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CRISTOLOGIA CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD Cristologia - Prof. Dr. Pe. Hélcion Ribeiro Vivo e moro em Curitiba. Tenho três amores: sou professor, padre e escritor. Dou aulas de Teologia Sistemática. Lecionei em Florianópolis, São Paulo e Curitiba. Como padre, trabalhei em Lages (SC), Florianópolis e atualmente em Curitiba (Paróquia Sagrados Corações de Jesus e Maria). Como autor, publiquei vários livros quase todos de antropologia teológica. Os principais são: Ensaio de antropologia cristã (Vozes); Condição humana e solidariedade cristã (Vozes); Quem somos? Donde viemos? Para onde vamos (Vozes); A realização de nosso Deus e a do homem (Loyola); Teologia da religiosidade popular latino-americana (Paulus). Também tenho escrito muitos artigos de teologia. No momento estou escrevendo outro livro versando sobre o tema antropologia teológica. Como estudo, fiz graduação de filosofia, pedagogia e teologia. Fiz também mestrado e doutorado em missiologia, e pós-doutorado em antropologia teológica. Lecionei cristologia, escatologia e antropologia teológica no Studium Theologicum (Curitiba) e na Pontificia Universidade Católica do Paraná, por muitos anos. Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação CRISTOLOGIA Helcion Ribeiro Batatais Claretiano 2014 Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação © Ação Educacional Clare ana, 2014 – Batatais (SP) Versão: ago./2014 232 R367c Ribeiro, Hélcion Cristologia / Hélcion Ribeiro – Batatais, SP : Claretiano, 2014. 214 p. ISBN: 978-85-8377-158-6 1. Cristologia. 2. Jesus. 3. Morte. 4. Ressurreição. 5. Dogmas. I. Cristologia. CDD 232 Corpo Técnico Editorial do Material Didático Mediacional Coordenador de Material Didá co Mediacional: J. Alves Preparação Aline de Fátima Guedes Camila Maria Nardi Matos Carolina de Andrade Baviera Cá a Aparecida Ribeiro Dandara Louise Vieira Matavelli Elaine Aparecida de Lima Moraes Josiane Marchiori Mar ns Lidiane Maria Magalini Luciana A. Mani Adami Luciana dos Santos Sançana de Melo Patrícia Alves Veronez Montera Raquel Baptista Meneses Frata Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Simone Rodrigues de Oliveira Bibliotecária Ana Carolina Guimarães – CRB7: 64/11 Revisão Cecília Beatriz Alves Teixeira Felipe Aleixo Filipi Andrade de Deus Silveira Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz Rafael Antonio Morotti Rodrigo Ferreira Daverni Sônia Galindo Melo Talita Cristina Bartolomeu Vanessa Vergani Machado Projeto gráfico, diagramação e capa Eduardo de Oliveira Azevedo Joice Cristina Micai Lúcia Maria de Sousa Ferrão Luis Antônio Guimarães Toloi Raphael Fantacini de Oliveira Tamires Botta Murakami de Souza Wagner Segato dos Santos Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, a transmissão total ou parcial por qualquer forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do autor e da Ação Educacional Claretiana. Claretiano - Centro Universitário Rua Dom Bosco, 466 - Bairro: Castelo – Batatais SP – CEP 14.300-000 cead@claretiano.edu.br Fone: (16) 3660-1777 – Fax: (16) 3660-1780 – 0800 941 0006 www.claretianobt.com.br SUMÁRIO CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 2 ORIENTAÇÕES PARA ESTUDO ......................................................................... 10 UNIDADE 1 INTRODUÇÃO À CRISTOLOGIA 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 31 2 CONTEÚDOS .................................................................................................... 31 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 31 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 32 5 PONTO DE PARTIDA E CONCEITO DE CRISTOLOGIA ...................................... 33 6 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA CRISTOLOGIA ...................................... 34 7 OPORTUNIDADE E DIFICULDADES EM CRISTOLOGIA ................................... 39 8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 41 9 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 42 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 43 UNIDADE 2 JESUS, DESDE A HISTÓRIA BÍBLICA DA SALVAÇÃO 1 OBJETIVOS ....................................................................................................... 45 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 45 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 46 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 47 5 ANTIGO TESTAMENTO COMO BASE E FUNDAMENTO DA CRISTOLOGIA NEOTESTAMENTÁRIA ....................................................................................... 48 6 EXPERIÊNCIAS SALVÍFICAS NO ANTIGO TESTAMENTO ................................. 49 7 JESUS DE NAZARÉ, SUA HISTÓRIA E SUA ATUAÇÃO ...................................... 57 8 A HISTÓRIA DO HOMEM JESUS ....................................................................... 58 9 A ATUAÇÃO DE JESUS DIANTE DOS OUTROS ................................................. 69 10 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 77 11 CONSIDERAÇÕES ............................................................................................. 79 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 80 UNIDADE 3 O DESTINO DE JESUS: MORTE E RESSUREIÇÃO 1 OBJETIVOS ....................................................................................................... 81 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 81 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 82 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 82 5 A MORTE DE JESUS .......................................................................................... 84 6 A RESSURREIÇÃO DE JESUS O TESTEMUNHO NEOTESTAMENTÁRIO ....... 89 7 QUEM É JESUS? A REFLEXÃO TEOLÓGICA NEOTESTAMENTÁRIA ............ 96 8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 102 9 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 104 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 105 UNIDADE 4 REFLEXÃO HISTÓRICO DOGMÁTICA: A CRISTOLOGIA DOS DOGMAS 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 107 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 108 3 ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO DA UNIDADE ................................................. 108 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 108 5 NOVO TESTAMENTO COMO NORMATIVO PARA A CRISTOLOGIA ............... 109 6 EVOLUÇÃO DOGMÁTICA NOS CONCÍLIOS CRISTOLÓGICOS ........................ 110 7 TRÊS GRANDESRESPOSTAS E AS CONCLUSÕES DOS CONCÍLIOS ................ 123 8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 126 9 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 128 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 129 UNIDADE 5 CRISTOLOGIA SISTEMÁTICA 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 131 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 132 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 132 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 134 5 AS CRISTOLOGIAS HOJE ................................................................................... 136 6 O HOMEM JESUS .............................................................................................. 139 7 O DESTINO DE JESUS: A MORTE ...................................................................... 154 8 O RESSUSCITADO: AUTORREVELAÇÃO DE DEUS E DO HOMEM .................. 168 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 180 10 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 182 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 183 UNIDADE 6 O LUGAR E O PAPEL DE CRISTO NO PLANO DE DEUS 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 185 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 185 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 186 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 187 5 O LUGAR DO SALVADOR NO PLANO DE DEUS ............................................... 188 6 TEOLOGIA DA SALVAÇÃO SOTEREOLOGIA ................................................... 191 7 CRISTO SALVADOR ATUANDO ENTRE NÓS ..................................................... 196 8 JESUS, O EMANUEL E SALVADOR NOSSO ...................................................... 200 9 SEGUIR JESUS ................................................................................................... 208 10 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 210 11 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 212 12 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 212 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 213 CRC Caderno de Referência de Conteúdo 1. INTRODUÇÃO Seja bem-vindo! Você iniciará o estudo de Cristologia, que compõe os cursos de graduação oferecidos na modalidade EaD do Claretiano. A Cristologia é a base dos estudos teológicos. Com base na visão cristológica que se constrói toda a teologia. Dizia Jesus: "Quem me vê, vê o Pai". Ele é o revelador do Pai e do próprio ser humano. A grande “novidade” do Vaticano II foi recentralizar tudo em Cristo e, a partir dele, repensar todas as questões da fé. Se as- sim não fosse, que sentido teria em sermos "cristãos"? Conhecer Jesus Cristo para amá-lo e segui-lo, enquanto cris- tãos, é o caminho a que a Cristologia remete. Sem dúvida, o conhe- cer Jesus não é uma mera questão de saber quem é o biografado, nem do conhecimento de sua atuação e influência na história. Nós cremos em Jesus Cristo vivo e atuante hoje, no passado e sempre (cf. Hebr. 13, 8.). © Cristologia10 Como teologizar é estabelecer as razões da própria fé, espe- ro que você esteja bem motivado para aprofundar os conhecimen- tos sobre Jesus Cristo. Para isso, você deverá ler e estudar os textos indicados e complementares. Observar a sua maneira (e a dos outros) de se relacionar com Cristo e crescentemente responder: "E para você, quem sou?" (Mt. 16, 15). 2. ORIENTAÇÕES PARA ESTUDO Abordagem Geral Você estudou anteriormente Antropologia Teológica. E isto tem certa vantagem, apesar de cada uma delas serem autônomas. Mas, se você lembra: lá, na Antropologia, dizia-se que hoje se faz uma antropologia cristológica. Aqui, pelas novas tendências, qua- se seria possível dizer: faz-se uma cristologia antropológica – tal é a ênfase na pessoa de Jesus. É certo que Jesus Cristo é o fundamento de nossa fé. E é também, sem dúvida, o fundamento de toda a teologia cristã. A partir do Concílio Vaticano II, das orientações da Igreja e da teo- logia contemporânea, nenhum cristão se aproxima de Deus sem passar por ele. Não é em vão que Jesus mesmo disse ser “o cami- nho”. Ainda acrescentou: só conhece ao Pai, aquele a quem o Filho quiser revelar. Estudar cristologia é encontrar-se com Jesus Cristo. É um encontro de estudos. Porém, é mais que isto. É um encontro de fé. Não poucos teólogos insistem que este estudo/encontro se faz ajoelhado, pois vamos nos encontrar com o mistério de Deus que se dignou fazer-se um de nós, um conosco, a fim de participarmos também de seu mistério divino. Quanto mais se estuda, lê-se ou se escreve cristologia mais se sente que se deve rezar, o u melhor, silenciar diante deste misté- rio tão divino e tão humano. É importante perceber que a cristolo- 11 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo gia se faz com estudo e oração. Quem se adentrar em Cristologia precisa estudá-la muito. Mas sem rezar, sem contemplar o Senhor Jesus Cristo, não será possível aprendê-la. Alguém já teria se perguntado se é possível estudar cristolo- gia sem a fé? – decididamente não. Sem fé, alguém até pode estu- dar, pesquisar muita coisa sobre Jesus, até fazer grandes estudos científicos sobre ele. Porém, não faria cristologia. Ela é, é necessá- rio reafirmar, feita desde a fé, com o coração e com a razão. Então, sugiro no início de seu curso, ao ler e estudar Cristolo- gia você diga rezando, muitas vezes a si mesmo: estou estudando sobre aquele que é nosso Deus e nosso irmão. É ele meu senhor e salvador. No caso, como você é cristão, então já sabe empírica e/ou aleatoriamente muitas coisas sobre Jesus Cristo. Talvez até já te- nha feito algum outro curso sobre a questão. Mas, vamos fazer aqui um caminho para aprofundar e sistematizar conceitos que dão as razões de nossa fé em Cristo Jesus. Antigamente, a cristologia era uma ciência que tratava prati- camente de dogmatização sobre Cristo. A preocupação era com- provar que ele era verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Aí surgia uma série de interrogações, cujas respostas iam sendo formula- das - desde a razão - para compreender quem era Jesus. Estas dis- cussões se tornariam válidas à medida que ficasse claro ser ele o salvador da humanidade toda. Este estudo, que caracterizou por muito tempo a cristologia (praticamente do século 3º à primeira metade do século 20), não perdeu seu valor. Porém, houve uma nova interpretação neste estudo. Desse modo, ao menos no universo católico, a cristologia é divida didaticamente em três grandes temas: • cristologia bíblica; • cristologia histórico-dogmática; • cristologia sistemática. © Cristologia12 Comentemos, introdutoriamente, um pouco mais sobre cada uma delas. Cristologia bíblica Se você perguntar às pessoas mais velhas se elas, quando crianças, liam a bíblia, a resposta imediatamente será mais ou me- nos assim: "Não. Não só não líamos como era proibido lê-la". Qua- se assim procedia também a cristologia: não se utilizava da bíblia. As coisas mudaram. Hoje sem a bíblia não se pode fazer cris- tologia. Afinal, ondeencontrar Jesus se não a partir dela? Fora dela não se encontra Jesus Cristo. Aliás, não é só questão de encontrá- -lo. É preciso compreendê-lo também. A própria bíblia é critério para este estudo. É por isso que dizemos: a bíblia é normativa para a cristologia. Inclusive é só nela que encontramos as mais antigas referências sobre Jesus Cristo. Todas as outras referências antigas quase nada acrescentam de modo objetivo. Os tão falados evangelhos apócrifos foram escri- tos, no mínimo, 150 anos depois da morte dele. Mais ainda: os textos bíblicos sobre Jesus não são reportagem nem narrativas históricas ou fatos jornalísticos como se pensa hoje. A cristologia bíblica é uma interpretação pela ótica dos evan- gelistas inspirados por Deus, de quem foi Jesus. Esta ótica é feita à luz pascal. Quer dizer, os textos interpretam Jesus a partir da ressurreição. Isto cria um sentido diferente: aquele Jesus da Gali- leia, da Palestina, é redescoberto pelos próprios seguidores que o conheceram de uma forma nova. Agora, iluminados pela ressurrei- ção, o percebem num outro sentido, inclusive, muito mais profun- do... Desse modo, textos dos evangelhos são escritos de fé. No entanto, é preciso observar: temos quatro evangelhos. Cada um deles apresenta Jesus de uma forma – o que não significa negar a outra. Além disso, encontramos também a cristologia pau- lina. Portanto, a Bíblia sagrada não oferece uma, mas cinco cristo- logias ao menos. 13 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo A fé da Igreja compreende a inesgotabilidade de quem seja Jesus Cristo. Desse modo, nenhum escrito neo-testamentário se basta por si só. Antes cada um enriquece o outro e todos juntos é que mostram maximamente – apesar de não dizerem tudo – quem é aquele em que acreditamos. Dizemos que a Bíblia é normativa em suas cinco interpreta- ções conjuntas. Ora, a riqueza plural de interpretações também cria para todos os intérpretes posteriores várias possibilidades de enfoque. São Marcos enfatizou o Filho de Deus; São Mateus apro- fundou o messianismo de Jesus; São Lucas ressaltou a misericórdia de Deus em Jesus; São João faz predominar a divindade no homem Jesus; São Paulo acentuou o sacrifício do crucificado ressuscitado. As cinco cristologias bíblicas têm em comum a perspectiva da ressurreição para abordar o sentido da vida daquele judeu nas- cido seis ou sete anos antes da era cristã e que foi crucificado pelo ano trinta da nossa era. Ele passou pelo mundo fazendo o bem. Curou a muitos. Reintegrou excluídos. Abriu espaço para mulheres e crianças. Mul- tiplicou pão. Fez muitos milagres. Anunciou o Reino de Deus para todos. Foi crucificado e morto pelos romanos, instigados pelo Si- nédrio judeu. Depois foi ressuscitado e glorificado pelo Pai. Jesus – do NT – é compreendido, após a páscoa, como o messias prometido e esperado desde o AT. Por causa das circuns- tâncias concretas e históricas, Jesus não se enquadrou no modelo sócio-político do messias esperado. Isto contribuiu para sua con- denação. Da mesma forma, os judeus de então tinham certas expecta- tivas salvíficas, mas elas não foram satisfeitas por Jesus. A salvação que ele trouxe de Deus tinha critérios mais profundos que ques- tões econômicas e políticas. Como estamos vendo nestas questões de messianismo e expectativas salvíficas, Jesus também deve ser explicado a partir © Cristologia14 do AT. Isto quer dizer: para compreender Jesus Cristo é preciso re- ler o AT numa ótica cristológica. Assim, nossa primeira unidade "Fundamentos bíblicos da cristologia" será dividida em duas partes: a primeira "O AT como base e fonte da cristologia e da sotereologia néo-testamentária" e a segunda: "Jesus de Nazaré, sua atuação e sua história". Na primeira parte, procuraremos entender, a partir do AT, as experiências de salvação do povo hebreu, a questão da aliança e das expectativas messiânicas. Além disso, é interessante perce- ber na "Sabedoria" vétero-testamentária uma indicação cristológi- ca muito importante: a sabedoria de Deus é o Verbo, que se encar- nou entre nós. Na segunda parte da cristologia do NT, iremos estudar so- bre este homem extraordinário chamado Jesus. Enfocaremos sua vida. Nela iremos nos deter na orientação de sua vida, de seu agir, de sua pregação e modo de ser. Destacaremos a relação dele com os marginalizados, com as mulheres e com os diferentes grupos de influência de seu tempo. Depois, estudaremos o destino humano de Jesus, ressal- tando sua morte e ressurreição. Para concluir, vamos aprofundar a resposta do NT acerca de Jesus. A mesma pergunta que Jesus fizera aos seus: "quem dizem os homens que eu sou?" se estende pela história toda e continua a ser feita. É preciso respondê-la. E o NT é sempre uma norma segu- ra, apesar de não ser uma resposta unívoca. É por isto que se per- cebe duas grandes orientações no NT: uma chamada "cristologia da exaltação e da eleição" (que alguns chamam de "cristologia de baixo") e "cristologia da pré-existência e da encarnação" (outros a chamam de "cristologia do alto"). A partir destas perspectivas, temos uma chave para compreender como padres, bispos, cate- quistas, teólogos e familiares falam sobre Jesus. 15 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo A cristologia histórico-dogmática A segunda unidade de nosso estudo volta-se para o desen- volvimento do dogma, ou seja: de como a Igreja foi compreenden- do quem era Jesus por meio de uma nova linguagem (a filosófica, de corte helênico) – centrada, sobretudo, entre os séculos 4º e 7º. São os chamados "séculos de ouro da cristologia". O que aconteceu? O cristianismo foi saindo de suas raízes e limites judaicos. Os cristãos foram se espalhando pelo Império Romano e encontravam outras culturas, especialmente a cultura helênica, dos filósofos gregos. Começaram a adaptar a mensagem evangélica a estes povos e culturas. Na linguagem de hoje se diria: começaram a inculturar o evangelho. Como há muito tempo não existia mais quem tivesse co- nhecido Jesus, começaram a multiplicar perguntas: ele é verda- deiramente Deus? – É, então, um homem verdadeiro como nós? – Como poderia ser Deus e homem ao mesmo tempo? – Seria uma pessoa em duas? – Ele sabia as coisas porque era Deus? – Enfim, como explicar quem era aquele Jesus a quem todos amavam? As perguntas multiplicavam-se. As discussões tornavam-se acaloradas. Chegava-se a discutir nos botequins, nas esquinas e praças. Todo mundo ia tomando partido. Pior ainda. Como esta- vam se misturando interesses políticos e econômicos aos religio- sos. O próprio imperador romano interferia constantemente não só para apaziguar os exaltados, como também para acirrar ânimos. Aí muita gente foi presa. Outros, torturados. Houve perseguição e até assassinatos. Por causa das cristologias, bispos, teólogos, po- líticos e o povo começaram a criar inúmeras polêmicas. Uns expli- cavam de um jeito. Outros não aceitavam o jeito e propunham ex- plicações diferentes. Um era de um partido; outro, doutro. Houve até muita vontade de acertar. E isto era o que a Igreja, por meio de sua gente, definia. Foram uns 400 anos de lutas teológicas até a Igreja definir os mais importantes dogmas – não só - mas, sobre- tudo - cristológicos. © Cristologia16 Esta unidade – que será apresentada de forma sintética em nosso curso – destacará uma série de concílios ecumênicos (os 7 grandes concílios ecumênicos), com muitos nomes e muitas ideias. Aí se estabeleceram uma série de termos técnicos – de ordem filo- sófica - para definir Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro ho- mem, ao mesmo tempo, como uma única pessoa, mas portadora de duas vontades e duas reações, por causa de sua divindade e de sua humanidade – que devem ser integrais, totais, a fim de que se reconheça nela o verdadeiro mediador entre Deus e os homens e nosso salvador. Lembro ao estudante que a cristologia antiga considerou esta parte como "a cristologia",como se ela fosse a cristologia em sua totalidade. Hoje nós a estudamos como parte integrativa da fé, mesmo que muito importante na cristologia. Se a Bíblia é normativa, a dogmática é integrativa. Ela deve ser conhecida e compreendida para não serem repetidas inverda- des e/ou exageros na fé. A cristologia sistemática A terceira unidade será chamada "Cristologia sistemática". Ela quer ser uma retomada da reflexão bíblica e histórico-dogmática, com linguagem atual, como resposta às nossas atuais questões de fé. Vamos sub-dividí-las em quatro temas. "As cristologias atu- ais", "O homem Jesus", "Seu destino (morte e ressurreição)" e, por fim, "O papel e o lugar de Cristo no plano de Deus". Será uma reflexão teológica, em que vamos procurar fazer leituras globais sobre Jesus Cristo. No tema "As cristologias atu- ais", a partir do esquema "cristologia de baixo" e "cristologia de cima", vamos procurar compreender esta atual e tão rica forma de fazer cristologia. Inclusive, vamos perceber a validade atual das chamadas "cristologias contextuais ou de contexto", como por exemplo: a cristologia negra ou africana, a cristologia feminista, a 17 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo cristologia indígena, a cristologia da libertação e a atual cristologia europeia – de cunho mais dogmatizado. Todas estas cristologias são respostas circunstanciadas, que as pessoas e as comunidades precisam. Elas são sempre respostas parciais – não universalizadoras, como se pretendeu no passado. Mas, sua validade se confirma a partir da normatividade e diversi- dade do próprio NT, que respondia aos anseios de fé daqueles que queriam seguir Jesus. No tema "O homem Jesus", procuraremos entender a origi- nalidade dele e como ele mesmo se compreendeu diante de Deus. Convém ter claro que ele existiu entre nós, por nós. Mas, ao mes- mo tempo, deve-se compreendê-lo como homem por Deus e por nós, simultaneamente. Assim, ele não é só um deus e nem só um personagem humano que viveu só para Deus ou só para a história humana. O "destino de Jesus" será o terceiro tema da unidade. Explicações antigas sobre a morte de Jesus necessitam de novos horizontes. As respostas clássicas parecem insuficientes, mesmo mantendo a validade. Então se começa a entender a ne- cessidade de novas e convincentes respostas. Aí surgem as teolo- gias da solidariedade e da representação. Encontramos a resposta do amor total de Jesus que se entrega por nós, até o extremo da cruz. Nunca um homem amou tanto assim a seus irmãos e a Deus. Como ressuscitado, Jesus revela Deus e o próprio ser huma- no. A recuperação do valor da ressurreição, na cristologia, abriu novas perspectivas de fé para clarear quem somos, qual o nosso futuro, como o ressuscitado garante a nossa ressurreição futura. Enfim, a ressurreição de Jesus – como diz S. Paulo – é o mistério central de nossa fé. Sem ela, tudo quanto cremos seria em vão. O quarto tema abordará "O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus". Nossa fé ensina que o filho de Maria, filho da humanida- de, foi unido de tal modo com o Filho eterno de Deus – o que sempre © Cristologia18 existiu. Ele tornou-se, desde seu nascimento humano, a imagem visível de Deus invisível. E nele, nós reconhecemos nosso Salvador. Se pela cruz ele nos redime de nossos pecados, pela ressurreição sabemos que ele agora vive e, ao mesmo tempo, nos vivifica, nos dá vida nova e plena, pelo seu Espírito. Por isto é nosso salvador. . Deveremos aprofundar aqui a questão da "Teologia da salvação" oportunizada por Cristo. Pela cruz ele salva os pecadores. Mas, sua obra salvífica é bem maior que isto. Nossa salvação, por meio dele, consiste na realização plena e total do ser humano e de qualquer ser humano. Nossa humanização completa consistirá em poder ver e viver em Deus. Isto pertence ao serviço de salvação que o Filho eterno de Deus, nosso irmão, faz por nós. Eis aí, prezado estudante, a caminhada que faremos: uma cristologia que passa pela bíblia, vai à história do dogma e conclui com uma reflexão sistematizada sobre Jesus Cristo. S. João evangelista conta que, em certa ocasião, André, ir- mão de Simão Pedro, perguntou a Jesus: "Mestre, onde moras?". E Jesus respondeu: "Vinde ver". André foi, passou à tarde com Jesus e nunca mais o abandonou. Gostaria que seu estudo de cristologia tivesse como inquie- tação e resposta esta atitude do apóstolo André: que você en- contre Jesus, e permaneça com ele, como discípulo e missionário evangelizador. Bons estudos! E que Jesus, o Senhor, esteja presente neles enquanto você estuda. Glossário de Conceitos O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá- pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de conhecimento dos temas tratados em Cristologia. Veja, a seguir, a definição dos principais conceitos: 19 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo 1) Adocianismo: doutrina do 2º século que afirmava ter Jesus sido adotado por Deus (Pai) como Filho especial, dadas suas qualidades morais. O principal autor desta teoria foi Paulo de Samósata. 2) Amartiocentrismo: teoria teológica que compreende toda a relidade da salvação a partir do pecado. Jesus é nosso salvador por causa do pecado. Sua encarnação se deve a este fato. 3) Antropomorfismo: forma de compreender Deus como homem ou atribuir a Deus sentimentos (ira, ódio, rancor, alegria etc.) ou imagens humanizadas de Deus (boca, olhos, dedos etc.). 4) Antropos: o ser humano considerado em sua realidade completa. Para indicar o homem, no sentido masculino, usa-se a expressão "andros", como o equivalente femini- no "gineos"- daí: ginecologia. É importante a expressão "antropos" porque, na história da cristologia, alguns qui- seram afirmar que Jesus era apenas um "corpo" (sarx) emprestado para Deus e não um verdadeiro "antropos". 5) Apocalíptico: gênero literário muito usual no judaísmo pré e pós-cristão, por meio de parábolas, visões e nú- meros simbólicos, cuja característica consiste em "reve- lações" sobre o fim dos tempos e os sinais que o prece- dem. 6) Apócrifos: são textos de antiga tradição que se preten- diam ser revelados, mas foram excluídos do cânon bíblico. 7) Apolinarismo: doutrina, cujo principal defensor foi o bispo Apolinário de Laodiceia (séc. 4º), que negava a existência de uma alma humana em Jesus. Jesus seria portador apenas de uma alma divina. Em consequência, Jesus não seria verdadeiramente humano. 8) Arianismo: doutrina do século 4º, cujo principal defensor, ARIO, defendia que o Verbo fora criado por Deus e era inferior a ele, mesmo sendo superior a toda criatura, pois fora gerado antes da criação do mundo. O arianismo foi condenado como heresia no Concílio de Niceia, em 325. 9) Calcedonia (Concílio): convocado pelo imperador Mar- ciano, em 451, condenou a heresia de Eutiques afirman- © Cristologia20 do que Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, é uma pessoa (divina) em duas naturezas (humana e divina) unidas sem se confundir ou mudar, sem se separar nem se divi- dir. O Verbo Encarnado é ao mesmo tempo um e o mes- mo homem e Deus Jesus Cristo. 10) Carisma: na linguagem do NT, designa o dom gratuito e irrevogável concedido pelo Espírito Santo a uma pessoa em vista do bem da comunidade. 11) Concílio: assembleia dos bispos seja regional ou univer- sal. Nos tempos antigos podia ser convocado pelo im- perador; hoje este poder pertence ao papa. Um concílio ecumênico, convocado e presidido pelo papa, é a mais alta autoridade da Igreja Católica e pode decidir impor- tantes realidades da fé, da moral e da vida da Igreja. 12) Consubstancial: termo não bíblico, proveniente da filo- sofia, adotado no Concílio de Niceia (325) para designar a perfeita unidade e a perfeita identidade entre Deus Pai e Filho. Ambos têm a mesma natureza e a mesma subs- tância. Mais tarde tambémse atribui o conceito ao Espí- rito Santo. Assim o Pai, o Filho e o Espírito Santo têm a mesma natureza e a igual substância. Também se utiliza a expressão grega "homoousios" ou "homousios", algo bem diferente de "homoiousios" (ver à frente). 13) Cristo: expressão grega latinizada que significa "ungido" equivale à expressão hebraica "messias" (mashiaj). Ex- pressa a realização das expectativas messiânicas em Je- sus, dada nela a plenitude do Espírito Santo. 14) Cristocentrismo: gira em torno de Jesus Cristo como centro da teologia e da fé. A revelação de Deus se faz pelo Cristo Jesus para a nossa salvação. Nem por isto pode-se ignorar o significado da Trindade Santa, em que Cristo é a segunda Pessoa Divina e que se fez um de nós. 15) Cristomonismo: compreensão equivocada do lugar de Jesus Cristo na fé, como se ele fosse o centro único do próprio cristianismo, ignorando o lugar da Santíssima Trindade. 21 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo 16) Cristologia: doutrina teológica que estuda a pessoa, a mensagem e a obra de Jesus Cristo. Sua razão de ser está em compreender Jesus e sua obra como Aquele Um da Trindade que se encarnou e se fez humano como nós, para a nossa salvação. Cristológico: referente a Cristo. 17) Cristo da Fé: teoria histórico-religiosa que se contrapõe ao Jesus histórico, na tentativa de diferenciar os atos e fatos pertinentes ao mesmo Jesus, homem e Deus, inse- paravelmente. Tal teoria, no fundo, chega quase, senão totalmente, à realidade histórica de Jesus de Nazaré. 18) Cristologia do alto ou do descenso: é a cristologia que tem como ponto de partida de sua reflexão a preexistên- cia do Verbo que existe junto do Pai desde toda a eter- nidade e daí parte para encarnar-se na história. A cristo- logia de Baixo ou da Ascensão, ao contrário da anterior, afirma a realidade de Jesus a partir da sua encarnação histórica. São dois pontos de partidas que não podem se excluir mutuamente. Ambas devem, ao final, conseguir o mesmo resultado. A questão está em partir analitica- mente da humanidade ou da divindade de Jesus Cristo. 19) Docetismo: teoria teológica primitiva, rejeitada pela Igreja, que negava a real encarnação de Cristo, atribuin- do a ele apenas uma aparência humana – para não "con- taminar" sua realidade divina. 20) Dogma: verdade de um aspecto da fé, definido pela au- toridade da Igreja como revelado por Deus. O dogma é uma afirmação definitiva sobre uma verdade da fé, que não se pode mudar. Isto não quer dizer que o dogma seja algo que não possa ser expresso em novas lingua- gens que visem expressar exatamente o que a Igreja quer ensinar. É muito comum confundir "dogma" com "dogmatismo"; este último consiste numa atitude de fechamento, de conservadorismo, que em geral não ex- pressa a própria atitude de fé. 21) Emanuel: expressão atribuída a Jesus para significar "Deus conosco". É, antes, uma expressão antigo-testa- mentária usada pelos profetas para designar a futura presença de Deus entre os homens. © Cristologia22 22) Éfeso: nesta cidade da antiga Ásia Menor (atual Turquia), no ano de 431, foi realizado o terceiro concílio ecumê- nico, por causa das controvérsias de Nestório, que afir- mava existirem em Cristo duas pessoas simultâneas. A primeira sendo Deus mesmo e a segunda “o filho de Maria”. Por isso ela não poderia ser chamada "mãe de Deus", mas apenas "mãe do homem Jesus, ou quando mundo "Mãe de Cristo". O Concílio de Éfeso, presidido por Cirilo, patriarca de Alexandria, condenou Nestório e declarou "Maria, mãe de Deus". 23) Economia da salvação ou divina, também plano de Deus: economia, do grego, administração da casa. Teo- logicamente se refere à vontade salvífica de Deus, por meio da história, cuja culminância acontece pela encar- nação do Verbo. 24) Escatologia: doutrina referente às questões últimas. Este tratado teológico estuda as questões referentes ao tempo da presença plena e definitiva de Deus na histó- ria, cujo evento Jesus Cristo é a antecipação e a garantia antecipada do tempo da salvação definitiva em Deus. 25) Escola alexandrina e escola antioquena: duas grandes escolas teológico-catequéticas, surgidas no final do sé- culo 2º que tiveram grande importância na interpretação da fé. A primeira tinha um acentuado caráter metafísico- -filosófico na pregação da fé, com pressupostos platô- nicos e orientação intelectual idealista, com método alegórico para a interpretação das Sagradas Escrituras. A outra (em oposição à Alexandrina) fazia uma interpre- tação mais lógico-gramatical das Escrituras, ressaltando assim mais o dimensão histórico-terrena de Jesus. 26) Filho do Homem: expressão antigo-testamentária, para indicar uma figura celeste, que aos poucos foi assumin- do um caráter de figura pessoal e ao mesmo tempo di- vina. No NT, Jesus provavelmente a utilizou para indicar a si mesmo. 27) Gnosticismo ou Gnose: movimento religioso anterior ao cristianismo, com que rivalizou em algumas cidades, in- clusive chegando a infiltrar-se em algumas comunidades cristãs. Afirma uma dualidade radical entre matéria e es- 23 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo pírito, bem e mal; afirma também a salvação como um processo de libertação por meio do conhecimento e não pela encarnação e morte do Filho de Deus. 28) Heresia: palavra grega que indica "escolha". É a escolha arbitrária de uma parte da verdade de fé, em detrimento do todo, inclusive negação de alguns aspectos da pró- pria fé. 29) Hipostase: (termo grego) correspondente ao latino subs- tância: é utilizado para indicar "o que está por detrás". No caso da cristologia, refere-se ao sujeito das opera- ções, a pessoa. 30) Homoi-Ousios: termo cuja tradução indica semelhança. Para afirmação da unicidade de Deus (uma só pessoa), dizia-se que Jesus não seria igual (homousios), mas se- melhante (homoi-ousios. Pela doutrina da "homoouo- sia" (ou homousia") afirma-se que Jesus é igual ao Pai, em natureza ou substância. 31) Jesus: termo hebraico (Jeho-shuah), encontrado diver- sas vezes no AT e significa “Aquele que salva”. Para dis- tingui-lo dos outros, chama-se ao filho de Maria: Jesus de Nazaré. 32) Kerigma: (ou querigma): a expressão teológica designa o anúncio da Boa Nova do Evangelho, feito pelos apóstolos para anunciar aos crentes quem era Jesus e por que eles eram chamados à conversão e ao batismo. O kerigma indica o conteúdo primeiro da pregação de nossa fé, o anúncio do fato de nossa salvação, anunciado por Jesus. 33) Logos: “palavra” ou “verbo”, em grego. Aplicado a Jesus, indica o que pré-existia junto a Deus, encarnou-se no seio de Maria, está glorificado à direita do Pai e o Senhor e Salvador nosso. 34) Messias: (em hebraico), Cristo (em grego) foi o termo usado normalmente para indicar o "ungido" esperado escatologicamente como salvador. Depois foi atribuído a Jesus. 35) Monofisismo: doutrina do monge Eutiques que afirma- va uma única natureza em Cristo. Tal doutrina foi conde- nada no Concílio de Calcedonia. © Cristologia24 36) Monotelismo: heresia condenada no III Concílio de Constantinopla (seculo 8º), que afirmava existir apenas uma vontade em Cristo, a divina, anulando assim a von- tade humana de Jesus – o que caracterizaria uma falsa humanidade em Jesus. 37) Pessoa Divina: considera-se que a Trindade Santa é for- mada pelas três pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito San- to. Cada uma dessas Pessoas Divinas está relacionada às outras duas, mas tem a mesma substância divina, mas mantém uma relação quer como Pai, quer como Filho etc. O conceito de pessoa divina tem analogia, mas não se identifica com o conceito de pessoa humana. 38) Preexistência: (de Jesus): referência que se faz à pessoa divina de Jesus, que existia desde toda a eternidade, jun- to com o Pai e o Espírito Santo, e que se encarnou como humano no seio de Maria. A preexistência não significa nenhuma possibilidade de Jesus ter sido criado antes dealgo ou de alguém. Sua vida é eterna como a do Pai e do Espírito. 39) Redenção: (redentor) ação salvadora e libertadora atri- buída a Jesus. Alguns autores enfatizam a "redenção" como a dimensão própria auferida pela morte de Jesus na cruz – o que enfatizaria o aspecto negativo da sal- vação (salvação dos pecados). A salvação, em sua di- mensão positiva, seria a conquista da vida eterna feliz em Deus, para o que Jesus é o "caminho, a verdade e a vida"). A contraposição desses dois conceitos, para mui- tos, está em que a redenção é pertinente à questão dos pecados, enquanto a salvação se refere à plena realiza- ção da pessoa. 40) Sinótico(s): referente aos evangelhos de Marcos, Ma- teus e Lucas, que mantêm entre si uma visão capaz de criar uma visão de conjunto sobre Jesus, o mais aproxi- mado possível da realidade por ele vivida. 41) Sotereologia: doutrina que enfatiza o papel salvífico de Jesus no Plano divino da criação. Jesus veio para nos con- duzir à vida plena, ensinando-nos o caminho de Deus. 42) Substância (em grego "ousia"): aquilo que existe em si, o suporte para a existência pessoal e que não depende 25 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo de outra pessoa ou objeto. O que lhe é próprio e não acidental. É a essência do ser. 43) Subordinacionismo: teologia rejeitada pela Igreja, por afirmar a subordinação de natureza e não a igualdade entre o Filho e o Pai. 44) União Hispostática: conceito cristológico que afirma a plena e total unidade das naturezas divina e humana em Jesus – sem divisão e nem separação, sem mistura e nem confusão. Jesus, por causa da união hipostática, é um e o mesmo Deus e homem. É um conceito importan- te porque privilegiar demais a dimensão divina sobre a humana, ou vice-versa, descaracteriza a pessoa de Jesus. O único sujeito, Jesus Cristo, tem em si e ao mesmo tem- po as naturezas divina e humana. 45) Verbo: aplicado a Jesus, significa ser ele preexistente como a “Palavra do Pai”, o Logos. Esquema dos Conceitos-chave Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas próprias percepções. É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações entre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais com- plexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você na or- denação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de ensino. Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende- -se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em es- quemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu conhe- cimento de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos peda- gógicos significativos no seu processo de ensino e aprendizagem. © Cristologia26 Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es- colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda, na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es- tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim, novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem pontos de ancoragem. Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape- nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci- so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con- siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei- tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cog- nitivas, outros serão também relembrados. Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é você o principal agente da construção do próprio conhecimento, por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações in- ternas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por ob- jetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja, estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de co- nhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo (adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/eduto- ols/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em: 11 mar. 2010). 27 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo JESUS, VERBO ENCARNADO Preexistente Um da Trindade: O Verbo Eleito para ser o Salvador Humanidade: Criada para a Glória de Deus Históricas de: - aliança - Reino de Deus - messianismo Escatológicas de: - criação - santificação - consumação Relações salvíficas Desde a origem à plenitude dos tempos (Maria) A história humana de Jesus “Pro Deo” “Pro Nobis” Obediente e fiel Orante Pelos outros Morte Ressurreição Jesus Exaltado à direita do Pai Verdadeiro Deus Verdadeiro Homem Um e o Mesmo Dois modos de agir Duas vontades LOGOS ANTROPOS (União hipostática) No plano de Deus Primogênito dentre os mortos Consumador da criação Modelo de “adão” (homem) perfeito Realizador das aspirações humanas EMANUEL Deus conosco e para nós Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo Cristologia. Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im- portantes deste estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre © Cristologia28 um e outro conceito e descobrir o caminho para construir o seu processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, o conceito cen- tral da cristologia é o próprio Jesus, Verbo encarnado donde pro- cedem todos os demais conceitos, como a preexistência e a con- sumação do ser humano e do cosmos, que passa pelos conceitos de homem perfeito e Deus perfeitos, que por sua vez se unem no conceito de união. O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambien- te virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas realiza- das presencialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EAD, deve valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio co- nhecimento. Questões Autoavaliativas No final de cada unidade, você encontrará algumas questões autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas. Responder, discutir e comentar essas questões, bem como relacioná-las com a fé e a pastoral pode ser uma forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a resolução de ques- tões pertinentes ao assunto tratado, você estará se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhecimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profissional. Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um gabari- to, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões autoavaliativas de múltipla escolha. As questões de múltipla escolha são as que têm como respos- ta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se por questões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada, 29 Claretiano - Centro Universitário © Caderno de Referência de Conteúdo inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm por res- posta uma interpretação pessoal sobreo tema tratado; por isso, normalmente, não há nada relacionado a elas no item Gabarito. Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus colegas de turma. Bibliografia Básica É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio- grafias complementares. Figuras (ilustrações, quadros...) Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte- grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra- tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con- teúdos estudados, pois relacionar aquilo que está no campo visual com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual. Dicas (motivacionais) Este estudo convida você a olhar, de forma mais apurada, a Educação como processo de emancipação do ser humano. É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com- partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade. Você, como aluno dos Cursos de Graduação na modalidade EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente. Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri- © Cristologia30 mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades nas datas estipuladas. É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas pode- rão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produ- ções científicas. Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discuta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas. No final de cada unidade, você encontrará algumas questões autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas, pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure- cimento intelectual. Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores. Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a este Caderno de Referência de Conteúdo, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para ajudar você. EA D Introdução à Cristologia 1 1. OBJETIVOS • Analisar o âmbito e o conceito de cristologia. • Identificar as grandes etapas do estudo cristológico. • Caracterizar as dificuldades e oportunidades atuais da cristologia. 2. CONTEÚDOS • Ponto de partida e conceito de cristologia. • Desenvolvimento histórico da cristologia. • Oportunidades e dificuldades em cristologia. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: © Cristologia32 1) Leia os livros da bibliografia indicada, para que você am- plie e aprofunde seus horizontes teóricos. Esteja sempre com o material didático em mãos e discuta a unidade com seus colegas e com o tutor. 2) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos expli- citados no Glossário e suas ligações pelo Esquema de Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades deste CRC. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu desempenho. 3) Para saber mais, leia os quatro discursos de Pedro nos Atos dos Apóstolos. 4) Revistas semanais como Veja, Superinteressante, Isto é, em geral trazem informações baseadas no "Jesus Semi- nar" – cuja única preocupação é com o Jesus da história, não com o Cristo da fé nem mesmo com Jesus Cristo cri- do pelas Igrejas. 5) Entre os teólogos que afirmam a continuidade de Je- sus no judaísmo encontram-se John D. Crossan e Marcos Borg. No grupo que privilegia a descontinuidade com a tradição judaica estão E. P. Sanders, Geza Vermes, John P. Méier. 6) Independentemente desta terceira fase (Thrid Quest sobre o Jesus histórico), na cristologia contemporânea surgem novos e fascinantes temas, como o Cristo Cósmi- co e a cristologia pluralista. Veja sobre este assunto o in- teressante número 326 – 2008/3 da CONCILIUM, Revista Internacional de Teologia, intitulado: Jesus como Cristo: o que está em jogo na cristologia? 7) Para aprofundar o estudo da história da cristologia, leia o verbete “história da cristologia” in: LACOSTE, Jean- -Yves. Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas - Loyola, 2004, p. 480-491. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Nesta unidade, você terá a oportunidade de conhecer a história da cristologia, seu ponto de partida e seu conceito, bem como as dificuldades e oportunidades que ela propõe. 33 Claretiano - Centro Universitário © U1 - Introdução à Cristologia Vale ressaltar que a cristologia, como todas as outras discipli- nas teológicas, pressupõe e exige a fé. Estudar Jesus Cristo, aqui, não quer dizer encontrá-lo como um líder (político ou religioso), fundador de religião ou personalidade mais conhecida do mundo. Tão pouco, vamos encontrá-lo a partir da piedade devocional. Ele é o Messias, Filho de Deus vivo que viveu na Palestina, passou fa- zendo o bem e hoje continua sendo irmão e Senhor de todos os homens e mulheres. Bom estudo! 5. PONTO DE PARTIDA E CONCEITO DE CRISTOLOGIA A cristologia é o tema central da teologia. A comunidade e a fé cristã não se constituem por meio de uma religião ou de uma moral, nem mesmo de um conjunto de doutrinas. O centro do cris- tianismo e, por consequência, da cristologia, está na pessoa de Je- sus Cristo. Uma pessoa viva, que é o revelador definitivo de Deus e do ser humano. Ele é o fundamento e o conteúdo da fé, a origem e o sentido da existência humana. É o Filho do Altíssimo que assu- miu, em si, a carne humana, vivendo como um de nós. Desse modo, toda a teologia, a fé e a comunidade eclesial são determinadas pela compreensão de "quem é Ele, para Deus e para nós". Não há nenhum outro fundamento (cf. 1Cor 3,11; Mc 12,10ss) e orientação de fé, senão Ele. Assim, para compreender Deus, o ser humano, o mundo, a igreja, a revelação, a fé, a graça, a salvação, a eternidade etc., Ele é o "caminho", o mediador radical, mesmo que não seja a meta final (que é o Reino de Deus ou Deus mesmo). Para tanto, salientamos que a cristologia é o centro da teolo- gia. É ela o ponto de partida, sem ser a totalidade da teologia. Ela é como o centro donde partem os raios de uma roda de bicicleta. A palavra “cristologia” foi usada pela primeira vez, em 1624, como título do livro de B. Messneir, Christologiae sacrae disputationes. © Cristologia34 A história pessoal de Jesus Cristo é a referência permanente e o ponto de partida da cristologia. Ela abrange a vida, a mensa- gem, as ações e o destino (morte e ressurreição) de Jesus, conta- dos à luz da páscoa. Não é a pura biografia de Jesus que dá origem à cristologia, mas, a sua vida à luz da ressurreição – aliás, é como fazem os evangelhos. Dessa forma, ela passa da história dos fa- tos para captar a consciência e o significado destes na totalidade de quem é Jesus, aquele que nasceu de Maria, mas veio de Deus, como nosso salvador. 6. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA CRISTOLOGIA Como reflexão a respeito de Jesus Cristo, a cristologia tem início no Novo Testamento. Implicitamente, pode-se dizer que o próprio Jesus Cristo seria seu iniciador. Mas, as questões sobre Ele começaram a surgir logo após sua ressurreição, quando os discípu- los precisaram compreender e explicar que o crucificado não era um fracassado, mas Deus o havia ressuscitado. Quantomais se propagou a vida, a mensagem e o destino de Jesus, mais os cristãos foram chamados a "dar as razões de sua fé". Assim, logo no início surgiu uma reflexão entre os judeus con- vertidos e outra reflexão entre os cristãos de origem grega. Ambas queriam saber quem era Jesus, diante do crescente contato com o mundo greco-romano, a fim de continuarem crendo nele como Deus encarnado. A expansão de Igreja levou-a a um terceiro período, que tam- bém é conhecido como o "período de ouro da cristologia" (século 3º ao século 7º), com os grandes Concílios de Niceia (325), Cons- tantinopla I (381), Éfeso (431), Calcedônia (451), Constantinopla II (553) e III (681). Neste período se discutiriam questões de trans- cendental importância, num período de inculturação da fé, saída do mundo semita para o helenismo: Jesus é verdadeiro Deus? É verdadeiro homem? É, ao mesmo tempo, verdadeiro Deus e ver- dadeiro homem? Como? 35 Claretiano - Centro Universitário © U1 - Introdução à Cristologia O período posterior é o da cristologia medieval. Entre os te- mas, destacam-se: o significado (o porquê) da encarnação e a ciên- cia (conhecimento, vontade e consciência) de Jesus. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– A história da cristologia medieval é bem mais desenvolvida, nesta unidade, como informação. E não será retomado o tema noutras unidades deste Caderno de Referência de Conteúdo, ao contrário dos outros. De modo geral, ela está muito presente no atual cotidiano das igrejas cristãs. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O período subsequente é o da cristologia escolática, em que se destacam duas grandes figuras: santo Anselmo (+ 1109) e santo Tomás de Aquino (+ 1274). A importância cristológica de Anselmo está em sua obra Por que Deus se fez homem? (Cur Deus homo?). Este livro foi traduzido para o português pela editora evangélica Novo Século, em 2003. Nesta obra e em alguns outros discursos, Anselmo faz a mais influente leitura ocidental da cristologia sotereológica. Esta cris- tologia marcou todo o segundo milênio e permanece muito forte ainda hoje. Anselmo propusera-se a dialogar com os judeus e muçulma- nos sobre quem era Jesus por meio de uma lógica racional e socio- lógica, sem apelar às Escrituras Sagradas (NT). Judeus e mulçuma- nos não acreditam nelas. O autor parte do contexto sociocultural de seus pretensos interlocutores. Vejamos: Assim como é, não só indigno, mas é injusto, um senhor feu- dal perdoar a um servo que o tenha ofendido gravemente, também não só é injusto é indigno da parte de Deus, perdoar ao homem pecador. Pois, se o senhor feudal o perdoa, se tornará injusto para com os outros servos, além de abrir possibilidade para que eles o ofendam também. Por outra razão, como e com que "moral" um ofensor se dignará aproximar-se de seu senhor para suplicar-lhe o perdão? Somente um terceiro, que possa fazer a intermediação © Cristologia36 e ao mesmo tempo esteja comprometido com os dois lados, sem dever a nenhum, teria a possibilidade deste gesto de sacrifício e compaixão. Contudo, segundo Anselmo, é deste modo que Jesus se en- carnou para poder, morrendo na cruz, restituir a honra ofendida de Deus e obter o perdão de Deus ao pecador. Se desde Tertuliano (+ depois de 220) vinha se afirmando a dimensão sotereológica (de salvação) pela cruz, agora Anselmo elabora critérios teológicos suficientes para justificar a encarnação de Jesus. Note-se que desde a bíblia e da patrística, há várias interpre- tações possíveis sobre o significado "encarnatório". O predomínio do significado de "morte na cruz pelos pecados" avultou-se no se- gundo milênio, o que oportunizou a artistas, dramaturgos, poe- tas e "místicos" medievais desenvolverem tanto a espiritualidade quanto a devoção e a literatura centradas na cruz. Santo Tomás de Aquino aceitou a "teoria da satisfação" de Anselmo, mas, propôs-se a corrigi-la num ponto fundamental. Não era o direito do ofendido (Deus) que se deveria levar em conta. O importante era a bondade de Deus, que nos amou tanto a ponto de nos dar seu Filho único. Deus poderia nos perdoar de diversos modos, mas escolheu este. A teoria de santo Tomás, mesmo acei- ta, nem sempre foi mais utilizada que a "dramática" de Anselmo. É bem verdade, que antes de Tomás de Aquino, Pedro Abe- lardo (+ 1142) já havia proposto o amor de Deus como critério da encarnação. Como, porém, Abelardo se fundamentou nas ideias de santo Irineu e a igreja no ocidente, que estava tão imbuída do helenismo, teve dificuldades de recepção. Tomás capitalizou a ex- plicação mantendo a relação amor-cruz-morte. A teoria da satisfação (anselmiana) foi a que os reformado- res encontraram e que se tornou fundamento, não só na cristolo- gia, mas em toda a teologia decorrente da Reforma e, até os dias atuais, esta teoria é muito frequente. 37 Claretiano - Centro Universitário © U1 - Introdução à Cristologia Note que, na Igreja Católica, a teoria anselmiana é muito frequen- te. Contudo, não há uma interpretação unívoca. Merece atenção, aqui, a cristologia da Reforma com dois grandes teólogos: Lutero (+ 1504), influenciado por questões pessoais e pelo pessimismo agostiniano, afirmava que a ira de Deus só poderia ser satisfeita ou Deus só deixaria de punir, mediante o sacrifício de seu Filho morrendo em nosso lugar. Jesus carregou nosso pecado, sofreu as consequências, satisfez a Deus e obteve para nós a justi- ficação. É assim o nosso salvador, porque é o único que pode nos justificar. Calvino (+ 1504), inclusive por sua formação jurídica, enten- deu que Cristo, oferecendo-se em sacrifício ao Pai em nosso lugar, como substituto nosso, obtém do Pai o perdão, pois nós nascemos maus e depravados. Nós nascemos da carne e por isso somos car- ne (cf. Jo 3,6). Esta corrupção é irregenerável, mas Deus, pelos mé- ritos de Cristo, pode salvar aqueles a que predestinou esta graça. Nem todos serão salvos, apenas os que Deus escolhe ou predes- tina. Calvino também insistiu na ideia de tríplice função de Cristo: sacerdote, profeta e rei. O Concílio de Trento (1545 – 1563) não elaborou uma cris- tologia própria. Aceitou diversas correntes da época, mas afirmou certas verdades de fé: a universalidade do pecado de Adão, a ne- cessidade do batismo para a salvação, o enfraquecimento da von- tade por causa do pecado e, sobretudo, a necessidade de Cristo para a salvação. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Por causa da cultura amartiocêntrica, nos tempos do Concílio de Trento, parece que a salvação era apenas questão de salvar dos pecados. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– © Cristologia38 A partir do século 19, novas questões contextuais e univer- sais oportunizaram e continuam oportunizando criativas reflexões teológicas sobre o significado de Jesus para todos os homens e/ou desde as culturas. Uma nova e radical questão cristológica surgiu nesse período e é conhecida como a questão do “Cristo da fé e o Jesus histórico”. A grande influência do "período de ouro da cristologia" (séculos 4º e 8º) fazia parecer que tudo estava resolvido partindo da ontologiza- ção de Cristo. Mas, a re-descoberta do Novo Testamento, de modo crescente, obrigou uma volta ao Jesus da história. Não que se en- tendessem duas realidades distintas. Mas, a do Cristo da fé era, de tal modo, hegemônica que o Jesus da história "quase" desaparecia. A questão surgiu com o pesquisador alemão Hermann Sa- muel Reimarus, com seu livro, não traduzido, Sobre a intenção de Jesus e seus discípulos e se estende até hoje. Inúmeros historiado- res dividem três períodos desta pesquisa: 1) Na primeira fase (de 1779 a 1913), pesquisas históricas começam a descobrir a história de Jesus. Descobre-se um Jesus "liberal", pois querem se afastar de toda "ide- ologia" e "mistificações", seja dos textos do NT, seja do ensino da Igreja. Albert Schweitzer, em 1913, fez uma grande síntese deste período e qualificou osestudos como "filhos culturais" daqueles tempos em que emer- gia uma figura que satisfizesse mais os ideais moralizan- tes ou moralistas da humanidade. 2) A segunda fase (1913...) atém-se, até hoje, ao chama- do método histórico-crítico. Martin Kähler cunhou as expressões "Cristo da fé" e "Jesus histórico", num livro seu de 1896, em que afirmava a necessidade de não separar o chamado Jesus histórico do autêntico Cristo bíblico. Outros autores como Rudolf Bultmann, Paul Tilli- ch, Günther Bornkamm, Ernest Fuchs, Gerhard Ebeling e Joachim Jeremias também aprofundaram a questão do Cristo da fé e do Jesus histórico. Eles, mesmo fazendo suas distinções, afirmavam a necessidade de manter a unidade para compreender Aquele que é apresentado pela nossa fé. 39 Claretiano - Centro Universitário © U1 - Introdução à Cristologia 3) Já na terceira fase, desde 1954, continua-se a pesquisa histórica e procura-se desenvolver a compreensão de Jesus Cristo, a partir de elementos culturais paralelos como a influência dos documentos de Qumran, a desco- berta de evangelhos apócrifos, o contexto sociocultural, político e religoso dos tempos de Jesus. Um grupo de estudiosos do "Jesus Seminar" (Califórnia EUA) tende a privilegiar, no tempo de Jesus, a descontinuidade dele em relação ao seu tempo. O outro grupo prefere vê-lo inserido em seu contexto hebraico. 7. OPORTUNIDADE E DIFICULDADES EM CRISTOLOGIA As históricas e grandes questões cristológicas podem ser re- sumidas em três: a humanidade de Jesus, sua divindade e a si- multaneidade divina e humana. No entanto, há outra questão im- portante: o lugar da compreensão de Jesus. Neste sentido, fala-se muito, hoje, de Jesus histórico e do Cristo da fé, da cristologia de cima ou de baixo, da cristologia cósmica e da exaltação. Esta discussão surge partindo ora da dimensão divina que pré-existe e se encarna na terra, ora da história de Jesus nascido de Maria, na Galileia. Uma faz o caminho inverso da outra. Seus autores constroem inúmeros argumentos para demonstrar a cer- teza de seu ponto de vista. A verdade cristológica exige que as duas se completem. Uma não é completa sem a outra. A grande tensão na cristologia e na fé cristã em geral é con- ciliar a humanidade e a divindade de Jesus. Por causa do ponto de partida, há excessos e/ou insuficiências que levam a considerar demais a humanidade, esquecendo a divindade ou vice-versa. Esta dificuldade – natural, por sinal – só é real porque estudar, conhe- cer, amar e seguir Jesus têm muitas faces. Jesus Cristo não é uma pessoa linear, de um esquema só. Sua riqueza sempre ultrapassa um ponto de vista. Não é em vão que no NT aparecem vários modelos de análise cristológica. Nenhum © Cristologia40 deles é completo sem os outros. Esta sabedoria bíblica com frequ- ência é esquecida ou desvalorizada entre os teólogos. Outra dificuldade foi a grande ontologização de Jesus. Quer dizer, os "séculos de ouro" produziram uma riquíssima e feliz re- flexão sobre o "ser de Jesus em si". Ao procurar compreender "quem é Jesus", responderam muito mais "o que é Jesus". Então, por meio de uma linguagem altamente sofisticada, muitas vezes só compreendida por especialistas, estabeleceram diversas expli- cações, donde se originaram os dogmas cristológicos. A modificação do modo de viver, sobretudo a partir da re- volução industrial, do avanço da tecnologia e das ciências, atingiu o modo medieval de compreender quem é Jesus. Novas culturas, que não só as europeias, também pedem novos estudos, exigem novas apresentações eclesiais e teológicas sobre Jesus. Mas, sobretudo, com a descristianização dos povos e a perda da hegemonia dos cristãos, tem sido mais difícil "dar as razões da fé" em Jesus Cristo. Os tempos atuais urgem novas maneiras de seguir a Jesus e relacionar-se com Ele. A experiência pessoal, grupal e da comu- nidade de fé procura nova abertura para o mistério de Deus, do mundo, dos seres humanos etc. Esta renovação passa pela com- preensão de quem é Jesus. Ele é o caminho. A cristologia tradi- cional, mesmo sem perder seu valor, vai dando à luz cristologias plurais, capazes de sustentar a fé dos crentes nas novas situações humanas e culturais. É importante perceber que Jesus Cristo é o mesmo sempre. Mu- dam-se os tempos, as culturas e os modos de compreendê-lo. A reflexão teológica sobre Jesus tem, então, a tarefa de co- municar, de modo construtivo, o significado da história e da pessoa de Jesus, sem nunca perder de vista as cristologias neotestamen- tárias. Todavia, deve-ser ter presente, também, a longa história da dogmatização como fonte e certeza da verdade da fé. 41 Claretiano - Centro Universitário © U1 - Introdução à Cristologia Na história dos dogmas encontra-se uma adequada escola para evitar concepções erradas sobre o Filho de Deus, que se fez nosso irmão para nossa salvação. Ele, o Senhor dos vivos e dos mortos, é, contudo, uma pessoa viva e histórica e só Nele está a nossa salvação. Por isso, a cristologia, que tem como normativo o NT e é guarda do patrimônio da tradição e do dogma, atualiza-se, ao mesmo tempo, como ciência (conhecimento) e como vivência (experiência) da fé. A tarefa e as novas possibilidades da cristologia permane- cem, ao clarificar, hoje: a) o significado da história do crucificado/ressuscitado; b) a relação singular de Jesus com Deus, como seu Pai; c) a unidade com o Pai e o Espírito Santo; d) a relação de Cristo com todos os homens; e) o sentido da história e do mal; f) a salvação para todos os seres humanos, conforme o plano de Deus. 8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Sugerimos, neste tópico, que você procure responder às questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta uni- dade, bem como que as discuta e as comente. A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para testar seu desempenho. Se encontrar dificuldades em responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estudados para sanar suas dúvidas. Este é o momento ideal para você fazer uma revisão do estudo desta unidade. Lembre-se de que, na Educação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma coo- perativa e colaborativa. Portanto, compartilhe com seus colegas de curso suas descobertas. Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: © Cristologia42 1) Por que entender que Jesus Cristo é o ponto de partida de toda a teologia cristã, particularmente da cristologia? 2) Quais são os grandes períodos da história da cristologia? 3) Qual a ideia básica de Santo Anselmo para compreender quem é Jesus Cris- to? 4) Por que a cristologia continua apresentando novas ideias teológicas sobre quem é Jesus Cristo? 5) Cite alguns novos temas da cristologia. 6) A partir do que você estudou, como conceitua “cristologia”? Elabore suas respostas em seu caderno para verificar sua com- preensão, e depois confira com o texto. 9. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, você se deparou com a problemática não de Jesus, mas da cristologia. Entre as questões, surgiu a diversidade de cristologias, já no NT, as tensões entre as teorias sobre Deus e o homem, o lugar da cristologia, bem como o papel do dogma cristológico, suas dificuldades e possibilidades atuais. A grande transformação da(s) cristologia(s) atual(ais) é o seu reencontro com a soteriologia, a qual é o estudo da ação e signifi- cado salvíficos de Cristo para nós. Verbo de Deus que se fez huma- no, entre nós e conosco, é enviado do Pai para nos mostrar quem somos (você deve recordar, aqui, seus estudos de Antropologia Teológica) e nos levar à salvação, à realização plena. Para anun- ciar isso, Jesus falou da Boa Nova do Reino de Deus, “passou pelo mundo fazendo o bem” (At 10,38), mas foi morto na cruz. O Pai o ressuscitou e o constituiu Senhor nosso, colocando-o à sua direita. Contudo, a cristologia re-descobre a soteriologia e faz o dis- curso sobre Aquele nosso irmão que foi constituído como nosso salvador.43 Claretiano - Centro Universitário © U1 - Introdução à Cristologia Já na próxima unidade, iremos aprender sobre o AT como base e fundamento da cristologia neotestamentária, as experiên- cias salvíficas, Jesus de Nazaré, sua história e sua atuação, e, tam- bém, o homem Jesus e a atuação de Jesus diante dos outros. Até lá! 10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, T. (Org.). Manual de dogmática. Petrópolis: Vozes, 2002, v. I. MARTIN, R. Jesus, relato histórico de Deus. Cristologia para viver e rezar. São Paulo: Paulinas, 1997. RAUSCH, T. Quem é Jesus? São Paulo: Santuário, 2006. SERENTHA, M. Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre. Ensaio de cristologia. São Paulo: Salesiana, 1986. LACOSTE, J.Y. Cristo/cristologia. In: Dicionário crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas - Loyola, 2004. Claretiano - Centro Universitário EA D Jesus, desde a História Bíblica da Salvação 2 1. OBJETIVOS • Identificar ideias, fatos e pessoas como fundamento e ori- gem no Antigo Testamento, para a cristologia e a sotereo- logia neotestamentária. • Situar e compreender Jesus, filho de Maria e de Deus, a partir da Bíblia. • Analisar a atuação de Jesus no contexto histórico, para melhor identificá-lo. 2. CONTEÚDOS • O Antigo Testamento como base e fundamento da cristo- logia neotestamentária. • As experiências salvíficas, no Antigo Testamento. • Jesus de Nazaré: sua história e sua atuação. • O homem Jesus. • A atuação de Jesus diante dos outros. © Cristologia46 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Para você saber mais sobre o que estamos estudando nesta unidade, leia: Is 42,1-9; 49,1-6; 50, 4-9; 52,13; 53,12. 2) Entre os inúmeros autores atuais que descrevem o Jesus histórico, você pode consultar mais diretamente: MAG- NANI, G. Jesus construtor e mestre: novas perspectivas sobre seu ambiente de vida. Aparecida: Santuário, 1998, p. 180-185 3) Para se aprofundar mais, leia a concepção de Reino de Deus, em MOLTMANN, Jürgen. Quem é Jesus para nós Hoje? Petrópolis: Vozes, 1997. 4) Você pode aprofundar o tema dos milagres de Jesus em diversas obras de teologia e/ou de bíblia neotestamen- tária. Recomendamos, porém, um texto bem interessan- te: RAUSCH, Thomas. Quem é Jesus? Uma introdução à cristologia. Aparecida: Santuário, 2006, p. 151-154. 5) Sugerimos que você leia o capítulo “Uma história de li- berdade”, em FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré, a história de Deus, o Deus da história. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 242-274. 6) Para saber mais sobre os fariseus, leia: As sete espécies de fariseus, em SAUNIER, Christiane; ROLLAND, Bernard. Palestina no tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 80. 7) Veja as inúmeras informações sobre o "sinédrio", no Índice de nomes, assuntos e obras fundamentais, em THEISEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002, p. 650. 8) O tema da família de Jesus, em interessante abordagem, você encontra em MAGNANI, Giovanni. Jesus, constru- tor e mestre: novas perspectivas sobre seu ambiente de vida. Aparecida: Santuário, 1998, p. 241-257. 47 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Esta unidade quer aproximar você, criticamente, dos textos bíblicos para perceber os profundos significados cristológicos sub- jacentes. Jesus de Nazaré é um ser humano, datado e localizado no povo e na tradição judaicos e, fora disto, não pode ser com- preendido. Imagine se Ele tivesse nascido na Espanha, durante a inquisição. O AT, além do próprio significado histórico-salvífico em si, prepara a vinda de Jesus e vai confirmá-la. Aliás, o próprio Jesus fez isto para que os discípulos de Emaús o reconhecessem (cf. Lc 24,36ss). Mesmo não sendo os evangelhos uma história de Jesus, é possível, hoje, identificá-la a partir daqueles textos e reconstruir sua vida, paixão e morte. Ao mesmo tempo, pode-se descobrir como Jesus situou-se diante de Deus, da sociedade e da religião judaica. É, porém, só à luz da ressurreição que se pode identificar o significado de Jesus diante de Deus e da humanidade, como "Aquele maldito que foi aceito e glorificado por Deus". É a ressur- reição que dá o sentido da fé cristã e lança luzes para a compreen- são de quem foi e é Jesus. Os sinóticos apresentam uma cristologia desde a história de Jesus, o homem que foi exaltado por Deus. João e Paulo acentuam a origem cósmica de Jesus (mesmo não esquecendo sua história terrena). Estes cinco textos elaboram cristologias fundadas no es- pírito pascal, mas com características tão peculiares que as tornam distintas umas das outras. Neste momento é importante que você reflita sobre se o que você sabe em relação a Jesus está realmente fundamentado na Bíblia ou a Igreja descobriu “a posteriori”: a) Alguns escritores dizem que a Igreja transformou o Jesus his- tórico em Deus. Outros afirmam que o judeu Jesus foi romani- zado e/ou ocidentalizado. Isto tem algum fundamento? © Cristologia48 b) Você consegue descobrir, nos evangelhos, diferentes identida- des de Jesus? c) Com os evangelhos, pode-se escrever uma biografia de Jesus? Temos certeza de que conhecer Jesus, a partir da Bíblia, é uma aventura apaixonante e inesgotável e que, após o estudo des- ta unidade, você será mais apaixonado por Ele e sua fé vai apare- cer mais fundamentada. Bom estudo! Aproveite e aprofunde seus conhecimentos. 5. ANTIGO TESTAMENTO COMO BASE E FUNDAMEN TO DA CRISTOLOGIA NEOTESTAMENTÁRIA Para compreender Jesus, você deve introduzir-se na pers- pectiva vivida pelos hebreus do Antigo Testamento. É necessário entender valores existenciais por eles vividos, que pertencem aos mistérios de Deus e do ser humano, mas vão se tornar mais claro à medida que entendemos quem é Jesus. Uma leitura temática do Antigo Testamento, mesmo sem ser exaustiva, abrirá caminhos para a percepção do contexto espiritual em que Jesus nasceu, vi- veu, morreu e ressuscitou. Jesus creu em Deus como um judeu, não como um grego ou brasileiro. É desde a longa tradição de seu povo onde nasceu, que Ele viveu, creu e morreu. O momento histórico de sua vida não era o melhor da história do Povo Eleito. Todavia, este tempo estava "carregado" pela longa tradição de bênçãos divinas: alianças e li- bertações, de pecados humanos e de expectativas messiânicas. No Novo Testamento chamou a tal tempo de “plenitude dos tempos” (cf. Gal 4,4). O judaísmo bíblico sempre interpretou os fatos presentes à luz do passado. Por isto foi capaz de aliar-se com Deus, corrigir- -se de seus erros e ter só em Deus sua confiança. Neste contexto, nasceu e viveu Jesus. É preciso buscar algumas características da história judaica para compreendê-lo mais corretamente. 49 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação O judeu Jesus de Nazaré foi alguém profundamente imbuído de religiosidade de seu povo. Sua história está moldada por cos- tumes, leis, profecias, orações e tradições em que até o nome de Deus se evitava pronunciar, por reverência. Jesus respeitou a Torá, não veio para modificá-la (cf. Mt 5,17). O que não significa que não tenha tido uma postura crítica diante das leis e costumes de seus contemporâneos. Afinal, grande parte deles criou tradições e costumes, a Halaká que atentava contra o espírito das Escrituras. Halaká: Em hebreu, “caminhos, proceder, norma”. Entre os judeus, a interpretação da escritura, particularmente da Lei, com múltiplas e detalhadas normas de proceder. Estavam afixadas na Halaká. Na Torá, encontrava-se a própria Palavra de Deus. Foi Jesus mesmo quem indicou o método de interpretar sua história "segundo as Escrituras" (cf. Mc 14,49; Lc 24,44; 1Cor 15,3ss), quer dizer: na tradição da fé e da esperança de Israel. In- terpretar Jesus "segundo as Escrituras" não significa encontrar tex- tos óbvios e cronologicamentecrescentes, simbólicos ou alegóri- cos do que vai acontecer. Antes, na "atormentada" relação entre Israel e Deus, é que se encontra a chave de leitura mais adequada como pano de fundo na qual Jesus se situa e, ao mesmo tempo, subverte-a reinterpretando-a Assim, as categorias e esperança do AT são o horizonte para compreender Jesus. Contudo, são também a ocasião de compre- ender o inaudito e indedutível “fato Jesus”, para transcender a própria história de Israel, o que estudaremos adiante. 6. EXPERIÊNCIAS SALVÍFICAS NO ANTIGO TESTAMENTO Você encontrará, sintetizadas, três experiências de salvação do povo judeu do Antigo Testamento, que evidenciam a necessi- dade de compreender Jesus no contexto das tradições e expecta- tivas de seu povo. Você pode aprofundar outras experiências além © Cristologia50 das indicadas, como a apocalíptica judaica, o comportamento dos patriarcas, sacerdotes e mediadores que prefiguram o papel de Cristo. A experiência da aliança A história vetero-testamentária de Israel é feita no diálogo entre Deus e seu povo. Deus fala, julga, promete, consola e, so- bretudo, renova alianças. Ele é o Deus da aliança, o que defende e salva seu povo, quase sempre infiel. É o Deus fiel à sua Palavra salvífica, sem se deixar prender pelos conceitos, mas sempre se re-cria ao se manifestar e agir. O nome de Deus é clássico: "Eu sou aquele que sou para vós" (cf. Ex 3,14). Ele será o Deus da bênção e da promessa. Ele é o Deus que olha e salva no presente, mas tem olhos para o futuro definitivo. Ele é o que cumpre sua promessa. Isto se manifesta, sobretudo: • na experiência da aliança; • na expectativa messiânica; • na reflexão sapiencial. Deus é aliado do ser humano, do seu povo. Quer assegurar sua liberdade e sua salvação. Israel deve ser um povo livre. Por isso, Deus será sempre fiel à sua aliança, mesmo que o homem não o seja. Com a libertação do Egito, inicia-se nova eleição divina do povo, cujo pacto se firmou no Sinai. Antes houvera a aliança com Abraão e as simbólicas com Adão e Noé. Nenhuma aliança, contu- do, era um pacto entre iguais. Deus sempre tomava a iniciativa. Ele não usava sua onipotência para esmagar o ser humano, usava-a sempre para salvá-lo. Esta é uma aliança assimétrica entre Deus, o Onipotente, e seu povo, limitado e pecador. A fidelidade de Deus exprimia-se, antes de tudo, por asse- gurar a posse da terra a seu povo. Um povo escravo não é dono 51 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação nem de si nem do fruto de seu trabalho. A posse da terra é sempre símbolo de liberdade e de vida feliz. Isso se concretiza na gera- ção de muitos filhos e no aumento de propriedade, de rebanhos e de gado. Mas, a qualidade de vida efetiva-se na comunhão entre Deus e seu povo "Vós sereis minha propriedade particular entre todos os povos" (Ex 18,5ss). Desta comunhão derivam todas as ou- tras bênçãos. A "memória" das intervenções de Deus é percebida sempre como ações salvíficas em favor do seu povo. O "Deus vivo" (1Sam 17,26-36; Sl 42,3) é experimentado como "fonte de vida" (Sl 36,10), como o Deus dos pais que está sempre presente para abençoar, e salvar. "Aquele que sou para vós" é o Deus libertador em sentido real, corporal, social e econô- mico. "Lembra-te que foste escravo no Egito e que Javé, teu Deus, te libertou lá." (Dt 24,17s; 15,12-15). Javé digna-se até habitar no Templo de Sião (1Rs 8,12; Is 8,18; Sl 9,12) e lá acolhe e abençoa sempre, os que o buscam. Os salmos e cânticos de Sião expressam esta confiança e louvam o lugar em que ele habita. Porém, quando a fonte de perturbação é interna, no cora- ção, Javé aceita os cultos de expiação e redenção para o perdão dos pecados. O sangue do animal sacrificado na morte vicária pe- los pecados deve ser substituído pela exigência de Deus: "quero o amor e não sacrifícios" (cf. Am 5,21-25; Mq 6,6-8). E o próprio Deus dá o exemplo: ele quer salvar, por isso perdoa (cf. Is 55,6ss; Ez 33,10-20). Mesmo que Deus sempre se disponha a renovar a aliança, conceder o perdão, abençoar com terra, gado e filhos, quer aben- çoar também os peregrinos de Sião. Parece que a salvação defi- nitiva vai mais além, inclusive, da morte. A espera da salvação/ redenção universal vai se delineando como algo messiânico-esca- tológico. Isto vai ser um presente sem pressupostos e/ou exigên- cias. Porque Javé é bom, a terra dará colheitas abundantes. Ele vai "criar um novo céu e uma nova terra" (Is 65,17; 66,22), onde não mais haverá lamento e dor (Is 65,19s). © Cristologia52 Enquanto isso, mediadores humanos de salvação surgem em Israel, como reis, profetas, sacerdotes, que denunciam a violên- cia, o pecado e a idolatria e mostram caminhos de renovação para Deus. São servos de Deus em favor da salvação exílica e pós-exílica. Contudo, a grande promessa de salvação acontecerá por meio de um Messias davídico ou Filho do Homem, como figura escatológica-individual. Expectativas messiânicas Só Moisés viu a Deus, com quem falou "face a face" (Dt 5,4). Só a ele foi confiado o nome de Deus (cf. Ex 3,14). O povo não o viu, apenas o ouvia. Por isso, este é o povo da Palavra. Deus diz a Moisés: "Javé teu Deus suscitará um profeta como eu no meio de ti, dentre teus irmãos, e vós o ouvireis (...). Vou suscitar para eles um profeta como tu no meio de seus irmãos. Colocarei as minhas palavras na sua boca e ele lhes comunicará tudo o que eu lhes or- denar." (Dt 18,15-18). Javé Deus promete sua presença por meio de um novo profeta, cujo protótipo é Moisés. Mas, esta espera também antevê um novo êxodo e uma nova aliança. A força da promessa dita pelo profeta estará na Palavra viva, eficaz, que pro- duz o que significa, julga, abate e torna a erguer (cf. Is 55,10-11; Jr 1,10). Nos Cânticos do Servo de Javé, em termos claramente pro- fético–mosaico – aparece, pela primeira vez, a expectativa messi- ânica. Ele será enviado em favor de todas as nações, proclamará a justiça e guiará o povo num novo êxodo. Nele se estabelecerá uma nova aliança entre Deus e seu povo. Seu sofrimento será causa de salvação. Esta esperança da promessa profético-messiânica vai se atualizando sempre. Espera-se um Elias redivivo, que "prepare o grande e terrível dia do Senhor" (Ml 3,25) ou um novo Moisés tão redentor como o primeiro (cf. Os 9,1). Espera-se que a Palavra de Javé rompa os céus e desça (cf. Is 63,1a). 53 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação É impressionante o oráculo de Isaias que expressa a inaudita ex- pectativa sobre o papel do seu servo (Is 61,1-3). (Leia este texto, compare-o com Lc 4,18-20 e veja o resultado). O povo da Palavra tem no Profeta aquele que é capaz de ler de modo lúcido e profundo a ação de Deus na história, o significa- do dos acontecimentos. E até intuir suas decorrências futuras, não é esquecido o oráculo: "Eis que virão dias..." (cf. Jr 31,31ss). Deus é quem refaz as alianças, mas quer vir morar entre seus filhos, a fim de que todos o conheçam dos menores aos maiores (cf. Jer 31,36). O Messias será a sua mais amorosa manifestação. Ao mesmo tem- po, é Ele quem levará Israel à sua verdadeira realização. A experiência de fé de Israel mantém-se e cresce assinalada, mais que pelos bens presentes, pela expectativa dos prometidos bens futuros. A partir do oráculo de Natan (2Sm 7,14; Sl 89,20- 28; 1Cro 7,4-14), o messianismo tem forte conotação davídica: o Messias será um filho de Davi. Ele será aquele "Filho de Deus" por quem Javé vai restaurar escatologicamente a nova ordem de justi- ça, paz e integridade. (cf. Is 11,1-9). A história de Israel foi feita de esperanças e decepções fre- quentes pela sua não correspondência e pela infidelidade dos reis e profetas. O pecado e a idolatria enfraquecem a expectativa mes- siânica. Mas, mesmo nas contradições, Deus suscita chamas de es- perança. À época da restauração pós-exílica e dos acontecimentos decorrentes, nos períodosmais recentes, surgiu um messianismo Apocalíptico que apontou ao advento de um cataclisma cósmico. Seria o fim deste mundo cósmico. Com isso, a literatura Apocalíp- tica estende-se de 200 a.C. até 100 d.C. A primeira grande obra é a de Daniel (168-164 a.C.), além de 1 e 2 Henoc, 4 Esdras e 2 Baruc. Frente à trágica perseguição dos selêucidas helênico-sírios (a partir de 220 a.C. aproximadamente), à apostasia maciça de fé judaica, à profanação do Templo e à abolição da Torá, surgia a can- dente questão: "até quando...?". © Cristologia54 Só Deus podia salvar, só Ele que sempre salvara. É então que a profecia de Daniel 7,1-14 ganha força. A figura de semelhante a um Filho do Homem, pairando no céu em meio às bestas de pavorosa aparência indica o Messias escolhido, Filho de Deus, protagonista e vencedor escatológico: o restaurador definitivo do Reino de Deus. Deste Messias escatológico, apesar da ambiguidade (era uma figura coletiva simbólica ou individual pessoal?), espera-se a libertação dos povos estrangeiros, impuros pecadores e opresso- res. Ele trará a vitória, os dominará e congregará um Israel santi- ficado e puro. Seu governo será sábio, justo e abençoado (cf. Sl 17,23-51; 18,7; 17-50; Br 29,3). Não basta mais a intervenção de um messias-rei terreno. Só de Deus é que pode vir aquele que fará o julgamento e trará a salvação. E só este messias escatológico fará um novo início de tudo (cf. Dn 2,34s; 3,33; 4,31; 8,55). No último século antes de Cristo, estas expectativas torna- ram-se muito fortes, mesmo em se pensando na profecia de Natã (2Sm 7,1-16) sobre o oráculo do Emanuel, aliado à palavra de Isaias (7,14). A Sabedoria de Deus como antecipação do Verbo Encarnado A grande tradição de Israel é a sua histórica relação com Javé. Ambas estão fixadas nos cinco livros do Pentateuco, que ca- racterizam as vicissitudes do povo e a ação salvífica de Deus. Numa faixa semita que vai da Mesopotâmia ao Egito, há uma cultura com conotação religiosa cósmica. No centro da re- flexão está a existência: se nasce, cresce, desenvolve e morre. É a questão do sentido da vida pessoal: como realizar-se plenamente? Como ser feliz? São questões antropológicas que afetam universal- mente qualquer ser humano, em qualquer tempo, debaixo do céu. Na Palavra e na Sabedoria de Deus estão manifestos o senti- do, a esperança e a salvação de toda a história. O israelita se deixa 55 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação guiar por elas, que ao lado do “anjo de Javé" e do Espírito, exercem funções distintas, mas inseparáveis e ao mesmo tempo, se condi- cionam mutuamente. Vale salientar que, em nosso estudo, enfatizaremos apenas a re- flexão sobre a Sabedoria. Os outros temas (Palavra e “anjo de Javé”) serão estudados, sobretudo, nas Disciplinas Bíblicas e na Pneumatologia. É necessário caracterizar logo que Sabedoria, para o semita, não equivale à concepção grega (Sofia). Também não é especula- ção filosófica. A sabedoria humana pertence ao campo prático e moral da vida, relacionada a toda e qualquer realidade humana e terrestre. "O princípio da sabedoria é o temor de Javé" (Pr 1,7; 9,10; Sl 111,10; Sir (Eclo) 1,14). Ela é uma virtude, fundada em Deus, desenvolvida tanto do âmbito doméstico e tribal, quanto da corte real de Jerusalém. Mas, a sabedoria é, na realidade, um atri- buto de Deus. Ela provém da boca de Deus (Eclo 24,3). Foi gerada por Deus antes da criação do mundo (Pr 8,22-31). Reflete a glória de Deus. É imagem de sua bondade (Sb 7,25-26). Tem uma mis- são no mundo (Sb 6,12-16; 9,10-18), especialmente junto a Israel, onde fez sua morada (Eclo 24,8). Na literatura sapiencial mais recente, ela é personificada e adquire maior relevo (Pr 14,1). A Sabedoria é uma bem amada, uma hospedeira que convida para seu festim (Pr 9,1-6). Saída da boca do Altíssimo (Si 21,3) é uma efusão da glória do Onipotente, sua imagem e vive da intimidade de Deus (cf. Sb 7,25ss; 8,3). Está associada a tudo o que Deus fez no mundo. Ela se divertia brin- cando na criação (Pr 8,27ss; 3,19ss; Sir (Eclo) 24,5). Ela continua a reger o universo (Sb 8,1). É ela quem garante a salvação (Sab 9,18). É a distribuidora de todos os dons de Deus (Pr 8,21; Sb 7,11): vida e felicidade (Pr 3,13-19; 8,32-36), todas as virtudes (Sl 8,7s). É ela quem faz os amigos de Deus (Sb 7,27s). Participar dela é viver introduzido na vida de Deus, pois é o prêmio dos que buscam a verdadeira felicidade (Pr 1,20-33; Sb 17,21-8,1). © Cristologia56 O Antigo Testamento expressa constantemente a tensão en- tre o Deus da Aliança e a história de Israel, quase sempre quebrada e fracassada. Deus intervém como Senhor da história fazendo no- vas alianças e promessas. A promessa mais radical é a do envio de um messias, mensageiro de paz e justiça, para todos os povos. O desejo messiânico se torna sempre mais forte especialmente nas crises de Israel, que tem a certeza: "nosso auxílio vem do Senhor” (cf. 115,9). Sempre se renova a esperança, suscitada pela promes- sa. Um dia, o fracasso será superado para sempre. Por outro lado, a reflexão dos sábios no cotidiano da vida e da morte se nutre da sabedoria, criada antes da criação e que fez morada entre os ho- mens. Possuí-la é viver na espera de Deus. Afirmamos, anteriormente, que para compreender Jesus era necessário compreender a história e, também, a espiritualidade de seu povo. O povo hebreu se sentiu um povo escolhido por Deus em sucessivas alianças. Deus o protegeria dando-lhe muitos filhos, terras e gado. Sem a bênção de Deus, eles perdiam tudo. Isto fica- va claro nos períodos de escravidão e cativeiro. Inúmeras vezes, Deus se serviu de mediadores para confir- mar seu amor pelo povo. Por fim, Deus suscita nele uma grande esperança por um Messias escatológico. O povo escolhido, apesar de seus inúmeros pecados, vive na confiança em Deus. A literatura sapiencial, além de sua sabedoria experiencial, também acredita existir no próprio Deus a Sabedoria, como aquela que articula a relação de Deus com os homens. Todas estas questões estavam muito presentes nos últimos tempos antes do nascimento de Jesus. Havia grandes tensões e expectativas messiânicas. Para entender Jesus, é preciso ter pre- sente ao menos estas ideias. Você deverá ter percebido nesta reflexão a afirmação insis- tente de que Deus dirige a história. Ele preparou seu povo para o envio do seu Filho, na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4; Ef 1,10). Certamente, você terá ouvido falar dum "pequeno resto" que per- 57 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação manece fiel a Javé. Do povo de Israel sobraram uns poucos. Assim, para compreender Jesus Cristo é necessário compreender o seu contexto imediato. 7. JESUS DE NAZARÉ, SUA HISTÓRIA E SUA ATUAÇÃO É importante deixar claro, aqui, alguns pressupostos, antes de continuar seu estudo. No caso concreto, você é uma pessoa de fé, um cristão. Não é um ateu. Ao mesmo tempo, você quer aprofundar, a nível teoló- gico, o conhecimento sobre Jesus Cristo, proclamado e crido pela Igreja para amá-lo e testemunhá-lo. Portanto, é necessário racio- nalizar a fé, explicá-la, adequá-la a novas situações e transformá-la em fermento de sua vida pessoal e da sociedade. Seu estudo não será feito a puro nível histórico, como se ele fosse apenas um personagem da história. É pressuposto dado que no homem histórico e real, Jesus de Nazaré, encontramos Deus encarnado. Deus se fez homem neste Jesus que viveu na Palestina. Isto é uma situação única e inaudita. Tem-se tentado descobrir o Jesus histórico em estado puro, independentemente da fé proclamada à luz da ressurreição. Este é um estudo cientificamente importante que envolve, no presente, estudiosos altamente gabaritados. Não é, porém, deste Jesus que o teólogo se aproxima, mesmo ao levar em conta os resultados destas pesquisas. Na verdade, é impossível reconstituir a história de Jesus. Querpor falta de documentos, quer pelo significado his- tórico das interpretações sobre ele. O que os historiadores fazem é tentar reconstruir, com muitos documentos, o tempo e o espaço que Jesus viveu. Contudo, queremos, aqui, deixar de lado a pura fé, que não pensa na história concreta de Jesus, como se ele não tivesse vivido e mergulhado num tempo histórico em meio a um povo histórico. Ele era e é Deus, mas sem deixar de ser homem concreto, datado © Cristologia58 e verdadeiro. Ele não é a soma de homem e Deus, nem um Deus em aparência humana. O estudo da cristologia também não pode estar fundado numa fé ou religiosidade popular e nem no pietismo. Certas tra- dições que se vivem não têm outro fundamento senão a piedade e/ou projeção de desejos pessoais e/ou grupais. Jesus Cristo, de quem vamos nos aproximar agora, é aquele que o Novo Testamen- to e, sobretudo, os Evangelhos nos apresentam. 8. A HISTÓRIA DO HOMEM JESUS Não se tem de Jesus Cristo um conhecimento direto. Ele pertence à história, mas nós só o conhecemos pela experiência e testemunho dos apóstolos relatados pelos evangelistas, que modi- ficaram sua compreensão sobre Ele à luz da ressurreição. Assim, conhecer Jesus é buscá-lo em sua história global (nas- cimento, vida, palavras e ações, morte e ressurreição), à luz da fé pascal. Ele na verdade é o misterioso filho da humanidade por meio de Maria, que viveu no início da era cristã na Palestina. Trabalhou com suas próprias mãos. Pregou a boa notícia do Reino de Deus. Foi escandalosamente crucificado e morto. Deus o ressuscitou, constituindo Senhor à sua direita. Deus devolveu-lhe toda a glória que tinha, desde toda a eternidade, mas que fora esvaziada quan- do Ele se fez homem como nós. Todavia, o significado de Jesus está em ter sido humano, sem deixar de ser Deus, e é nosso salvador. Há, em geral, duas formas de se aproximar de Jesus Cristo: 1) Uma longa tradição da Igreja, após ter discutido e sinte- tizado em fórmulas dogmáticas a verdade sobre Jesus Cristo, priorizou sua divindade (mesmo confessando sua humanidade). Historicamente, predominou o Cristo da fé; 59 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação 2) Nos últimos tempos, a pesquisa histórica tem ajudado a Igreja a redescobrir a humanidade de Jesus da histó- ria, que na verdade está mais próximo dos evangelhos (sinóticos), sem deixar à margem as contribuições dog- máticas. Nossa opção aqui é partir da realidade de Jesus histórico, para, depois, estudar as grandes conquistas histórico-dogmáticas e, por fim, sistematizar, teologicamente, o significado de Jesus para nós. Não é possível elaborar uma biografia científica exaustiva so- bre Jesus, uma vez que as fontes documentais são insuficientes. Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Na Unidade 5, você poderá aprofundar-se numa discussão atual sobre o Jesus da história, que muitos pesquisadores se propõem. Essa discussão tem um valor científi co, porém não cristológico. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Os evangelhos apresentam Jesus não para fazer história, como se entende hoje. Fora do mundo cristão não há informações confiáveis e suficientes. Os evangelhos, contando a história da vida de Jesus, querem, na verdade, dar os fundamentos da fé à luz da ressurreição e é por isto que se pode fazer cristologia, mas não história. Assim, começar a conhecer Jesus desde os evangelhos e des- cobrir neles sua história é o caminho não só mais adequado, hoje. É também caminho necessário, porque a Bíblia é normativa para os cristãos. É dela que dependem os dogmas. Eles se tornaram integrativos da fé. É assim que se deve aproximar de Jesus, para compreender a nossa salvação. O homem chamado Jesus Jesus, cujo nome quer dizer: ‘Javé Salva’, é de Nazaré, da ‘Ga- liléia dos gentios’, região norte da Palestina, onde predominavam atividades pesqueiras, agrícolas e pecuárias (gado de pequeno por- © Cristologia60 te). Região marginalizada pelo centro do poder político e religioso da Judeia (Jerusalém). É a pátria de Jesus, que ao seu tempo teria uns 200 vilarejos. Cada um deles teria entre 50 e 2.000 habitantes. A tradição de indicar Belém como lugar de seu nascimento parece hoje ser bem mais um acerto de Mateus e Lucas, ao inter- pretarem algumas profecias, como a descendência de Davi (cf. Lc 2,4 e a promessa de Mq 5,1). São desconhecidos a data e o ano de seu nascimento. A Galileia era, ao tempo de Jesus, uma região perpassada por tensões estruturais, entre judeus e gentios, camponeses e ci- tadinos, pobres e ricos, governantes e governados. A Galileia era uma região influenciada culturalmente pelo helenismo e outras mentalidades. Era mais aberta ao "humano e ao social", e de uma religiosidade judaica não tão ortodoxa. Dela dizia um rabino da- queles tempos: "Galiléia, Galiléia, tu odeias a Torá". Era um "povo maldito" que não sabia nada da Lei e tinha uma moral “fraca”, se- gundo os da Judeia. Jesus, filho de Maria, esposa de José, da descendência de Davi, nasceu um pouco antes do fim do governo de Herodes I (37-4 a.C.). Pelos anos 30 (d.C.), procurou o batismo de João Batista, que prometia a salvação do iminente juízo de Deus, sob a condição de expiação dos pecados. Distanciando-se de João, Jesus andou pela Palestina, pregan- do o Reino de Deus como Boa Notícia, sobretudo para os pobres, simples, pescadores e camponeses. Para ele, Deus era Pai (Abbá = papaizinho) e Senhor (rei). Por sua bondade, o Pai se imporia até sem prévias condições rituais. Mais que isso: Ele tem a certeza de que Deus havia começado, por Ele, Jesus, a exercer seu domínio (senhorio). Assim, seus ensinamentos, em geral parábolas, impressiona- vam a todos. Como carismático, curou a muitos. Por sua doutrina, chamou a atenção e provocou oposição de muitos. Considerado como rabi, profeta e messias, colocou-se inteiramente a serviço 61 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação do Senhorio de Deus e das pessoas. Por sua crítica, sobretudo ao Templo e ao sábado, foi preso, julgado, condenado e crucificado, provavelmente no dia 14 do mês Nisan, no ano 30, quando teria uns trinta e quatro e meio ou trinta e cinco e meio anos. Jesus teria sido um tekton (construtor). Ao que tudo indica, seria solteiro; isto está implícito nos evangelhos, mas não é com- provado. Praticou o judaísmo (galileu). Frequentou sinagoga e o templo de Jerusalém. Desde que tornou pública sua vida, chamou homens para serem seus discípulos. Algumas mulheres que o se- guiam sustentavam financeiramente suas atividades. Nos primei- ros tempos, sua atividade se desenvolveu, sobretudo, entre popu- lares. Fez muitas curas e milagres. Tekton: artesão carpinteiro ou mestre de obras. Após a chamada (para uns) "confissão de Pedro" ou (para outros) "crise da Cesárea” (cf. Mc 8,27-30 e par.), deu nova orien- tação a suas atividades. E, então, passou a diminuir os encontros com as multidões e também os milagres. Empenhou-se na doutri- nação dos discípulos. Nos últimos tempos de sua vida, evitou au- toridades e, decididamente, encaminhou-se para Jerusalém, onde foi morto. Tais atividades se desenrolaram, incertamente, entre meio ano e três anos. Marcados pela sua crucifixão, os apóstolos inicial- mente sentiram fracassadas suas propostas. No então, afirmando- -se que “ele havia aparecido vivo entre eles", retomaram sua pro- posta. E os sucessores dos sucessores continuam afirmando, até hoje, a proposta de Jesus. A grande orientação da vida de Jesus Desde a compreensão de "Deus como Pai amoroso” e “do significado do Senhorio de Deus que está chegando", Jesus come- ça sua atividade. É interpretado como rabi ‘mestre’, como profeta © Cristologia62 e até como Messias, títulos que ele mesmo não atribuiu a si. Não é possível enquadrar Jesus em algum grupo pré-determinado. Todas as tentativas de classificá-lo dentro dos modelos de seutempo são inúteis. Ele não é um sacerdote judeu, não é um saduceu, nem um fariseu. Não é Ele um zelota nem um asceta de Qumram. Não é um rabino nem um profeta. Ele não é uma autoridade político- -religiosa nem um marginalizado social. Dois grandes temas envolvem e resumem a vida de Jesus: sua relação com Deus e a pregação sobre o Senhorio ou Reinado de Deus (Malkut Yaweh). Só a partir daí é que se pode compreen- der todo o significado de sua vida. Deus foi a sua fonte de atuação e pretensão missionária. Em outra linguagem, viveu para Deus e por nós. Já o AT concebia Deus como Pai Abba, por quinze vezes. Jesus dirigia-se ao Deus não só na liturgia (hebraica), com a fórmula aramaica ‘Abba’. Esta era a fórmula carinhosa, singela, direta e familiar e aparece cento e se- tenta e quatro vezes nos evangelhos. (cf. Mc 14,36; Mt 11,25s; Lc 12,2; 23,24-46; Jo 11,41; 12,27s; 17,15.11.21.24 etc.). Esta invocação, ‘Abba’, indica um modo de ser de Jesus e de relacionar-se com Deus. O amor paterno-maternal inaudito de Deus manifesta-se num amor afetivo, numa solicitude amorosa, numa misericordiosa ajuda e confiante fidelidade, que fez Jesus se mover numa esfera de intimidade com Deus. Tal imediatez e fami- liaridade deixaram, na comunidade cristã primitiva, uma novidade muito significativa para continuar concebendo Deus. Jesus fez des- ta relação algo muito peculiar que não só provocou a ira de seus adversários; mas, sobretudo, incluiu extensivamente nesta relação todas as pessoas, especialmente os excluídos e mal-amados. Entretanto, mesmo que Ele tenha feito uma distinção entre "meu" e "vosso Pai" (cf. Mt 11,27; Lc 22,29 e outros), não implica exclusão: o amor de Deus, que é Pai, é para todos. Fazer a vontade do Pai, ao extremo, inclusive dar a vida por Ele, foi o programa prototípico de Jesus, que se esvaziou de si para revelar o Pai. É 63 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação nesta relação fontal que Jesus encontra razões para ser revelador do Pai aos seus. Também desta relação fontal surge sua boa nova: "o senhorio de Deus está entre vós" (Mt 3,2). O Senhorio de Deus é a grande e radical pregação de Jesus. Neste tema se concentram sua vida e sua morte. Jesus assume esta dimensão progressivamente. Ao final de sua vida, tem a cer- teza de que a implantação definitiva do reinado/senhorio passa por sua pessoa. Não em vão, decidiu-se partir para Jerusalém. Lá estava a grande oposição ao Pai. Se necessário fosse, daria, como deu, sua vida por ele e pelos seus. Diferente de João Batista, a vinda do Reino não é uma ques- tão apocalíptico-escatológica. É, sim, a restauração e a consuma- ção da criação, como espaço do governo solícito e da proximidade de Deus (cf. Mt 6,25-34 e par.). Sem deixar de ser escatológico, o Senhorio já está chegando. Está bem próximo (cf. Mc 1,15; Lc 10,9; Mt 10,7s), mesmo que se deva suplicar sua vinda: "venha a nós o vosso reino" (Mt 6,10; Lc 11,2). Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– É importante observar que o senhorio é de Deus. Dele é também a iniciativa. Dele depende sua vinda. E Ele quer que se estabeleça entre todos, para que o mal seja banido. Que a criação seja sanada na cura dos doentes, na restituição da saúde, na libertação dos prisioneiros e, sobretudo, na proclamação do “ano da graça” (cf.Lc 4,18-20). Pelo dedo de Deus, os demônios serão expulsos. Os cegos haverão de ver e os coxos poderão andar. Esta libertação faz parte da chegada do Reino (cf. Lc 11,20; Mt 12,28; 11,5; Mc 3,27). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O senhorio de Deus, diz Jesus e isto põe em sua prática, deve ser buscado em primeiro lugar (Lc 12,31; Mt 6,33). Javé, que é "um Deus do perdão" (Ne 9,17), não quer a morte do pecador, por isso faz chover sobre bons e maus, acolhe justos e pecadores, sem vin- ganças. A conversão para o Reino não é uma condição prévia. O bom Deus dá, como sinal de seu reinado/senhorio, o perdão que leva à conversão; por pura graça: "se vós, que sois maus sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais o Pai dos céus" (Lc 11,13). © Cristologia64 Mais ainda, se o Senhorio de Deus vai se aproximando, e aí Jesus ensina com gestos e parábolas, então os pecadores notórios (para escândalo dos "piedosos") vão assentar-se à mesa da festa dos casamentos, vão ter pão com fartura, não serão mais como "ovelhas sem pastor". A solicitude de Deus é para com Jesus, sim; mas, também, para com todos (cf. Lc 6,20ss; Mt 11,5; 25,31-45). Se o senhorio de Deus está chegando, os medos e as culpas devem ser superados. Os outros, até os inimigos serão tratados como se trata a si mesmo. Quando o Senhor do Reino chegar, os pobres deverão ter suprido a fome, o frio, a sede etc. Enfim, o pregador radical do Senhorio de Deus, quer im- plantar as novas relações sociais, como Deus pensou ao início da criação. Quer o respeito pelos pequenos e pelas mulheres, pelos marginalizados. Numa palavra, Jesus anuncia o Reino, que é vida e vida em plenitude (cf. Jo 10,10). Não é em vão que Jesus se toma de autoridade como intér- prete do Pai ao assegurar a chegada do Reino. Seus gestos, pala- vras e ensinamentos o levam, mesmo dentro de contradições e oposições humanas, a ser admirado como "quem fala com auto- ridade" (Mt 7,29; Mc 1, 22), como quem pode dizer: "Ouviste o que foi dito pelos antigos, porém eu vos digo." (cf. Mt 5, 38), por exemplo, como quem "é o Messias, filho de Deus vivo" (Mt 16, 16), ou, ainda, como aquele que pode curar e até ressuscitar mortos (Lc 12, 17ss; 8,40ss; 7, 11ss). Ele pode perdoar pecados (Lc 5,20) e até expulsar demônios (Mc 1,23ss; Lc 11,14-23). O senhorio de Deus é, para Jesus, uma realidade que vem chegando da parte do Pai mesmo, que, às vezes, de forma "peque- na como um grão de mostarda", ou como o fermento. Ele, porque é dom de Deus, tem significado salvífico dentro da história e tam- bém fora dela. É terreno e celeste. Ele passa concretamente pela cultura, pela política, pela economia, pela religião. Ele está acima e antes de tudo. Por isto deverá ser buscado em primeiro lugar (cf. Mt 6,33). Os pobres em espírito, os famintos, os desejosos de 65 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos e todos os outros bem-aventurados (cf. Mt 5,1-12) no futuro re- ceberão com certeza este Reino. Mas isto, porém, não é só uma questão de futuro. Jesus já o está antecipando escatologicamente. Jesus histórico sabe disso, por isso faz curas e milagres; os ensina e toma atitudes peculiares, radicalmente, até dar sua vida. J. Moltmann (1997) propõe uma atualização da compreen- são bíblica sobre o Reino, chamando a atenção para alguns escla- recimentos teológicos, em forma de questões: a) O reino de Deus é presente ou futuro? b) O reino de Deus acontece no aquém, como reino terres- tre ou é um reino dos céus, no além? c) O reino de Deus é uma causa somente de Deus ou tam- bém dos seres humanos? d) Não podemos "fazer nada", ou também podemos reali- zar as obras messiânicas? e) O reino de Deus é outro mundo ou significa que esse mundo se transformará em outro? f) O reino de Deus é a teocracia ou a união com o Deus vivo? Depois Moltamann insiste no caráter dinâmico e atual do reino, com incidência prática na vida. Pois, trata-se: a) da humanização do comportamento das relações huma- nas; b) da democratização da política; c) da socialização da economia; d) da naturalização da cultura; e) da orientação da Igreja para o reino de Deus. Os atos de poder e sinais (milagres) Ninguém nega que Jesus fez milagres. Os sinóticos, na rea- lidade, falam de "dynameis" (atos de poder), enquanto João fala de "semeia" (sinais). Os milagres de Jesus não são uma violação à natureza, mesmo em sua corrupção (cegueira, lepra, endemonia- © Cristologia66 mento etc.). É isto, sim, uma confirmação da contínuacriação e do aperfeiçoamento crescente da criação para indicar a ação de Deus. Eles não podem ser lidos por uma ótica pré-científica ou científica, mas como ações de Deus que permite ao "miraculado" e aos con- temporâneos reconhecer a intervenção de Deus. Eles são vistos desde a fé como expressão e presença amorosa de Deus. Eles são a realidade antecipada do senhorio de Deus que liberta de forças maléficas, das escravidões pessoais e socioeconômicas a que os doentes estão submetidos. (Lc 13,16). As 35 curas de enfermida- des, os três exorcismos, as três ressurreições dos mortos e as 19 superações dos elementos ou milagres da natureza decorrem da capacidade curativa de Jesus e da potencial capacidade receptiva do agraciado. As ações curativas de Jesus são sinais para os homens de que o senhorio de Deus já está entre eles, pois antecipam o destino escatológico da humanidade. Convém observar que estes milagres são sempre ações em favor dos marginalizados e excluídos. Jesus quer incluí-los no Reino. Assim, intervém com curas e milagres pessoais, sem os grandes milagres comunitários de Deus no Anti- go Testamento, indicando exatamente o início pequeno e discreto, significativo e salvífico do senhorio de Deus. A pregação de Jesus Jesus pretendeu ser o revelador definitivo de Deus e de seu Senhorio. Nisto está sua missão. Pôs-se a serviço do Pai com sua Palavra. Absorveu-se nesta missão. Ensinou com autoridade, vin- da/buscada em Deus, não como os fariseus. E o povo se admirava e se escandalizava com seus ensinamentos. E se perguntavam don- de vinha tal sabedoria. Assim, se o centro da mensagem de Jesus era o Pai e seu Se- nhorio adveniente, é importante então ressaltar que ele não pre- gava uma teoria. Antes, era uma boa nova (evangelho) para o ser humano. A pregação de Jesus tinha o intuito revelatório salvífico. 67 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação Era para a salvação humana. Realizava em si o que pregava. Fazia acontecer o Reino do Pai e pregava as coisas do Reino. Não foi um rabi profissional, era livre. A originalidade de sua mensagem o levava bem além de um repetidor de Halaka, e até mesmo da Torá. Era capaz de tirar o sen- tido original de uma perícope ou ensino, que as tradições haviam sepultado, pois era capaz de ler com maior profundidade os si- nais dos tempos e clamar pela justiça de Deus, mais do que faziam os profetas. É alguém de bom senso que expressa sua mensagem sem as diatribes dos fariseus. Jesus usa uma linguagem capaz de fazer ouvintes e adversá- rios entenderem o que diz. Usa abundantemente a linguagem das parábolas para expressar as verdades de Deus (que não são teo- rias). Por meio de sua experiência comparou o Senhorio de Deus com a semente, com o grão de mostarda, com um tesouro escon- dido, uma rede jogada ao mar, com um rei que prepara a festa de casamento do filho, ou com as virgens prudentes e loucas. Mais que mestre e profeta, por palavras e obras (At 10,38), foi capaz de fazer seus ouvintes compreenderem o significado de suas ações e palavras em linguagem escatológica, como ações sal- víficas de Deus já presentes e que atingirão sua realização plena no Reino definitivo, ou seja, em Deus mesmo. Se a dimensão escatológica sinaliza traços proféticos em Je- sus, a ética re-proposta por Jesus indica seu ensino frente ao Rei- nado de Deus. Ele não ignorou a Lei e os profetas. Antes, foi livre diante da Torá e da Halaka, apesar de ter afirmado que não veio abolir a Lei e os profetas, mas dar-lhes pleno cumprimento. Seu ensino aqui pode ser resumido no mandamento do amor. Para Je- sus, é preciso voltar a priorizar o amor em meio à multiplicidade de mandamentos e regras dos judeus. A ética de Jesus resume-se em "amar a Deus de todo coração, de toda alma, com todas as forças e ao próximo como a si mesmo" (cf. Mt 22,34-40; Mc 12,28- 34; Lc 10,25-28). Este ensino já pertence, na verdade, ao AT. Talvez © Cristologia68 a inovação que Jesus traz aqui é a precedência (primeiro lugar) sobre todos os outros. Este amor dele inclui até amor aos inimigos (cf. Mt 5,38-48; Lc 27-36). Jesus: seu modo de ser e de agir Uma leitura atenta dos Evangelhos nos permite perceber atitudes fundamentais de Jesus e de como ele foi compreendido pelos primeiros discípulos, os primeiros cristãos. Jesus, um homem livre, obediente e fiel Este primeiro dado causa admiração, estupor e contestação: aos olhos de Jesus tudo está subordinado à implantação do Senho- rio de Deus e à imagem que ele tem de Deus/Pai. Esta é sua causa e o fundamento de sua atuação. Assim, Ele se torna livre diante de seus familiares (cf. Mc 3,21-33), diante dos especialistas da Lei, os Escribas (cf. Mt 14,83-60), diante das tradições, ritos, prescrições e culto, que devem estar a serviço do ser humano (cf. Mc 3,1-6; 2,23-28; 7,1-12; Mt 12,1-8; 19,1-8). Esta liberdade radical desperta esperanças no povo, cujo re- sultado imediato é descobrir um novo sentido de viver e fazer-se discípulo de Jesus. Ela também é causa de irritação diante dos de- fensores do "status quo". Jesus não foi apenas um homem livre. Foi (e sua causa per- manece) um libertador. Por isso, cura, salva, perdoa, orienta e cria caminhos de justiça e fraternidade. Liberta das doenças e precon- ceitos, do legalismo e subserviências, dos fardos psicológicos e moralistas, da prepotência humana (social, política, econômica ou religiosa) em vista da fraternidade comum. O que alimenta sua vida é fazer a vontade de Deus, seu Pai (cf. Jo 4,34). Deus não é um alguém vingativo ou caprichoso, que busca interesses próprios. Deus está voltado e totalmente dedi- cado para com os seus. Por isto procura o homem perdido (cf. Lc 15,4-7), preocupa-se com os últimos (Mt 20,1-16). É Pai acolhedor, 69 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação que sabe perdoar (cf. Lc 15,11-32), chama a todos para a festa (Mt 22,1-14). É a este Deus que Jesus obedece. Anunciar esta mensa- gem é a causa dele. Mesmo quando Jesus é atingido pessoalmen- te, como no Monte das Oliveiras, está ali para fazer "não a minha, mas a tua vontade" (cf. Lc 22,42). Porque é obediente sabe que veio para servir, não para ser servido (cf. Mt 10,45; Lc 10,29-37). Não se preocupa consigo (cf. Mt 9,10-13; 11,19; Lc 16,13); nem com o poder (cf. Jo 6,15). É um homem para os outros. Sua preocupação é não só com o neces- sitado, seu irmão (cf. Lc 10,29-37; 22,27), mas também com seus adversários (cf. Lc 23,34; Mt 25,44). Sua fidelidade ao Pai (e à sua causa) é tão radical a ponto de ele entregar sua própria vida (cf. Mc 15,34; Lc 22,34; 23,46). Con- tra toda infidelidade (desobediência) "de Adão", ele faz a vontade de Deus, acima de todos os interesses próprios e/ou dos grupos que o cercavam. Não em vão, morreu pregado na cruz, crendo em Deus até o último momento, quando diz: "Pai, em tuas mãos en- trego meu espírito" (Lc 24,46). 9. A ATUAÇÃO DE JESUS DIANTE DOS OUTROS Jesus solícito nas relações com as pessoas No dia a dia das pessoas, Jesus foi uma presença significati- va. Visitou-as frequentemente, indo ao encontro de suas dores e sofrimentos, inclusive comparecendo até em funerais. Teve apre- ço pelos amigos, visitava com frequência a casa de Lázaro e suas irmãs. Ficava à disposição das pessoas e do povo em geral, até a exaustão, mesmo dispensando mais cedo os apóstolos já cansados da jornada. Deu-se tempo para perder tempo com as crianças e necessitados. Para acolher pessoas, superou preconceitos e discri- minações. Foi capaz de perceber, com profundidade, a raiz do mal que assolava a comunidade judaica. Captou significados mais profun- © Cristologia70 dos das influências sócio-polítco-econômicas e, sobretudo, religio- sas. Não podemos esquecer sua atitude frente a estas questões, dado que foi um crítico sagaz de seu tempo e circunstâncias. Man- teve clara a opção pelos pobres e pelo senhorio de Deus, preferin- doações (políticas) não violentas. Mahatama Gandhi, o fundador da Índia atual, inspirou-se nos evangelhos, particularmente nas “bem-aventuranças”, para des- cobrir o método da não violência ativa. Com isso, assegurou a liberdade, a igualdade e a fraternida- de não só políticas, mas, sobretudo, diante de Deus. Por isso, enfa- tizava que a Lei, as tradições, o "jogo econômico", o poder político e religioso não só não podem se bastar a si mesmos, mas devem estar a serviço das pessoas e das comunidades. Além da dimensão crítica frente aos usos e costumes do tem- po, Jesus reconheceu e conviveu com homens e mulheres normais e sadios, com quem se compraziam em convivialidades. Encontrou homens e mulheres de boa vontade, capazes de atos generosos e os prestigiou. Até mesmo com os ricos e opressores manteve diálogo (às vezes ásperos), em que a centralidade de Deus e do ser humano deviam estar acima de tudo (até do sábado). Como não recordar, aqui, casos como o de Levi (o cobrador de impostos), de Zaqueu, do centurião romano, de Herodes e de Pilatos? Nestas questões, ele se situava no horizonte escatológico e não apenas sociológico, mesmo que religioso. Jesus e as mulheres Uma particular atenção se deve dar a algo inovativo, no con- texto judeu, da parte de Jesus: a questão do gênero. É sabida a posição machista judaica, até mesmo diante de Deus. O homem rezava, entre outras coisas: "Dou-te graças, Senhor, por não ter nascido mulher". 71 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação Não é necessário recordar todo o contexto das opressões ju- daicas, tão pouco o da mulher. Jesus tem uma posição ímpar dian- te delas. Recordaremos, agora, algumas situações: • Ele revela uma solicitude particular com as mulheres en- volvidas com doenças pessoais ou familiares. É atencioso para com elas. Não só com a sogra de Pedro, com a viúva de Naim, com Marta (as irmãs do falecido Lázaro), com a mulher que tinha uma doença já há dezoito anos. E aten- cioso, apesar de irônico, com a estrangeira sírio-fenícia, que lhe suplica a cura da filha possessa. (cf. Mc 7, 224-30; Mt 15,21’-28) • Com as pecadoras, Jesus revela uma sensibilidade im- pressionante. No caso da samaritana, o fato deve ter tido uma repercussão enorme a ponto de o evangelista João dedicar ao encontro dois terços de um capítulo. Nota-se que o seu evangelho tem apenas vinte e um capítulos (cf. 4,1-42). "Do mesmo modo Jesus se dirige à mulher que se atiram a sua frente: - "Mulher, ninguém te condenou? Nem eu! Vai em paz. E não torne a pecar" (cf. Jo 8, 1-11). Ao deixar lavar os pés, sabia bem o que era ela. Contudo, era necessário libertar aquela mulher dos machismos to- dos e inclusive libertar a eles mesmos. (cf. Mt 21,31ss). Na questão do divórcio, sobretudo diante do direito do homem, Jesus advoga o igual direito à mulher. • Em relação às mulheres que o acompanhavam, inclusive sua mãe, ele as considerava discípulas e servidoras. Sua palavra para com elas era, sobretudo, um estímulo a se tornarem mais do Senhor, a "fazer a vontade do Senhor", a "chorar não sobre ele, mas sobre elas mesmas e seus filhos". Ele teve, por elas, grande apreço. Isto está simbolizado na constante presença delas em suas atividades. Era algo inovador para aqueles tempos, a ponto de Mateus, o judeu que escreve para os judeus, ser o evangelista que mais fatos narra sobre mulheres. © Cristologia72 E o ensino de Jesus deve ter sido tão marcante que o ortodoxo São Paulo chega a afirmar que depois de Jesus, diante de Deus, não pode haver mais discriminações até mesmo entre homem e mulher, pois todos são iguais. Jesus diante dos marginalizados e excluídos A coerência de Jesus entre a centralidade de sua vida (o Pai e Senhorio de Deus) e suas palavras e ações evidencia-se, por si só, especialmente diante dos marginalizados e marginais. Se Deus é Pai amoroso e compreensivo, se ele se sente seu Filho e revela- dor, então Jesus só pode manifestar isto elegendo, como elegeu, pobres e marginais para manifestar a tradição dos profetas, da Lei sobre os preferidos de Deus. Ou seja: onde começa a justiça de Deus. Javé é o protetor dos pobres, oprimidos. É o defensor dos fracos, estrangeiros, viúvas e órfãos. É misericordioso para com os pecadores. E esta foi a opção histórica e preferencial de Jesus, in- discutivelmente – apesar de todas as reduções posteriores. A atitude de Jesus é justificada teologicamente pela consci- ência que ele tem do Pai e de seu senhorio. Deus elegeu como fi- lhos todos os homens e mulheres sem distinção. Se entre os seres humanos há exclusões e preferências, Jesus advoga a igualdade fundamental de todos diante de Deus. Por isso, exige uma mudan- ça de conduta. Ele próprio viera para as ovelhas perdidas de Israel (cf. Mt 10,2). Viera buscar o pecador ao invés do falso justo (cf. Mt 9,13). Tal pressuposto leva Jesus às multidões abandonadas como ovelhas sem pastor (cf. Mt 9,36), aos doentes, aos pobres, às pros- titutas, aos pecadores, aos publicanos e aos cobradores de impos- tos. Torna-se defensor das crianças e das mulheres. Elege, em suas parábolas, samaritanos e outros marginalizados como exemplos de dignidade e capazes de dignificação. Proíbe a extorsão econô- mica, a violência física, a usura contra os pobres, a fraude na re- muneração dos trabalhadores, a venalidade na administração da justiça etc. 73 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação A mais significativa atitude de Jesus é a da mesa partilhada inclusive com os pobres, o que lhe valeu até acusação das autori- dades (cf. Mt 9,10; 11,19). "Estar à mesa" indica fortes laços en- tre os comensais; expressa consanguinidade ou grande amizade. Quem parte junto o pão é o companheiro. "Estar à mesa" com os pobres é um gesto profético escatoló- gico de Jesus, que indica a chegada do Reino para eles. No banque- te messiânico escatológico de Deus participam os excluídos até en- tão: doentes, pobres, estrangeiros, pecadores, impuros. Deus quer salvá-los todos, levando-os à sua mesa. A compaixão de Jesus pelos marginalizados é constante e seu fundamento é o Senhorio de Deus. A centralidade está em Deus, que quer a dignidade de todos e por isso eles são os primeiros no Reino (cf. Mt 5, 1-8; 25, 37ss). Isso não é uma questão socioeco- nômica. É, antes, teológica, pertinente ao Senhorio de Deus, mas indispensável aos crentes, conforme Jesus lhes indica (cf. Lc 14,12; 18,5; Mt 9,48; 25,31ss). A atuação de Jesus diante dos grupos influentes de seu tempo Para compreender melhor a atuação de Jesus, ao seu tempo e extensivamente a todos os tempos, convém estudar sua relação com os diversos grupos. Exemplificamos alguns: João Batista O primeiro contato público de Jesus é com o Batista e seu grupo. Ali procurou o batismo. Mas, em seguida, distanciou-se deles. As concepções sobre Deus e sua vinda são completamente diferentes. Diferente também é o modo de viver e atuar. Jesus o respeita, inclusive declarando João "o maior den- tre os nascidos de mulher” (Mt 11,11), mas nem por isso filiou-se ao movimento do "batizador". Jesus não foi asceta, será tratado como glutão (Lc 7,33s). Se João anunciava, de modo Apocalíptico, a vinda de Deus, Jesus a realiza pelos exorcismos, curas, perdões. © Cristologia74 Se João indicava a iminente vinda da vingança de Deus, Jesus res- saltava a bondade divina. Sua pregação era sobre a graça divina, que rompe a relação pecado-castigo. Fariseus Os sete grupos de fariseus cumpriam rigorosamente a Lei. Respeitavam as tradições, observavam o sábado, os ritos purifica- tórios, as orações, esmolas e dízimo. Estudavam a Torá. Esperavam um Messias libertador de Israel e a ressurreição final. Desejavam a libertação da Palestina. Mesmo convivendo com os romanos, não eram amigos deles. Este grupo, na maioria, leigos apesar de alguns “sacerdotes”, sente-se separado das outras pessoas, pois as consi- deravamignorantes da Lei e impuros na observância dos manda- mentos. Davam à Halahá valor igual à Torá. Jesus não escondeu sua simpatia por eles. Recriminou, po- rém, dois subgrupos deles ("os de costas largas" e “os vagarosos”), também reprovado pela população em geral. A salvação, segundo os fariseus, viria da "estrita" observância da Lei. Não era este o caminho de Jesus, que propõe a dinâmica da salvação no apreço a Deus, que já vem chegando, e aos irmãos, sobretudo, aos pobres; não à absolutização da Lei, mas à mudança de coração. Saduceus De famílias sacerdotais, os saduceus pertenciam também às elites econômicas. Recusavam as tradições orais judaicas. Não criam na ressurreição, apoiando-se na ideia de uma retribuição imediata e material (isto, hoje, corresponderia à chamada "teo- logia da prosperidade"). A prova disso estava na riqueza e poder que detinham. Isto, para eles, eram bênção e a aprovação de Deus. Sentiam-se por isto fiéis a Deus, que lhes era fiel. Detinham eles o poder sobre o Templo, consequentemente sobre o culto, esmolas, dízimos e taxas. Exploravam o povo, inclusive obrigando-o a traba- lhos pesados e outras humilhações. Coniventes com os romanos, 75 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação eles faziam, também, interesseiras alianças com os piores inimigos de sua fé. Dominavam o Sinédrio. Pelo culto formal, apenas “espe- ravam”, para um dia..., a vinda do Messias de Deus. Jesus, com suas críticas desautorizando a suposta "autori- dade religiosa" que julgam deter, concordava com eles contra a "tradição dos pais", conservada pelos fariseus. Ao mesmo tempo, porém, percebia a maldade dos saduceus e a exploração a que submetiam o povo para se manterem no poder. Eles foram os res- ponsáveis pela morte de Jesus, mesmo que um deles (José de Ari- matéia) não tenha consentido com isto (cf. Lc 23,51). Para eles, o programa de vida de Jesus baseado na misericórdia e justiça, na fraternidade e na igualdade, não só seria inviável, como também prejudicial aos seus interesses. Herodianos Ao tempo de Jesus, os herodianos reinavam no país, em nome dos romanos. Eles legitimavam o poder mantendo a ordem política e a paz nas regiões judaicas, sem deixarem de ser uma realeza vassala. Estavam muito atentos a qualquer pretensão mes- siânica, que contestasse seu poder. Recolhiam forçados impostos e, inclusive, quiseram um pronunciamento claro de Jesus (para, na verdade, incriminá-lo até sobre o assunto) (cf. Mc 12,13-17). Também pressionaram Jesus sobre o significado do sábado, dia do sagrado (cf. Mc 3,1-56). Foram eles mal amados pelo povo, sobre- tudo, por causa da corrupção. Enquanto para eles o Reino estava na consagração do pró- prio sistema político, Jesus lhes propõe a provisoriedade e a am- biguidade de todo e qualquer sistema político-econômico. Contra eles, que adoravam o imperador como divino, Jesus propõe Deus como único Senhor, no céu e na terra. Essênios Foram os essênios homens e mulheres que se refugiaram no deserto, em especial em Qumram, onde estabeleceram leis rígi- © Cristologia76 das, sobre a pureza e seus ritos. Recusavam o templo, manchado pela idolatria, na opinião deles. Preferiam substituir os holocaus- tos pela ascética santidade de vida. Assim, estariam apressando a vinda do Reino e do Messias libertador. Consideravam-se os mili- tantes de Deus, para combater os inimigos e demônios. Por meio de ritos, preparavam-se para as “guerras santas”, totalmente dedi- cadas a Deus, vivendo a pobreza, a castidade e a obediência. Contra a posição deles (uma fuga espiritualista e ascética da realidade), Jesus propõe o amor a Deus, o serviço ao próximo e a simplicidade de vida até no julgamento do semelhante. Zelotas O apressamento do Reino só se podia dar pela violência, como preferiam os zelotas (antes conhecidos como "salteadores" ou "bandidos"). Este movimento extremista, adepto da violência, queria restaurar em Israel a teocracia. Para tanto, invocava con- dições de vida extremamente ligadas à santidade do Templo e ao cumprimento da Lei. Eram rigorosamente ortodoxos e integristas e detinham uma confiança absoluta em Deus e em suas institui- ções. Exterminar os ímpios pela revolução armada era o meio de apressar o Reino. Jesus indica a estes fundamentalistas a autonomia do tem- poral, o universalismo e a mansidão. A salvação de Deus é maior que o Templo e os governos, mas concorda e se posiciona, como eles, contra todas as explorações sociais. Samaritanos Apegados aos cinco livros do Pentateuco, os samaritanos são homens da Lei. Com rigor, seguem as prescrições da circuncisão, do sábado, das festas etc. Seu monte santo, porém, era Guarizin e não Jerusalém (Sion). Esperam um Messias: Taheb, que não é um descendente de Davi, mas um novo Moisés (cf. Dt 18,15). O Mes- sias virá restabelecer toda a ordem no final dos tempos. A salvação e o Messias não podem passar por Jerusalém, nem pelo Templo de Salomão. ‘Ali tudo está corrompido’. 77 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação Jesus lhes indica: nem em Jerusalém nem em Guarazin está o Reino de Deus (cf. Jo 4, 21). Ele está no coração, em espírito e verdade. Apesar de sua religiosidade, Jesus indica novas e mais profundas relações com Deus. Não é possível se manter na super- ficialidade, nem no rigorismo, como já acenara a outros grupos. Todos os grupos tinham uma expectativa escatológica pecu- liar. Jesus não se enquadra em nenhuma delas, apesar de ter com todas elas algum elemento em comum. Na verdade, ele não é clas- sificável em nenhum grupo ou movimento. Teve e manteve uma peculiaridade própria, que lhe causou aplausos e condenações. Sua palavra clara era interpretada conforme o interesse. E isto o levou à morte. E morte de cruz. 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Para fazer cristologia hoje, é importante: a) Levar em conta que a cristologia nunca teve presente as expectativas vétero-testamentárias. b) Ter presente que Jesus pertenceu ao um povo localizado e da cultura deste povo absorveu sua religiosidade. c) Perceber que Jesus indicou, para sua identificação, as próprias Escrituras judaícas. d) Perceber que a proposta de Jesus é algo tão original a ponto de o AT em nada contar para a cristologia contemporânea. e) Compreender Jesus dentro da fé do povo judeu e ao mesmo tempo ul- trapassá-lo. 2) Leia as questões seguintes e assinale a única verdadeira: a) Para o AT, o messianismo é mais importante que as experiências de Aliança. b) A fidelidade do povo escolhido foi tão constante que o próprio Deus to- mou a iniciativa de renová-la frequentemente. c) Segundo o AT, foram mediadores da Aliança os profetas e sacerdotes, mas não os reis. d) A esperança profético-messianica foi sendo sempre atualizada no AT até a chegada de Jesus. e) Apesar de o Messias escatológico vir do céu, ele nada tinha a ver com a descendência davídica. f) Já no AT a Sabedoria era identificada com o Espírito Santo a ser dado por Jesus. © Cristologia78 3) Assinale a única verdadeira. Para compreender a cristologia: a) Deve-se descobrir Jesus em estado puro (Jesus histórico), o que não de- pende da fé. b) É necessário ter em conta a religiosidade popular, a espiritualidade e o evangelho. c) Priorizar o Jesus histórico e real, eliminando o Cristo da fé. d) É importante elaborar uma biografia exaustiva de Jesus, o que só pode ser feito a partir dos evangelhos canônicos. e) Deve-se ter sempre em conta que os evangelhos canônicos foram elabo- rados à luz da páscoa. 4) Assinale a única correta. Para Jesus há duas questões básicas em sua prega- ção e modo de agir: a) A pregação e os milagres. b) O Pai e seu Senhorio (Reino). c) Os pecadores e sua salvação. d) A revelação de Deus e o modo como as pessoas o entendem. e) A comparação entre o Reino de Deuse os reinos deste mundo. 5) Assinale a única alternativa correta. Jesus pelo seu agir e modo de ser: a) Foi livre porque foi fiel e obediente a Deus. b) Não pecou, porque era Deus (Deus não pode pecar). c) Fez milagres para provar sua divindade. d) Discriminou alguns, mas acolheu a todos de modo igual. e) Pôs no centro de sua pregação o ser humano, filho de Deus. 6) Assinalar a alternativa verdadeira. Afirma-se, teologicamente, que Jesus foi um ser humano original porque: a) Em tudo foi igual a nós. b) Era diferente (superior) ao ser humano. c) Restitui a vista aos cegos e curou paralíticos. d) Colocou-se totalmente a serviço de Deus e dos homens. e) Nasceu da virgem Maria. 7) Assinale a única verdadeira. Jesus comprova que o Senhorio (Reino) de Deus é salvífico porque: a) Os doentes são curados e os cegos recuperam a vista. b) Os pecadores são perdoados e os poderes demoníacos são expulsos. c) A dignidade humana é recuperada e os discriminados, reabilitados. d) Todos os homens e mulheres podem participar dele. e) Todas as alternativas são verdadeiras. 8) Assinale a única alternativa falsa: a) Frente aos outros, Jesus foi sincero e serviçal. b) Da relação com Deus, brotou em Jesus um sentimento empenhativo pe- los outros. c) Jesus oportunizou vínculos de solidariedade. 79 Claretiano - Centro Universitário © U2 - Jesus, desde a História Bíblica da Salvação d) Jesus serviu-se, em proveito próprio, dos mandamentos fundamentais do amor a Deus e ao próximo. e) Suplicou a Deus o perdão por aqueles que o crucificavam. Gabarito Depois de responder às questões autoavaliativas, é impor- tante que você confira o seu desempenho, a fim de que saiba se é preciso retomar o estudo desta unidade. Assim, confira, a seguir, as respostas corretas para as questões autoavaliativas propostas anteriormente: 1) d 2) d 3) e 4) b 5) a 6) d 7) e 8) d 11. CONSIDERAÇÕES Você sistematizou seus conhecimentos sobre Jesus de Naza- ré, sua história, sua atuação e seu contexto. É um tema fascinante na cristologia porque faz perceber a universalidade e a atualidade do agir de Jesus, mesmo que tenha sido limitada em campo judeu. Os cristãos continuam agindo no lugar Dele e você tem esta missão também. Por isso, relacione o estudo com suas atividades e com sua vida. Aja de tal modo que Ele pudesse se identificar no seu agir e continue estudando. A próxima unidade é importante. Em certo sentido, é conti- nuação desta. Mas, por ter sido a morte e a ressurreição de Jesus postas num grande destaque na tradição e na espiritualidade, pre- ferimos abordá-las numa unidade própria. © Cristologia80 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIAS, J. Jesus, esse grande desconhecido. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. DUQUOC, C. Cristologia. Ensaio dogmático II. O messias. São Paulo: Loyola, 1980. FABRY, H; SCHOLTISSEK, K. O messias. São Paulo: Loyola, 2008. FREYNE, S. Jesus, um judeu da Galiléia: nova leitura da história de Jesus. São Paulo: Pau- lus, 2008. FORTE, B. Jesus de Nazaré, a história de Deus, o Deus da história. São Paulo: Paulinas, 1985. GNILKA, J. Jesus de Nazaré: mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000. KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, T. (Org.). Manual de dogmática. Petrópolis: Vo- zes, s/d. LAURENTIN, R. A vida autêntica de Jesus Cristo. São Paulo: Paulinas: 2001. v. 1 e 2. LEON-DUFOUR, X. Aliança, messias, profeta e sabedoria. In: Vocabulário de teologia bí- blica. Petrópolis: Vozes, 1972. MAGNANI, G. Jesus, construtor e mestre: novas perspectivas sobre seu ambiente de vida. Aparecida: Santuário, 1998. MOLTMANN, J. Quem é Jesus Cristo para nós hoje? Petrópolis: Vozes, 1997. MORIN, E. Jesus e as estruturas de seu tempo. Petrópolis: Vozes, 2003. NOLAN, A. 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OBJETIVOS • Identificar as causas e razões da morte de Jesus na cruz. • Validar a posição de Jesus diante da perspectiva da pró- pria morte. • Analisar o significado histórico-pascal da ressurreição. • Descrever as fontes bíblicas da fé na ressurreição. • Justificar a fé dos discípulos no Senhor ressuscitado. • Distinguir a cristologia da exaltação e da eleição do Cristo, da cristologia da pré-existência e da encarnação. 2. CONTEÚDOS • A morte de Jesus. • A ressurreição de Jesus: o testemunho neotestamentário. • Quem é Jesus? A resposta cristológica do NT. © Cristologia82 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Entre outros interessantes e atualizados estudos con- temporâneos sobre a morte de Jesus, você pode apro- fundar a questão lendo: SLOYAN, Gerard. Por que Jesus morreu na cruz? São Paulo: Paulinas, 2006, p. 19-72. 2) Você pode aprofundar ainda mais a temática relativa à morte de Jesus lendo: BERGER, Klaus. Para que Jesus morreu na cruz? São Paulo: Loyola, 2005. 3) Você pode completar seu estudo, com a leitura das me- ditações de MARTINI, Carlo Maria. Os relatos da paixão de Cristo. Lisboa: São Paulo, 1994. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na Unidade 2, você pôde compreender o Antigo Testamen- to como base e fundamento da cristologia neotestamentária, bem como as experiências salvíficas, Jesus de Nazaré, sua história e sua atuação, além de estudar o homem Jesus e sua atuação diante dos outros. Nesta Unidade 3, você deverá aprofundar as questões liga- das à morte e à ressurreição de Jesus, bem como as cristologias do Novo Testamento. É importante ter presente que é a ressurreição que dá sentido à morte de Jesus. Se você fizer uma rápida pesquisa entre as pessoas que o ro- deiam, certamente perceberá uma supervalorização da morte de Jesus na cruz, por causa de nossos pecados. Esta teologia estauro- lógica foi muito importante na espiritualidade do segundo milênio, sobretudo na Idade Média. E ainda perdura. Mas, você deve convir com São Paulo: se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé. 83 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição A palavra “estaurológica” deriva da palavra grega staurós, que sig- nifica cruz e o complemento “lógica” indica a ciência, o conheci- mento. Aqui, no caso, quer dizer: a compreensão, o conhecimento ou a interpretação da fé, a partir da cruz de Jesus. Os evangelhos e a Igreja não concebem o fim histórico de Jesus, sem considerar, além da morte, o outro elemento constitu- tivo: sua ressurreição. Liturgicamente, a Igreja celebra sempre o chamado "tríduo pascal". A espiritualidade move-se pela graça do ressuscitado. A teologia atual tem preferido fazer a sua reflexão levando mais em conta o significado da morte e ressurreição como verso e reverso da mesma moeda, que na verdade só se explica no contex- to da vida encarnada de Jesus com sentido para o cristão de hoje. Você vai estudar separadamente os dois temas, para poder explo- rar mais e melhor seus significados. Depois disso, deverá aprofun- dar a percepção do Novo Testamento em compreender Jesus. Elas são sintetizadas em duas grandes linhas: a da cristologia da eleva- ção e eleição e a cristologia da pré-existência e encarnação. Reveja seus conceitos sobre esses temas e justifique sua po- sição, sabendo que o significado de Jesus é ainda maior, pois Ele, conforme o Novo Testamento,não é o apenas nascido da Virgem Maria. Ele é Deus que pré-existe, desde toda a eternidade. Para afirmar esta verdade bíblica da fé, os teólogos e exegetas costu- mam, hoje, falar da cristologia da exaltação e eleição do homem Jesus e da cristologia da pré-existência e encarnação de Deus. Na verdade, não há uma tensão entre as duas. Elas compõem um mo- vimento circular que vem do céu à terra e da terra sobe ao céu. O Cristo é o mesmo homem de Nazaré. É assim que o Novo Testa- mento nos apresenta Jesus. Estes são princípios que devem guiar sua fé. Continue avante e bom estudo! © Cristologia84 5. A MORTE DE JESUS Agora, programe-se em questão de horário, material com- plementar de estudos. E prepare-se para adentrar num dos mo- mentos mais significativos da vida de Jesus. A morte de Jesus marcou demasiadamente os cristãos, so- bretudo durante o segundo milênio. Tanto a teologia (cristologia) quanto a liturgia, a piedade popular e as artes em geral, centram sua ação na morte de cruz (estaurologia). A interpretação da mor- te de Cristo estava ligada à questão do pecado. A partir daí, vive- -se certo "dolorismo", que encheu nossas igrejas com cruzes, vias- -sacras, crucificados, pietàs etc. Realmente não se pode compreender Jesus sem sua morte e morte na cruz. Ela, porém, não é o centro nem o sentido de sua encarnação. Todavia, é o motivo pelo qual os cristãos se reconci- liam "oficialmente" com Deus. Jesus diante de sua morte (perspectiva objetiva) Sabia Jesus que iria ser morto e pregado na cruz? A respos- ta que pareceria óbvia, na verdade não é tanto assim. Três vezes Jesus profetizará a morte do "Filho do Homem" (Mc 8,31; 9,31; 10,33). Todavia, a morte na cruz não era algo em seu horizonte, pois na Torá se ensinava: "maldito é o que é pendurado na cruz" (cf. Dt 21,23). As questões que atingiam e ameaçam Jesus se da- vam dentro do povo judeu. Todavia, Ele foi preso, condenado e pregado na cruz pelo poder romano, mas com a colaboração das autoridades judaicas. A morte de Jesus é consequência de sua mensagem sobre Deus e da pretensão de sua autoridade. Ela estava implícita nos objetivos e meios de seu compor- tamento inconformista, o que provocava a ira das autoridades ju- 85 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição dias. A condenação como sedicioso e blasfemo o golpeou com um fracasso radical de seu projeto. Sua opção pelos pobres e margina- lizados, suas transgressões rituais, seus ataques ao sábado e aos ri- tos de purificação/impureza, somados, sobretudo à sua pretensão de agir e lutar em nome de Deus foram os motivos históricos que o levaram ao trágico fim de sua vida. A partir da confissão de Cesárea (cf. Mc 8, 27ss; Lc 9,18-21; Mt 16,13-20), Jesus decidiu terminantemente ir para Jerusalém. O confronto com os saduceus e sacerdotes se acirrou como peri- go para a ordem cúltico-pública, mantida à mão de ferro. A moti- vação (religiosa) política da expulsão dos vendedores no templo (Mc 11,15-18) e da palavra sobre a destruição do templo (Mc 13,2; 14,56-61) foram o estopim para a prisão, condenação e morte. O processo judicial começou por causa das chamadas blas- fêmias de Jesus (Mt 26,65; Mc 14,64) e de seu "desacato ao Siné- drio" (cf. Mt 17,12; Jo 18,21-23; Mc 14,60ss; 15,4s). Havia, tam- bém, antecedentes em sua pretensão de colocar-se na esfera do divino, de sua consciência como enviado de Deus, chamado a ins- taurar o Reino de Deus na terra. A desproporção era tamanha: frente às instituições oficiais e às autoridades representativas, à expectativa messiânica em curso e o respaldo do poder, Jesus apresentava-se sem a Lei, sem o Tem- plo, sem dinheiro e sem poder vingativo. O resultado só seria este: ser preso para ser condenado e morto. O Sinédrio, neste tempo, não tinha poder para executar uma sentença capital. Além do que, no processo de Jesus, parece não ter havido unanimidade entre seus membros. Então, transferiu a causa para o âmbito civil: entregou Jesus a Pilatos, ao poder roma- no, a quem tanto se odiava. A causa religiosa-política foi transformada em delito políti- co: insurreição e questionamentos sobre o fisco (Lc 23,2.5). Pilatos interroga-o sobre isto e o condena. Antes, porém, enviou-o a He- rodes, que apenas constatou sua inocência (Lc 23,15), sem nada © Cristologia86 fazer. Os três fatos: crucifixão, inscrição sobre a cruz e condenação de Pilatos, indicam de modo inquestionável a condenação roma- na, por manobra judaica. Diante dos poderes estatuídos, a morte de Jesus aparece para todos como fracasso de sua pretensão e como abandono de Deus que depois se revela no grito da cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Jesus diante de sua morte (perspectiva subjetiva) Jesus não buscou a morte. Antes, buscou a Deus e ao seu Senhorio. Porém, contou com ela e foi integrando-a em sua vida como consequência de sua pretensão (a causa de Deus). Também deu a ela, já durante sua vida terrena, um sentido peculiar: por Deus e por nós (pró-existência total). Assumida a missão de envia- do ao Pai, assume a morte que se avizinha como entrega pela cau- sa. Ele não a buscou (cf. Jo 18,22ss; 19,11; 11,53s) e, nos últimos tempos, já quase não aparecia mais em público (cf. Jo 11,53ss). Jesus foi suficientemente realista para se dar conta do perigo que o espreitava. Os conflitos se avolumavam e as hostilidades se radicalizavam. O complô era visível (Mt 22,15; Lc 11,54; Jo 11,45- 54). As ameaças contra sua vida deviam vir do Sinédrio, com sua faculdade de mandar a apedrejar (cf. Lc 4,29; 13,34; Jo 8,59; 11,8), de Herodes, o que mandara recentemente degolar a João Batista (Mc 6,26) e, mais tarde, Tiago o irmão do Senhor (At 12,2) ou, fi- nalmente, de Pilatos, o que podia e, de fato o fez, crucificar. Os exegetas, hoje, afirmam que suas predições ou vaticínios sobre a morte do “Filho do Homem” (Mc 8,31; 9,31; 10,33) são va- ticínios ex eventu; isto é, parecem ter caráter pós-pascal. A indicar isto, está a expressão "Filho do Homem" que não parece ter sido usada pelo próprio Jesus, mas pela comunidade primitiva. Jesus, ao utilizá-la, o faz sempre num contexto Apocalíptico: "o Filho do homem virá julgar no fim dos tempos". Ligá-la aos padecimentos é uma associação da comunidade cristã primitiva. 87 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição Algumas frases de Jesus, tomadas em conjunto, parecem in- dicar a progressiva tomada de consciência de sua morte violenta. Observe-se que muitos exegetas fazem sérias restrições quando as tomam isoladamente. Sobre isto, leia em sua bíblia: Mc 2,19ss; Lc 13,31-33; Mc 10,46ss. É claro, a comunidade de fé indica ainda outras afirmações que associam ao serviço paciente do Filho do Homem, aplicando-as a Jesus. Veja, por exemplo: Mc 10,38; 12,1-12; 14,2-7; 14,3-9; 15,35 e seus paralelos, especialmente em Mateus. Jesus aceitou sua morte violenta? Na verdade, Ele não se opôs a ela e nem fugiu dela. Ele a assumiu como desfecho da im- plantação do Reino de Deus. Por isso, submeteu-se a ela como von- tade de Deus, como sempre fora sua opção de vida (cf. Mc 3,35; Mt 21,28-31; Jó 4,34; 6,38-40). Quando tomou a decisão radical de ir-se para Jerusalém pareceu entender que seu destino definitivo lá está (cf. Jo 11,8; 55,57). Jerusalém, Jesus o sabia do Antigo Tes- tamento, é o lugar teológico onde se desenrolariam os principais acontecimentos salvíficos, acontecidos na morte dos profetas. A única ida àquela cidade, conforme os sinóticos, atesta esta pers- pectiva por parte Dele. Na oração do Monte das Oliveiras, Ele resume sua posição (Mc 14,32-42): vence sua última tentação (guardar sua vida para si) e resolve entregar sua vida nas mãos dos pecadores que o ma- tariam; ao mesmo tempo, Ele a entrega a Deus como prova de sua radical adesão à vontade divina. Segundo a perspectiva joanina, por ter estado em Jerusalém di- versas vezes, Jesus teria maior consciência do perigoque o es- preitava. Jesus interpretou sua morte, já durante a vida, como doa- ção/entrega. Ele fez de sua vida um serviço ininterrupto para Deus e, por isso, aos homens. Mesmo na morte, sua esperança em Deus (cf. Mc 15,34 citando Sl 34,6) é radical: viver por Deus e para Deus. © Cristologia88 A interpretação que Jesus, durante a Última Ceia, dera à sua morte era uma verdadeira afirmação de que Ele estava à disposi- ção do Pai. Sua morte não seria um obstáculo para a implantação do Senhorio (Reinado) de Deus. Tanto Jesus quanto as primeiras comunidades cristãs inter- pretaram esta morte, à luz do AT, fazendo referência às imagens do "sangue da Aliança (cf At 9,14-28) ou do “Cordeiro pascal” (cf. Jo 1,29; Ap 5,6-12. Mas sobretudo as palavras de Jesus, pronuncia- das, quer sobre o cálice, quer sobre o pão ou sobre os dois (pão e vinho, segundo as diferentes narrativas dos evangelhos), indicam a disposição de Jesus de dar a vida "por muitos" (ou por nós ou pela vida do mundo) (cf. Mc.14, 24; Mt. 20, 28; 1Cor 11,24; Jo 6,51). Com toda certeza se pode afirmar que Jesus "aceitou sua morte na cruz" como um ato expiatório e salvífico, em favor dos outros. Seu desejo de fazer a vontade de Deus e de viver em prol dos outros confirma a interpretação de sua morte como um servi- ço de salvação. Temos observado neste estudo, bem como na de Antropolo- gia Teológica, que se a morte de Jesus tem um caráter redentor, é preciso estar consciente de que tal gesto de extrema doação não é razão última da encarnação do Verbo. A morte deve ser compre- endida no conjunto de sua vida. Não vale apenas este momento, como se o "restante" de sua vida não tivesse significado. Além do que, se Jesus é realmente redentor de todo pecado humano, é so- bretudo o revelador e o caminho de nossa realização plena em Deus, na força do Espírito Santo. A disposição final A crucifixão e morte de Jesus são o fim de sua pretensão. Objetivamente, seus discípulos não teriam mais razões para conti- nuarem reunidos. Suas esperanças se frustraram. A morte de Jesus indicaria a rejeição Dele até mesmo diante de Deus. Só restava vol- tar. Aquele que ligara o anúncio da chegada de Deus à sua pessoa, 89 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição agora, estava morto. A causa estava destruída. Tudo deveria ser sepultado. Fora legalmente crucificado; eliminado com sua pre- tensão. Para os judeus, “era maldito todo aquele que fosse pen- durado na cruz”. 6. A RESSURREIÇÃO DE JESUS O TESTEMUNHO NE OTESTAMENTÁRIO Com certeza, ao aprofundar o tema da morte de Jesus, você deve ter começado a perceber a importância que a ressurreição adquire. Se tudo tivesse acabado na morte de Jesus, nada teria sig- nificado. A morte Dele adquire valor por causa de sua ressurreição. Aliás, a ressurreição de Jesus é o ponto fundamental de nossa fé. São Paulo chega a afirmar que sem a ressurreição nossa fé se torna vã, vazia de sentido. Este é o tema que você vai começar aprofundar. Ele é o mais importante em nossa fé. Aproveite-o ao máximo. Mas, não esque- ça: cristologia não é só uma questão de razão científica, como já dissemos anteriormente. É uma questão de fé, que se faz orando. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– A convicção de que Deus ressuscitou verdadeiramente Jesus dos mortos, para a nossa salvação é o conteúdo e o pressuposto de todo o Novo Testamento. O Novo Testamento sustenta unanimente esta verdade que é a base radical de to- dos os relatos históricos, de todas as confi ssões de fé, de todo o anúncio cristão, de todas as discussões com os judeus, da releitura cristã do Antigo Testamento, da existência e missão da Igreja. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– As fontes da fé e do testemunho pascal Não existem, nem no NT ou nos Evangelhos, relatos do mo- mento da ressurreição. Tudo quanto se conta ou narra sobre o tema é consequência do fato. As aparições, as confissões de fé, os hinos, as pregações e os resultados de vidas mudadas, convertidas, são consequências. E a síntese é esta: "Ele está vivo". Isso é algo insólito e inesperado. É algo tão inovador que não se encontram © Cristologia90 paralelos ou referências anteriores e/ou posteriores em nenhuma religião. Nem os discípulos, nem as mulheres que o acompanha- vam esperam alguma coisa assim. Tudo recomeça com a "boa nova" dos Anjos às mulheres que vão cuidar do embalsamamento do corpo do morto (o que não pudera ser feito por causa do sábado – que começava ao pôr- -do-sol de sexta-feira). É o anjo, diante do sepulcro aberto, quem lhes anuncia: “por que procuram entre os mortos, aquele que está vivo?” (Lc 24,5). A partir daí se desencadeará um processo novo e inovador. Tão novo que é vivido aos sobressaltos de quem não é capaz de identificar a realidade nova: "é um jardineiro!", "um pe- regrino!", "um fantasma!". "Alguém que entra mesmo sem abrir portas!" Ele se faz ver. Aparece. Apóstolos e discípulos vão percebendo, aos sobressaltos: o que fora crucificado agora está vivo e se apresenta em nova reali- dade. É o crucificado, mas ressuscitado. Deus o ressuscitou. Quer dizer: Deus não abandonou. Antes o confirmou, ressuscitando- -o. Deus não estava revivificando um cadáver (como Jesus fizera com Lázaro, com o filho único da viúva de Naim, ou com a filha do oficial romano). Ele fazia nova a vida de seu Filho, que acabava de ressuscitar. "Isto é muito bom", repetiria o Criador. Então Deus descansou. Era o oitavo e definitivo dia (cf. Gen 1,31). As fontes desta notícia enquadram-se em quatro categorias: 1) as confissões de fé; 2) o kerigma; 3) os textos narrativos posteriores; 4) os hinos. Confissões de fé Confissões simples (Fl 2,11; Rm 10,9-11); confissões am- pliadas (1Ts 1,9-10; Rm 1,1-4); e confissões de fé completas (1Cor 15,1-11). 91 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição Provavelmente de três a seis anos após a morte de Cristo, Paulo recolheu a mais antiga confissão de fé pascal (na comuni- dade de Damasco ou de Jerusalém?): 1Cor 15,38-11. Isso não é “invenção” paulina, pois se estava tão próximo ainda dos fatos que se alguém a inventasse seria logo desmentido. A confissão de fé se tornou normativa para a Igreja (cf. 1Cor 15,1) e contêm os três elementos que a fundam: Cristo morreu, ressuscitou e apareceu. E acrescentam-se, respectivamente, as interpretações de então: por nossos pecados, segundo as escrituras, ao terceiro dia. Vejamos o quadro a seguir: Morte Ressureição O fato morreu foi ressuscitado Inciso por nossos pecados ao terceiro dia Plano de Deus segundo as Escrituras segundo as Escrituras Prova foi sepultado apareceu a... O “terceiro dia” (cf. 1Cor 15,4) era uma expressão usual no tempo de Jesus para designar um fato muito importante. E foi usa- da não para afirmar um fato histórico, mas um acontecimento de plenitude escatológica. Note-se que Jesus, conforme o plano de Deus, morreu para ressuscitar, para vencer a morte e, de modo novo, permanecer com os seus. Porque ele morreu, foi sepultado. Porque ele ressuscitou, apareceu a Pedro, aos doze e mais de 500 irmãos, muitos dos quais ainda estavam vivos ao tempo do apóstolo Paulo (cf. 1Cor 15,6). Sua morte por nossos pecados e sua ressurreição para nos levar à plenitude são questões cristológicas de valor soteriológi- co. "Deus o ressuscitou" é a afirmação para descrever a ação de Deus. Quer dizer: o início da criação de Deus (cf. Gn 1,1-2.4b), o iní- cio, desde agora, atinge sua culminância na ressurreição de Jesus. Deus faz viver de modo novo (nova criação) quem fora submetido à morte, para vencê-la desde dentro. Deus colocou-se ao lado de Jesus, julgando o julgamento humano. © Cristologia92 A expressão Maranatha (1Cor 16,22; Ap 22,20) é o grito aramaico-protocristão que, exaltando Jesus, o Senhor, suplica seu retorno para trazer a salvação. Ela contém provavelmente a mais antiga afirmação cristológicaexplícita. O Kerigma (At 2,14-36; 3,12-26; 4,8-12; 5,29-32; 10,34-43; 13,16-41) O Kerigma de Pedro e Paulo, nos Atos dos Apóstolos, é o pri- meiro sim pascal apresentado aos judeus. Contém já uma leitura cristológica do homem Jesus, a quem eles haviam matado e Deus o ressuscitara. Os textos dos Atos dos Apóstolos que caracterizam o Kerig- ma Pascal mantêm um elemento vinculante da fé desde o início. Aquele que foi crucificado, pelos homens, porque ele viera para os seus e não fora recebido por eles, desde o início, pois "preferi- ram as trevas à luz", (cf. Jo 1,11), Deus o ressucitara constituindo Senhor à sua direita. Ainda mais: ele nos fora dado para a nossa salvação. Os textos de narrativas pascais posteriores Narrativa de cristofanias pessoais (aparições) (Mt 28,9-10; Lc 24,13-55; Jo 20,11-18.24-29) e apostólicas (Mt 28,16-20; Lc 24,36-53; Jo 20,19-25): À medida que a experiência, o testemunho e a pregação pas- cais se desenvolvem, também as narrações vão adquirindo maior profundidade e sentido. Convém acentuar, porém: as aparições são sempre iniciati- vas do ressuscitado, que às vezes aparece de forma incógnita (mo- tivo de reconhecimento) e elas implicam sempre uma missão (mo- tivo de incumbência). Reconhece-se e se identifica o ressuscitado e Dele se recebe uma missão. As aparições não só confirmam a ressurreição, mas afirmam como Deus agiu com o crucificado: o fez encontrar-se com seus 93 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição discípulos, prometeu sua nova presença entre eles para sempre e lhes atribuiu a tarefa de testemunhar o ressuscitado, continuando a missão de Jesus, até os confins da terra (Mt 28,19-20). Narrativa do túmulo aberto (Mc 16,1-8; Lc 24,1-11; Jo 20,1-11): O cristianismo afirma que o túmulo estava vazio porque Je- sus ressuscitara. Foram as autoridades judaicas e soldados roma- nos que tramaram afirmar que o corpo não estava mais lá, por ter sido roubado (cf. Mt 28,12-15). Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– A pedra tinha sido removida pelo anjo, (cf. Mt 28,2), não porque Jesus ressusci- tara, mas para mostrar às mulheres que elas deviam procurar quem estava vivo e não morto. Por estar vazio o túmulo, não signifi ca que Jesus tivesse ressusci- tado. Antes, por estar vivo é que ele não estava ali. Por outro lado, o crucifi cado que ali estivera, agora, está vivo. Ele é o mesmo. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O crucificado/ressuscitado, porém, assumiu uma nova e glo- riosa condição espiritual: o crucificado ressuscitou, por isso não está ali entre mortos. Ele "despertado do sono da morte" pelo Pai, agora está ressuscitado. Ele é a criatura (re)nova(da), completa, definitiva; enfim, o novo homem em sua plenitude. Deus com- pletou Nele a obra da criação. Nele, antecipadamente, já se sabe quem nós seremos. Agora, Ele é um corpo espiritualizado, pneu- matificado (mas concreto, real). (cf. 1Cor 15,35-58). Os hinos (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; 1Tm 3,16; 1Pd 3,18-22; Heb 1,3-4). Estes hinos foram usados, sobretudo, nos encontros litúrgi- cos desde as primeiras comunidades. Sem dúvida a ressurreição de Jesus era um fato novo, inaudito e definitivo. Para o Antigo Testamento, morrer é desaparecer. Não é dei- xar de viver, mas é ir para o sheol, onde viveria o silêncio entedian- te (Sl 31/30,18; 87,4-13). Ali, dorme-se o sono da morte. © Cristologia94 As aparições de Jesus, todavia, confirmam uma presença es- catológica nova para os discípulos. “Ele está vivo" entre os seus. Vivo da maneira concreta e real: Ele é o crucificado que estivera com eles. O que não significa que esteja do mesmo modo, com o mesmo corpo biológico. O que era biológico agora está pneuma- tificado. Sem dúvida, a ressurreição não é um fato acessível à investi- gação histórico-científica. Só se pode constatar objetivamente que aqueles homens e mulheres creram no ressuscitado, que estavam certos de que Ele lhes apareceu e que o túmulo estava aberto e vazio. A fé na ressurreição tem a ver com a relação entre o homem e Deus. É uma situação antropológico-teológica: Mais antiga que todas as narrativas pascais é a convicção cristã pri- mitiva unânime de que Jesus crucificado foi ressuscitado e exalta- do, encontrou-se com seus discípulos, os chamou a serem testemu- nhas e lhes prometeu sua presença permanente. Já a comunidade primitiva foi fundada com base nesta convicção (KESSLER, 2000, p. 362). O testemunho pascal dos discípulos (e o nosso) O verdadeiro objeto da fé pascal Quando confessamos que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos, ao terceiro dia, para a nossa salvação, na verdade profes- samos nossa fé no ensino dos apóstolos. Eles contaram terem visto e tocado o crucificado-ressuscitado. Fizeram, inclusive, refeições com Ele. Eles reconheceram como ressuscitado aquele Jesus “que passara entre eles fazendo o bem” (At 10,38), curando a muitos e que os chefes dos judeus o crucificaram. Cremos hoje no testemunho dos apóstolos que nos transmi- tiram suas experiências com o ressuscitado. Porém, nossa fé hoje, também está baseada em nossa experiência mística. Ela está fun- dada: 95 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição • na mesma experiência que eles tiveram, por causa da prá- tica dos ensinamentos de Jesus que eles transmitiram; • por partilhar sua Palavra e a Eucaristia do Senhor como eles fizeram e fazer a mesma experiência pascal que eles nos transmitiram e como eles nos transmitiram. O fundamento da fé é o Jesus crucificado-ressuscitado que experimentamos no testemunho das testemunhas que convive- ram com Ele. Significado da fé pascal Para o próprio Jesus: a) é reabilitada sua causa e sua pretensão; b) é a desautorização do fracasso imposto que o levou à morte; c) é a confirmação de que o Pai estava com Ele; d) que Ele é revelador definitivo do Pai e agente único do Senhorio de Deus; e) Deus constitui Senhor a Ele, o portador definitivo da sal- vação; f) Nele não só é antecipada toda a escatológica criação de Deus, mas também levada à sua consumação; g) Ele está glorificado à direita do Pai, constituído juiz e há de julgar vivos e mortos. Para Deus: a) é confirmado seu contínuo poder criador, ao ressuscitar Jesus (Pela re-novação da criação, chama o crucificado a uma nova vida e completa a própria criação); b) o homem Jesus, seu Filho muito amado, lhe foi fiel até o fim; c) que é possível crer no ser humano e manter com ele a aliança pascal; d) a ressurreição esclarece porque a criação do ser humano era algo muito bom "(cf. Gn 1,31); e) Deus recebe o ressuscitado como culminância da consu- mação escatológica. © Cristologia96 Para nós: a) Jesus é a primícia da ressurreição. Nós o seguiremos (Cl 1,18; 1Cor 15,20); b) Ele nos liberta do pecado, da morte e da Lei; c) a fé no ressuscitado é a mais radical saída para todas as pretensões humanas; d) é a garantia de nosso futuro; e) Ele é a dimensão à plenitude definitiva; f) Jesus nos revela definitivamente quem somos e para onde vamos; g) é o doador do Espírito ressuscitado à Igreja e a cada um de nós. 7. QUEM É JESUS? A REFLEXÃO TEOLÓGICA NEO TESTAMENTÁRIA Neste último tema da unidade, você terá a oportunidade de fazer uma síntese de teologia bíblica sobre Jesus Cristo. Agora, você encontrará duas chaves cristológicas de leitura, que poderão ser critérios permanentes para entender todas as questões perti- nentes às cristologias antigas e contemporâneas. Inclusive, você pode usá-las com critério de reflexão e análise do que se diz nesta matéria ao seu redor. Que havia acontecido com o homem Jesus, que andara com os apóstolos? Eles viram Jesus pregado na cruz: era o fracasso de sua pretensão e de sua missão. E eles desanimaram. De repente, sem nenhuma expectativa, surge o grito: “Ele está vivo e apareceu". Brota o medo, a apreensão, a certeza. Mas, afinal, quem é Jesus? Era certo: Deus havia agidoe ressuscitara Jesus. Os apósto- los e discípulos vão experimentar e reconhecer que está vivo aque- le que fora crucificado. As inquietações dos apóstolos frente ao crucificado e o im- pacto pela experiência pascal deram origem às perguntas que são a origem e o desenvolvimento da cristologia. 97 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição As respostas avolumaram-se em títulos dados a Jesus, em leituras fundadas e interpretadas no Antigo Testamento e na busca do significado de sua pessoa. Da cristologia nascente, após a páscoa, até a de hoje, a tarefa é responder "quem é Jesus para nós (hoje)?" Que fez? Que disse? Que consciência Ele tinha de si? Sabia que era Deus? É daí que surge a cristologia. E poder-se-ia procurar suas raízes na própria autocompreensão de Jesus. Como se compreendeu a si mesmo e sua missão? Todo o significado das respostas, porém, está em que Ele é o nosso Senhor e Salvador. Tudo aconteceu para a nossa salvação. Ele não fez uma análise de si mesmo, mas viveu entregue a Deus em favor dos outros. Foi fiel a Deus e aos homens. Aqui pre- gou, fez amizades, cuidou do próximo, especialmente dos doentes e excluídos. Nisto, foi descobrindo sua missão. Assumiu a morte como um serviço. O Ressuscitado mostrou-se como obra do Pai. Enfim, não encontramos Nele uma autoexplicação senão implícita. Esta primeira cristologia foi feita por Ele próprio. O modo de manifestar sua pretensão e sua autoridade, sua liberdade e atua- ção desde dentro do judaísmo, sua proposta sobre o Reino e o cha- mado a assumi-lo, sua relação com Deus e os homens etc.; tudo isso aponta a uma chamada cristológica implícita. E ela pode ser sistematizada pelo modo como Ele foi chamado (títulos), ou como Ele os usou. Depois vai surgir uma cristologia explícita por obra dos após- tolos e da primeira comunidade cristã, dando origem à cristologia, que é a resposta permanente e atualizada sobre "quem é Ele para nós?” Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– A cristologia nasce, por meio das experiências pascais, nas perguntas sobre quem Ele era, é e sempre será (cf. Heb 13,8). A primeira resposta, encontrada Nele mesmo, é uma cristologia implícita. Porém, as criativas e diversifi cadas res- postas foram, desde a páscoa, criando uma percepção muito rica, polifacetada. © Cristologia98 Elas, porém, mantiveram uma unidade fundamental. Tudo convergia para aquela experiência pascal vivida sobre o Cristo glorifi cado, que era o mesmo com quem eles tinham vivido até a crucifi xão. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Logo, nas primeiras décadas após a ressurreição, impõem-se duas grandes perspectivas explícitas. Uma cristologia do homem Jesus exaltado e eleito por Deus (o homem que vivera na Palestina, entre os anos oito e seis a.C. e 30 d.C.) e outra, a do Verbo pré- -existente que se encarna. Uma cristologia desde a história e uma cristologia cósmica da encarnação. É bom lembrar que, desde o início, há uma variação muito grande de cristologias nascentes. Aqui se enfatiza mais numa for- ma de síntese este procedimento. Cristologia da exaltação e da eleição Jesus evitou identificar-se como Cristo (Messias), por causa de conotações político-nacionais. A primeira comunidade de seus seguidores em Jerusalém, no entanto, usou deste designativo ‘Cris- to’ para identificar Jesus. Se Jesus a evitou, autoridades judaicas, no entanto, coagiram as romanas a condená-lo também por isto. Todavia, a protocomunidade de Jerusalém deu-lhe um novo signi- ficado. Deus ressuscitava Jesus, fazendo-o “Kyrios (Senhor) e Cris- to" (cf. At 2,36; 5,31). Também afirmava que Ele fora estabelecido como “Filho de Deus” (cf. Rm 1,3ss; 1Ts 1,9ss; At 13,30ss). Faz-se uma re-significação da concepção vétero-testamentária de Mes- sias e de uma eventual perspectiva política nacionalista. Por um lado se expressa a inserção de Jesus, no contexto da pro- messa vetero-testamentário e judaico (o Filho de Deus é o Messias de Israel). Mas, por outro lado se sublinha que Israel não pode es- perar mais um portador de salvação diferente de Jesus crucificado e exaltado junto de Deus (que as Sagradas Escrituras de Israel não podem referir-se a um Messias diferente de Jesus, que é o Messias da humanidade inteira) (KESSLER, 2000, p. 208). A protocomunidade, também, assume a expressão marana- tha (vem, Senhor - cf. 1Cor 16,22; Ap 22,20). Com base no Sl 110,1, 99 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição eles professam a exaltação de Jesus à direita do Pai, com poder messiânico e representação terrena de Deus (como eram os reis no AT cf. Is 9,6). Reconhecer Jesus como "Senhor" (para além do tratamento de cortesia cf. Mc 1,22.27; Lc 18,41), depois da páscoa para as comunidades palestinas, é compreendê-lo como aquela fi- gura escatológica que traz a salvação (cf. Jd 14-15) e , ao mesmo tempo, subordinar-se a este Senhor, e a nenhum outro, sua exis- tência. Por isto se reconhece: "Jesus é o Senhor" e só Ele salva (Rm 10,9-10; 1Cor 12,3). A expressão cristológica palestinense (o Senhor - Kyrios), logo foi interpretada pela comunidade cristã judeu-helênica, e que, tam- bém, transfere funções de Deus ao crucificado-ressuscitado, Ele é o Kyrios (cf. Heb 1,10; At 2,36). É o Senhor, inclusive, do tempo. Por Ele tudo existe (1Cor 8,5-6). No Apocalipse, enfatiza-se este título a Cristo: Ele é o Senhor dos senhores, e não o é o imperador como pretendiam os romanos (cf. Ap 17,14; 19,16). Entre os gentios, pare- ce já haver não apenas identificação funcional. Há uma identidade ontológica de Jesus com Deus para além do que afirma 1Cor 8,6: um só Deus e um só Senhor; Jesus Cristo. Atribuir o título do Senhor ao crucificado, agora exaltado, significou reconhecê-lo como único salvador escatológico, deten- tor de todo poder. Se a morte de Jesus o levara ao fracasso, Deus o exaltou, colocando-o como Senhor de tudo. Filho de Deus Esta expressão do Antigo Testamento, Jesus atribuiu a si só de modo indireto. Foi muito usada pelos primeiros cristãos (cf. At 13,32-41). Jesus é superior até mesmo aos anjos (cf. Mc 13,32). Assumiu plenamente o desígnio de Deus dando-nos a vida (cf. Rm 5,10; 8,32). Por Ele fomos reconciliados com o Pai e por Ele nos tornamos filhos (cf. Rm 8,14-15; Gl 4,4-7; Jo 10,30.38). É muito frequente este título no evangelho de João (3,25; 6,19ss; 6,40; 8,36; 1Jo 2,23). Ele expressa, sobretudo, sua total © Cristologia100 submissão ao Pai enquanto sua condição humana; mas também por sua elevação junto ao Pai. A confissão de fé que brota deste título aparece inúmeras vezes (cf. Mt 16,16; Mc 15,39). Jesus foi reconhecido como Filho de Deus, por sua ressurreição. Ainda no Novo Testamento, pode-se perceber, na cristologia da exaltação e da eleição, outros títulos dados a Jesus que têm sua importância. Por exemplo: “servo de Javé" (de Deus) ou "servo sofredor", "novo Adão", "Filho do Homem" etc. Deve-se observar que todos os títulos cristológicos dados a Jesus não são suficientes para interpretar, em plenitude, quem Ele foi e como foi compreendido pelos primeiros cristãos, ainda apos- tólicos. São Paulo procurou fazer uma síntese identificando "o cru- cificado" com "o ressuscitado": para indicar que aquele homem, que fora eleito, aceito e glorificado por Deus, era (é) o singular Messias salvador dado por Deus, nascido de mulher, na plenitude do tempo. Cristologia da pré-existência e da encarnação A compreensão neotestamentária entendeu aquele Jesus não apenas como eleito e exaltado por Deus. Há uma cristologia que afirma ser Ele alguém que pré-existia, inclusive à própria cria- ção. O pré-existente foi enviado em nossa carne: "Deus enviou seu Filho ao mundo” (cf. Gl 4,4; Lc 9,48: Jo 20,21). Ele não se apegou à sua condição divina, mas fez homem na carne de Maria (cf. Fl 2,6). De que forma Ele existia antes? Se hoje sabemos que Ele é a segunda Pessoa daTrindade, que Ele é eterno (existe desde sempre, desde antes da criação de tudo), que Ele é Deus com o Pai e o Espírito Santo etc. isto não era assim para o povo neotestamentário. E é exatamente isto que eles descobriram, mas com outra linguagem. 101 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição Vale salientar que os ensinamentos (tão claros) da Igreja foram conquistas posteriores. Neste tempo (os primeiros) ainda não se explicava (nem interessava) esta questão. Foi no homem Jesus que eles descobriram a sua pré-existência. Questão difícil para eles por saberem da origem terrena, da história de vida e da cotidianeidade de Jesus de Nazaré. Por causa das questões decorrentes da páscoa, exigiram-se novas e mais profundas respostas. Relendo as Escrituras, os primei- ros cristãos (judeus, helênicos e gentios) vão descobrir categorias novas capazes para interpretar Jesus, como portador escatológico da salvação e consumador da história. Impunha-se uma questão de soteriologia. Aquele que é o messias-escatológico só pode vir de Deus, só pode ser dado por Deus, por isto Ele será o salvador. E é no Antigo Testamento que eles começam a encontrar res- postas: a ânsia messiânica também remete para a Sabedoria, pré- -existente e que está junto de Deus. Ela é solicitada a Deus. Que Ele a envie, pois ela é mestre, guia, conhecimento, vida e salvação (cf. Pr 3,17; 8,12-32; 1,32; 2,5-10; 3,2-16; Sb 9,10-17). Para os judeus-helenistas, a Sabedoria era: Uma figura cósmica do pensamento para fins soteriológicos. Ela serve para pensar em conjunto a universalidade da atuação e da revelação de Deus em toda a criação (participação dos povos na Sabedoria divina) e o significado especial de sua atuação particular na história de Israel (posição incomparável à da Torá) e assim, ao mesmo tempo, destacar a validade universal da Torá (como planta secreta da construção do mundo e caminho abrangente da salva- ção) (KESSLER, 2000, p. 281). A compreensão da Sabedoria e sua atuação serviriam para identificá-la com Jesus. Jesus ou seria um justo ou filho da Sabe- doria pré-existente ou alguém que ocupou o lugar dela; “apos- sando-se de Jesus, Nele se tornava o caminho certo para Deus e salvação" (KESSLER, 2000, p. 282), ou como a Sabedoria, que era identificado com a Torá, agora se personificava em Jesus. O certo é © Cristologia102 que os primeiros cristãos precisaram pensar em linguagem meta- fórica e aí identificar o homem Jesus já ressuscitado como "algo", "alguém" previamente existente para a salvação. Ele então era de Deus (pré-existia); depois se manifestou "na carne", enviado por Deus e que retornaria a Deus. Ele era do mundo de Deus e foi enviado ao mundo dos ho- mens para, a fim de salvar, remir (cf. Gl 4,52; Jo 3,16ss; Rm 8,31; 1Jo 4,9). Aqui entra a fórmula teológica do envio. Alguns discutem se o "enviado", segundo a concepção do tempo bíblico pós-pascal, deveria ou poderia ser pré-existente desde toda a eternidade ou passaria a existir, antes da criação, por causa do envio. Não abordaremos esta questão. Pressupomos a pré-existência eterna do enviado sem mais. Com isso, Deus envia seu Filho, pré-existente (Sabedoria), na plenitude dos tempos, a fim de que, por Ele, todos tenham vida em plenitude (cf. Jo 10,10). Ele será o salvador de todas as limita- ções e desgraças humanas. Vem de Deus, para libertar o ser hu- mano. Vem para desenvolver todas as potencialidades do homem (criado) até sua plenitude em Deus. Mas, fez-se necessário que o pré-existente e enviado assuma a natureza humana para salvar o ser humano desde dentro de sua realidade. Só assim será o salva- dor e mediador entre Deus e os homens, porque é um verdadeiro homem e Deus verdadeiro entre nós. 8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Assinale a alternativa conforme: V (Verdadeiro) ou F (Falso): ( ) A Igreja e o Evangelho concebem o fim da história de Jesus sem consi- derar, além de sua morte, um outro elemento constitutivo de sua vida: a ressurreição. ( ) O liturgicamente chamado “Tríduo Pascal” leva em conta a ressurreição de Jesus , sem considerar sua morte. 103 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição ( ) A morte de Jesus marcou, teologicamente, o ocidente cristão, especial- mente o segundo milênio. ( ) Jesus, desde o início de sua vida apostólica, sabia que seria morto e pre- gado na cruz. ( ) Pode-se afirmar que a morte de Jesus era desejada por Deus Pai, para o perdão dos pecados. ( ) A condenação de Jesus por Pilatos, a crucifixão e a inscrição na cruz (INRI) indicam que, historicamente, a morte de Jesus é uma sentença romana, por manobra das autoridades judaicas. ( ) Jesus, conscientemente, buscou por suas atitudes, a morte, a Deus e ao seu Reino (senhorio). ( ) Ao aceitar sua morte na cruz, Jesus sabia que estava superando a antiga afirmação bíblica de que “maldito era todo aquele que fosse suspenso na cruz”. ( ) Os apóstolos, diante da crucifixão de Jesus, sentiram-se frustrados, sem razão para continuarem a missão de Jesus, compreendendo-o como um rejeitado pelo próprio Deus. ( ) A “teoria do mérito” sobre a morte de Jesus é uma afirmação de que, por ela, Jesus conquistou o perdão de nossos pecados junto a Deus. ( ) A “teoria da satistação” quer afirmar que, por sua morte, Jesus reparou as ofensas humanas junto a Deus irado por nossos pecados. ( ) São bíblicas as seguintes teorias sobre a morte de Jesus: “teoria do res- gate”, “teoria do sacrifício” e “teoria da satisfação”. ( ) A “teoria do sacrifício”, referente à morte de Jesus na cruz, contém a ideia de que a vitimização poderia ser uma aliança de holocausto e de expiação pelos pecados, pois por meio dela se pode entrar em comu- nhão com Deus. ( ) A “teoria da solidariedade” indica o amor de Jesus por Deus, seu Pai. Nela Jesus se solidariza com Deus contra o pecado. ( ) A “teoria da representação” afirma que Jesus não só morreu por nós, mas também em nosso lugar – mesmo que isso não elimine a responsa- bilidade pessoal de cada um, pois ela enfatiza que, doravante, qualquer ser humano poderá vencer as escravidões do pecado, do mal e da morte. Assim, a morte de Jesus tornou-se a possibilidade da vida nova em Deus. 2) Assinale a única alternativa correta: Os textos bíblicos, referentes à ressurreição de Jesus, pertencem a quatro ca- tegorias: a) Confissões de fé, kerigma, sepulcro vazio e missão de Jesus. b) Kerigma, hinos cristológicos, textos narrativos posteriores e confissões de fé. c) Sepultamento, aparições, kerigma e aparição à Maria Madalena. d) Todas são verdadeiras. e) Nenhuma é verdadeira. © Cristologia104 3) A expressão “Jesus ressucitou ao terceiro dia” refere-se: a) A um fato histórico. b) A um fato escatológico. c) Ao novo plano de Deus. d) A um fato messiânico. e) Todas as afirmações são verdadeiras. 4) A narrativa do túmulo vazio ou aberto: a) É uma prova secundária da ressurreição. b) É um testemunho da ressurreição. c) Indica que ele está vazio porque Jesus está vivo. d) Indica que está assim porque foi a informação dada pelo anjo. e) Todas as afirmações estão corretas. 5) Assinale a única resposta correta: O verdadeiro objeto da fé pascal está em que: a) Os apóstolos viram e cearam com o ressuscitado. b) Nós hoje fazemos a mesma experiência de fé que os apóstolos nos trans- mitiram ao dizerem que viram e viveram com o ressuscitado. c) Deus se dispôs a ressuscitar seu Filho único para nossa salvação. d) Os apóstolos encontraram o ressuscitado e compreenderam a própria fé. e) Todas são verdadeiras. Gabarito Depois de responder às questões autoavaliativas, é impor- tante que você confira o seu desempenho, a fim de que saiba se é preciso retomar o estudo desta unidade. Assim, confira, a seguir, as respostas corretas para as questões autoavaliativas propostas anteriormente:1) F, F, V, F, F, V, F, F, V,V, V, F, V, V. 2) b 3) b 4) e 5) b 9. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, tivemos a oportunidade de estudar a morte de Jesus, sua ressurreição e o testemunho neotestamentário, além 105 Claretiano - Centro Universitário © U3 - O destino de Jesus: morte e ressureição de reconhecermos quem é Jesus e a resposta cristológica do Novo Testamento. Os temas estudados, nesta unidade, levaram você a fazer uma síntese da cristologia bíblica, em que pudesse transparecer dois "rostos" de Jesus, de acordo com a perspectiva que se toma. Este reflexão global é importante, sobretudo, porque você não pode estabelecer uma suposta e completa verdade cristológica só a partir de um evangelho. Se cada evangelista dá uma direção à sua reflexão, isso não quer dizer que seu texto contenha a verdade toda da fé cristã, pois um se complementa nos outros. Esperamos que no decurso deste tema você tenha tido, tam- bém, a vontade de (re)-ler os próprios evangelhos, por dois mo- tivos. Primeiro, porque é ali que você encontra a cristologia fun- damentada na Palavra de Deus. E segundo, porque a cristologia (enquanto estudo das razões da fé) é complementada pela mística. Quer dizer, aprende-se para viver e louvar a Deus, no caso a Cristo Jesus e quem lê os evangelhos, deve lê-los com o espírito de ora- ção, por se tratar da Palavra de Deus. Continue lendo outros comentários de cristologia neotesta- mentária, pois eles enriquecerão sua compreensão sobre Jesus, o Cristo. Na Unidade 4, vamos compreender o Novo Testamento como normativo para a cristologia, a evolução dogmática nos grandes concílios cristológicos, as três grandes respostas e as conclusões dos concílios. Até a próxima! 10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUDE, P. De acordo com as escrituras. São Paulo: Edições Paulinas, 1982. BERGER, K. Para que Jesus morreu na cruz? São Paulo: Loyola, 2005. BOFF, L. Paixão de Cristo, paixão do mundo: os fatos, as interpretações e o significado ontem e hoje. Petrópolis: Vozes, s/d. © Cristologia106 BONY, P. A ressurreição de Jesus. São Paulo: Loyola, 2002. BORG, M; CROSSAN, J. A última semana: um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. BROWN, R. Um Cristo ressuscitado na páscoa. São Paulo: Ave-Maria, 1996. DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. DURRWELL, F. Cristo nossa páscoa. Aparecida: Santuário, 2006. FEINER, J.; LOEHRER, M. (Orgs.). Mysterium salutis: compêndio de dogmática histórico- -salvífica. Vol. III/2: o evento Cristo. cristologia do Novo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1973. ______. Vol. III/6: o evento Cristo. 6. mysterium paschale. Petrópolis: Vozes, 1974. GOURGUES, M. 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EA D Reflexão histórico- -dogmática: a cristologia dos dogmas 4 1. OBJETIVOS • Identificar o processo teológico da compreensão de Jesus Cristo como verdadeiro homem e, ao mesmo tempo, ver- dadeiro Deus. • Caracterizar a busca do verdadeiro sentido de Jesus du- rante o período que antecede o Concílio de Niceia. • Demonstrar a conquista teológico-dogmática estabele- cida no Concílio de Niceia, e de que Jesus é verdadeiro Deus, e no 1º Concílio de Constantinopla, de que é verda- deiro homem. • Evidenciar como Jesus Cristo é, ao mesmo tempo, ver- dadeiro Deus e verdadeiro Homem sem afirmar que são dois ao mesmo tempo, segundo os ensinos dos Concílios de Éfeso e Calcedônia. © Cristologia108 2. CONTEÚDOS • Novo Testamento como normativo para a cristologia. • Evolução dogmática nos grandes concílios cristológicos. • Três grandes respostas e as conclusões dos concílios. 3. ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Vale salientar que nosso texto tem um caráter mais de história das ideias dogmático-cristológicas. Assim, reco- mendamos que, em paralelo ao seu estudo, você leia, também, BOFF, L. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vo- zes, 1972, p. 194-222, especificamente o capítulo intitu- lado: "Humano assim só podia ser Deus". O autor segue outro (válido e oportuno) esquema em que descreve, por um lado, a interpretação da humanidade de Jesus e, por outro, sua divindade. É bem interessante. Confira! 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na Unidade 3, estudamos a morte de Jesus, sua ressurreição e o testemunho neotestamentário. Reconhecemos também quem é Jesus e a resposta cristológica do Novo Testamento. Após isso, vamos iniciar uma nova etapa do nosso curso, na qual, pressupondo o Novo Testamento como normativo para a cristologia, deveremos aprofundar a evolução dogmática nos gran- des concílios cristológicos, as três grandes respostas conciliares e suas conclusões. Os temas que iremos abordar aqui têm uma natural dificul- dade. A razão está na passagem da linguagem bíblica para a filosó- fica. Muitos conceitos são realmente difíceis, mas não impossíveis de sua compreensão. Portanto, não desanime e bom estudo! 109 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas 5. NOVO TESTAMENTO COMO NORMATIVO PARA A CRISTOLOGIA Nós professamos a fé de que Jesus, o crucificado/ressusci- tado, é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, ao mesmo tempo. Porém, esta é uma afirmação de fé; resultado de um longo proces- so de compreensão. Hoje quando lemos o Novo Testamento, encontramos várias expressões, cujo sentido, à época, era diferente do que pensamos. Ou dito de outro modo, convém lembrar: a) os evangelhos e outros textos do Novo Testamento são livros de fé, escritos após a ressurreição de Jesus; b) ninguém, durante a vida histórica de Jesus, jamais pen- sou que Ele fosse Deus; c) o Antigo Testamento sempre ensinara que Deus é um só. O próprio Deus dizia: "Não tereis outros deuses, além de mim... Eu sou o único Deus." A isto se chama monoteís- mo rígido; d) os primeiros cristãos (período do Novo Testamento), após a ressurreição, descobriram que aquele homem que tinha vivido com eles, que fora exaltado à direita de Deus, sim, era Deus mesmo feito homem entre eles. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– À luz da ressurreição, passaram a compreender o signifi cado daquele Homem “especial”, de sua missão e de sua pregação, como uma efetiva presença de Deus entre eles. Ele era Deus mesmo. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Após a ressurreição, começaram a entender, de acordo com as Escrituras, que Jesus não era só um profeta, um messias, o Filho de Deus etc., que lhes anunciava o Reino de Deus e a promessa de salvação. Tornava-se claro: Deus se fizera humano entre eles. E à luz desta nova compreensão, deixavam de ser judeus para com- preender certas afirmações de Jesus como fios de uma grande re- velação: © Cristologia110 Jesus era o salvador enviado por Deus e, por isso, Ele próprio era Deus. Assim, foi possível se reunirem de modo novo, à luz de Deus. Quando no Novo Testamento se fala de Deus, entende-se sempre Deus Pai. Só mais tarde se ousa aplicar a Jesus (uns poucos textos:Jo 20,28; Rm 9,5; Jo 5,20). Porém, todas as expressões ali encontradas deixam entender que realmente Jesus é o Senhor", Ele é Deus mesmo. “De modo idêntico, o Espírito Santo jamais foi chamado de Deus, no NT”. (RAHNER, 1965, p. 568). Como você já sabe, o significado de Jesus Cristo, para nós, não é apenas o de alguém do passado (museificado). É antes a expressão viva e permanente de nossa salvação. Quer dizer: em todos os tempos, as pessoas devem compreendê-lo como Ele é (Homem-Deus). Então, torna-se importante compreendê-lo na linguagem do tempo e da cultura contemporânea. E isto desde o começo do cristianismo tenta-se fazer, não sem inúmeras dificul- dades. É preciso continuar crendo no mesmo Jesus, mas conforme a mentalidade dos cristãos de hoje. Isto é problemático porque não se pode inventar um Homem-Deus, chamado Jesus para cada tempo. "Ele é o mesmo ontem, hoje e sempre" (cf. Heb 13,8). O que muda é a forma de compreensão. Porém, a própria forma de compreensão (teologia) tem suas "regras". Assim, o NT é normati- vo, como já vimos. Na história, porém, desenvolveram-se grandes discussões e estudos, conhecidos, sobretudo, como "período de ouro da cristologia", entre os séculos 4º e 8º. 6. EVOLUÇÃO DOGMÁTICA NOS CONCÍLIOS CRISTO LÓGICOS Como os cristãos foram saindo de Jerusalém e da Palestina indo evangelizar e residir nos universos das culturas grego-latinas, foi ne- cessário, cada vez mais, adaptar o "kerigma da fé" às novas realidades. 111 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas Nos primeiros séculos Mas como compreenderam Jesus os dos segundo e terceiro séculos? Surgiram inúmeras respostas. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Na continuidade deste tema, você vai encontrar muitos termos que formam a base da cristologia dogmática. Eles, em geral, têm uma origem etimológica gre- ga. Devem ser bem compreendidos. Procuramos, numa linguagem bem sim- plifi cada, dar o respectivo signifi cado. Porém, indicamos também o Glossário cristológico in Garcia de Alba (1998) e Forte (1985). Você pode recorrer ainda a outros dicionários já indicados neste texto. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Num primeiro período (após os escritos do Novo Testamento até o chamado período niceno), surgiram "grandes correntes". Na primeira delas se discute e se contesta a divindade de Jesus. Um grupo (os judeus cristãos) enfatiza Jesus como um homem eleito (escolhido) e exaltado (glorificado) por Deus; o outro grupo (ado- cionistas) apega-se à ideia de que Deus adotou Jesus como seu Filho. Uma segunda corrente discute e contesta a humanidade de Jesus, para afirmar sua divindade. Para estes docetas, o éon celes- tial Cristo teria se "apossado" de Jesus de Nazaré, desde o batismo até a ascensão, após a páscoa. Tinha a aparência de homem, mas era divino; porém, preso num corpo humano. A terceira corrente se pôs entre estes dois extremos e afir- mava que, em Jesus, o ser divino e humano estavam ligados numa unidade paradoxal. Esta corrente era constituída, no oriente grego, pelos Padres Apostólicos e pelos antignósticos (Inácio de Antio- quia, Irineu), que afirmava esta unidade, pois só assim Jesus seria o mediador entre Deus e os homens, para a nossa salvação. No ocidente latino, um grupo de orientação jurídico-moral (que dará início à cristologia latino-ocidental) reconhece em Jesus o divino e o humano por causa da necessidade de remissão de nossos pecados. Sim, Jesus é Deus porque só Deus pode nos redi- mir, mas é humano porque só assim sabe do que nos redimir. © Cristologia112 Na quarta corrente, que introduz na igreja a influência do platonismo médio, um subgrupo dá ênfase na compreensão de Je- sus como Logos (Palavra) do Pai. O Pai "pronuncia", para a nossa salvação, a sua Palavra (Logos). O Logos está subordinado ao Pai (subordinacionismo). Outro subgrupo afirma que: • Cristo é Deus. Deus torna-se Cristo. • Cristo é Deus, por isso é também Pai. Foi Ele, o Pai, quem apareceu na terra, sofreu, foi crucificado e se autorres- suscitou (patripassionismo). Todas essas questões criaram um estado de espírito tão agi- tado que o povo, além dos bispos e teólogos, não só discutiu o as- sunto em locais públicos, mas também começou a tomar partido, à medida que elas se agudizam. Várias questões surgidas poderiam ser aceitas na Igreja, des- de que entendidos de modo histórico-salvífico. Mas, na realidade, as interpretações estavam sendo, crescentemente, feitas em pers- pectiva metafísico-essencial. As questões agravaram-se mais, quando Ario (256 - 336), em atrito com seu bispo, Alexandre, de Alexandria, afirmou que o Logos-Cristo não pode ser da mesma substância do Pai (que como Deus é um só). Cristo pertence, como criatura, à ordem cósmica (e não divina), portanto. Deus não pode se transformar, diz Ario, e, por isso, Cristo só pode ser extradivino (Ele se encarna, sofre mo- dificações. Não pode ser eterno, pois). E no caso (intracósmico) é criatura, mesmo que seja a "primeira", antes da criação. Se assim é, deve-se perceber que Jesus Cristo, homem de elevada estatura moral, agraciado como Filho adotado, não é igual a Deus; mas, depende Dele (aqui aparece um subordinacionismo exagerado e um adocionismo moral). A posição de Ario leva a uma consequência: Jesus não pode revelar o Pai (porque não O conhe- ce totalmente) e menos ainda pode salvar-nos (por não pertencer ao mundo de Deus). Sua função é somente cosmológica. 113 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas Concílio de Niceia (325 d. C.) e as consequências A situação teológica, e inclusive política, complicou-se. En- tão, o imperador Constantino convocou um concílio, do qual par- ticiparam trezentos e quarenta e oito pessoas, representantes de três partidos (teológico e/ou políticos). As decisões de Niceia (credo niceno) afirmaram a divindade de Jesus e sua igualdade com o Pai, contra as ideias de Ario. A grande intenção do Concílio foi reafirmar a fé na redenção, portanto a ênfase na questão sotereólogica, como o Novo Testa- mento ensinara. Assim, o Concílio não quis entrar em discussões metafísico-helênicas, mas manter a dimensão bíblica em sentido histórico-salvífico. Contudo, não pode evitar usar alguns termos filosóficos não bíblicos; sobretudo, consubstancial (ser da mesma substância). Ligou a encarnação à salvação. Vinculou Jesus ao Pai, na mesma igualdade, ambos eternos. "Ele o (Deus-Logos) se fez homem para que fôssemos divinizados”, como tinha ensinado San- to Atanásio. Eis o ensino do concílio: Creio em um único Deus, o Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio num único Senhor, Jesus Cristo, o Filho de Deus, o único Filho, gerado do Pai, isto é, da substância do Pai; Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai, por meio de quem to- das as coisas vieram a existir, tanto as celestiais quanto as terrenas. Por nós, homens, e por nossa salvação, Ele desceu, encarnou-se, tornou-se humano, padeceu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, e virá para julgar os vivos e os mortos. E creio no Espírito Santo (...). Após o concílio, que afirmou a igualdade entre Jesus Cristo e o Pai, porque os dois têm a mesma substância ‘homoousios’, sur- giram novas discussões. Alguns conceitos não estavam tão claros como se pensava, sobretudo, a palavra homoousios, que poderia ser entendida por uns como “igual” e por outros, como “seme- lhante”. Se, pois, o Filho fosse da mesma e igual natureza, como podia ser diferente do Pai? Então um grupo propôs uma nova in- © Cristologia114 terpretação, acrescentando a letra "i" homoiousios, que é: seme- lhante. O Pai e o Filho teriam uma substância semelhante. A discórdia pública aumentou. O bispo Atanásio (296 - 373), a duras penas, consegue uma solução correta: Deus temuma só homoousia (substância), mas três hypostases (pe- culiaridades). O Pai e o Filho têm a mesma e única natureza; mas o Pai não é o Filho e vice-versa, porque cada um tem uma peculia- ridade. (Aqui começam a aparecer elementos da discussão futura sobre o Espírito Santo e a Trindade). Concílio de Constantinopla (381 d.C.) e as discussões posteriores Ao final do Concílio de Constantinopla I, estabeleceu-se o acordo: a substância, ousia, de Deus é uma só, que se realiza em três expressões, hypostases. Desse modo se poderia compreender definitivamente a divindade de Cristo junto a Deus Pai. O Concílio de Constantinopla tem importância porque foi dado o esclarecimento conclusivo de Niceia, que afirmara a divin- dade de Cristo. Apenas resolvida a questão da divindade (uma ousia e três hypostasis), surge agora outra questão: Este Jesus, que é Deus verdadeiro, ainda pode ser compre- endido como verdadeiro Homem? Em que sentido, de que modo o Filho de Deus se fez homem em Jesus Cristo? Ou como Jesus ainda pode ser humano? Afirma-se assim também a divindade do Espírito, do mesmo modo como em Niceia se afirmara a divindade do Filho. (A ques- tão da divindade do Espírito Santo foi também muito discutida. Todavia, nós não a estudaremos aqui, pois não é tema cristológico como tal. Este assunto certamente você o estudará ao abordar a questão da Trindade.) O Concílio de Constantinopla afirmara, ainda, resolutamente que, além da perfeita divindade, em Cristo, há uma hipóstase que inclui a perfeita divindade e a perfeita humanidade. Quer dizer: 115 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas nela há duas naturezas (por motivo sotereológico). O concílio defi- niu esta verdade (dogma) sobre Cristo Homem e Deus, mas deixou muitas questões abertas. Para responder a isto, novas discussões surgem. As propos- tas podem ser sintetizadas em dois esquemas: • Logos-sarx. (Verbo e corpo humano). • Logos-antropos. (Verbo e ser humano). Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Aqui, você deve recordar em Antropologia Teológica a compreensão grega do ser humano constituído de pneuma e sarx (espírito e corpo), diferente da concep- ção semita do ser humano, antropos, como totalidade manifesta enquanto basar, nephes e ruah (Unidade 3). Lembre que a palavra sarx indica o corpo, a carne, a exterioridade do ser humano, enquanto antropos indica a pessoa humana, o ser humano. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O esquema Logos-sarx Muitos teólogos vinham afirmando que o Logos (Filho de Deus/Deus mesmo) havia assumido o corpo (sarx) sem alma (pneuma) de Jesus. Apolinário de Laodiceia (310 - 390) sintetizou e levou ao extremo esta teologia do Logos-sarx. Ele afirmava que: o Filho de Deus substituiu a alma lógica ou racional (espiritual) do ser humano para poder se encarnar. Ou seja, Deus e a sarx (carne) produziram uma síntese: Cristo. O modelo negava assim a verdadeira natureza humana (cor- po e alma humanos), para dar lugar ao Logos no corpo humano. Desse modo, Cristo não poderia pecar por não ter o princípio vital humano; mas, por outro lado, como era humano (tinha corpo hu- mano), poderia ser nosso salvador, enquanto Homem, porque era Deus também. Tal esquema foi rejeitado. Sem a alma humana, o Cristo não é perfeito Homem, dirão os teólogos do grupo Logos-antropos. E se não é humano, então, não nos salvará. Gregório de Nazianzo (330 - 390) vai afirmar: "O que não foi assumido (pelo Logos na © Cristologia116 encarnação), também não é redimido; o que, porém, é unido a Deus também é salvo". Quer dizer que, se no Logos-sarx, o homem perdeu o que lhe é próprio (alma racional), então não era verda- deiro homem. O Concílio de Constantinopla I havia afirmado que o Logos eterno, o Filho de Deus, tinha assumido também o homem completo (corpo e alma). E só assim que era o verdadeiro redentor. Vale salientar que aqui está valendo o conceito de homem com- posto das duas unidades; mas Apolinário dizia que o Logos só po- dia se encarnar num corpo sem alma humana, para se transformar em Cristo, o salvador. O esquema Logos-antropos O novo esquema "oficial" da Igreja levantava novas pergun- tas e respostas. Há dois grupos muito influentes, cujas respostas são válidas: os da escola de Alexandria e os da escola de Antioquia. Grandes perguntas ––––––––––––––––––––––––––––––––––– As grandes perguntas são: Como afi rmar que Cristo é perfeito Deus e perfeito Homem sem afi rmar que são dois? (Escola antioquena: cristologia da distinção) ou como afi rmar que Jesus é “um e o mesmo’ sem afi rmar que sua unidade é plena e independente antes da união, porém depois é absorvida pela divindade? (Escola Alexandrina: cristologia da dualidade). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A Escola antioquena (cristologia da distinção) A escola Anteioquena não fazia especulação metafísica, mas procurava compreender as Escrituras. Por isto entendeu a divinda- de e a humanidade do Verbo encarnado como duas realidades dis- tintas (mas não separadas). Dá-se uma unidade moral entre elas. Há uma cooperação entre duas naturezas, que parte da verdadeira experiência de Jesus de Nazaré e liga-se ao Logos-Filho divino. Por causa do alto grau de santidade de sua profunda humanidade, de sua constante procura em fazer a vontade de Deus e de sua máxi- ma dedicação aos outros, há, no Homem Jesus, uma radical com- 117 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas posição com o Logos divino, que realiza a obra salvifica sem ser prejudicado pelo lado humano. A união entre as duas realidades cria uma singular e nova re- alidade de um Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Na prática, esta tese poderia criar algumas dificuldades quando exagerada. Foi o que aconteceu com Nestório (380 - 451), que insistia na questão de dois sujeitos distintos, moralmente uni- dos; porém não se pode atribuir à divindade os atos e paixões pró- prios do humano. Em consequência disso, Maria só poderia ser mãe do Ho- mem Jesus (antropothokos), ou no máximo "mãe de Cristo" (Chris- tothokos), nunca "mãe de Deus" (Theotokós). Tal posição e suas consequências levam à tese da distinção a uma verdadeira separa- ção (dois Filhos: o de Deus e o de Maria). E consequentemente o ser humano não poderia ser salvo. A escola Alexandrina (cristologia da unidade) A figura de maior destaque desta Escola é Cirilo de Alexan- dria (370 - 444), que, contrariando a cristologia da distinção, pro- punha a da unidade: depois da união não se pode mais dividir na- tureza em Cristo. Se antes da encarnação do Logos era possível haver uma na- tureza divina que se vai unir à humana, depois não se separam mais as naturezas. Portanto, o que nasceu do Pai e o que nasceu de Maria é um e o mesmo. O Concílio de Éfeso (431) e as reações Querendo continuar a interpretação autêntica de Niceia, o Concílio de Éfeso foi realizado em meio a muitas tensões e diver- gências (teológicas, políticas e sociais). Mas, afirmou claramente: © Cristologia118 Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Quando se afi rma - e somente quando se afi rma - que no Verbo encarnado existe uma unidade entre a natureza humana e divina, então o sujeito último é o próprio Deus-Verbo, porque foi Ele quem veio na carne e nasceu de Maria (consequen- temente ela é mãe de Deus). Assim, de modo misterioso, a divindade e a huma- nidade completam o Senhor único Jesus Cristo e Filho, desde o seio de Maria. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A decisão do Concílio não foi bem aceita, sobretudo, pelos orientais: o imperador Teodósio, intervindo, quase obrigou uma conciliação, sem resultados. Contudo, não estavam erradas as conclusões se os da escola antioquena não obrigassem aos alexandrinos, e vice-versa, a acei- tarem seus conceitos. Após muita discussão, aparece o consensono chamado "Decreto de União” (433): O Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus (...) gerado pelo Pai antes de todos os séculos (...) nascido de Maria virgem, segundo a humanidade por nós e para na nossa salvação (...) consubstancial ao Pai (...) é um só Cristo, um só Filho. Na fórmula, faz-se primeiramente a distinção (dos antioque- nos), mas depois afirma a "união sem confusão" (dos alexandri- nos). A interpretação de um teólogo, Eutíques (monge de Cons- tantinopla), levantou novos desafios e confusões graves, inclusive por questões terminológicas, de palavras. E novo Concílio é convo- cado, para o qual o papa do ocidente, Leão Magno, enviou impor- tante carta, conhecida como Tomus Leonis. Assim, tal documento, usando uma linguagem "dialética”, constrói em paralelos antitéticos tanto as propriedades divinas quanto humanas. Para sublinhar, no final, ser "o mesmo sujeito" de uma e outra substância. A união em uma só pessoa não faz de- saparecer as características de cada natureza. Mas esta importante contribuição ainda não foi suficiente. Outro concílio é convocado. O Concílio de Calcedônia (451) As dificuldades particulares eram inúmeras. Também as 119 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas questões terminológicas. Para conciliar as questões, produziu-se uma fórmula de consenso. Após uma introdução explicativa, vem a definição de Calcedônia que pode ser dividida em duas partes (uma mais descritiva e a outra mais elaborada e mais técnica): Um e o mesmo sujeito principal de todas as afirmações (di- vino e humano), de modo inconfuso e imutável, mas também in- diviso e inseparável. A seguir, veremos o texto do Credo de Calcedonia. Para po- der comparar o seu significado, procure num Manual de cristolo- gia. Dê preferência a um texto em que os dois conceitos aparecem lado a lado: “Seguindo, pois, aos santos Padres, todos nós ensinamos unanimemente que se deve confessar um só e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo Mesmo perfeito quanto à divindade e perfeito quanto à humanidade verdadeiramente Deus e o mesmo verdadeiramente humano de alma racional e corpo consubstancial ao Pai a divindade e o mesmo consubstancial nós segundo segundo a humanidade, “em tudo semelhante a nós, exceto o pecado”; nos últimos dias, porém, antes dos séculos nascido do Pai o mesmo (nascido) da Virgem Maria, a que deu à luz Deus segundo a humanidade por nós e para nossa salvação; © Cristologia120 um só e mesmo Cristo Filho Senhor Unigênito conhecido em duas naturezas inconfusas/imutáveis indivisas/inseparáveis a dis nção das naturezas de modo algum é anulada pela união, mas a propriedade de cada natureza é conservada, concorrendo para formar um só prósopon e uma só hipóstase; não cindindo ou dividindo em duas pessoas (prósopa), mas um só e mesmo Filho unigênito Deus-Logos Senhor Jesus Cristo; ________________________________________________________ como outrora os profetas a seu respeito e ele próprio, Jesus Cristo, nos ensinaram e o símbolo dos Padres nos transmi u”. O grande resultado de Calcedônia, sem fazer ontologização, sustenta a unidade da pessoa de Jesus Cristo, na permanente dis- tinção: homem e Deus. Porém, o Concílio não discutiu a questão de como e onde se realizaria a união entre as duas naturezas. E isto será motivo de novas discussões teológicas, que serão em parte resolvidas pelo II Concílio de Constantinopla. II Concílio de Constantinopla (553) Leôncio de Jerusalém foi quem mais conseguiu harmonizar as novas dificuldades de interpretação de Calcedônia, afirmando que, na união inconfusa e imutável do Logos, não foi Deus quem mudou. O próprio Deus (Logos), por meio da encarnação, integra (ou compõe) em si o novo humano. A unidade (união hipostática) acontece pelo fato de que o Logos recebe (complementa-se com) 121 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas o humano, para formar a pessoa especial e peculiar do Logos en- carnado. É por isto que se pode afirmar "nosso Senhor Jesus Cristo crucificado na carne é um da Trindade". A natureza humana de Jesus Cristo não tem uma existência própria, pois subsiste na hipóstase do Logos. Isto não anula ou nega a perfeita humanidade dos homens porque em Jesus ela se amplia em perfeição do divino. Ou como diz Walter Kasper: a doutrina da subsistência da humanidade de Cristo não expressa nenhuma carência, mas ao contrário, a máxima perfeição da huma- nidade de Jesus. A máxima união possível com Deus não amputa nem reduz o ser do homem, mas, antes o leva à verdadeira e plena realização." (KASPER, 1996, p. 235). Como acabamos de ver, nada falta à humanidade de Jesus Cristo ao unir-se à realidade de Deus (Logos). A natureza humana de Jesus abre-se à divindade para a concretização desta realidade misteriosa e excepcional do caso Jesus. III Concílio de Constantinopla (680/1) A partir da conclusão de Constantinopla II, aparece outra questão: mas, em Jesus, haveria uma única atuação (agir – ener- geia) e uma única vontade (telós), se há duas naturezas? As teorias do monoenergismo (um só agir) e monotelismo (uma só vontade) foram condenadas pela Igreja. E no Concílio de Constantinopla III, a Igreja definiu que são duas as faculdades físi- cas do agir e da vontade de Jesus. Cada uma segundo a sua natu- reza (divina e humana). Porém, o agir e o querer concretos na pessoa de Jesus não entram em conflito porque Ele sempre quis e fez a vontade de Deus. O agir e o querer de Jesus orientam-se pela vontade divina e em plena concordância com Deus. A santidade humana de Deus o leva a agir e querer livremente, desde sua humanidade, se só pode realizar-se (e de fato se realiza) em Deus (cf. Jo 6,38). Jesus, ao obedecer ao Pai (Deus), não nega a sua humanidade. Pelo con- trário. Quanto mais livre humanamente, mais divino Ele é. © Cristologia122 A encarnação do Logos é a condição da possibilidade do mo- vimento antropológico, no qual o homem se relaciona com Deus e se diviniza. Ou seja, atinge sua plena realização. No Verbo encarna- do, isto atinge a plenitude à qual fomos chamados. No início desta unidade, você leu que iria fazer uma estudo sobre o desenvolvimento histórico das ideias dogmáticas da cris- tologia. Para aprofundar a questão, foi sugerido que você também lesse o texto de Leonardo Boff. A seguir, apresentamos uma síntese do texto indicado para que você faça uma revisão de seu estudo. Lembre-se de que o oportuno texto do autor, usando outro método, visa caracterizar “um Deus humano” e “um homem divino”, sem se ater ao proces- so histórico da dogmatização. Vejamos a seguir algumas ideias do capítulo proposto por Boff: Humano assim só pode ser Deus mesmo (1972, p. 194 -222): a) Duas grandes respostas: “Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus” (escola Alexandrina) e “Um homem, todo inteiro, foi assumido pelo Verbo eterno” (escola antioquena). b) O Concílio de Calcedônia (451) estabeleceu uma fórmula (quase definitiva) para todas as questões, reconciliando as duas escolas: da dualidade (Deus e homem) e da uni- dade (uma só pessoa), sem separação, sem divisão, sem confusão (sincretização), nem mudança. c) "Jesus é o homem que é Deus e o Deus que é homem". d) Jesus é o homem que se voltou totalmente para Deus e para os outros. Entendeu-se com o ‘ser para os outros’ e ‘a partir dos outros’. Esvaziou-se para ser Deus na totali- dade e para ser homem na totalidade. e) “Quanto mais o homem se relaciona e sai de si, mais cresce em si mesmo e se torna homem (...). Quanto mais Jesus estava em Deus, mais Deus estava Nele. Quanto mais o Homem Jesus estava em Deus, mais se divinizava. Quanto mais Deus estava em Jesus, mais se humaniza- va.” 123 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas f) Em Jesus, Deus infinito se torna humano e, portanto, li- mitado emnossa condição de um ser humano concreto. Pela ressurreição, porém, surge a plenitude máxima do homem: assim, agora, é Jesus. Vale lembrar que não sintetizamos aqui o tópico seis de BOFF, porque não vem ao caso imediato de nossa discussão. Contudo, sugerimos sua leitura até o final do capítulo indicado. Assim, Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, Um e o mesmo, ao mesmo tempo, é o nosso salvador, desde a vida de Deus e desde a nossa vida. Era Deus, com o Pai e o Espírito Santo e se fez um de nós, igual a nós em tudo. Ele, pois, é o nosso Irmão maior, Senhor e Salvador. É por Ele e só por Ele que atingire- mos ao Pai: Ele é o caminho, o revelador e que nos leva à plenitude salvífica em Deus. 7. TRÊS GRANDES RESPOSTAS E AS CONCLUSÕES DOS CONCÍLIOS Após a ressurreição de Jesus, começam a surgir muitas per- guntas sobre quem é Ele. São Paulo recorda sempre que o cru- cificado é o ressuscitado. Nos evangelhos surgem respostas: é o Senhor, o Messias, o Filho de Deus, o Filho do Homem etc. Depois do primeiro século, quando já não havia mais quem tivesse conhecido pessoalmente Jesus, e, sobretudo, no meio he- lenístico, apenas se ouvia seu ensino, muitos começaram a propor uma nova e grande questão: • Quem é Ele realmente? • Há três grandes linhas de respostas, até se chegar à dog- mática cristológica. Se o Novo Testamento é normativo para a fé, os dogmas cristológicos são integrativos da fé. Todavia, a pesquisa cristológica deve, naturalmente, con- tinuar por, ao menos, duas razões: © Cristologia124 • Jesus Cristo é o salvador de todos os povos e em todos os tempos; por isto deve ser anunciado (e explicado) sem- pre. • A cristologia é a ciência que, levando em conta a normati- vidade neotestamentária e a constitutividade dogmática da fé, busca explicar aos contemporâneos quem é Jesus. A questão do divino e do humano e a união das duas sempre foram tensões na Igreja, pelas dificuldades de equilíbrio. Ora se pende mais para uma, ora para a outra. Linha teológica À medida que se foi distanciando no tempo, foi-se compre- endendo que Jesus era o salvador definitivo de Deus. Por isto o Concílio de Niceia afirmou: ‘Ele é verdadeiro Deus, da mesma na- tureza do Pai’. O Concílio de Constantinopla I ensina ainda: sendo Deus um só, se nos apresenta em três expressões hipóstases. Uma delas é o Verbo que vai se encarnar. Por isto Jesus é Deus verdadeiro. Linha Antropológica Em reação à insistência sobre a divindade de Jesus, foi ne- cessário recuperar a sua humanidade. Por isto o Concílio de Cons- tantinopla I também afirmou ser Ele verdadeiro Homem (unidade de corpo e alma, em conceitos gregos). Linha de Síntese As duas afirmações eram corretas. Ter-se-ia, porém, que fa- lar sempre da mesma pessoa. Se era verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, como poderia ser uma só pessoa? O Concílio de Niceia ensinou: 125 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas a) O Filho do Altíssimo (pré-existente) começou a ser hu- mano desde o seio de Maria (mistério da encarnação do Verbo). Desde então, as duas naturezas (divina e huma- na) se completam dando origem a Jesus, sem criar uma terceira realidade. b) Se Jesus Cristo é homem verdadeiro e Deus verdadeiro, como se dá a união entre ambos? O Concílio de Calce- dônia não só afirma a união hipostática (das duas natu- rezas), mas afirma que elas, estando unidas, são incon- fusas, imutáveis, inseparáveis e indivisas, na mesma e única pessoa de Jesus Cristo. c) Diante de novas perguntas, no Concílio de Constantino- pla II, assume-se esta afirmação como verdadeira: “Um da Trindade é quem sofreu na carne”. Os sofrimen- tos e a morte humanos são sofrimentos e morte de Deus (Logos); a glória e a santidade de Deus (Logos) perten- cem também ao humano, porque as duas naturezas es- tão unidas e não podem se separar. d) Uma nova questão surge: “sendo duas as naturezas, seriam também duas as vontades, duas as atuações?”. Sim, será a resposta. Vejamos, agora, o ensino de Constantinopla III: No Verbo encarnado há uma vontade humana e uma von- tade divina, um querer humano e um querer divino. Eles se con- jugam e não se contradizem porque Jesus humano (que em tudo foi igual a nós) sempre agiu em nome do Pai e procurou a vontade divina. Todas as grandes e significativas questões cristológicas surgi- ram porque foi necessário compreender o mistério de Jesus dentro do quadro da ontologia cristológica, sempre movido pela questão teológica, com preocupação sotereológica: Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, para a nossa salvação. © Cristologia126 8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: Leia as palavras a seguir e relacione-as com as respectivas afirmações: 1. Sotereologia 11. Um e o mesmo, 2. Concílio de Constan nopla 12. Nestorianos 3. Esquema “Logos-sarx” 13. Concílio de Niceia 4. Ário 14. O dogma de fé 5. Nestório, 15. União hipostá ca 6. Homousios 16. Monotelismo 7. Doce smo 17. Homoiusios 8. Monoenergismo 18. A divindade de Jesus 9. Concílio de Calcedonia 19. A relação de Jesus conosco 10. Adocianismo 20. Grupo de orientação jurídico-moral 1) (____________) Afirma que Jesus, homem moralmente íntegro, não sendo Deus, foi “eleito” adotado por Deus. 2) (____________) Deus é um só, uma monada, e Jesus é sua primeira criatu- ra, por isso não é Deus. 3) (____________) Tratado teológico que afirma o papel salvífico de Jesus por ser simultaneamente Deus e Homem. 4) (____________) Era problema teológico da Igreja que envolveu as discus- sões que culminaram no Concílio de Constantinopla I (381). 5) (____________) Estabeleceu que em Deus há três hipóstases e uma subs- tância. 6) (____________) Foi rejeitado pela Igreja porque pressupunha que Jesus não tivesse uma alma humana. 7) (____________) Afirmou a unidade das naturezas (divina e humana) de Je- sus após a encarnação, sem confusão, sem mudança, mas também sem di- visão nem separação. 8) (____________) Foi quem, no ocidente latino dos primeiros séculos do cris- tianismo (dando início à cristologia latino-ocidental), reconheceu em Jesus o divino e o humano por causa da necessidade de remissão de nossos pe- cados. 127 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas 9) (____________) Recusava o título de “mãe de Deus” à Maria, porque o divi- no não pode ter mãe. 10) (____________) É a fórmula de composição e síntese encontrada pelo Con- cílio de Calcedonia, para ter presente as diversas cristologias ortodoxas pelo ano 451. 11) (____________) É a doutrina recusada pela Igreja, que afirma ter Jesus uma única atuação (agir). 12) (____________) Afirmava que Jesus teve uma aparência humana para po- der ser Deus entre nós. 13) (____________) É um princípio teológico falso que caracteriza ter Jesus uma vontade apenas, que é ao mesmo tempo divina e humana. 14) (____________) Quer dizer que Jesus é semelhante ao Pai. 15) (____________) Afirmavam que Maria é “Mãe de Cristo” e/ou “Mãe do ho- mem Jesus”. 16) (____________) É uma afirmação que enfatiza a união das duas naturezas de Jesus. 17) (____________) Significa que Jesus é igual ao Pai, em natureza. 18) (____________) Estabeleceu que se deve crer que Jesus de Nazaré é verda- deiro Deus, em igual natureza com o Pai (consubstancial). 19) (____________) Que o Filho do Altíssimo (pré-existente) começou a ser hu- mano desde o seio de Maria (mistério da encarnação do Verbo). 20) (____________) Foi a primeira e grande preocupação cristológica resolvida pelo Concílio de Niceia. Gabarito Depois de responder às questões autoavaliativas, é impor- tante que você confira o seu desempenho, a fim de que saiba se é preciso retomar o estudo desta unidade. Assim, confira, a seguir, as respostas corretas para as questões autoavaliativas propostas: 1) 10 2) 4 3) 1 4) 19 © Cristologia128 5)2 6) 3 7) 9 8) 20 9) 5 10) 11 11) 8 12) 7 13) 16 14) 17 15) 12 16) 15 17) 6 18) 13 19) 14 20) 18 9. CONSIDERAÇÕES Se você achou teórica demais esta unidade, conclui algo cer- to; muitos também pensam assim hoje. Contudo, este tema no passado foi tão popular que chegou a ser discutido até nos bote- quins de esquina e causou muita briga. Em determinada época e até recentemente (do século 4º até o 20), foi considerado o único tema da cristologia. Esta cristologia dogmática é importante não só para evitar concepções e práticas pastorais erradas, mas para compreender melhor, desde a razão, quem é o Senhor Jesus, Deus e Homem verdadeiro. Assim, conhecendo o processo cristológico, cujo desenvolvi- mento foi brilhante nos séculos de ouro da cristologia (século 4º ao 8º), você também está mais instrumentalizado para compreen- der quão distantes da fé estão certas afirmações e atitudes pasto- rais, incluindo situações da religiosidade popular, diante de Jesus Cristo, discernido pela fé cristã. 129 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Refl exão histórico-dogmática: a cristologia dos dogmas A seguir, você terá a oportunidade de sistematizar estes dois conhecimentos: bíblico e dogmático, numa grande síntese cristo- lógico-sistemática. Até a próxima! 10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOFF, L. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 1972. FORTE, B. Jesus de Nazaré: história de Deus, Deus da história. São Paulo: Paulinas, 1985. FEINER, J.; LOEHRER, M. (Orgs.). Mysterium Salutis. Compêndio de dogmática histórico- salvífica III/3. O Evento Cristo. 3. A cristologia na história dos dogmas. Petrópolis: Vozes, 1973. GARCIA DE ALBA, J. Cristo Jesus: conhecê-lo, amá-lo e segui-lo. São Paulo: EDUSC, 1998, p. 199-211. HAIGHT, R. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003. KASPER, W. Dio e chiesa. Brescia: Queriniana, 1996. MEUNIER, B. O nascimento dos dogmas cristãos. São Paulo: Loyola, 2005. RAHNER, K. Theos nel Nuovo Testamento. In: Id. Saggi Teologia. Roma: Paoline 1965, p. 568. RAUSCH, T. Quem é Jesus? Uma introdução à cristologia. Aparecida: Santuário, 2006. RUBENSTEIN, R. E. Quando Jesus se tornou deus: a luta épica sobre a divindade de Cristo nos últimos dias de Roma. Rio de Janeiro: Fisus Ltda, 2001. SERENTHÁ, M. Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre. Ensaio de cristologia. São Paulo: Salesiana, 1986. Claretiano - Centro Universitário EA D Cristologia sistemática 5 1. OBJETIVOS • Sistematizar um discurso exaustivo sobre Jesus Cristo. • Argumentar sobre a originalidade de Jesus, justificando sua posição cristológica. • Aprofundar criticamente o significado teológico da morte de Jesus. • Caracterizar a ressurreição como autorrevelação de Deus e consumação da criação. • Diferenciar os aspectos teológicos, cristológicos e antro- pológicos da ressurreição. • Justificar a criação como nova criação. • Caracterizar a ressurreição como "consumação escatoló- gica". © Cristologia132 2. CONTEÚDOS • A cristologia hoje. • O homem Jesus. • O destino de Jesus: morte. • O ressuscitado: autorrevelação de Deus e do homem. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) É necessário que você aprofunde alguns conceitos de cristologia a fim de facilitar a compreensão de quem é Jesus, o Cristo. Ao refletir sobre Ele, você deve saber onde está você mesmo e de onde está partindo. Assim, poderá fazer um discurso, uma reflexão coerente. É im- portante conhecer a experiência teórica que outros já fizeram. Deste modo, conseguirá perceber melhor a sua posição, bem como a dos outros. 2) Para aprofundar seus conhecimentos, confira os concí- lios. 3) Para você se aprofundar mais sobre o significado da virgindade de Maria e o nascimento de Jesus, leia RAT- ZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005, p. 201ss, especialmente 204. Há também muitos textos, facilmente, encontrados sobre os evange- lhos da infância. 4) Para você conhecer o significado tradicional da Igreja Ca- tólica, outras igrejas e exegeses atuais sobre o assunto, leia THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual, p. 218 ss. PUIG, Armand. Jesus: uma biogra- fia, p. 170-184. 5) Você sabia que Buda ‘Sidartha Gautama’ ensinou, após sua iluminação, durante 45 anos. Maomé ‘Mouhamed’ pregou durante 20 anos, e Moisés dirigiu o povo por 40 133 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática anos, enquanto Jesus viveu seu ministério entre um ano e meio a três apenas? 6) Para aprofundar mais seu conhecimento, sugerimos que leia os estudos de VERMES, entre eles. Natividade. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007; As várias faces de Jesus. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2006. 7) Você deve retomar o significado bíblico de primogenitu- ra. Complemente o sentido consultando dicionários ou vocabulários bíblicos ou então reveja seus estudos bíbli- cos do Antigo Testamento. Os primogênitos tinham, des- de a legislação mosaica, direito a duas partes na heran- ça. Ao primogênito era assegurado o respeito de todos os outros irmãos; dele também era a responsabilidade, especialmente, quando um dos irmãos necessitava de um socorro especial. Aprofunde o estudo deste tema, para compreender o lugar de Jesus como primogênito entre nós e para nós. 8) Você pode aprofundar, ainda, os estudos sobre a pieda- de de Jesus, bem como sobre a oração do Senhor em: SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador, p. 207-211, além de vários outros autores. 9) Reveja o conceito de “novo adão” nos cadernos de An- tropologia Teológica, nas Unidades 3 e 5, e Introdução Geral à Bíblia e História de Israel. Deus antevia em Cristo Jesus o ser humano perfeito, por antonomásia. Assim, volte ao seu caderno de Antropologia Teológica e releia, na Unidade 3, sobretudo, os Tópicos 2, 3, 4 e 5. 10) Para você se aprofundar no assunto, confira o conceito de Schürmann, que já é clássico em cristologia, no res- pectivo verbete "pró-existência” do Dicionário Crítico de Teologia, p. 1452, p. 363-364. 11) Vale salientar que, neste estudo, se deve ter presente não apenas a história dos dogmas cristológicos, mas também deve-se estar aberto para compreender o signi- ficado da Trindade Una ou da Unidade Trina, que alguns dizem: ‘Tri-unidade’. Este tema será desenvolvido em outro caderno no decorrer do seu curso. © Cristologia134 12) Você poderá aprofundar as teorias desta unidade, len- do, entre outros textos, BOFF, L. Paixão de cristo, paixão do mundo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 108-126 e SEREN- THÀ, M. Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre: ensaio de cristologia. São Paulo: Salesiana, 1986, p. 425-444. 13) Para aprofundar seus estudos, leia os textos: Mc 9,31; 10,33-34; 14,41; 15 Mt 20,28; Lc 22,27; Jo 10,17. Pesqui- se, também, em outros textos neotestamentários como: Gl 1,4; 2,20; Ef 5,2-25; Tt 2,14; 1Tm 2,6. 14) Para completar seus estudos sobre a ressurreição, leia todo o capítulo 15 de 1Cor, começando pelos versículos 35-58 e leia depois 1-34. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Esta unidade propõe levar você a um grande processo de sín- tese e sistematização do que foi estudado até aqui. Assim, aqui você se encontrará com Jesus Cristo, um ser hu- mano original, não só por ser divino e humano ao mesmo tempo. Você se lembra do conceito de "união hipostática"? Com tais conhecimentos (bíblico e histórico-dogmático, que são normativos e integrativos da fé), vamos encontrar com Jesus, Aquele que se compreendeu a partir de Deus; que foi solidário co- nosco, a ponto de dar sua vida por nós. Tal amor solidário e repre- sentativo fez que o Pai o ressuscitasse e deixasse claro que o havia constituído nosso salvador, como Ele era desde o início da criação. Tenho a certeza de que esta unidade é empolgante. E conhe- cendo melhor Jesus Cristo, você será capaz de se humanizar mais, vivenciando-o para amá-lo e servi-lo mais profundamente. Nesse sentido, você estudará as cristologias atuais,o Ho- mem Jesus e seu destino, morte e o ressuscitado, bem como au- torrevelação de Deus e do homem. 135 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática A princípio, retornaremos ao tema da cristologia como tal, para que você perceba melhor não só o caminho que faremos, mas também tenha critérios teológicos para perceber as cristolo- gias existentes ao seu redor e as polêmicas (frequentes) que se levantam em torno deste tema. Propomos uma leitura global e englobante da encarnação. Você deve compreender e fundamentar Jesus como uma grande unidade. Assim, iremos aprofundar teologicamente os significados salví- ficos da morte e ressurreição de Cristo, como resposta de fé para hoje. Você encontra a seguir um mapa conceitual da unidade se- guinte, o qual se configura não apenas como uma síntese dos prin- cipais conceitos aqui tratados, mas, sobretudo, como um roteiro de estudo. CRISTOLOGIA SISTEMÁTICA A originalidade de Jesus O destino: a morte de Jesus e suas A ressurreição de Jesus : a autorrevelação de Deus Cristo no Plano Salvífico de Deus O lugar do Salvador Autocompreensão Pro-existencia estaurologia encarnação Teorias sobre a Morte de Jesus Fontes Testemunho Autorrevelação Significado Valor salvífico O papel do Salvador Questões teóricas da cristologia hoje Perspectivas cristológicas Cristologia do alto Cristologia de baixo Valor salvífico ´ ^ Bom estudo! © Cristologia136 5. AS CRISTOLOGIAS HOJE A cristologia é feita no plural. Na verdade não existe a cris- tologia, mas as cristologias. E por que é assim? Nenhum estudo, por mais completo que seja, abarca toda a pessoa de Jesus, homem e Deus, entre nós e nosso senhor sal- vador. O próprio Novo Testamento apresenta ao menos cinco mo- delos diversos. Este fato indica não só a necessária intercomple- mentariedade (nenhum se basta por si só). Aponta a possibilida- de de muitos enfoques. Quer dizer, podem ser diversos os pontos de partida, pois eles devem estar adequados aos ouvintes/leito- res que creeem. A cristologia é para a compreensão dos que creem, no tem- po e circunstância que eles vivem. O mesmo Jesus é apresenta- do conforme a capacidade e exigência dos "crentes" desde que tal cristologia tenha sempre presente como norma o Novo Tes- tamento e o dogma, como integrativo. Isto não quer dizer que ambos sejam uma “camisa de força”; mas uma orientação que não se pode ignorar. Numa grande síntese, pode-se dizer que a cristologia tem tido dois grandes modos de proceder (métodos): "a partir de bai- xo” ou “a partir de cima”. A cristologia a partir de baixo começa enfocando a história humana de Jesus para depois compreendê-lo também em sua divindade. A ênfase está em Jesus histórico, tendo como base os evangelhos sinóticos. E a cristologia a partir de cima, mesmo que tenha predominado na história, parte do Filho eterno de Deus e utiliza uma linguagem, predominantemente, ontológica (helenis- ta, ocidental). 137 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática O ponto de partida da cristologia Cristologia a partir de baixo A cristologia “a partir de baixo” é que vai predominando hoje como critério para aproximar-se de Jesus. Por quê? Não só por causa das mudanças socioculturais do mundo, mas também pela crescente "des-europeização" da Igreja. Não só porque a segunda usa uma "gramática" que leva (quase heretica- mente) a perceber Jesus em si, ontológico, como alguém (quase) estranho aos seres humanos reais, mas também pela compreen- são da mudança do papel da Igreja, como “serva” e “instrumento de salvação" (cf. LG e GS). Porque ainda: para responder "quem é Jesus Cristo, para nós hoje?", é necessário não apenas uma nova linguagem, mas uma linguagem que leve também em conta as perspectivas antropológicas da cultura contemporânea. E aí, inclu- sive, a recuperação de uma cristologia sotereológica. Desde o século 12, houve uma crescente separação entre cris- tologia e sotereologia. Se antes, no período de ouro da cristologia (do século 3º ao 8º), havia uma preocupação em se afirmar sempre quem era Jesus Cristo para a nossa salvação, progressivamente foi- -se construindo uma cristologia sobre o ser de Jesus Cristo, desliga- do de seu papel de salvador de todos. A questão salvífica voltou a integrar a reflexão atual especialmente na cristologia de baixo. De forma muito simplista se poderia dizer que a cristologia a partir de baixo é encontrada nas cristologias da libertação, fe- minista, contextual (asiática), negra (africana e norte-americana). No passado, ela existiu por meio das correntes de pensamento da chamada Escola Antioquena, do pensamento franciscano, na espi- ritualidade e artes medievais etc. A cristologia a partir de cima A cristologia a partir de cima, com fundamento joanino e paulino, predominou entre o clero e intelectuais, sobretudo da © Cristologia138 cultura branca “masculina” e europeia. Parte-se da ideia de que Jesus é o Verbo pré-existente (desde toda a eternidade) e, um dia, se fez humano no seio de Maria. É usada predominantemente pe- los que trazem uma tradição doutrinária helenista-ocidental (com corte mais europeu e eclesiocentrico). A grande preocupação é ressaltar a kenose de Deus, que, ao se humilhar, não se sentiu in- digno de assumir a natureza humana, a fim de elevá-la até Deus (cf. Fil. 2, 6ss). Tal cristologia identifica nos evangelhos, inclusive nos sinóticos, a presença de Deus no homem Jesus. Alguns afirmam que sua forte presença, em contraposição às cristologias a partir de baixo, se deve ao fato de que ela é a prefe- rida pelos bispos e papas. Assim, o que dizer sobre estas duas cristologias hoje? Tanto quanto são normativos os evangelhos, que, em ter- mos de cristologia, nos levam a conceber Jesus Cristo como Deus Eterno, exigem concebê-lo também em sua história humana. E a recíproca é verdadeira: conceber a humanidade Dele exige reco- nhecê-lo como "Emanuel" (Deus conosco). Uma sem a outra nos levará não só a evitar as discussões já superadas pelos tempos dos concílios cristológicos (e que seria perda de tempo), mas a evitar também os erros (heresias) passados, cuja solução integra a fé cristológica. Note-se que cultura pós-moderna (inclusive católica) é centralizada no ser humano, não mais nas forças cósmicas (dis- curso diferente do das questões ecológica e cósmica contemporâ- neas) nem teocêntricas. Perspectivas cristológicas Como é impossível escrever uma "síntese cristológica defini- tiva", então se percebe que todas e quaisquer cristologias sofrem a influência da cultura e das relações existenciais de seus teólogos. As cristologias atuais têm sido feitas mais apropriadamente "a partir de baixo". Esta posição, inclusive, supera a discussão re- cente sobre a perspectiva cristológica, ora centrada na morte (e ressurreição), ora na encarnação ou na história. 139 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática A primeira (que predominou no segundo milênio, especial- mente depois de Santo Anselmo) enfatizou o papel sotereológico da morte de Cristo. Chegou-se na radicalização de alguns afirma- rem que a razão da existência de Jesus era para morrer na cruz, a fim de nos salvar de nossos pecados. A segunda perspectiva, com enfoque encarnatório, em resu- mo afirmou que a razão do Filho Eterno se fazer homem (encarna- ção) era para revelar quem é Deus, quem somos nós e como Deus nos comunica sua vida divina. É a perspectiva joanina. A terceira corrente (a partir dos sinóticos) percebe, à luz da páscoa, a vida, a atuação e o destino de Jesus como proximidade de Deus entre nós para a nossa salvação. As três perspectivas, somente são legítimas se forem inter- complementares e não autoexcludentes. Por julgar que o enfoque histórico, hoje, torna mais acessível, para nós, o encontro com Je- sus Cristo, é que fazemos esta opção metodológica. A reflexão so- bre a plenitude de Cristo(e isto é cristologia) nos levará, desde a história do homem de Nazaré, à luz da páscoa ao encontro do pro- jeto de salvação de Deus, realizado Nele, seu Filho e nosso Irmão. 6. O HOMEM JESUS Jesus, um homem original Mesmo quando localizado no contexto da Galileia do 1º sé- culo d. C., Jesus viveu a religiosidade de seu povo que era portador de uma grande tradição vinda de Abraão, passando por Moisés, pelos patriarcas, profetas, reis e sacerdotes de seu povo. Era uma religiosidade que ocupava o centro da vida do povo, mesmo nos períodos de escravidão (vivida muitas vezes como sentido de pe- cado da idolatria). Exatamente nestes períodos, acentuavam-se a preocupação com as promessas salvíficas, feitas nas antigas alian- ças, e com as expectativas messiânicas. Jesus é um homem judeu, plenamente inserido na cultura de seu povo. © Cristologia140 Viveu Jesus ao tempo dos imperadores romanos Otavio Augusto (27 a.C. a 14 d.C.) e Tibério (4-37 d. C.); do governo de Herodes o Grande (até o ano 36 d.C.), o perfeito romano, que ad- ministrou Judeia romana e detinha o poder de nomear o sumo sacerdote e controlar o sinédrio no governo de Jerusalém (entre 4 e 41 d.C.). José Caifás, influenciado pelo seu sogro Anás, foi sumo sacerdote por dezessete anos. Sem influir muito, Roma contentou-se, em geral, em domi- nar a região, apenas mantendo a paz (romana) entre seus subor- dinados e cobrando os impostos por meio de funcionários locais, que incluíam nesta cobrança seus salários (motivo de constantes descontentamentos populares). Contudo, ao tempo de Jesus, a presença romana e a con- vivência do Sinédrio e dos saduceus, sobretudo, eram motivo de tensão política (invasão estrangeira), econômica (exacerbação de impostos) e religiosa (o imperador Cesar era um deus, "o divino"). Após a destruição do templo, pelos romanos, só sobraram os fari- seus e os primeiros cristãos - ainda uma espécie de seita, dentro do judaísmo: os do caminho (cf. At 9,25). Pouco se pode dizer da infância de Jesus (abreviação de Yeshua), que significa "Deus salva" ou "salvação de Deus". Sobre fatos e histórias de seu nascimento, deve-se fazer uma distinção entre verdade histórica e significado salvífico, como os evangelhos da infância pretendem transmitir. Maior atenção ainda se deve dar à idoneidade dos fatos descritos nos evangelhos apócrifos, surgi- dos a partir do final do século 2º. A intenção dos evangelhos da infância (Mt e Lc 1 e 2) é teológica, e em geral sem repercussão no restante dos evangelhos – salvo o princípio teológico de evidenciar que ele provém de Deus e é filho da humanidade. Teria Jesus nascido provavelmente em Nazaré, e não em Be- lém, no ano 7 ou 6 a.C., algum tempo antes da morte de Herodes, o Grande (4 a.C.), vivendo com seus pais, o “justo” José e Maria e seus "irmãos", em Nazaré, por isso era chamado “nazareno”. 141 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática Atraído pelo movimento de João Batista, Jesus tornou-se independente e pelo ano 27/28 começou seu ministério público, com aproximadamente trinta e três anos de idade. Foi crucificado em 14 de nizan (7 de abril) do ano 30. Tinha trinta e seis anos, mais ou menos. Este período de vida pública (27/28 – 30) caracterizou não só a vida, mas também, de modo surpreendente, marcou a história da humanidade. São as pregações, as atitudes e o destino de Jesus, duran- te estes dois ou três anos, que constituem a centralidade (não o fundamento) da cristologia. Não é por acaso que a parte mais con- sistente dos evangelhos seja dedicada ao seu ministério público, sobretudo à pregação sobre o Reino de Deus. São poucos os capí- tulos dedicados ao seu nascimento e morte; bem menos à ressur- reição (GAMBERINI, 2007, p. 52). Vejamos a seguir o quadro que divide a vida de Jesus narrada pelos quatro evangelhos: Mt Mc Lc Jo Infância 1- 2 0 1-2 - Ministério Público 3-25 1-13 3-21 1,19-17 Paixão e Morte 26-27 14-15 22-23 18-19 Ressurreição 28 16 24 20-21 Fonte: Acervo pessoal. Jesus foi conhecido como pessoa normal, mesmo que com um algo a mais, que o tornava diferente. Entre os seus contem- porâneos, conheciam-se seu pai, sua mãe e seus irmãos. Sabia-se de sua profissão. Os evangelistas o mostram como quem viveu as realidades humanas, como todos os outros homens e mulheres. Dizem eles: foi em tudo semelhante a um de nós. Alegrou-se em festa de casamento. Frequentou a casa de conhecidos (a de Lázaro, Maria e Marta, a da sogra de Pedro) e de desconhecidos (fariseus, cobradores de impostos ‘Mateus’, Nicodemos). Participava das li- turgias nas sinagogas e no templo, acatava a Lei e as tradições, a modo de dar-lhes pleno cumprimento mesmo que as “desobede- cesse” circunstancialmente. © Cristologia142 Manteve um grupo de seguidores (discípulos), constituído de homens e mulheres. Ao que tudo indica, foi célibe, num con- texto ambíguo que prezava a constituição da família e, ao mesmo tempo, aceitava figuras religiosas ascéticas (João Batista, os celiba- tários de Qumran). Sentiu fome, sede, cansaço. Comoveu-se pelos amigos. Solidarizou-se com marginalizado (doentes, prostitutas, crianças e outros excluídos). Condoeu-se pelo povo desorientado. Exerceu medicina curativa. Aceitou em seu grupo pessoas de pro- cedência bem diversificada, como Judas e João, Mateus e Tiago. Curou cegos, aleijados, endemoniados etc. Ensinou com autoridade. Gerou admiração e perseguição; foi amado e odiado. Por causa de suas ideias, foi duro, exigente, com sua família; rigoroso com seus adversários e benquisto entre os pobres. Valorizou coisas belas. Apreciou a natureza e o a sim- plicidade. Foi didático em seus ensinamentos; e foi chamado de "mestre" rabi. Por muitos, inclusive adversários, foi compreendido como profeta. Gostava de refeições com amigos. Chegou a ser cha- mado de "glutão". Foi severo com os que exploravam a religião em proveito próprio. Jesus encarou, com destemor, a morte. Sentiu seu peso e suas dores. Crucificado, morreu abandonado por seus amigos. Viveu o "sucesso" das multidões. Sofreu a perseguição, o julgamento e a morte do poder político-religioso. Sobretudo, em sua vida pública, foi pregador itinerante. Como nós, também cres- ceu em idade. Alfabetizou-se e leu as Escrituras – o que era raro em seu tempo. Sofreu as tentações, especificamente em relação à fama, às riquezas e ao poder. Viveu angústias psíquico-mortais. Seu saber, profundo na Tora, mas limitado como o saber de qual- quer pessoa, inclusive passível de erro. Era determinado em sua vontade e atento às necessidades da pessoa. Jesus foi uma pessoa humana em tudo igual a nós. Todavia, também foi diferente de nós. E não o foi, apenas porque não pecou (como se costuma acrescentar), mas por seu modo de ser diante de Deus e dos outros. 143 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática A radical diferença de Jesus e nós é uma questão de fundo e fundamento religioso (aqui não se fala ainda do ser divino de Jesus). Não é ainda uma questão teológica. Ou, se quiser, é uma questão radical de antropologia. Por que é diferente de nós, o próprio Jesus nosso irmão? Ele o é, pelo fato de ter assumido a plenitude do homem, em sua originalidade. Ele é o ser humano original, radical, projetado por Deus desde o início, desde antes da criação (histórica) do ser hu- mano. No dizer de São Paulo e dos Santos Padres: Ele, "o segundo Adão", vindo do céu (cf. 1Cor 15,45-47; Rm 5,12-21), é o primogê- nito dentre os irmãos (cf. 1Cor 15,48; Rm 8,29). Jesus é diferente porque sendo um dos nossos, como nós, é Aquele que vem como “homem novo” (original no pensamento de Deus). Quando Ele centraliza sua vontade, seu querer, de modo absoluto em Deus, é Ele capaz de fazer sempre a vontade de Deus. Ele é diferente, por ter-se colocado todo a serviço de Deus e dos ir- mãos. Sua solidariedade, tão extrema, revela profundamente, que Naquele homem encontramos Deus mesmo. Jesus, o homem que se compreendeua partir de Deus O próprio Jesus (ressuscitado) ao conversar, pelo caminho, com os discípulos de Emaús ensina o método de interpretá-lo à luz das Escrituras (cf. Lc 24,13-35; Mc 16, 12-13). É obvio que se Jesus procede assim, Ele afirma desde a antropologia bíblica que, como todo ser humano, Ele é criatura, imagem e semelhança de Deus. Todos (e tudo) procedem de Deus na criação. O centro do ser hu- mano é Deus. Deus é quem dá sentido à humanidade de todo e qualquer ser humano, seja na origem e no desenvolvimento seja no fim (parusia). O tema da parusia ‘ será estudado em Escatologia. © Cristologia144 Jesus compreende esta realidade de si mesmo. E se autoin- terpreta por meio de Deus e por nós. Pôs sua vida a serviço de Deus e da humanidade (no gesto imediato, aos seus contemporâ- neos, especialmente aos excluídos). Aqui é importante perceber, numa leitura teológica sobre a vida de Jesus, ao menos cinco situações: 1) a relação pessoal com o Pai (sua fiel confiança); 2) um homem orante; 3) o testemunho dado por Ele sobre o Pai; 4) o redimensionamento da imagem de Deus; 5) o valor salvífico do Reinado de Deus. Jesus centrou sua vida no Pai. Só se pode compreender Jesus a partir de sua relação com o Abbá. Sem dúvida, sem deixar de notar que da parte de Deus houve sempre uma atenção particular sobre o Homem Jesus (anunciação, batismo, morte e ressurreição etc.); por outro lado, é fundamental ressaltar que Jesus elegeu a Deus como fonte e razão de sua vida. Ele viveu para Deus, o Deus de Israel, seu Pai. Vale salientar que Jesus, porque creu em Deus, foi um ho- mem místico. Não confunda ser místico com uma pessoa que só vive em ora- ção, “fora do mundo”. Místico é o que mantém profunda ligação com Deus e age em favor dos filhos de Deus. Quer dizer: oração e ação. Assim, como “a boca fala do que o coração está cheio" (cf.Lc 6,45), isto se evidencia. Jesus pôs em Deus as razões e fundamen- tos do seu agir, do seu falar e de sua oração. Sua vida foi alimenta- da na fé e na confiança em Deus, até o extremo na morte da cruz. Os evangelhos insistem que Ele constantemente se retira- va para rezar. E fazia isto, sobretudo, à noite. O piedoso judeu foi um homem orante (cf. Mt 15,36; 26,26; Lc 4,16). Os sinóticos não 145 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática deixam de ressaltar isto. Lucas, por exemplo, insinua esta vida de oração, ao relatar a vida pública de Jesus (cf. Lc 3, 21; 23-46). Em momentos de decisão ou ocasiões importantes, os sinóticos evi- denciam o Jesus orante. Isto é ainda mais claro no evangelho de João. Jon Sobrino (entre outros) acentua não só esta piedade de Jesus, como comenta a profundidade da oração do Senhor, supe- rando ingenuidades, mecanizações, hipocrisias, opressões, narci- sismos. Acentua positivamente a oração de Jesus como um com- promisso situado, concreto e amoroso e sempre com sentido de totalidade. E resume dizendo: O fato mesmo de Jesus orar mostra que existe para Ele um pólo referencial último de sentido pessoal, ante o qual se põe para rece- bê-lo e expressá-lo. Esta oração é algo distinto de sua prática e de sua possível reflexão analítica sobre como construir o reino; é uma realidade na qual expressa diante de Deus o sentido de sua própria vida em relação à construção do reino, sentido afirmado e questio- nado pela história real. Por isso, a oração de Jesus aparece como busca da vontade de Deus, como alegria de que seu reino chega, como aceitação de seu destino; em síntese, aparece como confian- ça em Deus bom, que é o Pai e como disponibilidade diante de um Pai que continua sendo Deus, mistério (SOBRINO, 1994, p. 211). A vida de oração de Jesus revela não somente sua fé em Deus. Contudo, torna-se clara a própria confiança em Deus. Uma confiança cotidiana que se manifestava não só ao invocar a Deus; mas, sobretudo, atribuindo a Deus seus milagres, a origem e signi- ficado de sua vida. A confiança absoluta e radical evidencia-se no modo como Ele assume a própria morte pela causa de Deus. A relação de Jesus com o Pai ultrapassa seu comportamento pessoal e transparece no modo como Ele fala, invoca e dá testemu- nho de Deus. Nas situações graves, pressionado pelos opositores, Ele indica Deus como seu testemunha-defensor, expulsa demônios por Deus (cf. Lc 10,17; Mt 12,28), prolonga as ações do Pai nas suas ações (Jo 14,10), porta-se como filho e atribui ao Pai o perdão, a misericórdia, a bondade. Defende o Pai diante dos exploradores e opressores. © Cristologia146 Enfim, Jesus entende que suas ações e reações, ensinos e obras (milagres), tudo deve testemunhar sua relação com o Pai. Ele acolhe os pecadores, levando-os à libertação de si mes- mos e da marginalização que os envolvia (cf. Mc 2,10ss; Lc 7,28ss.) como sinal do Reino do Pai chegando. Porque o Pai acolhe a estes pequenos, Jesus, que dá testemunho do Pai, os acolhe também. Ele se aproxima dos pecadores. Nele, é Deus quem está se aproxi- mando, porque o Pai acolhe bons e maus, faz chover sobre justos e injustos, sem com isto ser o juiz da pessoa humana, apesar de não acolher nem o pecado e nem a injustiça. O testemunho que Jesus dá do Pai o leva a reprovar até mesmo a oração dos que querem ser justos sem o ser, sobretudo por desprezarem os outros, os pobres (cf. Lc 18,9-14). Do mesmo modo, dá testemunho de Deus ao expulsar demônios, símbolos do poder do mal e da destruição (cf. Mc 3,21ss; Jo 10,20ss). Hospeda- -se na casa de pecadores (Zaqueu, por exemplo), porque a salva- ção de Deus deve chegar também a eles (cf. Mc 2,15-17). Jesus, o testemunho de Deus, acolhe as crianças, as mulheres, os pecadores, “as mulheres públicas”, os doentes, enfim os despre- zados. Ele sabe que está trazendo a cura, a boa nova, aos que pre- cisam de Deus e se veem cerceados, porque os chamados “justos” os impedem (Lc 7,36-50; Jo 4,7-42; Mt 18,12-14; Lc 15,4-10). Sabe e afirma em alto e bom som que, na casa do Pai, prostitutas e pecado- res precederam aos “piedosos do templo (cf. Mt 21,31). Com sua morte, dá um radical testemunho de que Ele é en- viado do Pai e que mesmo no "abandono do Pai" (Mc 15,34), Ele confia até o extremo. Não em vão, todo o testemunho que Jesus dá do Pai se manifesta na ação do Pai, que o ressuscita (cf. At 2,24). Jesus redimensionou a imagem de Deus. A compreensão Dele sobre Deus é impressionante. Não só os contemporâneos de Jesus, mas também os judeus antigos atribuíram a Deus a quali- dade de "pai". Jesus, porém, tratou a Deus com "seu Pai" e agiu como seu filho. 147 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática Mesmo que tenha diferenciado, e com razão, o modo de Deus ser pai Dele e nosso, criou uma aproximação singular de Deus para com todos os seres humanos. Deus não é alguém distante e nem um julgador implacável. Ele não é nem um vingativo e nem um indiferente para com seus filhos. É um Deus amoroso, sempre atento pelo bem de seus filhos. Jesus faz compreender que Deus se aproxima de todos, es- pecialmente dos pobres. Ele vem a ser um Deus próximo, que ama e perdoa, que sabe de nossas necessidades e é misericordioso para com todos os que o procuram. Jesus faz saber que Deus, o Pai, o enviou a nós como expressão de seu amor providente. E em nome do Pai, Jesus cura, perdoa, encontra "os perdidos", reconci- lia os inimigos de Deus e dos homens. A nova imagem de Deus, mostrada por Jesus, não é irêni- ca nem ingênua. Deus não se deixa convencer pela hipocrisia do orante (Lc 18, 9-14). Nem se deixa manipular pelos “poderosos de seu tempo” que julgam “determinar” em seu nome a Lei e o ensi- no dos profetas (cf. Mc 3,4; Lc 14,2s; Mt 12,11; Lc 6,24). Jesus o apresenta como Senhor que não se convence com mecanismos idolátricos da religião, particularmente da religião opressora (cf. Mc 7,1-23; Mt 15,1-20; Lc 11,38; 7,14; 13,10s). Deus, porque é justo, reprova a religião que oprime e discrimina, inclusi- ve a que lesa o direito do próximo(cf. Mt 7,13; Mc 7,14-23; 12,40; Lc 11,42. 46. 52). É preciso lembrar que, para Jesus, Deus não é uma questão de discussão e de teorias, é sim preciso fazer a sua vontade na prática (cf. Mt 7,21). As parábolas de Jesus sobre o Reino (e em especial a do "bom samaritano", do "juízo final") e as declarações sobre as bem- -aventuranças são indicativos claros de quem é Deus e o que Ele pode. Para tanto, a expressão de Jon Sobrinho aqui pode ser apre- sentada como uma síntese: © Cristologia148 Jesus não tem muito a dizer hoje sobre a questão de Deus se esta é vista puramente a partir do ateísmo, da existência ou da não exis- tência de Deus. Mas, tem muito a dizer, até o dia de hoje, se per- guntamos quem é o Deus e o que fazer de Deus. Jesus não ilustra o fato que Deus exista, mas ilustra qual Deus exista (SOBRINHO, 1994, 284). Jesus deu um valor salvífico ao Reino. Ele creu no Senhorio (Reino, Reinado) de Deus que se aproximava. Creu que o reinado de Deus passava pela sua pessoa. Anunciá-lo, por palavras, obras e até pela própria vida, foi sua missão. O que fez e disse foi em função deste Senhorio. É importante perceber que Jesus anunciou que este Senho- rio de Deus é salvífico. E no exercício de sua missão, Jesus o com- provaria ao curar doentes de toda espécie, ao perdoar pecadores, ao reconstituir a dignidade dos excluídos e discriminados, ao ex- pulsar os males e seus poderes diabólicos. Por causa do Reinado de Deus que chegava, Jesus "restitui a vista aos cegos, anuncia a libertação dos prisioneiros e o ano da graça do Senhor (cf. Lc 4,18ss). Porque é salvador o Senhorio anunciado aos pobres multiplica-se e se reparte o pão. As "ovelhas perdidas" devem ser encontradas. Os pecadores precisam ser re- dimidos. As crianças e mulheres passam a ser consideradas como iguais. Homens e mulheres são companheiros. O valor salvífico do Senhorio de Deus, segundo Jesus, cria a oportunidade para todos poderem participar, como convidados do grande banquete do Rei, e, um dia, morar nas muitas casas pre- paradas na casa do Pai. No Senhorio de Deus, que Jesus anuncia por palavras e obras, não mais haverá tristeza, luto ou dor. Porque o Senhorio de Deus é verdadeiramente salvador, Jesus não teme entregar sua vida "por todos", inclusive desejando ardentemente fazer a ceia de despedida com os seus amigos, porque Ele só tor- nará a beber com eles o fruto da videira quando o Reino (salvífico) estiver implantado definitivamente (cf. Lc 22,14ss e par.). 149 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática Jesus, o homem por nós Pouco sabemos de toda da vida de Jesus; pouco de sua infân- cia e praticamente nada de sua adolescência, juventude e de sua vida adulta. Conhecemos, pelos Evangelhos, sua vida pública, de uns dois ou três anos. Ela é expressivamente significativa e dela se deve dizer: "Ele viveu fazendo o bem" (cf. At 10,38). Ele viveu para servir (Mc 10,45). Esvaziou-se de si mesmo, de seus interesses e egoísmos para pôr-se a serviço dos outros. Não lhe importaram a fama (cf. Mt 9,10-13), o dinheiro, a segurança pessoal (cf. Mt 8,20; Lc 16,13). Não buscou para si o poder. Abriu mão da segurança de uma residência, do autossustento, do conforto e até da própria família. Inclusive da constituição de uma família própria. Fez de si um Homem livre para amar. Para pôr-se à disposição dos outros. Fez sua vida em prol dos outros. Porque havia centrado sua vida em Deus, viveu para os outros. É do seu ensino que decorre a afirmação de 1Jo 4,20: “Quem diz que ama Deus, mas esquece o irmão é mentiroso". Jesus radi- calizou seu amor por Deus e pelos outros. Sua preocupação mais radical ainda foi o ser humano necessitado. Fez do seu, um amor amplo que se tornou universal: amou a todos, a exemplo de seu e nosso Pai. Frente aos outros, foi sincero e serviçal (Lc 22,27). Aproxi- mou-se desinteressadamente dos pobres, dos excluídos, dos do- entes, dos perdidos. Buscou os pecadores, os desolados. Acolheu os fracos e os impuros (cf. Mc 1,23-38; 40-45; 5,25-34). Defendeu o povo humilde e explorado (Mc 6,34; Mt 9,36) e até oprimido pela religião (Mt 23,4). Da sua relação com Deus, brotou um empenhativo amor pe- los outros. Fatigou-se para atender a todos. Foi solicito para com os que o procuravam. Procurou quem não podia procurá-lo (por causa das discriminações legais). Sofreu e chorou com os sofredo- res. Animou as amizades. Devolveu a autoestima. Soube confiar até o extremo (mesmo da traição). Criou novas formas de convi- © Cristologia150 vência. Descobriu princípios mais convincentes e profundos na Lei e nos Profetas, não veio para mudá-los, mas para aperfeiçoá-los (Mt 5,17). Oportunizou novos vínculos de solidariedade para com o próximo (que era gente real, não objeto de discurso). Lembrou os mandamentos fundamentais do amor a Deus e ao próximo. Como viveu para servir, deu o mandamento aos discípulos, que eles o imitassem no serviço (cf. Jo 13,15). Da sua relação com Deus, gerou forças libertadoras para os que o procuravam, inclusive para os ricos que o convidavam para seus jantares (esnobes): em suas casas também deveria entrar a salvação. Para isso, era preciso que eles nascessem de novo em espírito e verdade (Jo 3,3). Valorizou-lhes a fé (como a do oficial romano, pai da me- nina morta, Lc 7, 9-10); atendeu o jovem rico por quem depois se entristeceu (Mt 19,22; Mc 10,22). Desmascarou as armadilhas, para que as "ovelhas perdidas da casa de Israel" também tivessem oportunidade de retornarem ao bom caminho. Na aparente rejei- ção à própria mãe e aos irmãos indicou o caminho mais nobre que "apenas" o de sangue e foi assim que sua mãe se tornou discípula Dele (cf. Mt 12,50). De modo igual, o texto sagrado fala de seu ir- mão Tiago, que depois se tornou bispo de Jerusalém. Como ensinara ao amor aos inimigos (cf. Mt 5,4ss), assim também viveu e suplicou o perdão do Pai por aqueles que o cruci- ficavam (cf. Lc 23,34). Jesus, o homem por Deus e por nós Foi Jesus verdadeiramente um ser da raça humana, como nós e se autocompreendeu como humano a partir de Deus. Por isso exatamente viveu pela causa de Deus. Ele existe por causa de Deus. Sua vida, por causa de Deus. Deus é seu centro. Então o querer, o pensar e o agir de Jesus são discernidos a partir de Deus: "Vim para fazer a tua vontade, o Pai" (cf. Jo 6,28); "não se faça a minha, mas a tua vontade" (Lc 22,42; 151 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática Mc 14,36). O simbolismo da eleição do Pai no batismo e na transfi- guração, além de indicar o motivo da "eleição" divina, pode apon- tar outro sentido: Jesus foi eleito porque se deixou (parece ser uma questão passiva) eleger. Se assim é, é porque Ele se fez todo de Deus (questão ativa). Deus elege todo ser humano para ser seu filho (no Filho, inclusive desde antes da criação – cf. Ef 3,3ss). Jesus, o nascido de mulher (Gl 4,4), Filho de Davi segundo a carne (Mt 9,27), compreende profun- damente que a razão de seu ser era fazer a vontade de Deus. Só a partir de Deus é que Ele se autoconcebe. Deus é seu único Senhor. Fazer sua vontade é realizar-se de modo pleno como humano. Como São Paulo afirma, Jesus é o ser humano novo, o novo Adão (etiológico e/ou histórico). Na verdade, Nele nós encontramos não só o "ser humano novo", mas o iniciador da humanidade nova. Nele temos a origem e o destino final do ser humano pessoal e coletivo. Nisto, Jesus humano-divino é o modelo e o exemplo da filiação divina. É por isso que o Vaticano II, na GS, 22, ensina que só Ele nos revela quem verdadeiramente somos. Por estar totalmente aberto a Deus, e isto faz a diferença entre nós, Ele pôde pôr-se a serviço dos homens e mulheres de seu tempo (Ele é de todos os tempos) (cf. Mc 10,45). Se o povo de então se sentia atraído por Ele, procurando até tocá-lo para ser curado, o ouvia por saber que Ele falava com auto- ridade e reconhecia Nele alguém vindo de Deus. Porque percebia Nele alguémtão humano, se divisava, em sua pessoa, os traços divinos que Deus sonhou para todo ser humano. Primogênito den- tre os irmãos revelava isto em sua vida toda dedicada a Deus, toda em favor dos irmãos. Enfim, era realmente humano, mas de um modo diferente. Diferente porque foi verdadeira e profundamente humano. Um teólogo alemão, H. Schürmann, caracterizando esta soli- dariedade de Jesus pelos outros, cunhou o termo "pró-existência". Da vida totalmente voltada para o Pai, Jesus viveu o amor de Deus inesgotável para o ser humano. Ele fez-se livre para servir. © Cristologia152 Jesus não apenas testemunhou o tão grande amor de Deus por nós, mas deu o exemplo de viver por nós e para nós. Existiu para Deus e para nós. Mais que atos de benevolência e/ou bonda- de, Ele viveu movido pela solidariedade radical, que não substitui o outro, nem o limita. Mas, viveu para promover, elevar e dignifi- car o outro a ponto de dar a vida por nós e por Deus. Compreendendo-se como um ‘homem para os outros’ (pró- -existente), Jesus adquiriu progressivamente maior consciência de sua missão e de seu papel de mensageiro do Senhorio de Deus. Foi descobrindo-se "Filho amado de Deus". Por isto "deu a vida em resgate de muitos" (cf. Mc 14,24; Mt 20,28). Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Neste seu modo humano de viver, os primeiros cristãos da Palestina vão desco- brir o inaudito em Jesus: este Jesus, escolhido por Deus, é nosso salvador. Por Ele atingiremos nossa realização humano-escatológica. Os cristãos da América Latina, na sequência dos tempos atuais, o descobriram como libertador dos oprimidos (e se vai descobrindo que Ele deve ser libertador também dos opressores de todos os tipos, inclusive religiosos e fundamentalis- tas). Já na África negra, os cristãos o encontram como o “bem” e o grande “Ancestral”, que cuida da vida, saúde e felicidade da comunidade; como o “mestre da inicia- ção” a ensinar e introduzir os “menores” (iniciantes no radical sentido da vida). Ainda os negros por toda parte o perceberam como o grande discriminado. Os cristãos provenientes do hinduísmo olham para este homem Jesus que olha para eles e o reconhecem como o grande líder espiritual (guru) ou um grande avatar, capaz de, como Deus universal, encarnar-se para eliminar os males do mundo e despertar a bondade por toda parte. Para os indianos, vindos de grandes e permanentes sofrimentos, Jesus é Aquele que é capaz de reconstituir a unidade do cosmo por causa de sua ressurreição e dar o sentido pleno do amor abnegado, mesmo de dentro do sofrimento. Para chineses, Jesus pode representar o amor dolorido de Deus, capaz de re- conciliar e redimir, por uma vida de bondade que leva à sempre maior comunhão da humanidade inteira. As mulheres, especialmente na teologia feminina, querem ver ressaltar em Jesus a antropologia integrativa do masculino e do feminino de cada ser humano. Assim, outros homens e mulheres vão prolongando cristologicamente, pelos tempos a fora, o signifi cado que Jesus deu à sua vida: ‘vida pelos outros’. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 153 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática O que você acabou de estudar na Informação Complementar pode ser aprofundado com o auxilio de inúmeros livros e revistas. In- dicamos alguns: KESSLER, Hans; BOURGEOIS, Henri. Libertar Jesus: cristologias atuais. São Paulo: Loyola, 1989. A tão inaudita dedicação de Jesus por nós o levou a se tornar homem sem pecado. Condiciona-se a si mesmo e a sua causa por Deus e pelos outros: não há espaço para idolatrias, interesses pró- prios. Tudo Nele se torna de Deus e para Deus, por nós e para nós. Jesus é capaz de continuar um processo de autoesvaziamen- to, sem se tornar alienado ou alienante. Ele é senhor de sua von- tade, de seu querer, de seu agir, de seu saber (aprender) e de sua liberdade. De modo tão senhor de si, torna-se capaz de ser todo de Deus e viver inteiramente por nós. Ele mesmo traduz deste modo o quanto Deus é bom para com seus filhos e filhas, a ponto de se aproximar de todos para garantir a incondicional salvação. É por isto que se pode dizer: em tudo, Ele foi igual a nós, me- nos no pecado. Como Deus não poderia pecar. Mas, como homem, sim. Não pecou porque viveu inteiramente para Deus e por nós. Todavia, foi tentado como nós o somos. Ninguém está isento da tentação. Mas, todo ser humano pode também, como Jesus, não pecar porque se é livre. Iluminados pela ressurreição, os apóstolos descobriram que Naquele que "vós, homens de Israel, matastes, crucificando-o pe- las mãos dos ímpios, Deus o ressuscitou. Ele era um homem pro- vado por Deus diante de nós como milagres, prodígios e sinais" (cf. At 2,23). Neste homem, a Igreja descobriu não só o messias de Deus, mas Deus mesmo entre nós, o Emanuel. No homem Jesus, a Igreja descobriu Deus encarnado. O homem Jesus de Nazaré revelou em sua humanidade tal grande- za e profundidade que os Apóstolos e os que o conheceram, no fi- nal de um longo processo de decifração, só puderam dizer: humano assim como Jesus só pode ser Deus mesmo. E começaram então a chamá-lo de Deus (BOFF, 1997, p. 193). © Cristologia154 Não foram os apóstolos, nem a Igreja que divinizaram o ho- mem Jesus. Não o fizeram um deus, como procediam os romanos, os gregos e outros mais. Ao contrário descobriram que no Homem Jesus, Deus se fizera um de nós, por nós e para nós. Foram os após- tolos e a Igreja nascente que precisaram de novos critérios e con- ceitos para compreender Jesus e o próprio Deus. 7. O DESTINO DE JESUS: A MORTE Para muitos cristãos, a morte de Jesus, na cruz, para nos sal- var de nossos pecados é a razão última de Ele ter-se feito humano entre nós. Só pela cruz, Ele seria o nosso salvador. No entanto, esta reflexão (estaurologia), utilizada sobretudo no segundo milênio, e a piedade popular deram uma importância tal que parece isto ser a verdade plena e quase única. Inúmeros teólogos centralizaram todos os estudos cristológi- cos nesta ótica. Evidentemente, a questão da morte de Jesus pas- sou a ter novas interpretações. Hoje, um número significativo de cristólogos tem preferido fazer seus estudos centrados no significado global da vida de Je- sus, desde seu nascimento até a ressurreição. Mas isto é questão para outro momento de nosso estudo. E agora importa ver este grande tema do destino de Jesus, detalhando as teologias de sua morte e ressurreição, que será analisado no próprio contexto do Verbo feito um de nós, para nossa salvação. O tema está localizado no todo da vida de Jesus. É importante que, neste momento, você retorne ao tema estudado nas unidades bíblica e dogmática sobre a morte de Jesus. Feito isto, retome o estudo, porém, com uma ótica mais abrangente, como resposta para o nosso tempo. No decorrer da história teológica, foram elaboradas diversas teorias sobre a morte de Jesus. Todas elas procuraram fundamen- 155 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática tar a fé daqueles que o buscaram, nas circunstâncias de tempo e espaço em que viveram. A morte de Jesus, na grande tradição eclesial Muitos cristãos creem que o Verbo eterno se fez humano para morrer na cruz, a fim de reparar a tão grande ofensa feita a Deus por nossos pecados. Só um ser perfeito (na verdade, o pró- prio Filho de Deus) poderia satisfazer, por nós, a ira divina (teoria da satisfação, cujo autor mais importante é Santo Anselmo). Outros cristãos pensam que a morte de Jesus tornou-se um mérito nosso junto a Deus também para conquistar o preço do perdão (teoria do mérito). Fundamentados na Bíblia, outros pre- ferem enfatizar a morte de Jesus como um sacrifício pelos nossos pecados. Um sacrifício que poderia selar a aliança nova e definitiva dos homens e Deus (a ênfase na eucaristia traz esta ideia muito viva). Contudo, o sacrifício de Cristo poderia ser entendido em vis- ta da expiação de nossos pecados (ideia forte decorrenteda Epis- tola aos Hebreus). Ainda poderia ser o sacrifício do Servo sofredor, que carrega os pecados do mundo e cujo sangue era derramado por muitos (teoria do sacrifício). Finalmente um quarto grupo de cristãos dá valor à ação de Deus, que por meio da morte de Jesus nos resgata, nos redime de nossos pecados (teoria do resgate). As duas primeiras (teoria da satisfação e do mérito) são gran- des explicações que alimentaram a fé dos cristãos a partir de inter- pretações teológicas. As outras duas (da expiação e do sacrifício) também marcam a fé cristã e tem seu fundamento, especialmente na tradição bíblica. Estas teorias têm grande valor para interpretar a ação salví- fica de Jesus. Elas podem ser estudadas em muitos textos e livros, como se indicará ao final desta unidade. É importante ressaltar: elas têm sua validade ainda hoje; porém, são encontrados muitos limites nelas – que não podem ser ignorados. © Cristologia156 Todas elas enfatizam a morte na cruz, por causa do pecado, o que não deixa de ter sua verdade. Elas, porém, têm o limite de perceber o significado de vida de Jesus, apenas em sua morte. Ele existiu por causa dos pecados a serem redimidos pela sua mor- te. Hoje, também, continua-se percebendo a riqueza de cada uma delas. Nota-se, porém, que elas devem ser assumidas de modo conjunto e não isolado para manterem a validade global, mesmo que ainda limitadamente. Elas foram importantes nos séculos passados e alimentaram a fé cristã. Hoje, influenciadas por novos estudos bíblicos (e até históricos), elas não têm todas as possibilidades interpretativas bíblicas e, sobretudo, não são tão convincentes para os tempos atuais. Tomadas isoladamente, estas teorias fazem aparecer, de modo indireto, Deus como alguém (um grande senhor feudal ofen- dido) que exige a reparação das ofensas contra Ele. É necessário que alguém satisfaça tal exigência ou conquiste méritos diante Dele, movendo seu coração para o perdão. Vencendo a piedade popular medieval, que enfatizava o medo, o sofrimento e pecado, consegue-se, hoje, fazer uma leitura bíblica mais global. E desta leitura se compreende o significado da cruz como resposta de amor de Jesus e, mais amplamente, o sig- nificado da cruz no contexto de toda a vida de Jesus para a nossa salvação. Aqui, de modo algum, se quer negar o valor salvífico da mor- te de Jesus na cruz. Apenas está se chamando atenção crítica para a insuficiência das teorias históricas e/ou da não exclusividade das duas predominantes teorias bíblicas. Desde Tertuliano, em linha oposta a Irineu de Lion, começa gradativamente a passar para o centro da sotereologia a questão do pecado e do perdão. Daí se origina, somada à contribuição me- dieval, o atual significado da centralidade na cruz (e a quase eli- minação de outros significados soteriológicos). A cruz e o pecado 157 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática pareceram ser o sentido e a razão da encarnação. Todavia, a cris- tologia atual, inclusive por influência do Vaticano II, tem reencon- trado outros significados, que estavam latentes nos textos bíblicos, tanto para a encarnação quanto para a cruz. É fato que pela cruz se estabelece a redenção dos pecados (a salvação em sentido positivo vai mais além do que esta positiva realidade negativa). A cruz é sinal do amor e doação tanto de Jesus quanto da Trindade. Mas era ela necessária? Santo Tomás já respondeu à ques- tão: não se trata de uma possibilidade. Ela é o fato, a realidade. Poder-se-ia perguntar, então: ela foi querida por Deus e buscada por Jesus? E a resposta absoluta é: "não". A cruz é uma consequência de atos humanos, de modo ime- diato dos chefes romanos, instigados pelos líderes judeus de en- tão. A decisão da morte na cruz, sócio-politicamente, é consequ- ência dos conflitos decorrentes da pregação de Jesus, da rejeição humana (de todos os tempos) à sua mensagem e da condenação política e religiosa. Desde a perspectiva judaica, podem-se inferir duas situações imediatas: a desautorização da pretensão de Jesus (“maldito todo aquele que pende na cruz”), e a eliminação de mais um profeta. Os textos neotestamentários apresentam diversas teologias da crucifixão e morte, como as citadas anteriormente. A tradição de produzir novas explicações, sem contrariar o texto bíblico, tem sido a rica experiência da Igreja, para responder, na fidelidade à fé, às questões humano-religiosas nos diversos tempos. É por isto que a cristologia se torna um conhecimento dinâmico. Ela atualiza a fé circunstanciada, mas sem nunca perder a referência normativa da Bíblia Sagrada. Agora, vamos aprofundar as quatro teorias mais significati- vas da tradição da Igreja sobre a morte de Jesus: © Cristologia158 a) teoria do sacrifício; b) teoria da redenção e resgate; c) teoria da satisfação; d) teoria do mérito. Teorias bíblicas Teoria do sacrifício A ideia de sacrifício e da vitimização sacrificial estava presen- te no povo hebreu, tanto do Antigo Testamento quanto do Novo Testamento. Ela expressa, sobretudo, a fé em Deus. Oferecia-se a Deus uma vítima para sacrifícios de aliança, de holocausto, de expiação pelos pecados ou de louvação. O sacrifício, nas diversas representações, teve como inten- ção a vontade de entrar ou de permanecer em comunhão com Deus, render-lhe graças, pedir perdão ou louvá-lo. O sacrifício era também celebrado como memória atualizante dos gestos passa- dos. Ele assegurava a certeza da presença perene de Deus e de sua assistência divina junto ao povo. Também por meio do sangue da vítima se julgava aplacar (ainda que provisoriamente) a ira de Deus, ferido pela maldade humana. Inocente era a vítima a ser sa- crificada pelo pecador, apesar de que Deus, por meio dos profetas, insistia na pureza de coração, na hombridade dos atos pessoais: corações puros! Os cânticos isaianos do Servo sofredor expressam bem o significado do sacrifício. Sua teologia se torna clara, sobre- tudo, no texto de Is 53. No caso da morte de Jesus, o sangue derramado "por nós homens e pela nossa salvação" como iniciativa de amor de Jesus em oferta ao Pai, tornou-se, em realidade, o dom supremo do Pai à humanidade (cf. Rm 3,24-26). Seu valor implica no oferecimento de nossas vidas, como sacrifício vivo, santo e aceito por Deus (Rm 12,1), em favor dos irmãos. 159 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática A morte de Cristo é, ao mesmo tempo, sacrifício e expiação, pois o ser humano é incapaz de reparar, por si só, seu pecado. Não pode satisfazer a justiça divina ultrajada. Só Cristo pode fazer isto de modo pleno e eficaz. Ele substitui os homens. O mundo bíblico estava baseado na cultura de sacrifícios cruentos e expiatórios, e na cultura romana, com base às questões legais de justiça. A morte de Jesus recebe a interpretação teológica adequada da teoria do sacrifício. Mais profundamente, porém, no existir humano, o sacrifício evidencia a ideia de doação de si mesmo, a ponto de morrer doan- do sua vida por nós. A válida ideia de outrora evidencia hoje um limite no aspec- to vindicativo e cruento, por não se coadunar com a bondade de Deus. O valor da ideia também contém um limite: seja por ignorar a misericórdia de Deus seja por não levar em conta a ressurreição de Jesus. Teoria da redenção ou do resgate A teoria da redenção ou do resgate também é bíblica como a anterior. Estava ligada à ideia de escravatura e libertação. Para alforriar um escravo era preciso pagar seu preço. Seguindo a lei do Antigo Testamento, o parente mais próximo do "escravizado" tinha a obrigação de pagar seu resgate, redimindo-o. Cristo é o parente mais próximo do ser humano, que está es- cravizado pelo seu pecado. Só Cristo é livre, porque vem de Deus, e por isto pode pagar o preço devido. Aliás, o próprio Jesus se apre- sentou como resgatador e libertador (cf. Mc 10,45; Mt 20,28). Isto também fica claro nos textos de 1Tm 2,5-6; Tt 2,14. Os textos de Gl 3,12;4,5; 1Cor 6,20; 7,22-23; Ap 5,9-10; 14,3- 4, falam de pagar o resgate a quem Deus deveria nosso preço (é daí que surge a "teoria do direito do demônio"). O resgate se es- tabelece entre Deus e o demônio numa situação salvífica supra- -histórica. A morte de Jesus seria o preço da reaquisição da liber- © Cristologia160 dade humana. Todavia, na história, o homem permanece sempre em situação de risco e da perda da liberdade. Isto, hoje, dificulta a plena aceitação da teoria. Teorias teológicas Teoria da satisfação Este tema já foi comentado anteriormente ao se falar da cris- tologia de São Anselmo. Volte e releia o texto na Unidade 1, item 2, para perceber melhor o sentido desta teoria. Se o homem ofendeu gravemente a Deus, é necessário que Deus se faça humano para poder reparar de modo infinito a ofensa feita. Cristo, em nosso lugar (daqui vai surgir a teoria da satisfação vicária), é o único capaz de satisfazer adequadamente Deus ofen- dido. A pena do pecado é o sofrimento e a morte de Jesus na cruz. Deus castiga Jesus, que morre por nós – em vista do nosso pecado – e assim a justiça divina é recomposta. Fomos curados graças ao seu sacrifício e à sua morte na cruz. Esta teoria, hoje, deixa de ter tanto valor, mesmo num orde- namento jurídico, por enfatizar um mecanismo atroz de pagamen- to do mal por outra situação maldosa. Isto não se harmoniza nem com a experiência humana de Jesus e nem com nossa experiência diante de Deus. Entretanto, a teoria mantém seu significado per- manente à medida que se descobre a solidariedade de Cristo por nós, a ponto de dar sua vida em busca da mais completa fidelidade ao Pai. Teoria do mérito A morte de Jesus obtém, alcança, para nós, não só o perdão dos nossos pecados, mas também restaura a ordem perturbada pelo mal. A morte cancela, destrói, a desordem do pecado e nos 161 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática garante a renovação da ordem perdida, abrindo a possibilidade da ressurreição, da vida nova. Deus aceita, como radical adesão hu- mana à sua vontade divina, a santidade de vida nossa vivida mes- mo na dor e no extremo da morte de seu Filho, que nos "merece" assim a salvação. Se "adão" criara seu deus, seu ídolo, fazendo exatamente o contrário da vontade divina, agora, Cristo o recupe- ra em amor tão grande, assumindo a morte na cruz, e “merece”, obtém o perdão dos pecados e a salvação para todos. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Estas quatro teorias, que predominaram e predominam na teologia e na vida da Igreja, nem sempre são “convincentes” na atualidade para muitos cristãos. Vários teólogos têm proposto novas interpretações. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Iremos enfatizar aqui apenas duas razões teológicas, a partir do pressuposto sotereológico da cruz e não toda a sotereologia da encarnação do Homem Deus. Teoria da entrega ou da solidariedade A teologia da entrega, também compreendida como solida- riedade, é uma das interpretações mais fortes na cristologia atual. Ela predomina em autores como: Karl Rahner, Christian Duquoc, Edward Schillebeeckx e Jon Sobrinho. A morte de Jesus só tem significado mediante sua relação com Deus e conosco. Nesta relação surge uma teologia da entrega ou da solidariedade (significado antropológico), que foi o modo de Jesus viver e entender sua morte: A “entrega Dele por Deus e por nos" é uma questão muito presente nos evangelhos. O próprio Jesus indica que o Filho do Homem vai ser entre- gue às mãos do Sinédrio, dos pagãos. Ele será escarnecido, flagela- do e morto (cf. Mc 14,41). Ele viveu a condenação e a morte como autoentrega a Deus e a todos os homens, como consequência de sua vida terrena (pró-existência). Jesus deixou-se levar de mão em mão: traído por Judas é entregue aos soldados, que o entregam aos sumos sacerdotes, que o entregam ao Sinédrio, que o entrega © Cristologia162 a Pilatos e Herodes, que o entregam aos soldados para o crucifi- carem. Abandonado por todos (incluídos aqueles a quem dedicara sua vida), e em sua extrema solidão, Jesus entrega, num grito lan- cinante, seu "ruah" ao Pai (cf., Lc 23,46; Jo 19,30). Paulo, interpre- tando, para sua comunidade, sintetiza: "Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entre- gou a si mesmo por mim” (Gl 2,20; cf. Ef 5,2.25; Tt 2,14). A entrega de Jesus, pelos sofredores e pecadores, na con- denação e na cruz, é um adentrar-se na extrema miséria humana, com todas as consequências perversas e diabólicas. Jesus sofre e morre pelos homens e mulheres oprimidos e sofredores de todos os tempos. Sua entrega também nas mãos dos opressores e inimi- gos (de Deus e dos irmãos) é também um gesto de solidariedade radical (Ele não apelou à violência) em favor daqueles que são ví- timas de seus próprios pecados, para permitir-lhes que se afastem do mal que fazem e se reconciliem com Deus (cf. Mt 23,33). Na paixão e morte, o significado da pró-existência de Jesus se torna translúcido porque Ele entrega sua vida pelos que sofrem, pelos que são excluídos. Também a entrega, pelos opressores e injustiçadores. O paradoxo não é ambiguidade, mas um profundo ato salvífico, cujo significado não se dá nas estruturas humanas. Só um homem-Deus poderia agir assim. Significado da entrega Nesta teologia da entrega ou da solidariedade descobre-se um segundo aspecto: o significado teológico. Deus mesmo entre- gou seu Filho único. Deus o entregou ao mundo para salvar o mun- do. Não poupou o próprio Filho, para evidenciar o quanto nos ama (cf. Rm 4,25; 8,22; Jo 3,16s; Rm 8,31s). No Filho, é Deus mesmo que se entrega aos pecadores e às vítimas do pecado. Deus se en- trega no seu Filho não por uma prepotência divina sobre o Filho, mas enquanto este radicaliza, como seu, o querer do Pai. Nem sua vida, nem sua morte lhe pertencem; elas pertencem ao Pai. 163 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática Deus, ao mesmo tempo, se entrega pelo Filho às mãos dos pecadores, para que estes consumam sua obra perversa. Sem os pecadores perceberem é, desde dentro da morte e do pecado, que Deus vai lhes redimir. A fé cristã professa que um da Trindade mor- reu na cruz. Jesus crucificado é a Segunda Pessoa da Trindade. Na morte do Verbo encarnado, Deus entra em contato com o sofri- mento sem se deixar sucumbir por ela (Jesus é ressuscitado pelo Pai, que destrói a morte). Por esta entrega, Deus nos redime da nossa morte. Sofrendo a morte de Jesus, em si mesmo, Deus se põe em contato inseparável e inalienável com o mais perdido pecador para redimi-lo. Nesta radicalidade da morte, Deus se revela quem é: Ele é amor (1Jo 4,8). É aquele que ama o ser humano, numa entrega total para que ninguém se perca (cf. Jo 3,16). Deus é Jesus e Jesus é Deus. Nesta identificação profunda e absoluta, compreende-se a relação exclusiva entre Deus e o homem Jesus, como Aquele que viveu por nós e para nós. Esta entrega à morte para vencê-la por nós e para nós significa a autocomunicação de Deus para o "não Deus” (o ser humano) de modo a atingir a plenitude na ressurrei- ção do Filho. Esta entrega resume o significado do ensino de Jesus, que, antes de ser uma questão ética, é teológica: "Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la. E quem perder a sua vida, a salvará" (Jo 12,25). Teoria da representação A teologia da entrega, também compreendida como solida- riedade, constitui, ao lado da categoria representação, uma das interpretações mais fortes na cristologia atual. É importante ressaltar, no tocante à morte de Jesus, a ex- pressão: "por nós”, “por muitos”, “por vós” (cf. Mc 14,14; Mt 26,28; 1Cor 11,24; Lc 22,19; Jo 6,51). J. Jeremias afirma que tal conteúdo (pro, por) tem tanto o sentido de "em favor de", mas também "no lugar de" (representação vicária). © Cristologia164 Sua entrega à morte é um serviço da libertação nossa fren- te a todos os tentáculos do pecado, das opressõese da morte. É também uma entrega no lugar dos pecadores, necessitados e até dos inimigos e opressores. Neste sentido, pode-se, antes de leitura ética, compreender o texto de Lc 6, 27,35, como teológico e aplicá- -lo ao sentido da morte de Jesus. Sua morte manifesta, de modo radical, o seu amor pró-existentemente. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Jesus morre não apenas em favor de nós, mas também em nosso lugar. Esta teologia tradicional, que mantém uma proveniência jurídica, tem sido renovada em grandes teólogos atuais: Wolfgang Pannemberg, Walter Kasper, Urs Von Bal- thazar, Joseph Ratzinger, entre outros. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A morte de Jesus, como representação de um por muitos, não livra nem substitui a morte dos outros e muito menos a res- ponsabilidade pessoal de cada um. Ela significa: • a libertação fundamental que Jesus produz no sentido de abrir as possibilidades de, doravante, vencer as escravi- dões humanas (o mal, o pecado e a morte); • criar a possibilidade de uma vida nova em Deus. Jesus é o iniciador e condutor de uma nova humanidade, como "primogênito dentre muitos irmãos e irmãs (cf. Rm 8,29). A nova e verdadeira humanidade (o novo Adão) é marcada com o sangue de Cristo e não mais com o sangue do "velho Adão". Se antes o homem "velho" olhou para si, agora o "homem novo" é capaz de se esquecer de si, para fazer sua a vontade do Pai, e dar a vida para salvar os que o Pai lhe dera, pois nenhum pode se perder (cf. Jo 6,37-39). Jesus assume a missão confiada pelo Pai, com a dedicação extrema até a morte. E esta fidelidade o faz apresentar- -se diante do Pai em nome de todos. Se na teologia da entrega, há dois níveis ou signifi cados: 1) a entrega de Jesus Cristo por nós (significado antropo- lógico); 2) a entrega de Deus em Jesus (significado teológico). 165 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática Aqui, na teologia da representação também, há planos ou significados. No plano, antropológico, que é o mais fundamental, Jesus pode apresentar-se diante do Pai como todo o amor humano possível, até a morte, pela causa de Deus. Um dentre nós amou tanto a Deus quanto os seus irmãos, que se tornou capaz de representar, em si mesmo, toda a possibili- dade humana de amor a Deus sobre todas as coisas, com todo en- tendimento, com todas as forças, de todo o coração (cf. Lc 10,27). Um dentre nós foi capaz de transcender-se a ponto de dar a vida para fazer a vontade de Deus (a de não perder de nenhum dos irmãos). Se “Ele se entregou por mim” como diz São Paulo (Gl 2,20), oferecido por Deus a nós, também o caminho inverso ocorre. Nas atitudes deste filho da humanidade, nascido de mulher sob a Lei (cf. Gl 4,4), foi feita, não a vontade de Adão (cf. Gn 3, 6; Lc 22,42), mas a do Pai (significado antropológico). Visto que em sua vida e sua morte, Jesus é o ser humano verdadei- ro que corresponde inteiramente a Deus, sendo, portanto, em seu relacionamento com Deus e os outros, o protótipo do ser humano, como tal, Ele representa em si todos os demais seres humanos, não como eles sempre são, mas como ainda deverão tornar-se; afinal, todos deverão conformar-se à sua imagem, e deverão fazê-lo atra- vés da comunhão com Ele “por meio Dele”, “em” e “com Cristo” (KESSLER, p. 380). A morte de Jesus é, então, a possibilidade de Deus crer real- mente no homem e a possibilidade de o homem encontrar em Je- sus, como diz Ratzinger, a "representação afiançadora", que afirma Jesus como garantia da possibilidade de o homem voltar a Deus, entregar-se a Ele e recompor a aliança agora tornada definitiva pelo sangue na cruz. A morte de Jesus vence o pecado e seus po- deres escravizantes, inclusive o amedrontamento da ira de Deus, e por Ele possibilitar, não substituir a própria entrega de cada um a Deus. © Cristologia166 O sacrifício de Jesus "pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2) é a mais pura representação do amor humano a Deus. A ofe- renda do corpo de Jesus Cristo, realizada “uma só vez por todas", na cruz (cf. Heb 10,5-10), não apenas nos santifica, mas também nos apresenta como hóstias vivas de suave odor ao Pai (cf. Ef 5,2). Amando-nos até o fim, dando a vida por nós, seus amigos, fazendo-se um conosco, Ele se torna nosso representante junto ao Pai. Pois é seu desejo que onde Ele estiver, nós estejamos com Ele. “Ele uniu a si, de certo modo, todo homem” (GS 22,2). Deu assim a todos a possibilidade de se associarem ao seu Mistério Pascal (cf. GS 22,5). Chama os seus a tomarem suas cruzes e O seguirem (cf. Mc 10,39), dando-lhes o exemplo para que sigam os seus passos (cf. 1Pe 2,21). No outro plano, encontra-se o significado teológico. Deus aceitou o sacrifício único de Jesus como prova do amor humano. Deus nos vê pelo seu Filho, que é o nosso irmão. E quem poderia melhor representar o ser humano diante de Deus, senão o Ho- mem Jesus? A cruz de Jesus não é o significado da quantidade de dor, mas a expressão maior da dedicação humana a Deus. Nela, o ser humano não precisa mais oferecer a Deus cultos e sacrifícios, san- gue de animais ou bodes. Na cruz, não é oferecido nada de tudo quanto pertence a Deus. Nela, só é oferecido o que é próprio do homem: sua liberdade. A cruz torna-se, pois, a radical e inaudita oferta de liberdade humana, em sua capacidade máxima de amar a Deus. Porque a oferta (entrega) de Jesus na cruz ao Pai é uma ação humana de amor, que resposta pode Deus lhe dar senão também em amor? Deus só pode mesmo recriar a humanidade e o cosmo, começan- do tudo de novo, e ressuscitar seu Filho. E torná-lo primogênito dos mortos. Conforme o Novo Testamento, a cruz de Jesus é um movi- mento primeiro de cima para baixo, como diz Ratzinger (cf. Intro- 167 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática dução ao cristianismo, p. 209). É nela que o Pai reencontra o velho e o novo Adão e os chama de volta ao paraíso. Jesus sintetiza em si a realidade humana (fizera-se até pecado por nós (cf. 2Cor 5,21) e era o Filho amado do Pai (cf. Mt 3,17; Mc 9,7). Numa síntese feliz, H. Kessler afirma: Justamente em sua morte Ele representa, por isto, os muitos e os faz, através do efeito "multiplicador" da graça (2Cor 4,15), partíci- pes de sua própria justiça de Deus (5,21). Esse, um ser humano, re- presenta o lugar de Deus junto a todos os seres humanos e o lugar destes junto a Deus; ao invés de nos substituir, Ele mantém esse lugar permanentemente aberto para nós e nos introduz em sua própria atitude interior. A representação de Jesus contém, assim, um movimento exclusivo (que cabe unicamente a Jesus) e um in- clusivo (que inclui e convida os outros) (KESSLER, 2000, p. 380-381). Inúmeras outras ideias e teorias foram apresentadas, mes- mo recentemente, sobre a morte de Jesus. Assim, resumidamente temos quatro planos: 1) Histórico: • condenado politicamente, por desacato ao Estado Romano (subversão) e messianismo/pretensão de re- aleza; • religiosamente, por causa da questão do "sábado"; • e da pretensão de filiação divina. 2) Bíblico: • Morte como sacrifício, redenção (resgate); • Figura do servo sofredor, profeta mártir escatológico. 3) Teológico: • Deus o fez pecado por causa de nós; • Como satisfação a Deus; • Como mérito por nós junto a Deus; • Por solidariedade e representação. 4) Sotereológico: • para o perdão dos pecados (dimensão negativa); • para nossa salvação (dimensão positiva). © Cristologia168 Há uma imensa gama de interpretações. Todas elas têm (ou tiveram) sua validade. Não há uma que seja suficientemente glo- balizante. Sempre são pontos de vistas que podem partir de uni- versos sócio-culturais, religiosos ou teológicos diversos. As explicações teológicas, como as outras, estão condicio- nadas ao tempo e às culturas. Elas não podem ignorar as de di- mensão bíblica (morte por nós, como sacrifício e como resgate). Impuseram-se historicamente duas grandes teses teológicas (sa-tisfação e mérito). Na atualidade, aparecem também dois enfo- ques predominantes: o da entrega (ou da solidariedade) e o da representação. Contudo, o grande significado da morte de Jesus só pode ser compreendido a partir da dimensão sotereológica. Mesmo que ela tenha sido compreendida, no passado, prioritariamente como salvação e/ou redenção dos pecados; hoje se tende a perceber o caráter redentor da morte pelos pecados. Há uma forte ênfase em compreender toda a vida encarnada de Jesus Cristo (não apenas sua morte), como ação sotereológica (salvífica). Particularmente, aqui, são postas duas questões sobre a morte: o aspecto redentor dos pecados da humanidade e a solida- riedade representativa de Jesus (um amor pró-existente: por Deus e por nós, homens). 8. O RESSUSCITADO: AUTORREVELAÇÃO DE DEUS E DO HOMEM No início do século 20, os manuais de cristologia mal ace- navam à questão da ressurreição. O tema não merecia mais que umas linhas, em complementação à morte do Senhor. A ressurrei- ção era tomada como um fato que dizia respeito praticamente só à pessoa de Jesus, sem nenhuma incidência para a humanidade toda. 169 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática Desde a metade do século passado, a partir da obra do fran- cês François Durwell, "A ressurreição de Jesus, mistério da salva- ção" (1950), redescobriu-se a importância do tema para a fé. Você terá, agora, uma oportunidade de aprofundar a refle- xão cristológica sobre a ressurreição de Jesus. Inicialmente, en- contrará, no texto, algumas questões que ajudam a dirimir alguns pontos para assim facilitar o entendimento desta maravilha divina, que não apenas continua a obra da criação, mas a recria e a leva a sua plenitude. Lembre-se de que sem a ressurreição a nossa fé é vã, como já dizia São Paulo. Diante do tema fundamental da cristologia, a ressurreição, devemos, logo no início, eliminar algumas dúvidas e o faremos de modo incisivo: a) A Igreja crê que Deus ressuscitou o crucificado. E o fez: • para desautorizar a rejeição e a condenação infligida pelos homens; • para evidenciar que a plenitude da vida só se encon- tra em Deus mesmo; b) A ressurreição de Jesus é um acontecimento escatoló- gico, com incidência histórica. Portanto, não pode ser comprovado cientificamente e não existe nenhum outro caso conhecido na história. A ressurreição de Jesus não é como a de Lázaro (este voltou a viver esta vida terrena e depois morreu novamente). Vale lembrar que, reencarnação, reanimação de cadáver ou “expe- riência de morte” em nada tem a ver com a ressurreição. O Novo Testamento não responde como era o corpo do res- suscitado. Limita-se a dizer que o ressuscitado era Aquele Jesus que convivera com eles. Ninguém viu o momento da ressurreição, mas todos os que viram o ressuscitado sabiam (não só criam) que Ele era Aquele que vivera com eles e morrera crucificado. © Cristologia170 A ciência só pode constatar a reação dos apóstolos e suas consequências (por causa da ressurreição). Não é competência científica pesquisar a ressurreição. Ela é um fato escatológico, não verificável empiricamente. Os textos bíblicos sobre a ressurreição e as aparições, escri- tos em tempos diferentes, por evangelistas com objetivos diferen- tes, nem sempre se manifestam de acordo nos detalhes. Isto não é sinal de contradição ou desautorização dos fatos, mas experiências tão inauditas e surpreendentes que nem sempre os detalhes são importantes, como por exemplo: número de aparições e a quem, terceiro dia, o túmulo vazio, peixe assado etc. A realidade do ressuscitado é nova e inaudita. São Paulo escreve que o corpo biológico (animal) se transforma em corpo espiritual. Não é des-encarnação ou i-materialização, mas corpo possuído pelo Espírito de Deus (cf. 2Cor 3,17). Não é vida histórica (1Cor 15,45), mas é vida vivificada e vivificante. É vida não mais para si, mas vida aberta como comunhão com Deus, com os outros e com o cosmo (mundo). É vida espiritual. Quando, se escreve nos evangelhos que Jesus “pegou (to- mou)" o pão, e o "comeu", mostrou "as chagas", "atravessou" pa- redes, "subiu" ao céu, "falou" etc. quer se afirmar a concretude da identidade do ressuscitado, levando em conta a experiência dos ouvintes do evangelho e sua capacidade de compreensão. Isto aparece principalmente nos textos de Lucas, que escreve para os gentios e judeus helenizados. Os relatos da ressurreição, com ên- fase na questão corporal, pretendem, sobretudo, afirmar que o ressuscitado é o mesmo crucificado, em sua totalidade, superando a dicotomia grega de corpo e alma: quem ressuscitou foi o Nazare- no em sua totalidade agora espiritual. Se quando nasce de um ovo, um passarinho ou, de uma se- mente, uma planta, quem fica valorizando a casca do ovo ou da semente? O que passa a ter importância é a nova vida. Assim, tam- bém procede o Novo Testamento sem se ater ao como era o novo 171 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática corpo. Mas, e se encontrassem o corpo de Jesus, dois mil anos de- pois? É preciso lembrar: nossa fé não se baseia num cadáver, num morto, mas na realidade escatológica aceita pela fé. Portanto, a aceitação da ressurreição é um ato de fé religiosa (não é comprovação nem pela ciência). Ela é uma realidade esca- tológica. E isto é o fundamento da fé cristã e da cristologia. A "ressurreição de Jesus" não é uma ideia absurda. Nela, e para além dela, os cristãos encontram a explicação, racional e razoá- vel, para os profundos anseios humanos. Eles afirmam: o ser huma- no existe a caminho da plenitude da vida humana, que só se realiza em Deus, ao poder vê-lo face a face, sem nunca mais morrer. A ressurreição de Jesus tem a ver com o futuro, mas já é vivi- do na fé, hoje. Por isto o modo de viver Dele é algo desconhecido para nós: sabemos, no entanto, que Ele mantém a integralidade de sujeito humano, vivendo junto de Deus e como Deus. Jesus ‘crucificado ressuscitado’ é quem tomou a iniciativa de se fazer ver. Suas aparições não são manipulações ou visões. Elas não dependem do ser humano. Foi fundamentados na ressurreição que os apóstolos atemo- rizados diante do fracasso e escândalo da cruz compreenderam o sentido global da ação de Deus (a ressurreição de Jesus) e destemi- damente reabilitaram a causa e a pretensão de Jesus. A comprova- ção disto está na presença do cristianismo, com sua contribuição, até hoje, por toda a parte do planeta. Significado teológico da fé na ressurreição de Jesus Depois dessas questões preliminares, com caráter apologé- tico, é preciso aprofundar o significado teológico da fé na ressur- reição. É importante ressaltar, desde o início, que seu caráter é singular, único, inaudito e inusitado. Nenhuma outra religião apre- senta esta ideia, ou melhor, este acontecimento real, de dimensão escatológica, porém. © Cristologia172 A fé pascal é uma atitude pessoal do cristão baseada em suas próprias experiências (como o foi a dos apóstolos), mas fun- damentada na tradição cristã, cuja origem está no relato bíblico do encontro dos apóstolos com o ressuscitado. A fé pascal não é só um ato de crer no que os outros (especialmente os apóstolos) disseram. Cada crente refaz, em seu coração, a experiência imediata do encontro com o Ressuscitado. Crê Nele como seu Senhor que está vivo e exaltado pelo Pai e é seu único salvador. A fé, que leva à experiência pascal, inclui a experiência de salvação (que pressu- põe a graça do perdão) e a experiência de eternidade. Ela inclui crer que, no ‘crucificado ressuscitado’, Deus salvou definitivamente o ser humano, particularmente Jesus. Ele é a an- tecipação de nossa salvação. O Pai levou Jesus à consumação (cf. Heb 5,9), cuja sequência lógica e de conteúdo encontramos nos resumos dos discursos de Pedro (kerigma da fé, cf. At 2,22-36; Heb 12-26; 4,9-12; 10,34-43), mas epístolas (Rm 8,34s; Ef 1,22-23; 1Pe 3,18-22) e nos “Credos” da Igreja. A fé pascal crê neste Jesusque passou pelo mundo fazendo o bem (At 10,38), que Deus estava Nele e com Ele, reconciliando consigo o mundo (2Cor 5,18), que Nele Deus esteve (e está) conos- co (Emanuel, Mt 1,23). Ela crê que Ele nos revelou o Pai (cf. Jo 1,18) e foi constituído para a nossa salvação. Crê-se que, por Ele, Deus reinicia a humanidade e o cosmo de modo definitivo e último para a plenificação. E se crê, finalmente, por sua ressurreição, Deus nos deu o Espírito Santificador, o que nos conduzirá à nossa plenitude humana: viver em Deus. A fé pascal, contudo, tem uma implicação radical, que, aliás, decorre das próprias aparições do ressuscitado. É frequente es- quecer que todas as aparições estão vinculadas ao mandato mis- sionário. À medida que cristologia e a sotereologia foram se distan- ciando entre si, também ficava mais patente o esquecimento do 173 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática sentido das aparições do ressuscitado. Jesus não apareceu como que para dizer "ressuscitei", mas para apelar à continuidade de sua causa, que era (é) a causa do Pai: "ide e pregai o Evangelho. Ensinai e batizai, fazei discípulos" (cf. Mc 15,15s; Mt 28,19ss). A missão é continuar o processo de antecipação histórica do Senhorio salvífico de Deus, sobretudo pelo testemunho. É preciso refletir: a ressurreição, a nossa vida histórica, faz sentido no cum- primento do mandato missionário, pois em Jesus Deus reconcilia o mundo (Mc 16,16-20). A intencionalidade missionária das aparições indica também a dimensão comunitária da ressurreição. Quem a recebe deve co- municá-la aos outros, a fim de que se vá constituindo o povo de Deus (dos batizados), desde então até o fim dos tempos. Vale lembrar que o evento da ressurreição é distinto do das aparições. Enquanto as aparições têm um caráter histórico, a res- surreição é um acontecimento escatológico. Se as primeiras são acessíveis só a testemunhas previamente escolhidas e não a todos (cf. At 10,40), e não são proporcionais a outros acontecimentos humanos, a ressurreição é um aconteci- mento em Deus, cuja singularidade diz respeito ao futuro do ser humano (mesmo com as implicações atuais, sejam pessoais, sejam comunitárias). “Sei que meu redentor vive" é um brado de fé pascal. Mas como encontrá-lo hoje? Ao responder esta questão, Le- onardo Boff diz com propriedade, lembrando que "o cristianismo não vive de uma saudade, mas celebra uma esperança”. O autor enumera várias maneiras da presença do ressuscitado hoje: a) no Cristo cósmico pertinente à terra e ao próprio cosmo; b) no ser humano (o maior sacramento de Cristo); c) nos cristãos anônimos e latentes; d) nos cristãos explícitos e patentes; e) na Igreja (sacramento primordial da presença do Senhor). © Cristologia174 É importante você ler agora, em BOFF, Leonardo. Jesus Liberta- dor. Petrópolis: Vozes (várias edições), os capítulos: “Onde encon- tramos o Cristo ressuscitado hoje?” e “Como vamos chamar Jesus Cristo hoje?” Lembre-se de que o contexto sociocultural do livro já não é mais o do tempo atual, mesmo nas reedições do autor. As aparições de Jesus (1Cor 15,5-8), sua ascensão, exaltação, entronização à direita do Pai ou recuperação da glória que detinha antes da encarnação (cf. Jo 17, 5; 1Tm 3,15) etc., são variações bíblicas que interpretam o mesmo fato básico da ressurreição, em ângulos diferentes de tempo e objetivos, que a própria liturgia tem sabido em explorá-los dentro do único mistério pascal. Como diz C. Duquoc: "Nas experiências da Páscoa se ligam assim visão, audição, êxtase. Páscoa, Ascensão e Pentecostes se juntam sob a força do Espírito”. (In: LACOSTE, 2004, p. 1533). Significado teológico da ressurreição A ressurreição é fator determinante não só da fé. Ela o é também da cristologia. Só à luz da ressurreição é que se faz cristo- logia, pois só ela revela a identidade de Jesus e seu papel salvador. "Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação, vã é a vossa fé" e “ainda estais em vossos pecados, e os falecidos estão perdidos" (cf. 1Cor 15,14.17s). Ressurreição, como ação de Deus: conteúdo teológico Na ressurreição de Jesus, Deus se revela quem realmente Ele é: "amor". Amor que se comunica, sobretudo por meio de seu Fi- lho, que é a situação pessoal, definitiva e eterna do encontro entre Deus e o homem. O Filho se torna a ocasião da revelação de Deus e da plenificação do ser humano. "Se a encarnação é um ato pelo qual o Senhor se faz servo, a ressurreição é o ato pelo qual o servo é constituído Senhor". (CAR- DEDAL, 2001, p. 487) 175 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática É por isto que se diz do Deus de Jesus: "Ele é senhor dos vivos e dos mortos" (Mc 12,27), "Deus para nós é um deus de salvação; só o senhor Deus pode libertar da morte" (Sl 68,21). Libertando da morte, Deus ressuscita, primeiramente, seu Filho e depois todos os outros (cf. 2Cor 1,9). Como ação de Deus, a ressurreição completa, consuma, a obra criada. Em Jesus Deus supera a morte e faz o ser humano vi- ver para sempre, irreversivelmente diante Dele. Jesus ressuscitado é constituído o pai desta nova humanidade, cuja plenitude é par- ticipar da vida de Deus. Por outro lado, pela ressurreição de Jesus, Deus se aproxima da humanidade, recusa toda injustiça e rejeição, sobretudo quando feitas contra os crucificados da história; rejeita as forças do mal e garante a salvação do ser humano. Salvar é algo inerente a Deus. Por isso chama à vida não mais histórica, porque esta é limitada e contingente, localizada e finita; chama à vida im- perecedora, que é vivificante, universalmente personalizante. Seu poder derrota a morte (todas as espécies de morte). Na ressurreição de Jesus, o primeiro sinal que os discípulos compreendem é: Deus atuou Nele, ressuscitando-o (cf. os discur- sos de Pedro nos Atos dos Apóstolos). Ao proceder assim, Deus culmina sua autorrevelação como Deus da vida e que se "intro- mete" na vida humana a fim de que ela atinja sua plenitude. Ao ressuscitar o crucificado, restitui sua glória anterior colocando-o à sua direita. O prolongamento da ressurreição dos outros homens é a comprovação que nem a morte, nem o ser humano e nem a própria história tem a última palavra. O Deus vencedor da morte é o futuro do ser humano, pois Ele é fiel à sua palavra. Diante da ação do ressuscitamento de Je- sus, todo homem e toda mulher podem crer que o mal, o pecado (injustiça, miséria, opressão) e a morte não têm consistência em si mesmos, apesar das aparências históricas. Esta ação de Deus reve- la de modo definitivo que Ele é "Deus conosco" (Mt 1,23) e “estava no seu Cristo e reconciliou consigo o mundo (cf. 2Cor 5,18). © Cristologia176 A ressurreição, com revelação de Jesus: conteúdo cristológico Confirmadas por Deus, a pessoa, a vida e a obra de Jesus, Ele é revelado agora como o Adão definitivo, primogênito dentre os vivos e mortos, dentre todos os irmãos. Ele é o consumador da obra de Deus. Sua vida histórica terrena confirma também que Ele era Deus conosco (Emanuel). Adentrado na história, inclusive na realidade do sofrimento, do pecado e da opressão, Ele é o reden- tor e salvador da humanidade. Sua vida, não só vivida a partir da vontade de Deus, mas de Deus encarnado, evidencia que a comu- nhão vivida em favor de Deus e dos irmãos se torna indestrutível. Se a ressurreição revela que Jesus era Deus entre nós, ela revela também que Ele entra na glória do Pai, que como Filho já a possuía antes da criação do mundo (Jo 17,5). É daí que surge a validade da fórmula teológica tão frequente: “Ele ressuscitou” por sua própria força divina. O conteúdo cristológico da ressurreição mostra adequação dos títulos a Ele atribuídos: Messias, Senhor e Filho (cf. At 2,36; Rm 1,4), porque a encarnação se consuma na ressurreição, por obra do Espírito. Quem Ele era realmente se evidencia na ressurreição. Por isso, toda a expectativa de Israel por meio da aliança e das ex- pectativasmessiânicas, por meio dos patriarcas/profetas, na vida abençoada por Deus (terra, gado e filhos), libertações, históricas, tempo abençoado em Sião, perdão dos pecados e esperança da salvação definitiva e universal, vão se realizar no e pelo ressus- citado. É Ele a síntese e fonte escatológica de todos os anseios e expectativas de Israel e de todos os homens e mulheres de todos os tempos. Reveja na Unidade 2, Jesus na História bíblica, o tema: O Antigo Testamento como base e fonte da cristologia neo-testamentária. Jesus ressuscitado é a causa da salvação de todos os demais (cf. Heb 5,9), que arrasta atrás de si a imensa procissão humana (cf. 177 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática Heb 12,2). É o homem que veio de Deus, o último Adão convertido em espírito que faz viver (1Cor 15,44-49). É quem antecipa e con- cretiza a esperança humana da ressurreição dos mortos (At 4,2), a realização humana. Ele consuma a fé e antecipa o final da história. Ele evidencia o sentido e a razão da criação, como processo orien- tado para Deus. A criação e a história são contínuas e processuais. Mas, seu sentido e sua razão estão no fim. Este processo é garantido pelo homem-Deus ressuscitado que vive em Deus como Deus mesmo. Por isso, para os cristãos, surge a certeza (não a esperança) da fi- delidade de Deus (Ele foi fiel para com seu Filho) e de Cristo (que foi fiel ao Pai e aos homens): nosso futuro absoluto é Deus. Ele não só vence todo pecado, mas consuma seu plano, traçado desde a origem do mundo: sermos santos e perfeitos por meio de seu Filho (cf. Ef 1,3ss). A ressurreição como consumação humana: conteúdo antropológico Jesus ressuscitado carregou consigo as "chagas da crucifi- xão”. Ele permanece hoje tão verdadeiramente Deus (dogma de Niceia), quanto verdadeiro homem (dogma de Constantinopla). É, ao mesmo tempo, um e o mesmo (dogma de Calcedônia). Sua identidade permanece a mesma. Há, porém, que se afirmar o fato de que: Enquanto em Jesus histórico, a divindade se mantinha uma posição kenótica, agora na parusia lhe é restituída toda sua grandeza e gló- ria. Constituído Senhor e Cristo, o ressuscitado é Deus, como Pai e com o Espírito. Deve-se, contudo, ressaltar que o ressuscitado con- tinua sendo inseparável e indivisamente humano. A união surgida na encarnação do Verbo, no seio de Maria, permanece. A chamada união hipostática (as duas naturezas, divina e huma- na, inconfusas, imutáveis, indivisas e inseparáveis, conforme o ensino de Calcedônia) permanece na realidade nova Daquele que "subiu ao céu e está à direita do Pai". O mistério de Deus se une à realidade do homem desde a encarnação, por isto Ele é verdadeiro Deus e verda- deiro homem, na vida (história), e além da morte (ressurreição). © Cristologia178 Se a ressurreição revela que Aquele homem era Deus desde toda a eternidade, ela revela, por outro lado, que Naquele homem a humanidade se tornou inseparável de Deus também na eterni- dade. Nele, permanecem as duas naturezas unidas junto a Deus, mas inconfusas, imutáveis, indivisas e inseparáveis, conforme o próprio ensino de Calcedônia. É evidente que a união acontecida no ‘Deus homem’ não se estende ao Pai e ao Espírito Santo. Deus é, em sua unidade, trino (três pessoas divinas). A segunda Pessoa da Trindade, o Filho, per- manece unido em suas duas naturezas (humana e divina). Sem dúvida, a união não se desfaz (nunca mais), por isso a ressurreição atinge a realidade total de Jesus Cristo, Aquele que é um só e o mesmo, aquele que é o crucificado-ressuscitado. Ninguém pode afirmar que a morte e a ressurreição atingi- ram apenas a natureza humana. Elas são realidades pertinentes ao mesmo e único Verbo encarnado. Na cruz morreu um da Trindade e, na ressurreição, ressurgiu o que morreu: um da Trindade. Agora, pode-se sintetizar assim: O ‘crucificado ressuscitado’ (unido hipostaticamente) saindo da história (pela morte) entra na eternidade e recupera toda a grandeza de Deus mantida kenoti- camente, enquanto a natureza humana atingirá tam- bém a sua plenitude. Mantêm-se a identidade das duas naturezas, mas doravante elas se manifestam em plenitude. A natureza divina do Verbo ressuscitado se apresenta com seu poder e glória. A natureza humana transforma o corpo corruptível (bazar) em corpo incor- ruptível. São Paulo precisa: Semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, 179 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual. O que foi feito alma vivente [...] torna-se espírito que dá vida (cf. 1Cor 15,42b – 45). Na linguagem paulina, a ressurreição transforma o homem ter- restre em celeste. A corruptibilidade será revestida de incorruptibili- dade. O mortal será revestido de imortalidade (cf. 1Cor 15,50-53). É preciso relembrar estes conceitos em Antropologia Teológica, na Unidade 3, Tópico 5. Antropologia do Antigo Testamento, p. 24ss. A ressurreição atinge, de modo diverso, as duas naturezas do mesmo e único ‘crucificado ressuscitado’, Verbo encarnado. A natureza divina retoma seu poder e resplandece em sua glória. A natureza humana se consuma em plenitude, revelando, primogeniamente, quem realmente é Aquele que fora criado cor- ruptível (na carne, na história) como imagem de Deus e agora se assemelha a Deus incorruptivelmente. A ressurreição (de Jesus, e depois a de todos os outros) faz o ser humano manifestar-se em plenitude. Este é o mistério da vontade de Deus, o que quer que nin- guém se perca, pois em Cristo quer salvar a todos. O homem res- suscitado é a realização máxima e irreversível das aspirações hu- manas mais profundas. Jesus, como primícias dos que morreram, atingiu esta plenitude. Isto o faz garantia da fidelidade da promes- sa de Deus a todos os homens. Quando isto acontecer, então se verá que Deus tinha razão ao ver o homem criado como sua imagem e semelhança e excla- mar que não apenas era “bom” com as outras criaturas, mas “mui- to bom” (cf. Gn 1,31). E, então, seguirá o sétimo dia, o do "descan- so" de Deus. E seguirá porque a criação estará consumada e Deus celebrará, com todas as suas criaturas, a festa que no céu nunca se acaba. O fim é a festa eterna de Deus, em que o homem continua- rá sendo aquele que Deus tendo-o levado à perfeição, há de amar como sua criatura especial, por meio de seu Filho. © Cristologia180 Contudo, o caráter sotereológico tem sua revelação máxima na ressurreição de Jesus. Ela é o futuro do ser humano, em pro- messa. Ao mesmo tempo, antecipado e garantido em Jesus Cristo. Vivemos nesta esperança cristã que é causa de profunda alegria, força de libertação, descrédito do mal (da injustiça e do pecado), compromisso com a vida e a libertação, pois o Senhor vive para sempre e nos chama a viver com Ele. 9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Assinale a única afirmação falsa: a) Nenhum estudo, por mais completo que seja, abarca toda a pessoa de Jesus, homem e Deus, entre nós e nosso senhor salvador. b) A cristologia é feita para a compreensão dos que creem, no tempo e cir- cunstância que eles vivem e não como um estudo em si e para si mesmo. c) A cristologia deve ter sempre presente o Novo Testamento como norma- tivo e o dogma, como integrativo. d) O Novo Testamento apresenta várias cristologias. A Igreja não reconhece que elas não se excluam, mas exigem a fidelidade a cada uma. e) Nem todas são verdadeiras. 2) Numa grande síntese, pode-se dizer que a cristologia tem tido dois grandes modos de proceder (métodos): “a partir de baixo” ou “a partir de cima”. Assinale a única afirmação correta: a) Na cristologia vai predominando hoje como critério para aproximar-se de Jesus “a partir de baixo”. b) Desde o século 12 houve uma crescente separaçãoentre cristologia e sotereologia. c) No período de ouro da cristologia (do século 3º ao 8º), havia uma preo- cupação em se afirmar sempre quem era Jesus Cristo para a nossa sal- vação. d) Poder-se-ia dizer que a cristologia “a partir de baixo” é encontrada nas cristologias da libertação, feminista, contextual (asiática), negra (africana e norte-americana). e) Todas são verdadeiras. 3) Assinale a única alternativa falsa: a) A cristologia “a partir de cima” tem fundamento nos textos joanino e paulino. 181 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática b) Predominou entre o clero e intelectuais, sobretudo da cultura branca “masculina” e europeia. c) A cristologia “a partir de cima” quase nunca parte da ideia que Jesus é o Verbo pré-existente (desde toda a eternidade). d) Ela é usada predominantemente pelos que trazem uma tradição dou- trinária helenista-ocidental (com corte mais europeu e eclesiocêntrico). e) Alguns afirmam que sua forte presença se deve ao fato de ela ser a pre- ferida pelos bispos e papas. 4) Assinale a única alternativa falsa: a) As perspectivas mais importantes da cristologia estão centradas: na mor- te de Jesus, em sua encarnação e na história. b) O enfoque encarnatório, em resumo, afirma que a razão do Filho Eterno se fazer homem (encarnação) era para revelar quem é Deus, quem so- mos nós e como Deus nos comunica sua vida divina. c) Como é impossível escrever uma “síntese cristológica definitiva”, então se percebe que todas e quaisquer cristologias sofrem a influência da cul- tura e das relações existenciais de seus teólogos. d) Ao estudar a cristologia, enfoque histórico, hoje, torna mais acessível, para nós, o encontro com Jesus Cristo, por isso muitos teólogos fazem esta opção metodológica. e) A cultura pós-moderna (inclusive católica) não assumiu a centralidade do ser humano; antes, enfatiza a reflexão cristológica que permanece centrada na questão estaurológica (da morte de Jesus na cruz). 5) Assinale a alternativa correta: a) Jesus foi um homem só que se compreendeu a partir de Deus. b) Não foi Jesus quem ensinou aos discípulos o método de interpretá-lo à luz das Escrituras. c) Jesus é diferente porque, sem ser um dos nossos, é Aquele que vem de Deus como “homem novo”. d) Jesus elegeu a Deus como fonte e razão de sua vida. Ele viveu para Deus de Israel, seu Pai. e) Jon Sobrino deixa de acentuar a piedade de Jesus, como também a pro- fundidade da oração dele, que supera ingenuidades, mecanizações, hi- pocrisias, opressões, narcisismos. 6) Assinale a única falsa: a) A vida de oração de Jesus revela não somente sua fé em Deus. b) A relação de Jesus com o Pai não ultrapassava seu comportamento pes- soal e, por isso, transparecia no modo como Ele falava, invocava e dava testemunho de Deus. c) A vida de oração de Jesus torna clara a sua própria confiança em Deus. d) Sua confiança em Deus o faz atribuir a Ele seus milagres, a sua origem e significado de sua vida. e) A confiança absoluta e radical se evidencia no modo como Ele assume a própria morte pela causa de Deus. © Cristologia182 Gabarito Depois de responder às questões autoavaliativas, é impor- tante que você confira o seu desempenho, a fim de que saiba se é preciso retomar o estudo desta unidade. Assim, confira, a seguir, as respostas corretas para as questões autoavaliativas propostas anteriormente: 1) e 2) e 3) c 4) e 5) d 6) b 10. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, nos dedicamos ao estudo do significado teo- lógico sistemático de Jesus de Nazaré. Após a retomada conceitual de cristologia, procuramos entender como Jesus se autocompre- endeu a partir de Deus e em favor de nós. Certamente, ter-se-á entusiasmado mais por Ele. Realmen- te, a centralidade Dele, na fé cristã, faz jus a quem Ele foi, é e con- tinuará sendo sempre. Também aprofundamos dois temas teológicos, na grande tradição do segundo milênio: a morte e ressurreição de Jesus, so- bre o que o cristianismo produziu diversas interpretações. As teo- rias da representação e da solidariedade ganham espaço nas com- preensões contemporâneas, sem ignorar as anteriores. Certamente estas ideias devem ter ficado bem claras para você. Caso contrário, é convidado a revê-las e/ou ampliar sua lei- tura, até mesmo recorrendo a outras fontes indicadas. Na próxima unidade, estudaremos o lugar do salvador no plano de Deus, teologia da salvação, cristo salvador atuando entre nós, além de compreendermos como seguir Jesus. 183 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Cristologia sistemática 11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUDE, P. De acordo com as Escrituras. São Paulo: Paulinas, 1982. BERGER, K. Para que Jesus morreu na cruz? São Paulo: Loyola, 2005. BINGEMER, M. Jesus Cristo: servo de Deus e messias glorioso. São Paulo: Paulinas Valên- cia (Espanha): Siquém, 2007. BOFF, L. Paixão de Cristo, Paixão do mundo. Petrópolis: Vozes, 1977. BONY, P. A ressurreição de Jesus. São Paulo: Loyola, 2008. BOURGEOIS, H. Libertar Jesus. Cristologias atuais. São Paulo: Loyola, 1989. Concilium. Revista Internacional de Teologia 326 -2008/3. Petrópolis: Vozes. BROWN, R. E. Um Cristo ressuscitado na Páscoa. São Paulo: Ave-Maria, 1996. CARDEDAL, G. Olegário Cristologia. Madrid: BAC, 2001. DUNN, J. D. G. A teologia de Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. DUQUOC, C. Cristologia: o homem Jesus. São Paulo: Loyola, 1977. DURWELL, F. Cristo nossa páscoa. Aparecida: Santuário, 2006. FEINER, J.; LOEHERER, M. (Orgs.). Mysterium salutis. Compêndio de dogmática histórico- -salvífica III/6. O Evento Cristo. 6. Mysterium paschale. Petrópolis: Vozes, 1974. GAMBERINI, P. Questo Gesù (At. 2,32). Bologna: EDB, 2007, p. 52. GESCHÈ, A. O Cristo. São Paulo: Paulinas, 2004. GOURGUES, M. Jesus diante de sua paixão e morte. São Paulo: Paulinas, 1985. HAIGHT, R. Jesus símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003. KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, T. (Org.). Manual de dogmática. Petrópolis: Vo- zes, 2000. v.1. MARTINI, C. Os relatos da paixão de Cristo. Lisboa: São Paulo, 1994. MOINGT, J. O homem que vinha de Deus. São Paulo: Paulus, 2008. MOLTMANN, J. Quem é Jesus Cristo para nós hoje? Petrópolis: Vozes, 1997. PUIG, A. Jesus, uma biografia. 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OBJETIVOS • Justificar a pré e a pós-existência de Jesus, bem como sua encarnação, como ação salvífica do Pai. • Identificar o papel sotereológico de Cristo desde toda a eternidade. • Analisar e discutir sobre o significado salvífico da encar- nação (vida toda de Jesus). • Distinguir a salvação em seus aspectos positivos e nega- tivos. • Analisar a necessidade do seguimento, como consequên- cia de toda a cristologia. 2. CONTEÚDOS • O lugar do salvador no plano de Deus. • Teologia da salvação (sotereologia). © Cristologia186 • Jesus, o Emanuel e salvador nosso. • Seguir Jesus. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Leia os livros da bibliografia indicada, para quevocê am- plie e aprofunde seus horizontes teóricos. Esteja sempre com o material didático em mãos e discuta a unidade com seus colegas e com o tutor. 2) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos expli- citados no Glossário e suas ligações pelo Esquema de Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades deste CRC. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu desempenho. 3) O estudo de Santo Anselmo (Cur Deus homo?) merece ser lido não só pela sua plasticidade e lógica, mas para compreender todo o significado da salvação que predo- minou no 2º milênio. Desse modo, consulte a obra: AN- SELMO, Santo. Por que Deus se fez homem? São Paulo: Novo Século, 2003. Além disso, veja também as interes- santes observações de Ratzinger na obra: RATZINGER, Joseph. Bento XVI. Introdução ao cristianismo. Preleções sobre o Símbolo Apostólico. Com um novo ensaio intro- dutório. São Paulo: Loyola, 2005. p. 172–181. 4) Você pode aprofundar seus conhecimentos lendo as se- guintes obras: a) BOFF, Leonardo. Evangelho de Cristo cósmico: a bus- ca na unidade do todo na criação e na religião. Rio de Janeiro/S. Paulo: Record, 2008. b) DUQUOC, Christian. O único Cristo: a sinfonia adia- da. São Paulo: Paulinas, 2008. c) DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia do pluralis- mo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. 187 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus d) MALDONÈ, Jean Michel. Cristo para o universo: Fé cristã e cosmologia moderna. São Paulo: Paulinas, 2005. 5) O evangelho é ou deveria ter uma força revolucionária, isto se os cristãos lhe dessem o crédito devido e total. Experimente escrever um texto próprio em que envol- va o libertário contido simultaneamente nos seguintes textos: a) Mt 5,3-11 (as bem-aventuranças). b) Lc 1,46-55 (o magnificat de Maria). c) Mt 5,9-15 (o Pai nosso). d) Mt 25,31-47 (o juízo final). 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Seus estudos vão se encaminhando para o grande significa- do da revelação de Deus e do mistério de Jesus desde sua encarna- ção (nascimento, vida, morte e ressurreição) até o presente, como nosso salvador. Agora, como que a concluir, você encontrará: • Aquele que sendo humano, como nós, na verdade, é Deus pré-existente desde toda a eternidade e veio, entre nós, para nós salvar. • Aquele que tendo vivido como um de nós, hoje continua vivo e vivificante, e por isso nos levará à salvação plena em Deus. Seria bem pequena se sua missão fosse apenas nos salvar de nossos pecados. O significado de Jesus salvador é muito maior. Esperamos que ao aprofundar o tema você possa (re) des- cobrir a grandeza Daquele que, vivendo com o Pai e o Espírito, foi constituído iniciador e consumador de toda a obra criada. . Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Nós professamos a fé de que o Verbo eterno se fez um de nós. Encarnou-se, para a nossa salvação. © Cristologia188 A teologia da salvação (sotereologia) não é algo tão sistematizado, sobretudo porque o que antes estava unido à cristologia, a partir do período medieval, foi separado e quase deixado de lado. Aprofundou-se “quem é Jesus”, mas deixou- -se pelo suposto porque Deus se fez homem. Ou melhor, a grande contribuição de Santo Anselmo resumia todo o signifi cado de salvação como salvação dos pecados. Esta ideia perdurou durante todo o segundo milênio, sem maiores apro- fundamentos. Só depois do Vaticano II, o tema tem sido retomado inclusive como integrante da cristologia. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 5. O LUGAR DO SALVADOR NO PLANO DE DEUS Jesus Cristo, filho de Maria, é o Filho de Deus, consubstan- cial ao Pai e consubstancial a nós. É distinto do Pai e do Espírito. É perfeito na plenitude humana. Mas, é distinto de nós que esta- mos ainda a caminho. Ele sintetizou em si a possibilidade histórica máxima de dedicação a Deus e aos homens e às mulheres de toda a história. Como nosso irmão maior, é o iniciador e condutor da nova humanidade rumo à consumação da obra criada, a ser apre- sentada como obra sua, no fim dos tempos, para glória de Deus e felicidade sem fim do ser humano. É Ele quem viveu entre nós. "Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascido de Maria, tornou-se, verdadeiramente, um de nós, semelhante a nós em tudo" (Gs 22). Eterno com o Pai e o Espírito Santo, gerado antes de todo o tempo para ser o Adão perfeito na história (que incluiu sua en- carnação, morte e ressurreição), sem deixar de ser Deus, é nosso salvador por ter recebido do Pai esta missão. Ele tem uma origina- lidade tão própria, que mesmo sendo judeu do primeiro século da era cristã tornou-se um homem universal. Jesus Cristo, em sua vida terrena, viveu a bondade, a miseri- córdia e a solicitude para com todos, especialmente com os pobres e excluídos. Ele teve uma vida de tal modo pró-existente (pro Deo e pro nobis = para Deus e por nós), a ponto de esvaziar-se não só de sua divindade pré-existente desde toda a eternidade, mas tam- 189 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus bém dar a sua vida em favor dos homens e mulheres, de quem se fez irmão. Ele, em tudo, fez a vontade de Deus, pois a colocou como centro e fonte de sua vida. Passou pela vida fazendo o bem. Foi tentado, como todos os outros seres humanos, mas não capitulou, nem mesmo diante da última tentação, livrar-se da morte. Este homem era Deus entre nós (Emanuel). Não fez, entre- tanto, desta condição uma ocasião de privilégios. Esvaziou-se de si mesmo e foi reconhecido por alguns como apenas o filho de carpinteiro, cujos irmãos e irmãs viviam entre eles. Outros se es- pantavam de seu ensino com autoridade, acorriam a Ele para que os curasse de suas doenças, males e outros poderes demoníacos. Anunciou que chegava o Senhorio de Deus e creu que isto aconte- cia por meio de sua pessoa. Fez o bem e reintegrou os excluídos, perdoou os pecadores e consolou os aflitos. Tão humano foi que após a ressurreição começaram a reco- nhecer Nele Deus entre nós (Emanuel). Na leitura retroativa de sua vida, obra e mensagem, descobriu-se Nele, também, o messias prometido, o salvador único. Ele exigiu silêncio sobre certos fatos de sua vida histórica, fatos estes que poderiam explicitar quem Ele era o conhecido se- gredo messiânico (cf. Mc 3,13; 5,43; 8,30; Mt 8,4-9; 9,30; 12,16; 17,9; Lc 5,15). No entanto, adversários, pagãos e, sobretudo, "de- mônios", reconheceram-no como "Filho de Deus", Deus mesmo. Alguns momentos de sua vida, como a transfiguração, as declara- ções do Pai sobre Ele como Filho eleito, o perdão dos pecados (que só Deus podia conceder), a entrega de si como pão partido e vinho derramado (última ceia) etc., poderiam evidenciar sua realidade divina, compreendida após a ressurreição. Todavia, esta kenose de Deus, que chegou a ponto de ser crucificado como herege e subversivo, revelou-o, na ressurreição, como o Deus que salva seu povo. O nome Jesus significa “Deus salva”. Ele realizou em si seu nome. © Cristologia190 O vivente e o vivificar Jesus continua vivo hoje não apenas na memória. Ele está presente no universo cósmico, quando dois ou três se reúnem em seu nome. Os pobres e excluídos, seus irmãos menores, atestam sua presença kenótica. Todavia, Ele é encontrado em todo bem, ou seja, na compaixão, na solidariedade de todos os homens e mulhe- res do mundo que, mesmo sem o conhecerem, buscam a justiça e a paz. Ele é encontrado, de modo público, quando se defendem os direitos humanos, se cuida da saúde e da educação; quando se fortificam a liberdade, a igualdade e a fraternidade; quando se promove a justiça e a paz, sem violência. Hoje, Ele está vivo junto de Deus com os anjos e todos os irmãos que nos precederam na vida. Está vivo, também, com con- tagiante poder de libertação, junto a todos os homens e mulheres de boa vontade, que o acolhem na fé explícita ou implícita. Eleestá vivo, entre nós, na Igreja e, em particular, na Eucaristia. Ele não só está vivo, como também vivifica homens e mulhe- res por meio de seu Espírito, o que o torna contemporâneo nosso. O Espírito é seu defensor junto a nós, ao mesmo tempo que nos faz participar da sua condição filial. Milhares de cristãos, na força do Espírito, o seguem como o Caminho que leva à Verdade e à Vida. Este homem ungido pelo Espírito foi proclamado na Páscoa, Senhor e Cristo. Por isso, continua sendo o mesmo, ontem, hoje e sempre (Heb 13,8). Pré-existia como Deus e fez-se humana ima- gem visível do Deus invisível (Cl 1,15). Nele tudo se sustenta e tudo se encaminha para Ele. A escandalosa divisão entre crentes e não crentes por ques- tões filosóficas, econômicas, políticas e outras, não tem funda- mento senão na própria situação humana. Os homens preferem, muitas vezes, seus ídolos e não buscam "o Caminho, a Verdade e a Vida" que Ele é. Outras vezes, as divisões ocorrem também por- que seus seguidores não o seguem "em espírito e verdade"; defen- 191 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus dem, antes, interesses próprios, manipulando-o a bel prazer, como outrora fizeram os chefes judeus que o condenaram à morte. A Ele se busca de coração sincero na oração incessante, na leitura (e prática) de sua palavra e no empenho pelos pobres e deserdados da terra. Pela vida de Jesus, Deus se aproxima sem condições prévias da humanidade. São João enfatiza: "foi Ele (Deus) quem nos amou primeiro" (Jo 3,16). "Ele nos deu seu filho único, para que todo aquele que Nele crer, seja salvo” (Jo 3, 17; 10,17; 1Jo 4,7). Jesus Cristo, nova relação de Deus conosco, tem também a dimensão de enfrentar o que há de mais negativo entre os seres humanos: a solidariedade no mal. Como pode o ser humano salvar-se, separado Dele, ignoran- do o significado pleno de sua vida? Como pode o homem buscar a Deus e libertar-se dos males que o contagiam? Como reconhecer estes males e reconciliar-se com Deus? Ele é, pois, o caminho. Aquele que comeu com pecadores e publicanos (cf. Mc 2,16; Lc 15,2), que conversou com pecadora pública (Jo 4,1-42), deixou lavar seus pés pela pecadora (Lc 7,36-50), que frequentou o “mau ambiente” dos marginalizados, dos cobradores de impostos, dos endemoniados e, por fim, foi trocado na morte pelo criminoso Barrabás e crucificado entre dois ladrões - é o Filho de Deus que viveu entre nó e se mantém atuante entre nós. Ele nos vivifica. 6. TEOLOGIA DA SALVAÇÃO SOTEREOLOGIA A estaurologia Alguns teólogos, mesmo sem discutirem o sentido de sal- vação, produzem sua reflexão sotereológica centrada na cruz por causa do pecado. Para eles a salvação é estaurológica, quer dizer: é feita a partir da cruz. Esta é uma posição considerável, mas não única. © Cristologia192 A cruz não foi buscada por Jesus. Ela é expressão da rejeição Dele e do plano salvífico de Deus pelos seres humanos. Ela é fru- to de pecado contra Deus, mesmo que Deus tenha tirado partido dela, convertendo-a em sinal de salvação, como compreenderam os primeiros cristãos que nos legaram este patrimônio verdadeiro e consistente. A teologia da cruz aponta a presença do pecado humano, que deve ser redimido e reconhece que Jesus verdadeiramente mergulhou no mundo abjeto dos homens, que não querem reco- nhecer e aceitar Deus, sobretudo pelas suas atitudes. O pecado aqui se apresenta em dois níveis: 1) Pecado direto contra Deus: por querer concorrer com Ele próprio. Pecador, neste sentido, é o ser humano que quer ser Deus, quando é simples homem. Pretende substituir-se a Deus sem poder sê-lo. Pecador é também o que faz das coisas, do poder, do prazer etc., o seu deus; e adora a criatura como se fosse o criador. 2) Pecado contra os filhos de Deus: pecam contra Deus agindo contra seus filhos. A ação salvífica deve levar em conta, então, todos os opressores, dos mais diversos quilates. Desde os que humilham e ferem a dignidade dos filhos de Deus (lembrar de Caim) até aqueles que os oprimem, roubam, extorquem e prostituem os filhos de Deus. Tais pecados permanecem sendo atos crucificatórios, que exigem não apenas o perdão salvífico (Pai, perdoai-lhes. Não sa- bem o que fazem cf. Lc 23,24); exigem, sobretudo, a conversão do coração dos opressores. Quer dizer: A cruz, pela morte de Jesus, se tornou salvadora também para os opressores e injustos à medida que lhes oportuniza a sincera "me- tanoia” (conversão) e dócil aceitação do crucificado/ressuscitado para a mudança da vida. Nela, eles podem reconhecer todos os rostos dos crucificados e pervertidos. Eles podem reconhecer que nas cruzes de suas vítimas se encontra o verdadeiro Filho de Deus (cf. Mc 15,39). 193 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus Esta perspectiva estaurológica, na verdade, reduz o significa- do da encarnação ao pecado e a sua necessária redenção. Deus poderia salvar o pecador de outra maneira? Como São Tomás de Aquino já respondeu, isto não é questão de um condicional. O fato é que o pecado é redimido pela cruz como prova de tão grande amor de Jesus pelos pecadores e por Deus. Não deixa, porém, de ser um amor assimétrico. Uma mentalidade amartiocêntrica criou a afirmação de que todos são pecadores. Todavia, esta perspectiva não é bíblica (in- clusive para os judeus atuais). A bíblia está cheia de relatos de ho- mens e mulheres bons, justos e santos. Aos pecadores, o salvador os justifica e redime. Aos que o seguem, Ele os acompanha e eleva. Homens e mulheres, em todos os tempos e lugares, não são necessariamente pecadores, mes- mo que participem neste mundo de pecado, como Jesus, que, no mundo, se fez um conosco, ou como Maria, sua mãe, e tantos ou- tros justos do Antigo Testamento e Novo Testamento. Convém recordar que se Jesus não pecou não foi porque era Deus. Não pecou porque nem Ele e nem qualquer outro homem é obrigado a pecar. Se assim não fosse, Jesus não seria igual a nós (e nós iguais a Ele). A graça realizadora (processo santificador) A encarnação do Verbo não se esgota na necessidade da cruz como fonte de remissão dos pecados. Mesmo que ela seja salvífica/redentora, nossa fé nunca deixou de afirmar. O que, po- rém, muitos parecem ignorar é o aspecto positivo e propositivo da salvação. Convém recordar que "Deus amou tanto o mundo que de seu filho unigênito para todo aquele que Nele crê seja salvo" (cf. © Cristologia194 Jo 3, 16; 16,27). Foi Deus quem tomou a iniciativa de nos amar. É exatamente por isso que fomos criados. A promessa do salvador é um desejo de Deus desde antes da criação. Portanto, antes de qualquer pecado. Reduzir a vinda de Jesus até nós ao fato do pecado não só apequena o próprio Deus, mas também agiganta de tal modo o ser humano que se torna capaz de condicionar Deus. Aqui valeria a pena aprofundar a questão de justificação não só pela fé e pelas obras, como é a discussão que vem desde a Re- forma, mas o tema deve ser refletido com mais profundidade na Teologia da Graça. Vale, igualmente, reencontrar e consultar os discursos de Bento XVI em 20 e 27 de novembro de 2008 sobre este tema. Se Deus torna justos seus filhos o faz não porque eles são necessariamente injustos e pecadores (ideia muito desenvolvida na teologia medieval). Deus não os criou assim, os homens e as mulheres concretos, necessariamente, não são assim. Se assim fosse, ficaria desautorizado tanto o próprio Deus quanto o signi- ficado da solidariedade e representação de Jesus Cristo no plano divino. Ao contrário, Deus ajuda, com sua graça, o crescimento constante de seus filhos e filhas, que vão se tornando sempre mais justos e santos até a perfeição de poderem viver com Ele. A salva- ção tem fundamentalmente um aspecto positivo. Jesus Cristo, o salvador querido por Deus Mais que insistir no meio (redenção/salvação pela cruz ou realização/plenificação humana), nossa ênfaseagora está no autor da salvação: Jesus Cristo. Jesus é o nosso único salvador. E o é desde o início da cria- ção. Fomos criados Nele, por Ele e para Ele, desde toda a eterni- dade (cf. Ef 1,3s). E este é o plano de Deus: fomos criados por Ele, para sermos salvos por Ele. 195 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus Você pode retomar esta ideia na Unidade 3 de Antropologia Te- ológica. O Verbo salvador foi constituído salvador antes de existirem as criaturas que seriam salvas por Ele. Primeiro surgiu o salvador; depois surgiriam os que Ele haveria de salvar. Muito antes do peca- do, estava já decidido por Deus o papel salvífico do Verbo eterno, considerando que só por meio Dele seríamos salvos. E esta é a razão primeira de sua encarnação. Sem dúvida, é o nosso salvador quem nos faz criaturas novas, realizadas na força do Espírito, para participação da vida da Trindade. Ao assumir nossa carne, nossa realidade humana, Jesus Cris- to abre duas perspectivas: 1) Vem santificar (além de sanar o pecado e suas consequ- ências) toda a realidade cósmica, não apenas pela sua presença. Ele também se tornou matéria cósmica (car- ne humana). A natureza cósmica e, particularmente, a humana, detinha, por vontade do Criador (como dizia Santo Irineu), a capacidade de conter o próprio Deus em forma humana. Aquele da Trindade que, saindo de si, desceu e se fez um dos nossos, na verdade, não precisa- va assim proceder para nos salvar. Mas, o fez em gesto de amor, esvaziando-se a si mesmo para nos enriquecer (cf. Fl 2,8). 2) Nesta primeira perspectiva, ao se tornar cósmico pela encarnação no seio de Maria, e, sobretudo, por sua res- surreição, Cristo aperfeiçoa e completa toda a criação, dando-lhe de modo escatológico o acabamento (consu- mação) final. Ele leva o ser humano e a natureza toda ao cumprimento do plano salvífico de Deus. Por outro lado, Jesus Cristo é o nosso Salvador porque leva o ser humano e toda a criação à sua plenitude, sendo o modelo exemplar e evidenciando toda a possibilidade da carne humana assemelhar-se a Deus. © Cristologia196 Nosso salvador torna-se, então, o iniciador da nova humani- dade como homem perfeito e plenificado aos olhos do Pai o Cria- dor. Ao constituir seu “corpo” do que tanto fala São Paulo eleva cada ser humano e todos à perfeição que a ressurreição lhe confe- re (cf. Jo 12,32; Gl 3,28). Desse modo, ao se pensar em tantos homens e mulheres de seu tempo (Zacarias, Isabel, João Batista, Simeão, a profetisa Ana, José seu pai, aos quais a bíblia chama de justos, além dos apósto- los, Marta, Maria, Lazaro, as mulheres que o serviam etc.), por que Jesus haveria de pensar neles como necessariamente pecadores? Ao pensar em tantos outros homens e mulheres que a Igreja apresenta como modelos de santidade, na esteira de Jesus, como não reconhecê-los em sua perfeição, plenificado no e pelo Salva- dor? Fora do cristianismo houve e há, também, tantos homens e mulheres que se tornaram tão humanos (humanizados e humani- zadores), que já na história Cristo morava neles, salvando-os, isto é, levando-lhes à humanização plena. Os Padres gregos diriam que pela ação do Espírito Santo também eles estavam sendo diviniza- dos; os latinos diriam: deificados. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Nós preferimos dizer, em consonância com nosso tempo, à luz da fé: o salvador os estava salvando para que eles atingissem sua meta, ver a Deus, ou seja, se- rem salvos pelo que os santifi ca e os tornavam plenamente humanos. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 7. CRISTO SALVADOR ATUANDO ENTRE NÓS A presença de Deus entre nós, por meio de um da Trindade feito um de nós, significa explicitamente o desejo de Deus em nos salvar. No Antigo Testamento, lembrando que isto já foi dito ante- riormente, os grandes gestos salvíficos eram realizados em favor 197 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus do povo ou de tribos/nações. Com a presença do Verbo, relatado no Novo Testamento, a ação divina é personalizada nas curas, nos milagres, nos perdões, nas reintegrações de marginalizados, na dedicação concreta ao próximo e até ao inimigo. A (nova) mani- festação de Deus individualiza e personaliza seus filhos. Deus não pode mais ser considerado uma força cósmica genérica. Agora, Ele é salvador por meio de cada pessoa que, por sua vez, pertence ao “corpo de seu Filho”. No decorrer do tempo, enfatizou-se (por demais) a salvação espiritualista no céu, após a morte. Isto em parte significou esva- ziar o processo salvífico, desde o presente até o céu. Ao mesmo tempo, reduziu-se a salvação à questão dos pecados. Entrementes, é importante recordar que a salvação inclui a salvação também no presente. Isso significa que a encarnação de Jesus não é um processo que se completou historicamente na cruz. Ela é um processo, cujo início está "desde antes da criação" (cf. Ef 4,3-14), densificou-se durante a vida histórica do Verbo En- carnado, mantém-se atuante e produzida pela ação do Espírito Vi- vificador e só se completará na parusia. Vale lembrar que o presente histórico é o tempo do "hoje, pois, a salvação entra nesta casa". Assim, a salvação tem e mantém uma incidência histórica. Para saber mais, leia Helcion Ribeiro. Por uma sotereologia com incidência histórica, Studium. Revista Teológica, Curitiba, ano 1, n. 1, 2007 p. 69-104. Se o Senhorio de Deus já está chegando, pela pessoa de Je- sus Cristo, ele se prolonga por toda parte até os confins do mundo, não só porque é ordem/mandato missionário (cf. Mt 28,19-20), mas porque o próprio Filho e o Espírito Santo levam adiante este Senhorio salvador. © Cristologia198 A presença salvadora de Cristo, seja pela Igreja, pelas religi- ões, seja por todos os que fazem o bem, vai se evidenciando: a) na superação dos males (físicos, morais e espirituais); b) nas ações libertárias (em geral desconhecidas e/ou ig- noradas); c) no desenvolvimento humano do tempo presente; d) na construção de uma sociedade participativa e justa para todos; e) na produção da paz; f) no amor ilimitado ao próximo. Desse modo, o processo salvífico do Emanuel continua, so- bretudo, na ação dos cristãos que não apenas rezam o Pai nosso (venha o vosso reino, dá-nos o pão de cada dia, livrai-nos do mal). O Deus salvador está entre nós quando, em resumo, o evangelho é vivido intensamente. Isto é tornar atuante a ação salvadora de Deus, que é dom e missão pascal do Cristo ressuscitado. A totalidade do processo salvífico não se esgota no utópico aperfeiçoamento deste mundo. O "meu reino não é deste mundo", diz Jesus (cf. Jo 18,36), mas ultrapassa-o. A fé em Cristo nos faz crer que a realização última do ser humano (salvação: ver a Deus) está em Deus, como espaço que Ele mesmo preparou desde sempre (cf. Jo 14,23). Aí não haverá mais choro, nem lágrima (cf. Ap 1,4). Nossa salvação última será o resultado da ação de Cristo que nos apresen- tará todos ao Pai, sem que nenhum dos que o Pai lhe dera tenha se perdido (cf. Jo 6,39). Então, será a festa eterna, o banquete de todos os convidados do Pai. Assim, a "u-topia" se transformará em “topia”, homens e mulheres, porque salvos por Cristo, encontrarão seguros o coração de Deus, morada definitiva e eterna. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Você certamente conhece a palavra “topografi a”, que signifi ca a ciência que es- tuda os lugares. Topos, palavra grega que signifi ca “lugar”; u-topos, então vai signifi car “lugar nenhum”. Utopia também serve para designar uma vontade que não se realiza em lugar nenhum. A frase: “a ‘u-topía’ se transformará em ‘topia’” quer dizer: “o irrealizável tornar-se-á realizável”. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 199 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus Cristo é o Caminho, para a Verdade e para a Vida(cf. Jo 14,6). Ele se faz o caminho, pois é Deus e verdadeiro homem. Tornou-se o mediador, por ser Deus entre nós (Emanuel) e por ser homem pleno diante de Deus. Nós professamos que não há outro salvador senão Jesus Cristo. Isto não implica dizer que Deus não se sirva de outras situa- ções ou pessoas para continuar o processo salvífico. A singularida- de salvífica de Jesus Cristo pertence ao centro do plano de Deus. A presença de outras situações é identificada, como você es- tudou na Unidade 1 deste curso, pelo próprio Deus: a) ao fazer alianças salvíficas em favor assimetricamente, de seu povo, dando-lhe gado-terra-filhos e proteção; b) ao produzir expectativas messiânicas para que oprimi- dos e exilados possam voltar à liberdade – que só será radical por meio do messias definitivo; c) por meio de sacerdote, patriarcas, reis e, sobretudo, profetas, tiveram um papel de destaque, mesmo ao an- tecipar o revelador definitivo; d) porque na Sabedoria divina foi reconhecido como dom salvador em prol dos que eram tementes a Deus. Mas, a presença salvífica de Deus nunca se limitou ao povo judeu. Deus é o Deus de todos. Se em Israel se concentrou, exem- plarmente, a divina ação salvadora, não se pode esquecer de cen- tenas de outras situações salvíficas do mesmo Deus, por meio até de sinais (até aparentemente) ambíguos. Como não reconhecer salvificamente o valor de outras religi- ões, de outros sábios e profetas, do surgimento de valores crísticos ("liberdade, igualdade e fraternidade", dignidade da mulher, direi- tos humanos, superação do analfabetismo e de tantas doenças, democratização etc.). Jesus, em sua encarnação, realizou gestos salvíficos ao reintegrar pessoas, ao anunciar o Senhorio de Deus chegando e ao reuni-las fraternalmente. Anunciou a libertação aos cativos e © Cristologia200 passou fazendo o bem, até a morte na cruz. Além disso, continua salvando por meio de tantos outros homens e mulheres, que se empenham no bem humano, por meio de ações positivas e cons- trutivas da sociedade. Porém, isto é tudo?! O inquieto coração humano se realiza- ria com estas conquistas... e depois morreria acabando tudo? Nós cristãos temos, na fé, a certeza de que a morte não põe fim à vida, mas a transforma. Assim, nossos olhos se erguem para Deus e encontramos Cristo, o Salvador. Ele é nossa esperança e nossa certeza. Ele revelou seu papel econômico-salvífico, desde sempre. Ele é, para nós, o primogênito dos vivos e dos mortos. É nosso exemplo e representante genuíno, pois sintetiza em si a história humana e cósmica que se apresenta já salva por Deus. Ao mesmo tempo, atrai a si todos os irmãos (cf. Jo 12,32), a fim de integrar o "corpo de Cristo", como dizia São Paulo. O Verbo, que se fez humano em Maria, mostrou-se singular no processo de sal- vação que Deus quer (quis e há de querer) para todos os homens. 8. JESUS, O EMANUEL E SALVADOR NOSSO Tanto para a fé quanto para a cristologia, Jesus Cristo perten- ce a uma realidade complexa e misteriosa. Ele é muito mais que um fato, um evento ou uma figura histórica com um drama. Ele não é uma ideia nem primeiramente um fundador de religião. Não é um mito nem um programa moral ou de moralidade. Ele é antes de tudo uma pessoa (ao mesmo tempo humana e divina). Como pessoa humana, é filho da humanidade, nascido de mulher (cf. Gal 4,4), nascido de Maria, a esposa de José, pelo ano 7/6 antes da era cristã. Natural de Nazaré, viveu na Galileia. "Tra- balhou com mãos humanas, pensou com a inteligência humana, agiu com a vontade humana, amou com o coração humano" (Gs 22b). Pelos 30 anos procurou o batismo de João e, a partir daí, passou a anunciar o Senhorio (Reino) de Deus. Pregou o evangelho 201 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus revelando Deus por meio da palavra e de sinais, curou doentes, solidarizou-se com os excluídos e trabalhou pela inclusão social. Em resumo, “passou pela vida fazendo o bem” (cf. At 10,38). Viveu para Deus, de quem procurou descobrir e fazer sua vontade. Amou a Deus como nenhum outro homem amara antes. Morto na cruz foi ressuscitado pelo Pai – sinal de que seu aparente fracasso mes- siânico tinha outro significado. Assim, aquele que expulsara demônios, libertara dos ma- les, acolhera os pecadores, aceitara as chamadas "pessoas de má vida" em sua companhia e até fazia refeições com elas, passara desde a ressurreição a ser visto numa complexa singularidade. O significado de suas ações e de suas palavras adquiria um sentido não só novo, mas muito mais profundo. Na leitura retrospectiva de sua vida, lida à luz da páscoa, descobriu-se nele alguém, real- mente, enviado por Deus e em quem se realizavam as antigas pro- fecias. Como ele próprio ensinara, sua vida devia ser lida à luz do passado, das Escrituras. Mas, ao mesmo tempo, ela devia ser uma leitura projetiva por causa dos fatos novos gerados pela própria ressurreição. Jesus, o filho da raça humana, fora tão singular que se des- cobriu nele uma humanidade tão profunda que não era apenas humana. Ele era Deus mesmo, sem deixar de ser humano. Nele se descobriu uma vida tão humanamente intensa que revelava a "invisibilidade do Pai", em sua própria existência. E aí afloraram os profundos valores humanos daqueles que foram criados como imagens visíveis do próprio Deus invisível. Pelo lado negativo, compreendeu-se que "ele se fez pecados por nós" (cf. 2Cor 5,12), mas ele próprio não pecou (cf. Hebr 4,15). Pelo lado positivo, mais que os grandes valores da compaixão, misericórdia, solidariedade, perdão, amor, alegria de viver etc., ele apresentou e revelou Deus como Pai, Senhor de um projeto salvífico para todos. Ele próprio apresentou-se como o que veio como expressão do amor de Deus por todos, bons e maus, justos e pecadores (cf. Mt 5,45). © Cristologia202 Nesse Jesus, seus amigos mais pessoais – sejam eles após- tolos, discípulos e, ou mulheres que acompanhavam seu serviço ao Reino e à evangelização o reconheceram com Senhor, Messias, mais que profeta, Filho do Homem ou Filho de Deus mesmo. Depois, começou a ser reconhecido como Deus mesmo. Aquele homem não era um deus; Ele era Deus mesmo, em igual natureza com as duas outras Pessoas da Unitrindade. A Igreja foi reconhecendo nele aquele um da Trindade que esteve conosco, viveu e morreu por nós. Contudo, "em tudo ele foi igual a nós" (cf. Hebr 4,15), ou seja, não foi um homem apa- rente (docetismo) nem Deus que tomou o lugar da alma humana (Apolinarismo, do esquema Logos-Sarx), nem alguém que se pa- recia com Deus (homoiousios). Ele que sem deixar de ser Deus, humilhou-se tomando carne humana (cf. Fil 2,6s) – uniu em si tão intimamente as naturezas humana e divina. Fez-se, por milagre di- vino, um só e mesmo homem-Deus. Sem deixar de ser totalmente Deus, tornou-se, desde o seio de Maria, totalmente humano, tão unido que nada podia separá-lo nem dividi-lo, como também nada poderia fundir suas naturezas ou misturá-las. Assim, nós confessa- mos hoje: ele, unido hipostaticamente, em suas naturezas divina e humana de modo inconfuso, inseparável, indiviso e imutável, é radicalmente humano como nós e divino como Deus. A originalidade de Jesus, porém, não é fonte senão de um amor, serviço a Deus e à humanidade. Um serviço de amor a Deus porque ele (junto com o Espírito Santo) é uma das mãos criadoras do Pai em relação a tudo quanto existe. Por ele e nele foram cria- das todas as coisas (cf. Col 1,16). E mais ainda: nele elas subsistem (cf. Col. 1,17). A criação, em seu longo processo de evolução, só acabará quando tudo estiver consumado para ser entregue ao Pai como obra de Jesus (cf. 1Cor 15,28s). Ela, a criação, não é um fato acabado, mas um processo contínuo, com tantos mistérios que – para alguns – parece estar abandonada ao caos sem nenhuma di- retividade. Os cristãos, mesmo, não sabendo os "como", sabem 203 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristono plano de Deus que Jesus, o Cristo e Senhor do universo, dirige a criação e sua evolução, num processo rumo à plenitude radical: sua consuma- ção em Deus - onde Deus estará em tudo (pan-en-teismo), sem que tudo se torne Deus (panteísmo). A singularidade de Jesus em ser Cristo homem-Deus está relacionada ao fato de ele ser o ungido do Pai pelo Espírito. A promessa de Deus fundamentada no profeta Joel "naqueles dias derramarei o meu espírito" (Jl 3,2; cf. At 2,16ss), ou em Ezequiel "dar-vos-ei um novo coração, porei no vosso íntimo um espírito novo" (Ez 36,26), leva a comunidade de fé a crer que Jesus é o por- tador do Espírito de Deus. E o é, desde sua concepção "O Espírito Santo virá sobre ti (Maria) [...] e o Santo que nascer será chamado Filho de Deus (Lc 1,35"), passando pelo batismo João viu o Espírito de Deus descendo sobre ele (Lc 3,16), manifesto em seu ministé- rio evangelizador até ser entregue no alto da cruz (Hebr 9,14) e depois dado à Igreja (cf. At 2,4ss). Como diz Santo Irineu, o Espírito acostumou-se gradativamente a morar em Jesus, para depois pas- sar definitivamente a in-habitar em nós. A singular consagração no Espírito fez de Jesus um ser único, a ponto de "não haver sob o céu nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos" (At 4,12; cf. 2,21). Em obe- diência condicional, aquele que se humilhara para ser um de nós e um conosco (cf. Mt 1,23) é o Emanuel. (Deus-conosco). Citando Kierkegaard, Bruno Forte repete: Que um homem seja Deus, que diga ser Deus e se apresente como Deus, isto constitui o escândalo por excelência [...]. O que é infinitamente importante é o fato de que Deus viveu aqui na terra como um homem (FORTE, 1985, p. 309). Tal ousadia de Deus, no seu Filho encarnado, só poderia ser obra criativa do Espírito que o assumira, consagrando-o e o acom- panhando. Esta singularidade do Emanuel faz realçar em Jesus sua condição de iniciador da nova humanidade. Não em vão se diz dele: o primogênito da nova criação. Nele, o antigo "adão" (ser humano) encontra-se como "nova criatura", possuída pelo Ruah © Cristologia204 Santo. Jesus torna-se, por um lado, mais um dos milhões de ho- mens e mulheres da terra. Por outro, nele Deus faz ver sua ima- gem. E a imagem de Deus, visível no homem Jesus, o possuído pelo Espírito, o faz ser o primeiro de uma multidão "maior que as estrelas do céu, que não se podem contar" (cf. Gen 15,5 promessa a Abraão). Como o primeiro da nova criação, ele tem a respon- sabilidade da primogenitura porque é um igual aos irmãos. Sua responsabilidade não é nem a da paternidade (ele não é Pai) nem a da filialidade (ele não é filho). Seu lugar, de direito, é a do pri- mogenitura, pois, feito irmão, é aquele que se ocupa simultanea- mente, com as tarefas de cuidado e redenção de todos. Para isto, o Espírito que assiste. Para muitos cristãos e isto foi predominante no segundo mi- lênio, Jesus se fez um de nós para nos salvar dos pecados, pela morte na cruz. Esta afirmação negativa da encarnação foi feita ini- cialmente por Tertuliano (220) e se afirmou, sobretudo, no ociden- te medievo. Todavia, ela não é tudo, pois como se vem afirmando inúmeras vezes nesta cristologia, o sentido da encarnação está no fim do plano de Deus e esse consiste em nossa participação na vida divina, em podermos ver a Deus (visão de Deus) face a face, o que só é possível, como diziam os Santos Padres, pela nossa divi- nização. Nesse sentido, o Verbo se fez homem para que o homem se tornasse divino. Quando se perde a perspectiva da consumação no desígnio salvífico, substituindo-a pela visão do pecado, anula-se o papel de Jesus não só como iniciador da nova humanidade quanto se per- de a esperança de que ele possa levar a cabo a missão que o Pai lhe dera: ser o salvador de todos, sem que nenhum se perca (cf. Jo 17,12). É preciso lembrar: esta missão pertence ao Verbo desde antes da criação do mundo (cf. Ef 1,3ss). A missão de recapitular tudo em Cristo é a ação própria do consumador desta missão. E nisso se encontram as razões da en- carnação e não na eventualidade do pecado, o que demonstraria 205 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus força condicional do próprio pecado sobre a ação de Deus. Para encaminhar o mundo, o ser humano e toda a criação à visão de Deus e à simultânea redenção da natureza (cf. Rom 8,19ss), o Ver- bo se fez um de nós. E como um de nós ele se tornou o Caminho que leva à Verdade e à Vida. Tal serviço ele tem a feito de modo a poder dizer: "vim, não para ser servido, mas para servir" (...) ou então "se o grão de trigo não morre, não produz fruto" (Jo 12,24) e ainda mais: "Pai, aqueles que me deste, quero que, onde eu estou, também eles estejam comigo, para que contemplem minha glória, que me deste, porque me amaste antes da criação do mundo" (Jo 17,24). Deus amou tanto o mundo que lhe deu seu Filho único (cf Jo 3,16). O Filho único amou ao extremo todos os seus irmãos, inclusive os que se fizeram (e se fazem) seus inimigos: "ninguém tem amor maior do que o que dá a vida pelos seus" (Jo 15,13). Para expressar esse amor, Schürmann cunhou a expressão "pró- -existência". E ela passou a ser explicada como amor radical de Jesus por Deus ("pro Deo") e por nós ("pro nobis"). Acercando-se de todos, Jesus, o Verbo Encarnado, foi-se fazendo "próximo" de todos, acolheu doentes e aleijados, pobres e pecadores, mulhe- res e crianças, marginalizados e homens e mulheres "de bem". Fez de si um lugar para os famintos, cansados e fatigados. Acolheu-os que sentiam pesado o fardo de vida. Promoveu a reconciliação. Em resumo, passou pela vida fazendo o bem. Por outro lado, serviu a Deus com sua vida, buscou sua vontade, mesmo quando não a compreendeu. Fez de Deus o centro de sua vida. Passava noites em oração. Amou-o a ponto de entregar por Ele e pelos seus ir- mãos sua própria vida "Minha vida ninguém a tira, sou eu quem a dou livremente". Foi verdadeiramente homem exemplar. Foi nele que "Adão" encontrou-se consigo mesmo, pois viu nele um ho- mem capaz de fazer sempre o bem e nunca se afastar de Deus. A exemplaridade do "novo adão" não é algo apenas histórico, pois a atitude do Verbo de humilhar-se, fazer-se um de nós e ir ao ex- tremo de entregar-se na cruz pelos pecadores é um ato da divina © Cristologia206 caridade de Deus. A solidariedade aponta para a exemplaridade de Jesus como uma questão que vem dos inícios da criação e se completa no fim da história. Ao afirmar-se que Jesus é modelo de vida e perfeição, de modo algum se deve empregar o conceito de perfeição da filosofia (grega especialmente, que subjaz no inconsciente ocidental e cris- tão). Ele é "o novo adão", nascido filho da humanidade, que tam- bém sofreu nossas dores e nossos limites. Foi um homem, situado no tempo e no espaço. Aprendeu a crescer em idade, sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens (cf. Lc 2,52). Pelas limitações e sofrimentos, aprendeu a obedecer a Deus "e, levado à perfeição tornou-se para todos os que lhe obedecem princípio de salvação eterna, tendo recebido de Deus o título de sumo sacerdote, segun- do a ordem de Melquisedec” (Hebr 5, 8.10). A vida exemplar de Jesus não é apenas uma questão de ensi- namento. Antes, é uma realidade de antecipação histórica e esca- tológica de sua vontade – enquanto primogênito, consumador da criação, modelo de vida de busca da profunda realização humana. Há uma dimensão de pequenas e grandes, de cotidianas e univer- sais causas em Jesus à medida que ele se torna – e é percebido – como resposta às grandes aspirações humanas, como supressão da fome, da miséria da doença, da morte e do fracasso. Olhar para o projeto de Jesus é buscar a justiça, o perdão, a reconciliação, a fraternidade e a participação, que tornam a vida dignitosa. Jesus é fonte de uma realização humana ainda maior: a vida feliz, uma profunda aspiração humana, que ele a aponta como possível só em Deus. A esperança e desejomais radicais do coração humano por meio de Jesus realizam-se na promessa e na concretização do projeto de Deus: o ser humano a ser salvo por meio de Jesus. E esta salvação tem não só um nome, mas uma re- alidade: viver diante de Deus face-a-face - não foi assim que Adão e Eva viveram no paraíso até buscar amores menores que os des- viaram de Deus? 207 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus As mais profundas aspirações humanas e seus desejos mais radicais são apresentados por Jesus ao Pai. Esse Jesus é aquele "que, nos dias de sua vida terrestre, apresentou pedidos, súplicas, com veemente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte; e foi atendido por causa de sua submissão” (Hebr 5.7). Ele, que fora provado em tudo como nós, é o sumo sacerdote que se compadece de nós, diante do Pai (cf. Hebr 4, 15-5,2), a fim de que ninguém pareça, mas todos tenham a vida eterna (cf. Jo 5,24), ou seja, participem definitivamente da vida em Deus, quando estive- rem "no novo céu e na nova terra" (cf. Ap. 21,1). Pela solidariedade e serviço, pelas experiências de vida e ofertas sacerdotais, Jesus transcende todas as nossas realidades e as apresenta ao Pai. Do Pai ele trouxera não apenas a revelação de quem é Deus e qual seu plano, mas ainda mais: trouxe-nos amor salvífico de Deus. Desse modo, Jesus, o verdadeiro Emanuel (Deus conosco), tornou-se o grande mediador entre Deus e os homens, nessa aliança nova, definitiva. (cf. Hebr 9,15; 12,24) e mostra sua longanimidade, para exemplo dos que haveriam de crer nele e re- ceber a vida eterna (cf. 1Tm 1,16). A fé e a teologia (cristologia) não podem senão reconhecer que aquele Jesus, filho de Maria, humano como nós e filho eterno de Deus, não é senão uma mesma e única pessoa, para a glória de Deus e nossa salvação humana e escatológica. Nele encontramos um homem de extraordinária criatividade e um Deus amoroso, ca- paz de ser "o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo 14,6), o primogêni- to de toda a criação (cf. Rom 8,29, Col 1,18), o consumador da cria- ção (cf. Hebr 9,26), novo adão (cf. 1Cor 15,45; também Ap 22,13) e realizador das mais profundas aspirações humanas que vão desde o nosso cotidiano até a definitividade de nossa vida. © Cristologia208 9. SEGUIR JESUS Nenhuma cristologia, hoje, pode negligenciar o apelo ao se- guimento de Jesus. Da interrogação de André sobre onde mora Je- sus decorreu a resposta: “vinde ver”. E ele foi e passou a tarde com Jesus. Daí em diante não o abandonou mais (cf. Jo 1,35-42). O con- trário fez o jovem rico, que tinha muitos ídolos (cf. Lc 18,18-30). Conhecer Jesus só faz sentido se for para segui-lo. Conhe- cê-lo não é primeiramente saber o que Ele foi nem aderir a uma doutrina, ou ser membro de uma igreja cristã, antes é ser capaz de reconhecer sua pessoa e, Nele, "estas coisas não reveladas aos sábios e aos entendidos, mas aos pequeninos" (Mt 11,25). Conhecer Jesus para segui-lo é aceitar concreta e existencial- mente seu projeto de vida: ser criatura nova, filho(a) de Deus ou verdadeiramente humano, como Ele foi. Conhecê-lo para segui-lo implica em fazer-se membro efetivo da grande família de Deus, a nova comunidade onde valem as pessoas humanas à luz de Deus, como irmãos entre si. Conhecê-lo para segui-lo envolve fazer a vontade de Deus acima de tudo. Isso significa saber centrar em Deus seu querer e seu agir, esvaziando-se de si mesmo ou "perdendo sua vida", para ganhá-la enriquecida (cf. Mt 16,26). Desse modo, seguir Jesus é amar como Ele amou a Deus e ao próximo, sobretudo aos mais necessitados. Seguir Jesus é implantar o grande projeto de salva- ção de Deus, ali no cotidiano de cada um, acolher o outro, porque todo o outro é imagem de Deus e irmão do próprio Jesus Cristo. É comprometer-se, localmente, na construção do Reino de Deus. Assim, estudar cristologia implica em amá-lo e segui-lo; es- cutá-lo, a seus pés escolhendo a melhor parte (cf. Jo 10, 42) e an- tecipando as bem-aventuranças já na terra. E como só Ele é o sal- vador definitivo, deixar-se reconciliar com Ele, receber seus dons e reparti-los com os irmãos. Segui-lo é deixar-se cristificar para que o mundo seja cada vez melhor, até sua definitividade, quando Cris- 209 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus to der por consumada sua obra, e apresentar tudo ao Pai (cf. 1Cor 15), com o cuidado que não se perca nenhum dos que o Pai lhe entregou (Jo 6,39). É, por fim, acolher para amá-lo e segui-lo com o grito confiante: "Maranatha". Amém! Veja a seguir dois excelentes textos que enriquecem seu aprofundamento teológico: Jesus de Nazaré, o Crucificado ressuscitado, é o Filho de Deus em forma de um ser humano real e contingente: dentro da medida existencial de uma vida humana histórica, verdadeira e completa, Ele nos trouxe - por meio de sua pessoa, pregação e praxe de vida, e por sua morte - a viva mensagem do ilimitado dom de si mes- mo, que Deus é em si mesmo e quer ser também para nós, seres humanos. A nossa história, e dentro dela o que aconteceu com Jesus, é fato contingente, não necessário. Todavia, Deus não seria Deus sem esse acontecer histórico. Por isso, esta história, a nossa (que não podia ter acontecido), é, todavia, o único caminho realista para falarmos alguma coisa com sentido sobre a essência de Deus. Pelo dom histórico de si mesmo, aceito pelo Pai, Jesus nos mostrou quem é Deus: um “Deus humanisssimus”. Como o homem Jesus pode ao mesmo tempo ser para nós a figura de uma “pessoa divi- na”, o Filho, presente por imanência total, que transcende o nosso futuro, isso é para nós um mistério, a meu ver teoricamente inson- dável, apesar de ter sido vivido por Jesus de Nazaré de uma forma para nós não contraditória e até cheia de sentido. Às vezes está mesmo na hora - e que hora santa! - de louvar e adorar em silêncio, e de nos lembrarmos criticamente da grande tradição da “teologia negativa”. Nós, afinal, depois de tudo o que sabemos sobre Ele, não sabemos quem Deus é (SCHILLEBEECKX, 2008, p. 674). Quando, no movimento que vai do presente para Cristo, um ho- mem supera a prova do escândalo e se decide a reconhecer no hu- milde Nazareno o Salvador do mundo, centro e medida da história, os seus olhos se “abrem” (cf. Lc 24,31) e se tornam capazes de cap- tar, mais profundamente do que é “visível”, a presença e a força do movimento inverso, que vem de Cristo e de sua história irrepetível para o nosso “hoje”, fazendo Dele um “hoje” de salvação na irrup- ção do dom libertador de Deus. A confissão da singularidade de Jesus Cristo abre-se então à experiência atual, vivificante e alegre, da graça que Nele foi dada aos homens, e vive o encontro, trans- formador e exigente, com Aquele cujo caminho seguimos. “Hoc est Christum cognoscere, beneficia eius cognoscere” (Melanchton). O verdadeiro conhecimento de Cristo é a experiência do bem que Ele é para nós, e dos frutos de vida plena que, Dele, glorificado pelo Pai, promanam para aqueles que o acolhem na audácia da fé. O reconhecimento da singularidade de Jesus traduz-se assim na ex- © Cristologia210 periência de sua contemporaneidade: Jesus, humilde e redentor, faz-se presente a nós, aqui e agora, em todo poder contagiante de seu caminho de libertação (FORTE, 1986, p. 326). 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Leia as afirmações a seguir, assinalando as verdadeiras com “V” e as falsas com “F”: a) ( ) Jesus Cristo é o iniciador e condutor da nova humanidade rumo à consumação da obra criada, a qual será apresentada como obra sua, no fim dos tempos, para glória de Deus e felicidade sem fim do ser humano. b) ( ) Eterno com o Pai e o Espírito Santo, gerado antes de todo o tempo para ser o Adão perfeito na história (que incluiu sua encarnação, morte e ressurreição), ao deixar deser Deus, recebeu do Pai a missão de ser nosso salvador. c) ( ) Esta afirmação pertence ao Concílio Vaticano II: “Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascido de Maria, tornou-se, verdadeira- mente, um de nós, semelhante a nós em tudo”. d) ( ) Na leitura retroativa de sua vida, obra e mensagem, descobriu-se em Jesus o messias prometido e o salvador único. e) ( ) Pela vida de Jesus, Deus se aproxima em condições prévias da huma- nidade. São João enfatiza: “Ele (Deus) quem amou primeiro seu Filho” (Jo 3,16), por isto “ deu seu filho único, para que todo aquele que Nele crer, seja salvo”. 2) Assinale a única alternativa falsa: a) Para alguns teólogos, a salvação é estaurológica, quer dizer: é feita a par- tir da cruz, por causa do pecado. b) O homem, que busca a Deus, pode por si só libertar-se dos males que o contagiam, reconhecer estes males e reconciliar-se com Deus. c) A cruz é fruto de pecado contra Deus, mesmo que Deus tenha tirado partido dela, convertendo-a em sinal de salvação. d) Alguns teólogos, mesmo sem discutirem o sentido de salvação, produ- zem sua reflexão sotereológica centrada na cruz. e) A cruz de Jesus tornou-se salvadora também para os opressores e injus- tos à medida que lhes oportuniza a “metanoia” (conversão) e a aceitação do crucificado/ressuscitado para a mudança da vida. 211 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus 3) Assinale a resposta correta: a) A perspectiva estaurológica não reduz o significado da encarnação ao pecado e a sua necessária redenção. b) A mentalidade amartiocêntrica criou a afirmação de que nem todos são pecadores. Todavia, esta perspectiva é bíblica (inclusive para os judeus atuais). c) Jesus não pecou porque era Deus. Não pecou porque nem Ele e nem qualquer outro homem é obrigado a pecar. d) Conforme Ef. 1, 3 ss, a promessa do salvador é um desejo de Deus desde antes da criação. Portanto, antes de qualquer pecado, fomos criados por Ele, para sermos salvos por Ele. e) Ao se tornar cósmico pela sua encarnação no seio de Ma- ria, e, sobretudo, por sua ressurreição, Deus Pai aperfeiçoa e completa toda a criação, dando-lhe de modo escatológico o acaba- mento (consumação) final. 4) Assinale a única alternativa errada: a) Pela encarnação (que inclui vida e morte) e ressurreição, Jesus torna-se o iniciador da nova humanidade como homem perfeito e plenificado aos olhos do Pai, o Criador. b) Fora do cristianismo há homens e mulheres que se tornaram tão huma- nos (humanizados e humanizadores), que já na história Cristo morava neles, salvando-os, levando-lhes à consumação plena. c) Nós professamos que não há outro salvador senão Jesus Cristo. Isto não implica dizer que Deus não se sirva de outras situações ou pessoas para continuar o processo salvífico. d) A presença de Deus entre nós, por meio de um da Trindade feito um de nós, significa explicitamente o desejo de Deus em nos salvar. e) Jesus, em sua encarnação, não realizou gestos salvíficos ao reintegrar pessoas, ao anunciar o Senhorio de Deus chegando e ao reuni-las frater- nalmente. 5) Leia as afirmações a seguir, assinalando as verdadeiras com “V” e as falsas com “F”: a) ( ) Nós cristãos temos, na fé, a certeza de que a morte não põe fim à vida, mas a transforma: nisto reconhecemos um gesto de salvação por meio de Cristo Jesus. b) ( ) O Verbo, que se fez humano em Maria, mostrou-se singular no pro- cesso de salvação que Deus quer (quis e há de querer) para todos os homens. c) ( ) A cristologia, hoje, pode negligenciar o apelo ao seguimento de Je- sus. Conhecer Jesus só faz sentido se for para segui-lo. Conhecê-lo não é primeiramente saber o que Ele foi nem aderir a uma doutrina, ou ser membro de uma igreja cristã. Conhecer para segui-lo é aceitar concreta e existencialmente seu projeto de vida: ser criatura nova, filho (a) de Deus. d) ( ) No AT, Sabedoria divina foi reconhecida como dom salvador em prol dos que eram tementes a Deus. © Cristologia212 e) ( ) Na história de Israel, concentrou-se, exemplarmente, a divina ação salvadora; porém, há milhares de outras situações salvíficas do mesmo Deus, por meio até de sinais (até aparentemente) ambíguos, em outros povos. Gabarito Depois de responder às questões autoavaliativas, é impor- tante que você confira o seu desempenho, a fim de que saiba se é preciso retomar o estudo desta unidade. Assim, confira, a seguir, as respostas corretas para as questões autoavaliativas propostas anteriormente: 1) e 2) b 3) d 4) e 5) b 11. CONSIDERAÇÕES Nesta última parte da unidade, estudamos sobre o significa- do salvador de Jesus Cristo, homem e Deus verdadeiro e, ao mes- mo tempo, no plano de Deus. Desse modo, no decorrer deste estudo, você deve ter perce- bido o quanto é importante voltar a recuperar a tradição cristoló- gica dos evangelhos e dos primeiros séculos do cristianismo, bem como a integração de cristologia e sotereologia. 12. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos que você tenha ficado duplamente satisfeito, por ter se empenhado profundamente em seus estudos e por ter se encontrado, enquanto estudava, com Aquele que é nosso único salvador e se fez um de nós, por nós e conosco. Ele é o nosso Deus. Um dia haveremos de encontrá-lo e viver eternamente com Ele, 213 Claretiano - Centro Universitário © U6 - O lugar e o papel de Cristo no plano de Deus para a glória de Deus Pai. Você pode continuar aprofundando seus estudos, pois a firmeza neste caderno cria bases sólidas para toda a vida de fé, e não apenas durante este seu empenho na gradua- ção de Teologia. Assim, procure constantemente ler os novos livros e estudos de cristologia, que forem surgindo. 13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANSELMO, S. Por que Deus se fez homem? São Paulo: Novo Século, 2003. DUPUIS, J. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. FEINER, J; LOEHRER, M. (Orgs.). Mysterium salutis: compêndio de dogmática histórico- -salvífica. III/7. O evento Cristo. 7. A atuação salvífica de Deus em Cristo. Petrópolis: Vo- zes, 1974. FORTE, B. Jesus de Nazaré: a história de Deus, Deus da história. Ensaio de uma cristologia como história. São Paulo:Paulinas, 1986. GESCHÉ, A. A destinação. São Paulo: Paulinas, 2004. LACOSTE, J. Y. (Org.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Loyola-Paulinas, 2004. PEDROSA, V. Mª. Salvação/salvador. In: Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2002. RATZINGER, J. B. XVI. Introdução ao cristianismo. Preleções sobre o Símbolo Apostólico. Com um novo ensaio introdutório. São Paulo: Loyola, 2005. RIBEIRO, Helcion. Por uma sotereologia com incidência histórica. Studium Revista Teoló- gica, Curitiba, ano 1, n. 1, p. 69-104, 2007. SCHILLEBEECKX, Edward. Jesus: a história de um vivente. São Paulo: Paulus, 2008. Claretiano - Centro Universitário