações. Vejam bem: não estou escondendo nada. Eu disse para eles que não iria fazer isso. Espero que o Chris não fique chateado por eu ter sida escolhida para escrever esse diário ao invés dele, que escreve muito bem. Ele fez cara de quem tinha ficado chateado, até com um pouco de inveja. Mas, como ele não participou de tudo desde o começo, não iria dar certo. Bom, mais acho que está na hora de para de encher lingüiça e colocar mãos á obra. Só tem um jeito de fazer isso, e é contando as coisas em ordem cronológica. Sei que colocar tudo no papel é importante para nós. É muito, muito importante. Registrar no papel o que fizemos é a nossa maneira de dizermos á nós mesmo que temos um significado, que nos importamos. Que as coisas que realizamos fizeram diferença. Não sei se uma diferença grande, mais fizeram. Registrar tudo pode ajudar a sermos lembrados. E isso tem muita importância para nós. Nenhum de nós quer acabar como uma pilha de ossos brancos esquecidos, desconhecidos e pior de tudo, sem ninguem saber os riscos que corremos. Isso me faz pensar que eu devia escrever este registro como se fosse um livro de história, em linguagem bem séria, bem formal. Mas não dá para fazer isso. Cada um tem seu estilo, e este é o meu. Se não gostarem de como eu escrevo, é melhor arrumarem outra pessoa. Bom, é melhor começar. Tudo começou quando... Essas palavras são engraçadas. Todo mundo as usa sem pensar direito no que significam. Quando alguma coisa começa? Para qualquer um de nós as coisas começaram quando a gente nasceu. Ou antes, quando os pais da gente casaram. Ou quando nossos ancestrais colonizaram nosso país. Ou quando os seres humanos rastejaram da lama e do limo, perderam as barbatanas e guelras e começaram a andar. O que aconteceu com a gente teve um começo bem definido. Assim: tudo começou quando a Carrie e eu dissemos que queríamos fazer alguma coisa muito doida no feriado do Natal. Foi uma daquelas coisas bobas que a gente fala, algo como: “Puxa, não seria legal se a gente...?”. Nós costumávamos acampar com freqüência desde que éramos pequenas. Dormíamos sob as estrelas ou numa rede presa entre duas árvores quando fazia frio de noite. Ás vezes vinham outras amigas junto. Em geral, a Robyn ou a Fi. Nunca convidávamos meninos. Nessa idade a gente acha que os meninos não têm a menor graça e não damos a menor importância para a aparência física deles. Mais depois a gente cresce e tudo muda. Então, apenas algumas semanas atrás, embora seja difícil de acreditar que faça tão pouco tempo, a gente estava vendo algum programa ruim na televisão e conversando sobre o feriado. Aí a Corrie falou: - Faz um tempão que a gente não vai até o rio. Por que não vamos no Natal? - Tá. Vamos ver se o papai empresta o Landrover pra nós? - Boa! Ah, e vamos ver se o Kevin e o Homer não querem ir junto. - Boa idéia convidar meninos. Mais acho que papai não vai deixar de jeito nenhum. - Pode ser que não, mais vale a pena tentar. - Certo. Ah, se a gente conseguir o Landrover, podemos ir mais longe. Não seria o máximo se conseguíssemos ir até o Alfaiate e de lá ate o Inferno? - Boa! Vamos pedir o carro. O ponto do Alfaiate é uma elevação rochosa enorme, estreita e comprida que vai desde o Monte Martin até Wombegonoo. É pedregoso, muito estreito e íngreme em alguns pedaços, mas dá pra caminhar por ele. Também é coberto por um pouco de vegetação. A vista é incrível. Dá pra ir de carro até bem perto do rochedo, nas proximidades do Monte Martin, seguindo por uma trilha de lenhadores difícil de encontrar porque está coberta pelo mato. O Inferno fica abaixo, do outro lado do Ponto do Alfaiate, e é uma garganta cheia de rochas, árvores, pés de framboesas, cachorros-do-mato, morcegos e vegetação rasteira. É um lugar selvagem, e não conheço ninguém que tenha ido até lá, mais muitas vezes fiquei de pé na beirada do rochedo do Alfaiate, olhando lá pra baixo. Eu não tinha a menor idéia de como poderíamos descer 30 metros de altura nos pontos mais altos. Há uma série de pequenas colinas chamadas de Escadas do Satã, que chegam até a garganta, mas que devem ser pelas colinas, e eu sempre quis descer lá. Os habitantes das redondezas sempre contavam histórias sobre o Eremita do Inferno, um ex-assassino que havia vivido ali por muitos anos. Parece que ele havia matado a mulher e o filho. Eu sempre quis acreditar na existência dele, mais achava a história improvável. Ficava me perguntando por que não tinha sido enforcado, como se fazia com os assassinos naquela época. Mesmo assim, era uma boa história, e eu gostaria que fosse verdadeira; não a parte dos homicídios, mas a parte do Eremita. De qualquer forma, toda a viagem começou a ser planejada ali. Resolvemos tudo de repente e arregaçamos as mangas para conseguirmos o que queríamos. A primeira tarefa foi convencer nossos pais e mães a nos deixarem ir. Não que eles não confiassem na gente, mas como meu pai disse: - Vocês não estão pedindo pouca coisa. Durante um bom tempo eles ficaram tentando nos convencer a fazer outra coisa. Acho que a maioria dos pais costuma fazer isso. Como querem evitar brigas, ficam sugerindoalternativas que eles prefeririam que escolhêssemos e com as quais poderíamos concordar. - Por que vocês não vão acampar no rio de novo? Porque não convidam a Robyn e a Meriam em vez de convidar os rapazes? Por que não vão de moto? Ou a cavalo? Façam um acampamento como no velho oeste. Deve ser divertido. Minha mãe acha que é divertido fazer bolo para vender na Feira Anual: portanto, não dá pra levar as sugestões dela a sério. Eu me sinto meio mal ao escrever coisas assim, levando em conta tudo por que passamos, mais vou ser honesta em vez de sentimental. Finalmente chegamos a um acordo, que não foi ruim, afinal. Poderíamos levar a Landrover, mas só eu poderia dirigir, embora o Kevin já tivesse carteira há muito Tempo que eu. Mas meu pai sabe que sou boa motorista. Assim, eles concordaram que fôssemos ate o Ponto do Alfaiate e que convidássemos os rapazes, desde que levássemos mais pessoas: pelo menos seis e no máximo oito. Isso porque meus pais achavam que haveria menos chance de fazermos uma orgia se houvesse mais pessoas conosco. Claro que eles não disseram que era essa a razão – falaram que era mais seguro- mais eu conheço os dois muito bem. Ah, sim. Escrevi o “ç” e o “o” de “conheço” com muito cuidado, pois não quero que ninguém pense que escrevi “conheci”. Tivemos de prometer que nem nós e nem os rapazes levaríamos bebidas, nem cigarros. Fiquei pensando porque os adultos são tão complicados. Parece que eles acham que temos que tomar todo cuidado para não cairmos em tentação e fazermos alguma besteira. Ás vezes até acabam pondo idéias na cabeça da gente. A gente nem havia pensado em levar bebidas. A primeira razão, é que depois do Natal, estaríamos sem dinheiro, Ma o engraçado é que, todas as vezes que nossos pais achavam que a gente estava aprontando, não estávamos; e, quando achavam que estávamos sossegados, geralmente estávamos aprontando alguma. Eles nunca implicavam com meus ensaios para a peça da escola, por exemplo, mas, nessas ocasiões, a maior parte do tempo eu ficava namorando o Steve escondido - até o senhor Kassar nos descobrir e termos de abotoar nossas roupas muito rápido. O senhor Kassar gritava: - Steve! Ellie! Vocês estão se agarrando de novo? Olhem que vou jogar um balde de água fria em vocês! O senhor Kassar é um piadista. Acabamos formando um grupo de oito pessoas. Não convidamos o Elliot, que é muito preguiçoso, nem a Meriam, porque ela estava em período de experiência de trabalho com os pais da Fi. Cinco minutos depois de termos escrito a lista, um dos garotos que tínhamos incluído, Chris Lang, chegou a minha casa com o pai dele. Aproveitamos então para perguntar se o Chris poderia ir. O senhor Lang é um homem alto, formal, que sempre usa gravata, não importa onde esteja nem o que esteja fazendo. Acho-o um pouco grande e sério demais. O Chris diz que o pai é muito certinho e conservador, Perto dele, o Chris costuma ficar de boca fechada. Mesmo assim, conversamos sobre a viagem na mesa da cozinha, enquanto nos fartávamos com uns pãezinhos que minha mãe havia feito. Ma logo nos desapontamos com a resposta. Acontece que os pais de Chris iam viajar para o exterior, embora eles tivessem empregada, o Chris precisaria ficar para tomar conta da casa. Assim, começamos com o pé esquerdo. No dia seguinte, entretanto, peguei minha moto e fui á casa do Homer pelo caminho dos padoques. Normalmente costumo ir pela estrada, mais minha mãe anda preocupada com um novo guarda em Wirrawee que tem distribuído multas a torto e a direito. Na primeira semana de trabalho ele multou a esposa do juiz por não usar o cinto de segurança. Desde que este guarda chegou, todo mundo tem tomado cuidado para não cometer infrações de trânsito. Encontrei o Homer perto do riacho testando uma válvula de água que acabara de limpar. Quando cheguei, ele estava segurando a válvula no alto, com uma expressão otimista, tentando ver se havia vazamentos. -Dê só uma olhada – ele disse quando desci da minha moto- Vedação perfeita. -Qual o problema? - Não sei. Só sei que agora há pouco estava vazando e agora parou. Isso me basta. Ajudei-o a colocar a válvula de volta no lugar. - Odeio essas bombas de água. Quando eu for dono deste lugar, vou fazer um açude perto de cada padoque. - Boa idéia. Assim você poderá contratar minha empresa de engenharia para fazer o serviço. - Essa é sua ultima novidade? –ele perguntou, apertando os músculos do meu braço. - Do jeito que você ta indo, vai ser capaz de cavar os acides com as próprias mãos. Dei-lhe um safanão tentando jogá-lo no riacho, mais ele é muito forte. Observei-o mover a bomba para cima e para baixo, tentando fazer a água subir, depois o ajudei a carregar baldes de água até a bomba para deixá-la funcionando. No caminho contei a ele sobre nossos planos. - Acho que vou aceitar. Queria mesmo era ir para algum resort numa praia tropical, mais podemos seguir sua sugestão enquanto isso. Voltamos para a casa dele para o almoço, e ele pediu permissão aos pais para ir acampar conosco Essa era a maneira como Homer pedia permissão. A mãe dele não teve reação nenhuma; o pai só ergueu uma sobrancelha e olhou para cima da xícara de café; mais o irmão George, encheu- o de perguntas: - Mas e a feira? - Não dá pra irmos antes –eu disse – Os Mackenzie estão fazendo a tosquia. - Eu sei, mais quem vai arrumar os touros para a feira? - Você se sai bem com o secador de cabelos na mão – Disse Homer.- Já vi você diante do espelho de sábado a noite. Não vá exagerar com os touros e cobrir os pêlos deles de gel. Virando-se para mim, Homer continuou: - Meu pai tem um barril de gel reservado só para George usar nas noites de sábado. Como o George não era das pessoas mais bem-humoradas, continuei de olhos baixos e coloquei mais uma garrafa de tabule na boca. Como o Homer já estava combinado, e á noite a Corrie me ligou dizendo que o Kevin também irira. - Ele não ficou muito entusiasmado – disse ela – Acho que preferia ir á feira. Mais topou por minha causa. - Nossa! Que metido! – ironizei – Diz pra ele ir á feira se é isso que ele quer. Tem uma porção de caras que se mataria para ir conosco. - É verdade, mais todos tem menos de 12 anos – queixou-se a Corrie. – Os irmãozinhos do Kevin estão doidos para ir. Mais eles são muito jovens, até pra você. - E velhos demais pra você – respondi irritada. Liguei para Fiona depois da ligação de Carrie e contei nossos planos. - Quer vim junto? – convidei. - Nossa! – disse ela parecendo surpresa, como se eu tivesse contando sobre a viagem só por falar. – Cristo, você quer que eu vá? Nem me dei o trabalho de responder. Cristo! A Fi é a única pessoa que eu conheço, com menos de 60 anos, que fala “Cristo”. -Quem mais vai? - Corrie e eu. Homer e o Kevin. E pensamos em convidar a Robyn e o Lee. - Quero ir sim! Calma ai que vou perguntar se posso. Tive de esperar um tempão, e ela voltou com um mundo de perguntas. Conforme eu respondia, podia ouvi-la repetindo as respostas para os pais. Depois de uns 10 minutos dessa conversa, ela falou mais um tempão com os pais e aí voltou ao telefone de novo. - Eles estão dificultado as coisas - ela exclamou – Tenho certeza de que vão deixar, mais minha mãe quer ligar para a sua para ter certeza. Desculpe. - Sem problemas. Vou pôr um ponto de interrogação ao lado do seu nome e falo com você de novo no fim de semana, tá? Desliguei. Estava ficando difícil falar ao telefone, porque a TV estava com o som muito alto. Minha mãe tinha aumentado o volume para poder ouvir o noticiário da cozinha. Um rosto raivoso enchia a tela. Parei e fiquei assistindo aquilo um tempo. - Nosso ministro do Exterior é um covarde! – gritava o homem. – Ele é fraco, sem fibra, um novo Neville Chamberlain. Não conhece o povo com oqual está lidando. As pessoas respeitam a força e não a fraqueza! - O senhor acha que o governo investe alto em defesa? – perguntou o entrevistador. - Alto? Alto? Você deve estar brincando! Você tem idéia de quando eles cortaram o orçamento para defesa? “Ainda bem que vou ficar longe disso por uma semana”, pensei comigo. Fui até o escritório do meu pai e liguei para o Lee. A mãe dele demorou a entender que eu queria era falar com o Lee. Ela tem uma certa dificuldade com o nosso idioma. O Lee estava estranho quando atendeu quase desconfiado. Foi reagindo devagar conforme fui falando, como se estivesse pensando em tudo. - Estou escalado para tocar no concerto de fim de ano – ele disse quando falei da data da viagem. Ficamos em silêncio, até que finalmente eu falei. -Bom, você quer ir ou não? Ele riu e disse: - Parece mais divertido que tocar em um concerto. A Corrie tinha ficado intrigada quando eu disse que queria convidar o Lee. Não costumávamos ficar juntos na escola. Eu o achava sério, muito ligado em música, mais era um cara interessante. De repente percebi que a escola logo iria acabar, e eu não queria perder a chance de conhecer pessoas como o Lee. Nossa escola era tão pequena, e havia gente na nossa classe que nem se conhecia pelo nome! Eu tinha uma curiosidade enorme sobre os outros alunos e, quanto mais diferente eles eram da minha turma de amigos, mais curiosa eu ficava. - Então, o que me diz? – houve uma longa pausa. Como o silencio me deixa sem jeito, continuei falando. – Você quer pedir para seus pais? - Não, não. Depois me acerto com eles. Está bem. Eu vou. - Você não parece muito entusiasmado. - Não! Eu estou animado sim! Só estava pensando nos problemas. Mais tudo bem, eu vou. O que eu tenho que levar? A ultima pessoa para qual telefonei foi a Robyn. - Puxa Ellie! Seria o máximo! – gritou – Mais meus pais nunca deixariam. - Ah, Robyn, você consegue. Faz uma pressão. Com um suspiro, Robyn respondeu: - Ah, Ellie, você não faz idéia de como é meus pais. - Pergunte mesmo assim. Eu espero na linha. - Tá. Alguns minutos depois, ouvi que alguém pegou o telefone novamente e perguntei: - Então? Conseguiu convencer os dois? Infelizmente, foi o senhor Mathers quem respondeu. - Não, Ellie. Ela não nos convenceu. - Nossa! Senhor Mathers! – falei envergonhada, mias sorrindo, porque sabia que podia fazer gato e sapato do pai da Robyn. - Então, Ellie, que idéia é essa? -Bom, pensei que já era hora de mostrarmos independência, iniciativa e outras boas qualidades. Queremos fazer trilha durante uns dias no Ponto do Alfaiate. Vamos nos afastar do sexo e das drogas em Wirrawee e ir para o ar puro e fresco das montanhas. - Sei... E sem adultos? - Senhor está convidado, desde que ainda tenha menos de 30 anos, tá? – brinquei. - Isto é discriminação, Ellie – ele respondeu no mesmo tom. Conversamos brincando assim por cerca de cinco minutos, até que ele ficou sério: - Sabe, Ellie, achamos que vocês são muitos jovens para fazer essa caminhada sozinhos naquele lugar. - Sr. Mathers, e o que o senhor costumava fazer quando era da nossa idade? Ele riu antes de responder: - Certo! Ponto para você. Eu já trabalhava tomando conta dos animais numa fazenda. Isso foi antes de virar um vendedor de seguros sério de terno e gravata. - Então! O que vamos fazer não é nada comparado a trabalhar numa fazenda. - Sei... - Além do mais, o que de pior poderia acontecer? Encontrar caçadores? Para chegar lá eles teriam que passar pela nossa propriedade, e o meu pai não permitiria isso. Incêndios na mata? Lá existe muito mais rocha que vegetação e, por isso, é provavelmente mais seguro do que aqui onde moramos. Mordida de cobra? Todos nós sabemos como tratar mordida de cobra. Não dá para nos perdemos porque o Ponto do Alfaiate é como uma estrada. Estou acostumada ir lá desde pequenininha. - Sei... - E se a gente fizesse um seguro com o senhor? O senhor concordaria? Que tal? A Robyn ligou no dia seguinte para dizer que o pai havia concordado, mesmo sem o seguro. Ela estava feliz e animada. Havia tido uma longa conversa com os pais; aliás, a melhor que já tivera. Era a primeira vez que eles confiavam nela para algo tão importante e por isso ela queria que tudo desse certo. - Ai, Ellie, espero que não aconteça nada de ruim – repetia ela toda hora. O engraçado é que, se havia uma filha em quem os pais podiam confiar, era a Robyn, mais acho que os pais dela ainda não haviam dado conta disso. O maior problema que ela costumava dar para eles era chegar atrasada á igreja. E isso acontecia provavelmente porque ela parava para ajudar uma velhinha a atravessar a rua. As coisas continuaram indo bem. No sábado de manhã, estava com minha mãe fazendo compras na cidade quando encontramos Fi e a mãe dela. As duas mães tiveram uma longa e séria conversa enquanto a Fi e eu olhávamos uma vitrine e tentávamos ouvir o que elas diziam. Minha mãe disse uma porção de coisas para tranqüilizar a mãe da Fi. - Eles são muito sensatos – ouvi-a dizer. – Todos são muito sensatos. Felizmente ela não contou sobre a última que o Homer tinha aprontado; ele acabara de ser pego pela polícia por ter derramado um pouco de solvente na estrada e depois, escondido, ter posto fogo no líquido quando um carro se aproximou. Ele já havia feito isso uma meia dúzia de vezes antes de ser pego. Imagino o susto que a pegadinha dava nos motoristas. De qualquer modo, o que minha mãe disse para a mãe da Fi deve ter funcionado, pois pude riscar o ponto de interrogação da frente do nome dela da minha lista. Do total de oito, só havia sete nomes confirmados, mas, como todos tinham dado certeza de ir, estávamos felizes. Bom, estávamos felizes por nós duas e o.k. pelos outros cinco. Vou tentar descrever como eles eram na época – ou pelo menos como eu achava que eram, porque, obviamente, todos mudaram, da mesma maneira que a minha opinião sobre eles. Por exemplo, sempre achei a Robyn bem calma e séria. Todo ano ela ganhava prêmios pelo desempenho na escola, estava sempre envolvida com coisas da igreja, mais eu sempre soube que ela era mais que isso. Ela gostava de ganhar. Dava pra ver isso nos esportes. Jogávamos no mesmo time do basquete e, sinceramente, muitas vezes me senti envergonhada pelas coisas que ela fazia. Era determinada que só. Na hora em que o jogo começava, ela parecia um touro bravo, correndo, lançando-se e empurrando os adversários pra fora da jogada se necessário. Se o juiz não fosse firme, a Robyn podia fazer o maior estrago. Quando o jogo terminava, ela voltava a ser o que era de costume e cumprimentava a todos calmamente, dizendo: - Bom jogo! Muito estranho. Ela é pequena, mas forte, com um corpo bem harmonioso. Desliza graciosamente ao caminhar, enquanto todos nós temos um andar pesadão e desajeitado. Eu devia deixar a Fi fora dessa descrição, porque ela é leve e graciosa também. E sempre foi como uma heroína para mim, alguém a quem eu admirava como uma pessoa perfeita. Quando ela fazia algumas coisas erradas eu dizia: - Fi, não faça isso! Você é um modelo para mim! Adoro a pele linda e delicada dela. Ela tem o que minha mãe chama “traços finos” Sua aparência é de quem nunca fez nenhum serviço pesado na vida, nunca pegou sol, nunca sujou as mãos, e isso é tudo verdade porque, ao contrário de nós, pessoas do campo, ela morava na cidade e passou mais tempo tocando piano que tosquiando ovelhas ou marcando carneiros. Os pais dela são advogados. Já o Kevin é o típico homem da fazenda. Ele é o mais velho de nós e foi convidado por ser namorado da Corrie, que não viria de jeito nenhum sem ele. A primeira coisa que chama atenção nele é a boca grande. O segundo é o tamanho das mãos – enormes,parecem pás de pedreiro. Ele era conhecido por seu convencimento e por gostar de levar a fama pelas coisas boas que aconteciam; isso sempre me deixava irritada, mas mesmo assim eu achava que ele era a melhor coisa que tinha acontecido na vida da Corrie, porque antes dele ela vivia calada e quieta num canto. Os dois conversavam muito na escola, e ela me dizia que sempre que ele era um cara sensível e atencioso. Embora eu não conseguisse perceber essas qualidades nele, gostei de ver como ela ficou muito mais confiante depois que começou a namorá-lo. Sempre imaginei que no futuro o Kevin se tornaria presidente da Associação de Criadores de Animais, jogaria pelo clube da cidade aos sábados, conversaria sobre o preço do gado e cuidaria de três filhos - com a Corrie, talvez. Esse era o tipo de vida com que estávamos acostumados e nunca achamos que pudesse mudar muito. O Lee morava na cidade, como a Fi. “Lee e Fi, de Wirrawee” era uma musiquinha que cantávamos para eles. Mas era só isso que os dois tinham em comum. Enquanto a Fi é bem clarinha, o Lee é bem moreno, com o cabelo preto cortado bem curto, olhos castanhos, profundos e inteligentes e uma voz suave; e ás vezes ele engole o final de algumas palavras. O pai dele é tailandês, e a mãe, vietnamita. Eles têm um restaurante muito bom de comidas asiáticas. Íamos muito lá. O Lee era muito bom em músicas e artes. Na realidade, era bom em muitas coisas, mas, quando as coisas não saiam como ele queria, ficava bem irritado e não falava com ninguém durante vários dias. O último da lista era o Homer, que morava na minha rua. Ele era amalucado e petulante. Fazia o que queria e não se importava com a opinião dos outros. Sempre me lembro de uma vez, quando era pequena, em que fui almoçar na casa dele e a senhora Yannos tentou fazê-lo comer couve-de-bruxelas; os dois brigaram feio, e o Homer acabou jogando a couve em cima da mãe. Eu fiquei de olhos arregalados. Nunca tinha visto nada como aquilo. Se eu fizesse uma coisa daquela em casa, seria amarrada ao trator e usada para aplainar terreno! Quando tínhamos 8 anos de idade, o Homer chama seus amigos mais doidos todos os dias para jogar o que eles chama de Roleta Grega. O jogo era assim: na hora do almoço ou até alguém quebrar uma janela, os meninos iam para uma sala de aula vazia, bem longe dos professores e, um de cada vez, corriam até as janelas e davam uma cabeçada. Eles iam se revezando nisso até acabar o intervalo do almoço ou até alguém quebrar uma janela, o que quer que acontecesse primeiro. Os pais do responsável pela quebra da janela tinha que pagar a conta. Eles quebraram várias janelas brincando de Roleta Grega antes que a escola percebesse o que estava acontecendo. O Homer parecia estar sempre encrencado. Outra de suas diversões favoritas era ficar observando quando alguém subia no telhado da escola para consertar uma goteira, pegar alguma bola que tivesse ido parar lá em cima ou trocar alguma calha. O Homer ficava esperando até a pessoa estar em cima do telhado, fazendo o que tivesse de fazer, e ai ele atacava. Meia hora depois a gente ouvia os gritos vindo do telhado:-- -- - Socorro! Alguém venha tirar a gente daqui! Algum pestinha roubou a porcaria da escada! Quando criança, o Homer era bem baixinho, mais nos últimos anos havia encorpado e tornado-se um dos maiores rapazes da escola. Os colegas insistiam sempre para ele jogar futebol, mas, como ele detestava a maioria dos esportes, não entrava para o time por nada. Ele gostava de caçar e sempre ligava para meus pais pedindo permissão para entrar na nossa propriedade com o irmão para caçar coelhos. Também gostava de nadar e de ouvir música, algumas bem esquisitas. O Homer e eu sempre brincávamos juntos quando crianças e continuamos amigos mesmo depois de termos crescido. E les eram os Cinco Famosos. Acho que, juntando a Corrie e eu, formávamos os Sete Secretos. Nenhum livro pode dar conta do que aconteceu conosco. Não consigo me lembrar de nenhum livro que tenha lido ou filme que tenha visto que tenha haver com nossa história. Todos nós tivemos de reescrever os roteiros das nossas vidas nas ultimas semanas. Aprendemos muito e tivemos de descobrir o que é importante e o que faz diferença - o que realmente faz diferença. Já faz um bom tempo. CAPITULO 2 O plano era sair às 8 da manhã, mas só terminamos os preparativos por volta das 10. Por volta das 10h30, havíamos percorrido cerca de 4 quilômetros a caminho do Ponto do Alfaiate. É uma viagem longa e difícil por uma trilha que foi piorando com o passar do tempo, tivemos de passar por buracos tão grandes que tive medo de perder o Landrover neles; também tivemos de atravessar muita lama e pequenos riachos. Perdi a conta de quantas vezes tivemos de parar para remover árvores caídas. Como havíamos trazido a serra elétrica, o Homer sugeriu mantê-la ligada dentro do carro para não ter de ligá-la toda vez que precisássemos cortar outro tronco. Acho que ele estava apenas brincando. Espero que sim. Fazia tempo que alguém não ia até lá em cima. Sabemos disso porque, pra chegar lá, qualquer pessoa precisa passar pela nossa propriedade. Se meu pai soubesse que a trilha estava naquele estado, nunca teria emprestado o Landrover. Ele confia na minha direção, mas não á esse ponto. Assim, lá fomos nós, pulando dentro do carro; eu, me atracando com o volante, a uns 5 quilômetros por hora, e de vez em quando conseguindo acelerar para 10 quilômetros. Também tivemos de fazer outra parada não prevista porque a Fi precisou vomitar. Parei rápido; ela saiu pela porta de trás, pálida feito um defunto, e botou tudo para fora em cima de uns arbustos. Não foi uma cena bonita. Tudo o que a Fi fazia era gracioso, mas até mesmo ela teve dificuldade em parecer delicada naquele momento. Depois disso ela foi andando um bom pedaço, mas nós continuamos sacundindo dentro do carro trilho acima. Até que era divertido, de um jeito meio esquisito. Como o Lee disse, era melhor do que andar em brinquedo de parque de diversão da feira, porque demorava mais e era grátis. Estávamos perdendo a Feira por causa da viagem. Havíamos saído um dia antes do Dia da Comemoração, quando o país inteiro pára. Em nossa região, as pessoas aproveitam o feriado e vão em peso para a cidade, pois o Dia da Comemoração é tradicionalmente o dia da Feira de Wirrawee. É uma festa e tanto. Mesmo assim, não tivemos pena de perdê-la. Afinal, já havíamos brincado inúmeras vezes de acertar a cabeça do palhaço e nos emocionado ao ver nossa mãe ganhar o premio “Bolo mais bem decorado”. A gente não ia morrer se perdesse a Feira uma vez na vida. Pelo menos era o que a gente achava. Eram cerca de 14h30 quando chegamos ao topo. A Fi tinha voltado para o carro nos últimos quilômetros, e todos ficamos aliviados de sair do Landrover e esticar as pernas. Paramos no lado sul de uma colina próxima ao Monte Martin. Só dava pra ir de carro até ali. O resto do caminho tinha de ser feito a pé. Ficamos parados um tempo admirando a vista. De um lado dava pra ver o mar: a linda Baía do Sapateiro, um dos meus lugares favoritos e, segundo meu pai, um dos portos naturais mais belos do mundo, que era usado só ocasionalmente por barcos de pescadores e iates de passeio, pois ficava muito longe da cidade. Era possível ver alguns navios atracados naquele momento; um parecia ser uma grande traineira. A água era azul anil; profunda, escura e calma. Do outro lado, em direção ao cume do Monte Martin, estendia-se o Ponto do Alfaiate, uma longa e estreita formação rochosa, retilínea. Pedras negras e lisas formaram sobre ela uma linha fina, como se um cirurgião gigante tivesse aberto um corte ali, muitos séculos atrás. Outra vista era o caminho por onde tínhamos vindo; a trilha desaparecia sob uma profusão de árvores e plantas parasitas. A distância viam-se as terras férteis de Wirrawee,pontilhadas por casas e árvores, e o Rio Wirrawee serpenteando mansamente pelas fazendas. E abaixo de nós, estava o Inferno. - Nossa!- exclamou o Kevin, olhando longamente para baixo. – Vamos descer até lá mesmo? - Vamos tentar – respondi já cheia de dúvidas, mas querendo parecer forte e segura. - É impressionante – disse o Lee. – Estou impressionado. - Tenho só duas perguntas – disse o Kevin. – Mas vou fazer só uma: Como? - Qual a outra pergunta? - A outra pergunta é: por quê? Mas não vou perguntar essa. Só me responda como e vou ficar satisfeito. Eu me satisfaço com pouco. - Não é o que a Corrie diz – provocou Homer antes que eu dissesse a mesma coisa. Ai os dois começaram a se jogar pedras e se pegaram numa briga, o Homer quase rolou morro abaixo para o Inferno. Isso é o tipo de coisa que os rapazes são viciados em fazer: jogar pedras e brigar. Mas percebi que ultimamente eles não têm feito nenhuma das duas coisas. Fico imaginando por quê. - Então, como é que vamos descer até lá? – perguntou o Kevin de novo quando ele e Homer pararam de lutar. Apontei para a direita e disse: - Por ali. Aquela é a nossa rota. - Por ali? Por aquela fileira de rochedos? Ele estava exagerando pouco, mais não muito. A Escada de Satã era uma cadeia de rochedos de granito enormes, formando uma série de degraus tortuosos que desciam para o vale, sem nenhuma vegetação, totalmente áridos. Quanto mais eu olhava para os rochedos, mais absurda parecia a minha idéia, mas mesmo assim continuei com um discurso para convencer todo mundo: - Gente, não sei se é possível ou não. Só sei que tem um mundo de gente em Wirrawee que diz que é. Se a história é verdadeira, um ex-homicida viveu aqui, o Eremita do Inferno, e, se um velho conseguiu descer até lá, a gente também consegue. Acho que devíamos tentar. - Nossa, Ellie – admirou-se o Lee, - agora entendo por que você é a chefe do time de basquete. - Como é que alguém se torna um ex-homicida? - perguntou a Robyn. - O quê? - Qual a diferença entre um ex-homicida e um homicida? A Robyn sempre foi direto ao ponto. - Tenho mais uma pergunta – disse o Kevin. - Qual? - Você conhece alguém de verdade que tenha decido até lá? - Bom, vamos tirar a bagagem do carro – respondeu Ellie. Foi o que fizemos. Depois, sentamos com as costas apoiadas em nossas mochilas e ficamos admirando a vista e o nosso conhecido céu azul, enquanto comíamos frango com salada. A mochila da Fi estava bem na minha linha e visão e, quanto mais eu olhava para ela, mais achava que estava cheia demais. Depois de um tempo, perguntei: - Fi, o que tanto você tem nessa mochila? Surpresa, ela olhou para mim e disse: - O que você quer dizer com isso? Só tenho roupas e umas outras coisas, igual a todo mundo aqui. - Quais roupas exatamente? - As que a Corrie me disse pra trazer: camisas, agasalhos, luvas, meias, calcinhas e uma toalha. - Mas o que mais? Não pode ter só isso aí. Ela começou a ficar sem graça. - E um pijama. - Ah, não, Fi! -Roupão de banho. - Roupão?! Fi! - Ah, a gente nunca sabe quem vai encontrar. - E o que mais? - Não vou dizer mais nada. Vocês vão rir de mim. - Fi, a gente ainda vai ter que colocar a comida nessas mochilas e depois carregar até sabe lá Deus onde. - Você acha que é melhor eu tirar meu travesseiro então? Diante disso, formamos uma comissão para reorganizar a mochila da Fi, mas não deixamos que ela participasse. Em seguida distribuímos com todo cuidado a comida que a Corrie e eu tínhamos comprado. Parecia que havia comida demais, mas nós estávamos em sete e planejávamos ficar fora por cinco dias. Porém, por mais que tentássemos, não conseguíamos colocar tudo nas mochilas. Alguns pacotes grandes eram um problema. Tivemos de fazer umas escolhas difíceis para decidir se levávamos as barrinhas de cereal orgânicos ou marshmallows, o pão sírio ou os donuts com geléia, a granola ou as batatas fritas. Tenho vergonha de dizer o que acabamos escolhendo em cada caso, mas nos convencemos que fizemos boas opções argumentando que não iríamos nos afastar muito do Landrover e, assim, poderíamos voltar e pegar o que precisássemos. Lá pelas 17 horas, começamos a caminhada com as mochilas nas costas, que pareciam umas corcundas gigantes e esquisitas. Fomos indo ao longo da Colina. A Robyn na frente, liderando, o Kevin e a Corrie bem mais atrás, falando baixinho mais concentrados um no outro que na paisagem. O chão era duro e seco; embora o Ponto do Alfaiate fosse uma elevação retilínea, a trilha serpenteava sobre ela, mas a caminhada era fácil e o sol ainda estava alto no céu. Cada um de nós carregava três garrafas cheias de água, o que aumentava bastante o peso da bagagem; mas elas não iriam durar muito tempo. A gente esperava encontrar água no Inferno, desde que conseguíssemos chegar lá. Senão, voltaríamos para o carro pela manhã para buscar mais água. Quando acabasse a água armazenada em vidros de geléia no Landrover, iríamos de carro até uma nascente perto de onde eu sempre acampava com meus pais. Eu caminhava ao lado do Lee e íamos conversando sobre filmes de terror. Ele sabia tudo sobre o assunto, devia ter assistido a milhares deles. Esse gosto dele me surpreendeu, pois eu sabia que ele gostava de tocar piano e violino, o que não parecia combinar muito com filmes de terror. Ele me disse que os via de madrugada quando tinha insônia. Fiquei com a impressão de que ele devia ser bem sozinho. Vista do alto, a Escada do Satã parecia tão inóspita e perigosa quanto parecia vista de longe. Ficamos olhando para ela enquanto esperávamos o Kevin e a Corrie nos alcançarem. - Hum – disse o Homer -, interessante. Estranhei que dissesse tão pouco, pois não era seu costume. - Deve haver um caminho – disse a Corrie, que chegara naquele instante. - Quando a gente era pequena – falei -, costumávamos dizer que aquilo ali a esquerda parecia uma trilha. Dizíamos que era a trilha do Eremita. Ficávamos assustados pensando que ele poderia aparecer por ali a qualquer momento. - Ele devia ser apenas um velho bom, incompreendido – argumentou a Fi. - Não acho, não – retruquei. – Dizem que ele matou a mulher e o filho. - Não creio que aquilo ali seja uma trilha – disse a Corrie. – Parece apenas uma falha na rocha. Ficamos ali parados durante um tempo, como se um caminho pudesse abrir-se diante dos nossos olhos, como se ali fosse Nárnia ou algum lugar assim. O Homer foi um pouco mais adiante em direção á escarpa e gritou para nós que talvez desse para passarmos pela primeira elevação rochosa. - Aquela passagem do outro lado... Parece que vai até bem lá embaixo, quase até o outro degrau – completou. Fomos até onde ele estava, e pareceu que seria possível mesmo. - E se a gente descer até lá e não puder ir mais adiante? – quis saber a Fi. - Ai a gente sobe de volta e tenta outro caminho – respondeu a Robyn. - E se não conseguirmos voltar? - Tudo que desce tem que subir – disse o Homer, deixando bem claro que não havia prestado muita atenção nas aulas de Física durante aqueles anos todos na escola. - Vamos, então – disse a Corrie com surpreendente firmeza. Fiquei contente, pois não queria insistir demais com todo mundo. Mas eu sentia que o sucesso ou o fracasso daquela expedição recairia sobre mim ou, no máximo, sobre mim e a Corrie. Nós os havíamos convencido a ir, prometêramos que seria divertido, e havia sido nossa idéia descer até o Inferno. Se fracassássemos, eu me sentiria péssima. Seria como dar uma festa e passar a noite pondo para tocar as músicas nada a ver de que minha mãe gosta. Pelo menos eles pareciam estar a fim de tentar descer o primeiro degrau da Escada de Satã. Mas mesmo o primeiro degrau foi difícil. Primeiro tivemosque passar por um emarendado de trincos de troncos caídos e pés de amora e depois subir nos arrastados contra a parede inclinada e irregular do rochedo. Ficamos cheios de arranhões. Xingamos e suamos um pouco, puxando uns aos outros e nos segurando nas mochilas uns dos outros até estarmos no topo do rochedo, olhando a passagem que o Homer indicara. - Se todos os degraus forem difíceis como este... – começou a dizer a Fi ofegante. - Por aqui – interrompeu o Homer, de quatro no chão, esticando a cabeça para olhar para baixo, sobre a beirada do rochedo. - Sério? – perguntou a Fi. - Não tem problema – ele respondeu. Na verdade, havia um problema: como faríamos o caminho de volta. Mas, como ninguém disse nada, eu também me calei. Acho que estávamos todos animados demais com a aventura para pensar na volta. A Robyn foi atrás do Homer, depois foi à vez do Kevin descer cuidadosamente, agarrando-se á rocha e gemendo com esforço. Depois foi minha vez, e arranhei um pouco uma das mãos. Não era fácil, porque as mochilas tiravam nosso equilíbrio, puxando a gente para trás, em direção ao precipício. Quando cheguei onde os outros estavam, o Homer e a Robyn já estavam lutando com uns arbustos para abrir passagem e olhar a segunda elevação enorme de granito. - Pelo outro lado parece mais fácil – disse o Lee. Fui atrás dele para onde ele indicara e avaliamos as possibilidades. Descer por qualquer um dos lados parecia muito difícil. Havia uma queda e tanto nas duas laterais do rochedo, apesar dos arbustos e do mato que cresciam nas encostas. O rochedo era alto e quase perpendicular ao solo. Nossa única esperança era um velho tronco de árvore que desaparecia entre as sombras e a vegetação rasteira, mas que pelo menos parecia estar indo na direção do próximo degrau. - Aí está nosso caminho! – exclamei, apontando para o tronco. - Hum – resmungou o Homer, aproximando-se de nós. Sentei a cavalo sobre o tronco e fui deslizando por ele para baixo. - Ela adora esse tipo de coisa, não? – provocou o Kevin. Ri quando vi que a Corrie acertara um tapa estalado no Kevin. O tronco estava fofo e úmido, mas resistia ao meu peso. Era surpreendentemente comprido, e percebi que avançava para frente do rochedo. Besouros pretos enormes, taturanas e centopéias começaram a sair do tronco por entre as minhas pernas á medida que fui chegando mais perto da extremidade mais fina e apodrecida. Ri sozinha, torcendo para ter assustado todos os bichos antes de a Fi começar a descer. Ao ficar de pé, percebi que estava sobre uma saliência sem vegetação, mas de frente para uma parede de árvores que quase escondia totalmente o próximo rochedo. Com certeza conseguiríamos abrir cainho por entre ás árvores, a custa de muitos cortes e arranhões, mas não havia a menor garantia de que poderíamos contornar o rochedo ou passar por baixo dele. Fui andando de lado, olhando por entre as árvores, procurando uma passagem enquanto esperava os outros juntarem-se a mim. A Fi foi a quarta a chegar, meio sem ar, mas sem fazer drama; por incrível que pareça, foi o Kevin que se irritou com os insetos. Ele escorregou apressadamente os últimos metros do tronco, berrando de um jeito histérico: - Ai meu Deus! Não! Quanto bicho nojento! Tirem essas coisas de cima de mim! Tirem essas coisas de cima de mim! Ele passou uns bons minutos se esfregando todo com força, remexendo-se no pequeno espaço que dispúnhamos, tentando ver se havia algum inseto sobre ele e sacudindo as roupas freneticamente. Fiquei imaginando como ele tratava as ovelhas quando pegavam berne. Finalmente o Kevin acalmou-se, mais ainda não tínhamos descoberto como sair do ponto em que estávamos. - Bom – disse a Robyn num tom alegre -, parece que vamos acampar aqui mesmo por uma semana. Houve um momento de silêncio geral. - Ellie, acho que não vamos encontrar nenhum jeito de descer – argumentou o Lee educadamente. – E, quanto mais longe formos, mais difícil de voltar. - Vamos tentar só mais um degrau – pedi. Depois, acrescentei meio do nada: - Três é meu número da sorte. Espiamos mais um pouco entre ás árvores, mas sem sucesso. Finalmente, a Corrie falou: - Pode ser que dê pra gente se esgueirar por aqui. Talvez a gente consiga dar a volta pelo lado por aqui. A abertura que ela tinha escolhido era tão estreita que teríamos de tirar as mochilas das costas para poder atravessar por entre as árvores, mas eu estava a fim de continuar. Segurei a mochila de Corrie enquanto ela se espremia pela pequena passagem no meio da densa vegetação. Primeiro a cabeça dela desapareceu pelo buraco, depois as costas e finalmente as pernas. Ouvi o Kevin dizer: - Isso é loucura. Em seguida, a Corrie falou: - Agora passe minha mochila. Passei a mochila para ela. Depois, deixei minha mochila para a Robyn e fui atrás da Corrie. Logo percebi que a Corrie estava certa, mais seria bem difícil. Se eu não fosse a idiota teimosa feito uma mula que sou, teria desistido naquele momento. Acabamos nos arrastando no chão feito dois tatus; eu ia empurrando a mochila da Corrie na minha frente. Mas dava para ver uma parede de pedra a minha esquerda, e estávamos, com certeza, indo rochedo abaixo, por isso concluí que devíamos estar chegando perto do terceiro degrau da Escada de Satã. Daí a Corrie parou, o que me obrigou a parar também. - Escute! – exclamou ela – Você está ouvindo o que eu estou ouvindo? Tem umas perguntas que me irritam, como, por exemplo, “Dá pra acreditar nessa?”, “Vocês estão dando o máximo de si? (pergunta favorita de uma de nossas professoras), “Advinha no que eu estou pensando?”e “O que você acha que está fazendo mocinha?”(meu pai quando está bravo.) Não gosto de nenhuma delas. E “Você está ouvindo o que eu estou ouvindo?” está na mesma categoria. Além disso, eu estava cansada, com calor e frustrada. Então, dei uma resposta mal-humorada. Depois de um minuto de silêncio a Corrie respondeu, demonstrando mais paciência do que eu: - Tem água ali na frente. Água corrente. Prestei atenção e ouvi também. Então, passei a notícia para os outros que estavam vindo atrás de nós. Não era grande coisa, mais foi o suficiente para nos fazer ir um pouco mais adiante. Eu ia engatiando mal-humorada, ouvindo o som ficar cada vez mais alto. Pelo ruído, parecia que havia bastante água correndo, o que, naquela altitude, só podia ser sinal de uma nascente. Todos nós bem que estávamos precisando de um pouco de água fresca e limpar para agüentar o esforço de voltar para o topo do rochedo. E já era hora de começar a voltar, pois estava ficando tarde e tínhamos de montar nosso acampamento. De repente, me vi diante do riacho. A Corrie estava de pé sobre uma pedra sorrindo para mim. - Bom, achamos alguma coisa – eu disse – retribuindo o sorriso. Era um riachinho bem bonito. O sol não alcançava ali e, por isso, o lugar era escuro, fresco e misterioso. A água borbulhava sobre as pedras, que eram esverdeadas e escorregadias por causa do limo. Agachei e coloquei meu rosto na corrente, depois bebi água com a língua, feito um cachorrinho; enquanto isso, os outros iam chegando. Não havia muito espaço para nos movermos, mas a Robyn começou a explorar o local, pulando com muita cautela de uma pedra para a outra. O Lee fez o mesmo, na direção oposta. Fiquei admirada com o ânimo dos dois. - É um belo riacho – disse a Fi. – Mas, Ellie, precisamos começar a voltar para o topo. - Eu sei. Vamos só relaxar um pouco, só cinco minutos. A gente fez por merecer. - Essa trilha é pior que a que fizemos na excursão da Outward Bound – reclamou o Homer. - Eu queria ter ido naquela excursão – disse a Fi. – Vocês todos foram, né? Eu havia ido e gostado. Já acampara muitas vezes com meus pais, mas a Outward Bound tinha despertado em mim a vontade de fazer trilham maisdifíceis. Havia começado a me lembrar de como tinha sido aquele passeio quando a Robyn repentinamente apareceu. A expressão do rosto dela estava quase assustadora. Rodeada por aquela vegetação densa e baixa, não conseguindo ficar de pé, mas me ergui quando pude, e bem rápido. - O que aconteceu? A Robyn respondeu com ar de quem ouvia a própria voz sem acreditar nas próprias palavras: - Acabei de encontrar uma ponte. CAPÍTULO 3 O caminho estava coberto com folhas e galhos caídos e, em alguns lugares, as plantas haviam crescido sobre ele, mas, comparando com o percurso que havíamos feito até ali, parecia que estávamos diante de uma via expressa. Maravilhados, nos espalhamos ao longo da trilha. Fiquei até zonza de tão aliviada, surpresa e recompensada que me senti com a descoberta. - Ellie – disse o Homer solenemente -, nunca mais vou chamá-la de burro chucro teimoso. - Obrigada, Homer. Foi um momento compensador. - Vou dizer uma coisa – falou o Kevin. – Foi muita sorte eu não ter deixado vocês desistirem lá atrás, quando estavam todos amarelando. Ignorei-o. A ponte era velha, mais havia sido lindamente construída. Cruzava o riacho numa ampla clareira e media cerca de 1 metro de largura por 5 de comprimento. Tinha até corrimões. O piso era feito de toras em vez de tábuas, mas cortadas e encaixadas com perfeita uniformidade. Caixilhos em cada extremidade uniam as toras ás barras com pinos de madeira. - É uma bela ponte, me faz lembrar do início do meu trabalho – disse o Kevin. De repente, nos sentíamos tão cheios de energia que parecia que a gente havia tomado alguma droga. Estávamos quase decididos a acampar na clareira, que era fresca e sombreada, mas a vontade de explorar era muita. Colocamos as mochilas de novo nas costas e, matraqueando feitos papagaios, nos lançamos trilha adiante. - Deve ser verdade a história do Eremita! Ninguém mais se daria a tanto trabalho! - Quanto tempo será que ele ficou por aqui? - Como você sabe que era um homem? - O pessoal da cidade sempre fala de um eremita. - Mas a palavra é eremita, não é eremito – disse o Lee, tentando dar uma de esperto. - Ele deve ter vivido aqui muito tempo para ter todo esse trabalho com a ponte. - E a trilha está tão batida. - Se ele viveu aqui durante tantos anos, deve ter tido tempo de fazer a ponte e muito mais. Imagine o que se tem que inventar aqui para matar o tempo! - É. Depois de arrumar o que comer, dá pra ficar o resto do tempo de sobra. - O que será que tem pra comer aqui? - Gambás e coelhos, talvez. - Não deve haver muitos coelhos nessa parte do país. Tem cangurus pequenos. Bastante gambá. Gatos-do-mato. - Eca! - Dá pra plantar alguma coisa. - Comer plantas e animais silvestres. - É, ele deve ter aprendido isso vendo o mesmo programa de TV que você... – alguém ironizou. - Porcos-do-mato. - Qual será o gosto de um porco-do-mato? - Dizem que as pessoas comem demais. Se ele comesse só quando estivesse realmente com fome, não precisaria de muita comida. - Dá para treinar comer bem menos. - Vocês conhecem o Andy Farrar? Ele encontrou uma bengala no mato perto de Wombegonoo. Muito bonita, feito a mão, marchetada e tudo. Todo mundo disse que deveria ser do Eremita, mais achei que estavam brincando. A trilha nos levava continuamente para baixo. Às vezes, fazia uma volta por causa do terreno, mais ia sempre para baixo. Ia ser um suadouro voltar tudo aquilo. Havíamos descido bastante. Mas o lugar era bonito, silencioso, sombreado, fresco e úmido. Não havia flores, apenas uma variedade tão grande de verdes e marrons que não há palavras para descrever. O chão era repleto de folhas: em alguns momentos perdíamos a trilha de vista sob pilhas de casca de árvores, folhas e gravetos, mas logo achávamos o caminho de novo. Várias vezes a trilha nos levava de volta á Escada de Satã e então, por alguns metros, caminhávamos rente á enorme parede de granito. Numa certa parte, a trilha passou entre dois dos degraus e continuou descendo pelo outro lado: o vão tinha apenas pouco metros de largura e, por isso, era quase como um túnel entre os dois maciços de rocha. - Isso é bem legal para ser o Inferno – a Fi disse quando paramos um pouco entre os rochedos, num ponto em que o ar era fresco. - Hum... Há quanto tempo será que ninguém vem aqui? - E, mais que isso ainda – disse a Robyn, que estava parada diante da Fi -, quantos seres humanos, em toda a história do Universo, já pisaram aqui antes? Quer dizer, porque os primeiros aborígines do lugar teriam vindo até aqui? Ou os primeiros exploradores e colonizadores? E não conhecemos ninguém que tenha vindo. Talvez o Eremita e nós tenhamos sidos os únicos aqui em toda vida. Naquela hora, já estava ficando óbvio que chegávamos ao pé da Escada. O chão estava ficando mais nivelado e os últimos raios de sol poente filtravam-se pela vegetação, aquecendo nossos rostos. As árvores e as plantas rasteiras começavam a rarear, mas ainda eram bem densas. Nesse ponto, a trilha reencontrava o riacho e corria ao longo dele por algumas centenas de metros. Depois, afastava-se em direção á clareira onde acamparíamos naquela noite. O local era do tamanho de uma quadra de basquete, ou talvez maior. Mas não era uma completa clareira, pois havia várias árvores ali: três grandes e antigos eucaliptos e outras plantas mais novas e menores. O riacho ficava no lado Oeste da clareira; dava para ouvi-lo, mas não para vê-lo. O leito se alargava naquele ponto, a água corria mais calma e era fria, gelada, até para um dia de verão. De manhã, chegava a doer nos ossos. Mas, quando estávamos com muito calor, era uma delicia sentir o contraste refrescante ao jogarmos a água no rosto. E é aqui que me encontro agora, obviamente. Para qualquer um dos pequenos seres vivos da clareira, nós devemos parecer visitantes vindo do inferno. Somos muito barulhentos. E o Kevin – é impossível curá-lo do péssimo hábito de quebrar galhos de árvores em vez de andar alguns metros a mais para pegar gravetos no chão. Essa é uma das razões pelas quais a Corrie não me convencia quando dizia que ele era sensível e carinhoso. Mas ele era bom para fazer fogueiras: cinco minutos depois de termos chegado, já víamos fumaça branca subindo e, mais dois minutos depois, chamas bem altas ardendo. Achamos melhor não nos darmos ao trabalho de montar as barracas – só havíamos trazido duas e meia mesmo. Como estava quente e sem sinal de chuva, apenas erguemos um toldo para nos protegermos do sereno. Depois o Lee e eu fomos cuidar da comida, enquanto a Fi ficou andando por ali. - O que vamos comer? – ela perguntou. - Macarrão instantâneo por enquanto. Mais tarde vamos fazer uma carne, mas estou com muita fome para esperar. - Macarrão instantâneo? – estranhou a Fi. O Lee e eu nos entreolhamos e rimos. - É uma sensação e tanto – disse o Lee – perceber que se está prestes a mudar a vida de alguém para sempre. - Você nunca comeu macarrão instantâneo? – perguntei para Fi. - Não. Meus pais são adeptos da alimentação saudável. Eu jamais havia conhecido alguém que nunca tivesse comido macarrão instantâneo. Ás vezes, a Fi parecia um ser totalmente estranho, como alguma borboleta exótica. Não consigo lembrar de nenhuma caminhada ou acampamento em que as pessoas ficassem sentadas em volta da fogueira contando histórias ou cantando. Mais naquela noite, ficamos acordados até tarde conversando, conversando... Acho que estávamos excitados de estarmos naquele lugar estranho e lindo onde pouquíssimos humanos haviam pisado antes. Não há mais muitos lugares inexplorados na Terra, e nós havíamos tido a sorte de descobrir esse recanto escondido. Eu sabia que estava muito cansada, mais ligada demais para ir dormir, até que os outros começarama bocejar e se mover na direção dos sacos de dormir. Cinco minutos depois estávamos deitados, e acho que mais cinco minutos depois caí no sono. Capítulo 4 No dia seguinte não fizemos muita coisa. Ninguém levantou antes das 10 ou 11 da manhã. A primeira coisa que achamos foi um pacote de biscoito que esquecêramos de guardar na noite anterior. Estava vazio. Graças a nós agora havia algum animal satisfeito e mais gordo andando por ali. Nosso café-da-manhã foi emendado com o almoço e continuou tarde afora. Praticamente só que fizemos foi ficar deitados e comer. Kevin e Corrie ficaram namorando no saco de dormir de Kevin. A Fi e eu ficamos sentadas com os pés na água fria do riacho, falando sobre nossos planos para quando terminássemos a escola e nos mudássemos de Wirrawee. O Lee ficou lendo um livro, “Tudo calmo no Front”. A Robyn ficou ouvindo música no walkman. O Homer fez de tudo um pouco: subiu numa árvore, procurou outro no riacho, fez uma pilha de lenha para o fogo e tentou desentocar cobras. Quando achei que havia recuperado um pouco de energia, fui com ele ver se a trilha ia muito mais longe. Mais não havia nem sinal dela. Vegetação densa era só o que encontrávamos naquela direção. E, estranhamente, não havia o menor indício de qualquer cabana, caverna ou abrigo que o velho homem pudesse ter usado se tivesse mesmo vivido ali. Depois de um tempo, cansados de tentar achar um caminho no meio da vegetação inóspita, voltamos para a clareira. E, quando chegamos lá, o Homer encontrou uma cobra, finalmente. Eram 18 horas e o chão estava começando a esfriar. O Homer foi ate o saco de dormir, tirou as botas e esticou-se confortavelmente, com o pacote de salgadinhos na mão. - Esse lugar é incrível – disse ele – simplesmente perfeito. Naquele instante, a cobra, que havia entrado no saco de dormir, deve ter se mexido, porque o Homer deu um salto, ficou de pé e correu para longe uns 10 metros. - Caramba! – ele berrou. – Tem alguma coisa ali! Tem uma cobra no meu saco de dormir! Até mesmo o Kevin e a Corrie pararam que estavam fazendo e vieram correndo. Houve uma acalorada discussão, primeiro sobre se o Homer estava imaginando coisas e depois, quando todos vimos a cobra se mexer, sobre como nos livrarmos dela sem que ninguém morresse. O Kevin queria afogar o saco de dormir com pedras no riacho até a cobra afogar-se; o Homer não gostou da idéia, pois gostava demais do seu saco de dormir. Não tínhamos certeza de que a cobra conseguiria picar através do tecido do saco; quando eu era pequena, ouvi uma história terrível de um tosquiador cujo o filho havia sido picado por uma cobra através do cobertor enquanto dormia. Não sabia se a historia era verdadeira, mas nunca esqueci. Resolvemos acreditar em todos especialistas que nos havia dito, desde que éramos crianças, que as cobras têm mais medo dos homens do que os homens delas. Pensamos que, se ficássemos numa extremidade do saco e a cobra saísse, ela iria serpentear na direção oposta e esconder-se no matagal. Então, pegamos dois gravetos firmes; a Robyn segurou um, e o Kevin outro; eles passaram os dois pelo saco e começaram a erguê-lo lentamente. Foi uma cena e tanto. Por um minuto nada aconteceu, embora desse para ver perfeitamente o contorno da cobra dentro do saco quando o tecido foi esticado. Era uma cobra bem grande, por sinal. A Robyn e o Kevin estavam tentando virar o saco de dormir de lado para fazer a cobra escorregar para fora e cair no chão. Estavam fazendo um bom trabalho de equipe. Foram erguendo o saco até a altura das panturrilhas, depois até a altura dos joelhos e mais para cima ainda, quando, por alguma razão, os gravetos afastaram-se muito um do outro. A Corrie avisou os dois, que tentaram corrigir a posição dos gravetos, mais a Robyn deixou o dela escorregar um pouco. E só foi preciso isso para o saco de dormir cair no chão, como se tivesse vida própria. Dele saiu uma cobra muito furiosa. O único pensamento racional que tive foi de curiosidade. O Kevin ficou nervoso do mesmo jeito que reagira aos insetos. Ficou parado, pálido, tremendo e com cara de quem iria chorar. Acho que ficou tão paralisado que teria esperado a cobra subir-lhe pela perna e picá-lo. Foi engraçado, porque, enquanto se sentia seguro erguendo o saco de dormir com os gravetos, ele estava todo corajoso. Mas naquela época da minha vida eu não tinha muito tempo para pensamentos racionais; minha mente irracional era quem comandava o espetáculo. Ela me mandou entrar em pânico, e eu obedeci. Ela me disse para correr, e eu corri. Ela me disse para não dar a mínima para os outros, e eu não dei. Levou um tempo até eu olhar em volta e ver se os outros estavam bem e onde estava a cobra. O Kevin continuava parado no mesmo lugar. A Robyn estava alguns metro distante de mim, fazendo o mesmo que eu: olhando para o animal, ofegante e tremendo. A Fi estava no riacho, não sei por quê. O Lee estava em uma árvore, a 6 metros do chão e continuando a subir. A Corrie, que fizera a escolha inteligente, estava perto da fogueira, usando-a como proteção. O Homer sumira. A cobra também. - Onde ela está? – berrei. - Foi por ali! – respondeu Corrie, apontando para um arbusto. – Veio atrás de mim, mas, quando cheguei aqui, pulei por cima da fogueira, e ela desviou e se foi. Para alguém que tinha acabado de ser perseguida por uma cobra furiosa, a Corrie parecia a mais calma de todos nós. - Onde está o Homer? - Ele foi por ali – respondeu a Corrie, apontando na direção oposta á da cobra. Parecia que até o Homer havia escolhido um caminho seguro. Fui me acalmando aos poucos e aproximei-me do fogo. O Lee, ainda meio assustado, começou a descer da árvore. Finalmente o Homer surgiu cauteloso por detrás de uma fileira densa de arbustos. - Porque você está dentro da água? – perguntei á Fi. - Para fugir da cobra, claro. - Mas, Fi, as cobras sabem nadar. - Não, não sabem... Sabem? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Eu podia ter morrido! Obrigado por me avisarem só agora! E assim terminou o momento mais emocionante do dia; isso se não contarmos a Surpresa de Salsicha que o Homer e o Kevin prepararam para o jantar – como no caso da cobra, poderíamos ter passado sem. Fomos dormir bem cedo. Havia sido um daqueles dias em que ficamos exaustos de não fazer nada. Entrei em meu saco de dormir por volta das 21h30, mais só depois de inspecioná-lo cuidadosamente para ter certeza de que estava vazio. Aquela altura, apenas a Fi e o Homer ainda estavam de pé, conversando baixinho perto do fogo. Costumo dormir muito e pesado, e aquela foi uma noite típica. Num certo momento despertei, mais não tinha idéia de que horas eram; talvez umas 3 ou 4 horas. Era uma noite fria. Precisava fazer xixi, mais fiquei uns 10 minutos enrolando. Parecia cruel ter de sair daquele saco de dormir tão quentinho. Tive de me passar um sermão: - Vamos, ande logo. Você sabe que precisa ir; vai se sentir melhor depois. Deixe de ser tão covarde. Quanto mais rápido for, mais rápido vai voltar para a cama quentinha. No fim das contas, funcionou. Lutei para me desvencilhar do saco de dormir e cambaleei uns 10 metros até uma árvore que me pareceu adequada. Na volta, alguns minutos depois, parei. Pensei ter ouvido um zumbido distante. Esperei, ainda sem ter certeza, mais o som tornou-se mais alto e claro. É engraçado como ruídos artificiais soam diferentes dos naturais. Para começar, os ruídos artificiais são mais regulares, acho. O que eu estava ouvindo era, definitivamente, um ruído artificial. Percebi que tinha de ser algum tipo de aeronave. Esperei, olhando para o céu. Uma das coisas que é diferente aqui é o céu. Essa noite era como qualquer noite escura e sem nuvens nas montanhas: o céu pontilhado por uma infinidade de estrelas, algumas de brilho intenso, outras como pálidas cabeças de alfinete e algumascirculadas por um halo nevoento. Normalmente me canso, depois de um tempo, de observar a natureza, mais jamais me canso de olhar o céu noturno das montanhas. Posso me perder nele. De repente, zumbido alto transformou-se em um fragor. A mudança foi inacreditavelmente rápida. Provavelmente, por causa dos paredões altos de rocha que circulavam nosso acampamento. E, como se fosse uma nuvem negra e ruidosa de morcegos vinda do céu e bloqueando a luz das estrelas, uma fileira de jatos, em forma de V, zuniu por cima de mim, muito perto. Em seguida veio outra e mais outra, até que seis fileiras no total cortaram o céu sobre mim. O barulho, a velocidade e a escuridão me assustaram. Percebi que havia me agachado, como se estivesse apanhando. Levantei-me. Parecia que eles haviam ido embora. O barulho foi sumindo rápido, até que eu não consegui mais ouvir. Mais algo permaneceu. O ar não parecia tão limpo, puro. A atmosfera era outra. Deixara de ser agradável. O prazer do contato com o frio fustigante desaparecera. O ar ganhara uma nova umidade. Eu podia sentir o cheiro do combustível de jato. Nós pensávamos que éramos os primeiros humanos a invadir o local, mais os humanos já haviam invadido tudo, em todos os lugares. Nem mesmo o Inferno estava imune. Voltei para meu saco de dormir, e a Fi perguntou sonolenta: - O que foi esse barulhão? Aparentemente, só ela havia acordado, por incrível que parecesse. - Aviões. - Hum, foi o que pensei. Devem estar voltando do Dia da Comemoração. Comecei a cochilar, num sono inquieto e cheio de sonhos malucos. Ainda não havia me ocorrido que havia algo estranho com aquelas dezenas de aviões voando baixo e rápido e com as luzes apagadas de noite. Só muito depois fui me dar conta de que eles não tinham luzes. Pela manhã, durante o café, a Robyn disse: - Alguém mais escutou aqueles aviões ontem á noite? - Eu ouvi. Tinha ido ao banheiro – falei. - Eles não paravam de passar. Acho que deviam ser mais de cem. - Foram seis grupos – respondi. – Bem juntos e voando bem baixo. Mas achei que vocês estavam dormindo. Só a Fi disse alguma coisa na hora. A Robyn me encarou e disse: - Seis grupos? Foram dezenas e dezenas de aviões, a noite toda. E a Fi estava dormindo. Pensei que você também estivesse. O Lee e eu ficamos contando os aviões, e todo mundo estava roncando nessa hora. - Nossa! – eu disse. – Então devo ter ouvido um grupo diferente. - Não ouvi nada. – disse o Kevin, abrindo a embalagem de uma segunda barra de chocolate; ele disse que comia duas daquelas no café, e estava mantendo a mesma média no nosso passeio. - Provavelmente é começo da Terceira Guerra Mundial – afirmou o Lee. – Provavelmente acabamos de ser invadidos e nem estamos sabendo. - É – concordou Corrie ainda dentro do saco de dormir. – Estamos tão longe de tudo aqui que se acontecer alguma coisa no mundo nem vamos ficar sabendo. - O que, na minha opinião, é uma coisa boa – disse o Kevin. - Imagina se voltássemos daqui uns dias, e tivesse acontecido uma guerra nuclear, e nós fôssemos os únicos sobreviventes – falou a Corrie. – Alguém me passa uma barrinha de cereal, por favor. - Maça, morango ou damasco? - perguntou o Kevin. - Maça. - Se tivesse acontecido uma guerra nuclear, não iríamos sobreviver – disse a Fi. – Haveria resíduos radioativos caindo mansamente sobre nós agora. Como a suave chuva desce do céu. Nós nem perceberíamos. - Você leu aquele livro para a aula de inglês no ano passado? – perguntou o Kevin. – X ou algo assim? - Z? Z for Zachariah? - Isso mesmo. Foi o único livro bom que lemos na escola. - Sério, gente – falou a Robyn -, o que vocês acham que aqueles aviões estavam fazendo? - Voltando do Dia da Comemoração – respondeu a Fi, como dissera na noite anterior. – Eles fazem aqueles shows com fumaça e outras coisas, sabem? - Se alguém fosse invadir o país, ontem teria sido o dia ideal, porque estava todo mundo comemorando – disse o Lee. – O Exército, a Marinha e a Aeronáutica estavam fazendo exibições nas cidades. Quem ficou de olho nas coisas? - Eu invadiria no dia de Natal – falou o Kevin. – No meio da tarde, enquanto todo mundo tira uma soneca. A conversa era típica da nossa turma, mas por algum motivo começou a me irritar. Levantei e fui descendo o riacho, ate que encontrei o Homer. Ele estava sentado num banco de pedras, remexendo pedregulhos com um pedaço de rocha. - O que você esta fazendo? – perguntei. - Procurando ouro. - Você sabe como fazer isso? - Não. - Já achou alguma coisa? - Um monte. Estou empilhando atrás das árvores para os outros não verem. - Que egoísta! - Eu sou assim mesmo. Você me conhece. Ele estava certo sobre uma coisa: eu o conhecia muito bem, ele era como um irmão. Como éramos vizinhos, crescemos juntos. Embora ele tivesse uma série de maus hábitos, não era egoísta. - Escute, El – disse ele depois de eu ter ficado alguns minutos observando-o examinar pedregulhos. - O quê? - O que você acha da Fi? Quase caí dentro do riacho. Quando alguém fazia uma pergunta dessas, naquele tom de voz, só podia significar alguma coisa. Mas vindo do Homer? As únicas mulheres que ele admirava eram as que saíam nas revistas. As de verdade ele desprezava. E justo a Fi, entre tantas! Mesmo assim, procurei responder sem criticá-lo. - Eu adoro a Fi. Você sabe disso. Ela parece tão... perfeita, ás vezes. - Sei. Acho que você está certa. Ele ficou sem graça só de concordar comigo e passou mais um tempo procurando ouro. - Ela me acha um grosso, não? – disse ele finalmente. - Não sei. Não tenho a menor idéia, Homer. Mas não acho que ela te deteste. Ontem de noite vocês ficaram conversando como dois velhos amigos. - É, eu sei – disse ele, limpando a garganta. – Ontem foi a primeira vez... que percebi.. Bom, foi a primeira vez que reparei nela. Desde que eu era pequeno, sempre achei que ela era só uma esnobe convencida. Mas não é. Ela é bem legal. - Eu podia ter te dito isso. - Sei, mas você sabe, ela mora naquela casa enorme e fala de um jeito sofisticado, e eu e minha família... Bem, nós somos apenas camponeses gregos comparados com gente como eles. - A Fi não é assim. Você tem que dar uma chance para ela. - Puxa, eu dou uma chance para ela, mas será que ela vai me dar uma chance? Olhando contrariado para os pedregulhos, ele suspirou e, em seguida, ergueu-se. De repente, seu rosto mudou. Ele ficou vermelho e começou a mexer a cabeça de um lado para o outro, de um jeito muito agitado. Olhei em volta para ver o que o havia incomodado e vi a Fi vindo em direção ao riacho escovar seus dentes perfeitos. Foi difícil segurar o riso. Já havia visto pessoas atingidas pela flecha do Cupido antes, mas nunca me deixara muito surpresa. Não conseguia imaginar o que ela pensaria nem como reagiria. Meu chute era que, se ele se declarasse, ela iria achar que se tratava de uma piada, ia dizer não rapidamente, mais gentilmente, e depois viria me contar e dar risada sobre o acontecido. Não que ela fosse rir por crueldade, mais porque ninguém levava o Homer a sério. Ele sempre faz questão de fazer as pessoas acreditarem que não tinha sentimentos. Costumava dizer: - Meu coração é de metal sólido. Leva cinco mil anos para derreter. Sentava No fundo da classe e ficava provocando as meninas para que o criticassem. - Isso mesmo, sou invencível – dizia. – E o que mais? Machista? Só isso que conseguem dizer de mim? Precisam se esforçar mais. Vai, Sandra, capricha... Elas ficavam cada vez mais irritadas e ele permanecia sentado, empinando a cadeira para trás, rindo e provocando. As garotas percebiam o que ele estava fazendo, mas não conseguiam deixar de falar. Assim, depois de um tempo, passaram a acreditar que ele era rude demaispara ter emoções. Era engraçado que a Fi, a menina mais delicada da nossa turma, fosse justamente a que o desarmaria, se é que essa é a maneira apropriada de descrever que estava acontecendo. Voltei a caminhar na trilha em direção ao ultimo degrau da Escada de Satã. O sol já aquecera a grande parede de granito, e eu me encostei nela com os olhos semicerrados, pensando em nosso passeio, na trilha que encontraríamos, no homem que a fizera e nesse lugar chamado Inferno. Fiquei me perguntando o porquê do nome. Aquelas colinas e rochas, a vegetação, tudo parecia bem selvagem. Selvagem lembra fascinante, difícil, maravilhoso. Nenhum lugar era o Inferno. Nenhum lugar poderia ser o Inferno. As pessoas chamavam aquele lugar de Inferno, mas era só isso. Isso é só um costume que se tem, se nomear as coisas. Mas, uma vez que se dá um nome a um lugar, deixamos de vê-lo como realmente é. Assim, toda vez que olhamos de novo para um determinado lugar ou pensamos nele, a primeira coisa que vemos é uma placa enorme em que está escrito “escola particular”, ou “igreja”, ou “mesquita”, ou “sinagoga”. As pessoas param de enxergar depois que vêem as placas. O mesmo acontecera com o Homer. Durante todos aqueles anos, ele pendurara uma placa enorme no próprio pescoço e continuava lendo-a como um tonto. Os animais são mais espertos. Não sabem ler. Cachorros, cavalos, gatos, nenhum deles se preocupam em ler placas. Em vez disso, usam o próprio cérebro e a própria capacidade de formar julgamentos. Não, o Inferno não tinha nada a ver com lugares. O inferno tinha a ver com pessoas. Talvez o Inferno fossem as pessoas. Capítulo 5 Engordamos e ficamos preguiçosos acampando na clareira. Todo dia alguém dizia: “Bom, hoje vamos subir até o topo e fazer uma longa caminhada!” E todo dia respondíamos: “Claro que vamos! Estamos ficando muito preguiçosos. É, boa idéia!”. Por algum motivo, entretanto, a gente acabava nunca saindo do lugar. A hora do almoço chegava e depois a gente tirava longos cochilos; quando finalmente acordávamos, ficávamos lendo ou brincando no riacho, e ai já era tarde e a noite começava a cair. A Corrie e eu éramos as mais animadas. Saíamos para caminhar até a ponte ou subíamos até diferentes colinas para podermos conversar longamente, só nós duas. Falávamos de garotos e amigos, sobre a escola, nossos pais, aquelas coisas de sempre. Combinamos que, quando terminássemos a escola, iríamos economizar dinheiro por uns seis meses e depois viajaríamos juntas para outro país. Ficamos superanimadas com a idéia. - Queria ficar viajando por muitos anos – disse a Corrie sonhadoramente. - Corrie, você ficou com saudade de casa quando fomos acampar na oitava série! E olha que foram só quatro dias! - Não foi saudade. Foi porque o Ian e os outros ficavam me enchendo o saco o tempo todo. - Eles eram uns monstrinhos mesmo. Eu detestava todos. - Lembra quando jogaram bombinhas na gente? Eles eram malucos! Pelo menos melhoraram depois que cresceram. - O Ian ainda é um idiota. - Não concordo. Acho que ele é legal. A Corrie sabe perdoar mais do que eu. É mais tolerante. - Seus pais vão deixar você viajar para o exterior? – perguntei. - Não sei. Pode ser que sim, se eu ficar insistindo por um bom tempo. Eles deixaram eu me inscrever naquele programa de intercâmbio, lembra? - Seus pais são tão fáceis de lidar. - Os seus também. - Acho que, na maioria das vezes, sim. Mais fica difícil lidar com meu pai quando ele está de mau humor. E ele é muito machista. Tive o maior trabalho para convencê-lo a me deixar vim nesta viagem. Se eu fosse homem, não haveria problema. - Hum, meu pai não é ruim. Tenho ensinado muita coisa a ele. A Corrie ia “levando” as pessoas até conseguir o que queria. Planejamos nosso roteiro. Indonésia, Tailândia, China, Índia e depois Egito. De lá, a Corrie queria continuar África adentro, mas eu queria ir para a Europa. A Corrie pensava em conhecer muitos países, voltar para a casa, estudar enfermagem e depois ir trabalhar no interior, onde precisam muito de enfermeiras. Eu a admirava por isso, Já eu estava mais interessada em ganhar dinheiro. Assim o tempo foi passando. Nem mesmo no ultimo dia inteiro de acampamento e com a comida acabando, alguém se animou a voltar ao Landrover para pegar mais. Em vez disso, improvisamos e comemos o resto dos salgadinhos que, em outra situação, teríamos jogado na lata do lixo mais próxima. Comemos comida que eu não teria dado para as galinhas. Tinham acabado a manteiga, o leite em pó e o leite condensado, que havíamos comido até a última gota no primeiro dia. Estávamos sem frutas, chá e queijo. Não havia mais chocolate – o que era um problema sério. Mas não sério a ponto de fazer a gente se mexer. - É um beco sem saída – explicou o Kevin. – Se tivéssemos chocolate, teríamos energia para ir até o carro buscar mais. Mas, sem chocolate, acho que não consigo dar nem um passo. Fazia muito calor. Essa era nossa principal desculpa. O Homer continuava fascinado pela Fi, sempre querendo conversar comigo sobre ela, tentando estar por acaso no mesmo lugar em que ela estaria e ficando vermelho cada vez que ela lhe dirigia a palavra. Mas a Fi não estava cooperando. Recusava-se a falar comigo sobre o assunto e fingia que não sabia do que eu estava falando, apesar de a situação estar bem óbvia para qualquer um que não estivesse em estado de coma. Nós sete tínhamos passado cinco dias juntos sem nenhuma briga séria, o que era uma coisa muito boa. Tenho que admitir que tivemos várias briguinhas, entretanto. Como na vez em que o Kevin perdeu a paciência com a Fi porque ela nunca cozinhava e nem lavava louça. Isso aconteceu depois do Grande Incidente com a Cobra. Acho que o Kevin ficou com vergonha por não ter se saído muito bem naquela ocasião. Depois, ninguém deu muita bola para a Surpresa de Salsicha que ele fez, e as duas coisas juntas devem tê-lo deixado muito sensível. Além disso, a Fi estava ganhando fama por desaparecer quando havia trabalho; portanto, o Kevin tinha uma dose de razão ao brigar com ela. Tinha também a Corrie choramingando “isso não tem graça, Homer” toda vez que ele jogava água nela dentro do saco de dormir, ou quando ele fazia alguma coisa cruel e nojenta com algum besouro, ou jogava uma aranha dentro da roupa dela, ou quando ele arrancou a última página do livro que ela estava lendo para que ela não soubesse se o par romântico tinha reatado ou não. A Corrie era uma das vítimas favoritas do Homer: era só ele provocar que ela ficava furiosa. Por sorte dele, ela não era de guardar rancor. Se é para ser honesta, tenho de admitir que também consegui amolar uma ou duas pessoas algumas vezes. O Kevin disse que eu dava uma de sabe-tudo na hora de mexer na fogueira. Na realidade, me meti em algumas encrencas por causa do fogo em várias ocasiões, porque gostava de mexer nele o tempo todo. Toda vez que o fogo diminuída de intensidade, ou mudava de direção por causa do vento, ou quando a chaleira não estava bem em cima das melhores brasas, lá ia eu com uma vareta cutucar para “arrumar” a fogueira. Pelo menos era isso que eu dizia que estava fazendo. Todos os outros diziam que eu estava “sendo uma verdadeira mala-sem-alça”. Minha pior briga foi bem boba. Não sei... pode ser que todas as brigas sejam bobas. Começamos a conversar sobre cores de carros, quais são mais visíveis ou menos. O Kevin disse que os brancos eram mais visíveis e, os pretos, menos. O Lee disse que eram os amarelos e os verdes; eu falei que eram os vermelhos e os verde-musgo; e os outros... não me lembro da opinião deles. De repente a discussão ficou bem acalorada. - Por que você acha que pintam as ambulâncias e os carros de polícia de branco? – berrou o Kevin. - E porque você acha que pintam os carros de bombeiro de vermelho? – berrei
Compartilhar