Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
HISTÓRIA E CULTURA INDÍGENA Carolline Martins de Andrade E d u ca çã o H IS T Ó R IA E C U LT U R A I N D ÍG E N A C ar ol lin e M ar tin s d e A nd ra d e Curitiba 2018 Historia e Cultura Indígena ó Carolline Martins de Andrade Ficha Catalográfica elaborada pela Editora Fael. A553h Andrade, Carolline Martins de História e cultura indígena / Carolline Martins de Andrade. – Curitiba: Fael, 2018. 182 p.: il. ISBN 978-85-5337-039-9 1. Indios 2. Cultura indígena I. Título CDD 980.41 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem da Capa Shutterstock.com/Curioso Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao Aluno | 5 1. Por que estudar história indígena? | 7 2. As culturas e as línguas indígenas | 21 3. Teorias raciais e a ilusão do primitivismo | 39 4. A história indígena na historiografia brasileira | 55 5. Fontes para a história indígena | 69 6. Os povos indígenas na América portuguesa | 83 7. Os povos indígenas e o Estado brasileiro: do Império à República | 99 8. Povos indígenas na Constituição de 1988 | 117 9. Populações indígenas no Brasil contemporâneo | 131 10. A história indígena na sala de aula | 145 Gabarito | 157 Referências | 171 Prezado(a) aluno(a), A sociedade brasileira é pluricultural, sendo composta de diferentes grupos étnicos, sociais e culturais. Essa diversidade precisa ser conhecida, reconhecida e representada. Com essa finalidade, em 2008, foi implementada a Lei n. 11.645, a qual tornou obrigatório o ensino das histórias e culturas dos povos indígenas presentes no Brasil. O pressuposto básico desse movi- mento é compartilhado por esta obra: o conhecimento como um dos meios mais poderosos para se combater o preconceito e a discriminação racial. Carta ao Aluno – 6 – História e Cultura Indígena Diante disso, a abordagem empreendida neste material trata, de forma panorâmica, a história dos povos indígenas na história do Brasil: do Perí- odo Colonial à contemporaneidade. No primeiro capítulo, apresentaremos os pressupostos que orientam nossas interpretações, o que se compreende por história indígena e indigenismo. Ao longo da obra, serão abordados temas como: a diversidade linguística e cultural dos povos indígenas; as principais fontes para o estudo das sociedades indígenas brasileiras; os modos de organização e a distribuição demográfica das populações indí- genas no Brasil; os movimentos indígenas; e, por fim, a aplicação dessas discussões ao ensino de história e os desafios da implementação da Lei n. 11.645/2008. Bons estudos! Carolline Andrade. 1 Por que estudar história indígena? Marc Bloch, ao responder ao questionamento sobre “para que serve a história?” em seu livro Apologia da história, afirmou que a história é a disciplina que estuda os homens no tempo. De modo direto, podemos simplesmente dizer que devemos estu- dar os povos indígenas por eles também serem constituídos por homens e mulheres inseridos no tempo. No entanto, sabemos que a resposta à pergunta que dá título ao capítulo merece melhor tratamento. Durante muito tempo, a história dos índios no Brasil foi relegada ao passado colonial. Não obstante, as populações indígenas nas últimas décadas têm apresentado um significativo crescimento demográfico e exigido o direito ao futuro. Além disso, esses povos também constituíram e constituem a história e a cultura brasileira. Nesse sentido, este capítulo busca refletir sobre a importância do estudo da história indígena para o pre- sente e aborda seus conceitos fundamentais. História e Cultura Indígena – 8 – 1.1 O “dever de memória” e o estudo das sociedades indígenas O estudo da história indígena é uma iniciativa que pretende atender a uma demanda de “dever de memória”. Esta expressão, “dever de memória”, foi cunhada ao longo dos anos de 1990 e traz a ideia de que as memórias ligadas ao sofrimento e à opressão geram obrigações – seja para o Estado, seja para a sociedade – em relação às comunidades portadoras dessas memórias (HEYMANN, 2006, p. 4). Como salientado pela pesquisadora Luciana Heymann (2006, p. 3), nas últimas décadas do século XX, as iden- tidades nacionais, que haviam sido construídas a partir da ideia de unifica- ção e homogeneização da população, tornaram-se maleáveis e abrangentes, incorporando elementos pertinentes à diversidade e ao pluralismo. Com efeito, deslocaram-se das noções que previam a uniformização dos valores culturais de um país para um paradigma que valoriza as diferenças. Nesse sentido, passa-se a buscar a inclusão, sem que isso se traduza em homogeneização. Por conseguinte, pode-se dizer que, no Brasil, a ampliação do estudo da História indígena se insere no marco das lutas dos próprios índios por reconhecimento social, político e de sua presença na história da nação (HEYMANN, 2006). Saiba mais Diferença entre movimentos indígenas e movimentos indigenistas A expressão “movimentos indígenas” se refere aos movimentos que são constituídos pelos próprios índio, ou seja, que eles são os protagonistas e agentes. A expressão “movimento indigenista”, por sua vez, refere-se aos movimentos formados por pessoas e grupos não-indígenas apoia- dores dos povos indígenas. Uma política indigenista, por exemplo, é uma política direcionada às populações indígenas e deve ser compre- endida como um “conjunto de ideias, práticas, programas e projetos políticos dirigidos aos indígenas” (SILVA; COSTA, 2018, p. 70). A partir da década de 1970, no contexto da lenta abertura do regime militar brasileiro e do crescimento dos movimentos sociais, viu-se o sur- – 9 – Por que estudar história indígena? gimento de organizações não governamentais de apoio aos indígenas e a organização da primeira iniciativa indígena com caráter e alcance nacional (CUNHA, 1992). Os movimentos indígenas se ampliaram nas últimas déca- das do século XX e buscaram angariar maiores espaços políticos e de repre- sentatividade na cena pública brasileira. Nesse processo de pôr fim à invi- sibilidade dos índios, o governo federal promulgou a Lei n. 11.645/2008, que incluiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira nos currículos escolares. Essa lei faz parte do processo de reconhecimento da diversidade que caracteriza a sociedade brasileira e da presença dos índios como sujeitos e agentes da história do Brasil. Refletindo sobre a necessária valorização da diversidade cultural e social que perpassa o país, dois conceitos que se mostram imprescindíveis são: etnicidade e alteridade. Ao tomarmos como objeto de estudo a his- tória indígena, estamos diante de um frequente dilema humano: o eu em relação a um outro. Sujeitos distintos, portadores de identidades e culturas diferentes. A etnicidade é constituída pela ideia de uma suposta origem comum, a qual leva em consideração a cultura sem que esteja reduzida a ela. Um sujeito pertencente a uma dada etnicidade compartilha com seus pares essa origem comum, identidade e cultura. Uma das principais características da etnia é ser portadora de limites, os quais a separam de outras etnias, marcando, portanto, a diferença. A etnicidade – assim como a cultura e a identidade que a constituem – são fenômenos dinâmicos e se alteram com os processos históricos, porém os limites que demarcam as diferenças são mantidos. Nesse sentido, as identidades étnicas, ao mesmo tempo em que consideramas interações internas entre os pares, são tam- bém conformadas pelas interações com o outro e pelas conjunturas políti- cas, sociais que as circundam. Por conseguinte, estão colocadas identida- des étnicas marcadas pela diferença e particularidades, sem a existência de uma hierarquia (LUVIZOTTO, 2009). Essa prerrogativa nos leva ao conceito de alteridade, pois, conforme a interpretação proposta por Todorov (1993a, 1993b), a alteridade é pre- missa básica para que nós seres humanos nos (re)conheçamos. Pois, quando olhamos para o outro, temos a possibilidade de nos diferenciar e, por consequência, conhecer aquilo que nos é peculiar. Sendo assim, como indicado por Caio Boschi (2007), mesmo diante da impossibilidade de História e Cultura Indígena – 10 – integrar o outro ao nosso universo, torna-se possível, ao menos, aceitá-lo como ele é, sem que haja uma postura de superioridade. No contexto dos índios na história do Brasil, foram empregadas variadas categorias que negaram aos indígenas o reconhecimento de sua alteridade. O “índio”, como categoria genérica e homogeneizadora, tem sua origem no equívoco de Colombo, que, em 1492, ao chegar ao que hoje chamamos de continente americano, pensava ter chegado às Índias, no continente asiático. No entanto, sabemos que nesse termo, “índio”, encon- tram-se condensados uma multiplicidade de povos e culturas: Yanomami, Cariri, Munduruku, Guarani, Xavante, entre muitos outros. Em nossos dias, acontece uma ressignificação do termo “índio” alavancada pelos próprios indígenas, passando a simbolizar a união de diferentes grupos culturais na luta pelos direitos comuns, tendo em vista que, hoje, os indí- genas não lutam somente pela retomada de suas terras, mas também pela melhoria e pelo modo de vida de cada grupo étnico (WITTMANN, 2015). Em suma, ao estudarmos a história de outras sociedades, distintas da nossa, devemos buscar compreendê-la em suas diferenças e particularida- des. A história e a cultura brasileira, portanto, devem ser analisadas em sua pluralidade e observando os distintos atores sociais. 1.2 História indígena e do indigenismo John Manuel Monteiro (2001, p. 4) salientou que prevaleceu, entre os historiadores brasileiros, duas noções formuladas pelos “pioneiros” da história nacional ainda no século XIX. A primeira dessas noções foi a exclusão dos índios como atores históricos, por considerarem que não detinham as ferramentas necessárias para analisar a história de povos ágrafos. Essa concepção pode ser vislumbrada na afirmação de Francisco Adolfo Varnhagen, o qual afirmou na década de 1850 que, para os índios, “não há história, há apenas etnografia”. A segunda noção, de acordo com Monteiro, consistia em tratar as populações indígenas como destinadas ao desaparecimento. Nesse sentido, a história dos índios brasileiros até a década de 1980 resumia-se à “crônica de sua extinção”. Essa situação começou a ser alterada a partir da reconfiguração da noção dos direitos indígenas, os quais passaram a ser vistos como direitos históricos, sobre- – 11 – Por que estudar história indígena? tudo territoriais. Esse deslocamento de perspectiva fomentou relevantes pesquisas, as quais estavam fundamentadas nos documentos coloniais e contribuíam para sustentar em termos jurídicos e históricos as demandas atuais dos índios e de seus apoiadores (MONTEIRO, 2001, p. 5). As pesquisas produzidas nas últimas décadas sobre a história indí- gena – do Período Colonial até a atualidade – também possuem o mérito de abordar os índios como agentes ativos de suas histórias e não mais como personagens secundários. As inovações nas abordagens e interpretações sobre a história indígena resulta de novas fontes e, sobretudo, da refor- mulação de conceitos, teorias e metodologias de pesquisa (ALMEIDA, 2010). Essas mudanças vêm, sobretudo, de um diálogo que se estabeleceu entre historiadores e antropólogos desde a década de 1970, assunto que será tratado com maior profundidade em capítulos posteriores. Uma importante pergunta que deve ser feita é: por que os indígenas foram silenciados da historiografia brasileira por tanto tempo? Para res- pondê-la, as noções de “assimilação” e de “aculturação” são primordiais. A historiadora Maria Regina Celestino de Almeida aponta que um dos principais elementos que explicam esse acontecimento tem sua base na ideia de que os índios integrados à colonização iniciavam um processo de aculturação. Ou seja, que, de modo progressivo e paulatino, eles passavam por processos de mudanças culturais, os quais conduziriam à assimilação e, por consequência, à perda da identidade étnica. No que se refere à lógica interpretativa do processo de aculturação, as relações que envolviam o contato dos índios com os europeus eram sem- pre vistas como relações de dominação e de imposição, nas quais os indí- genas apareciam, de maneira recorrente, como passivos e sem espaço para iniciativas ou estratégias de ação. Por conseguinte, eles estariam fadados a ser submissos em um processo de mudanças culturais, cujo resultado seria a assimilação e a fusão com a massa da população (ALMEIDA, 2010). Dessa forma, durante muito tempo, os índios foram tratados como indiví- duos aculturados e passivos. Além disso, outros elementos que nos ajudam a compreender o silen- ciamento dos indígenas na historiografia advêm de uma visão conserva- dora, segundo a qual os índios estão vinculados a uma tradição milenar, História e Cultura Indígena – 12 – que desconsidera as mudanças próprias às relações humanas. Isto é, ainda existe uma noção de que índio é aquele indivíduo que usa cocares, fala uma língua distinta do português e anda nu. De acordo com essa visão, os índios são vistos como meros remanescentes de uma cultura que perdeu suas características “originárias”. Segundo a historiadora Luísa Tombini Wittmann (2015, posição 150-154), pensar os indígenas por esse ângulo é pensá-los de forma essencialista, como pertencentes a uma “cultura ideal e estática”. Portanto, conceber que os nativos se tornam menos índios quando utilizam roupas ou passam a ter acesso à internet está ligada à essa visão essencialista, a qual não percebe a ação do tempo e do movimento da história sobre os diferentes grupos humanos. Diante disso, é negado ao indígena as transformações proporcionadas pelo processo histórico, no sentido de que essas mudanças acarretariam em perdas culturais e que, por consequência, conduziriam à extinção dos povos indígenas. Dentro dessa percepção, a noção de cultura predomi- nante até a década de 1970, como categoria fixa e estável, significava que o contato dos povos indígenas com outros povos de tecnologia superior desencadearia processos de aculturação e perdas culturais e, inclusive, conduziria à extinção étnica: As relações de contato era, então, grosso modo, vistas como rela- ções de dominação/submissão, na qual uma cultura se impunha sobre a outra, anulando-a. Nessa perspectiva os índios integrados à colonização, seja como escravos ou como aliados, eram vistos como submissos e aculturados, não constituindo, pois, categoria social merecedora de maiores investigações. (ALMEIDA, 2010, posição 184). Como dito anteriormente, a negação da identidade indígena corro- bora para a negação dos direitos desses povos. Diante disso, importa-nos endossar o apontamento empreendido por Maria Regina Celestino de Almeida (2010, posição 250), segundo o qual é preciso reconhecer que, para os próprios movimentos indígenas da atualidade, o fato de adotar prá- ticas da “sociedade dos brancos” tais como falar português, participar de discussões políticas, reivindicar direitos fazendo uso do sistema judiciário não os torna menos autênticos. Pelo contrário, entender os mecanismos de funcionamento da sociedade não-indígena, torna viável, aos indígenas, a exigência eo acesso aos seus direitos. – 13 – Por que estudar história indígena? Desse modo, outros conceitos que contribuem para refletir as trans- formações das sociedades indígenas ao longo do tempo são as noções de “apropriação cultural” e “ressignificação cultural”. Essas ideias têm sido consideradas mais adequadas pelos estudiosos de história indígena da atualidade, pois possibilitam que os índios deixem de ser vistos como “vítimas passivas de imposições culturais, as quais somente lhe trazem prejuízos, e passem a ser vistos como agentes ativos, tendo papel ativo nos processos de intercâmbio cultural (ALMEIDA, 2010, posição 287). Ou seja, efetue-se uma mudança de perspectiva, em que, nos processos de trocas culturais, os indígenas passam a incorporar os elementos da cultura ocidental, porém conferindo a eles significados próprios e empre- gando-os da forma que consideram convenientes com seus modos de vida e de organização. Figura 1.1 – Índia Tupi Guarani tirando selfie Fonte: Shutterstock.com/ Filipe Frazao. 1.3 Memória e identidade dos povos indígenas A memória, a história e a identidade estão diretamente ligadas. Embora existam diferenças no modo como esses conceitos se relacio- nam nos povos indígenas e nas sociedades não-indígenas, neste primeiro momento iremos enfocar a semelhança entre as culturas. Tanto a memória quanto a história procuram responder às nossas inquietações existenciais sintetizadas nas questões: de onde viemos? Onde estamos? Para onde História e Cultura Indígena – 14 – vamos? As duas buscam no passado, em diálogo com o presente, a chave para desvendar o enigma da nossa identidade. A memória e a história nos dão a sensação de que as experiências passadas não estão perdidas e podem ser acessadas, revividas no presente, dando forma a quem nós somos. Ou seja, como salientou Paul Ricoeur, a memória é também matriz da história, porque ela é um dos modos pelos quais produzimos sentido e orientação temporal. Em linhas gerais, essa compreensão consiste em tomar a memória tanto como uma instância fundamental da representação do passado humano, como um modo apropriado de revelação de nossa própria historicidade (RICOEUR, 2007). Para compreendermos melhor a relação entre a memória e a identi- dade, é importante nos atentarmos para a distinção entre os conceitos de memória individual e memória coletiva. A memória individual é a facul- dade que todos os indivíduos têm de ‘recordar’, permitindo a representa- ção das experiências do passado. É a memória que permite ao sujeito o reconhecimento de si mesmo, apesar das mudanças que ele sofre ao longo do tempo. A memória assegura um vínculo entre o sujeito e suas experi- ências vividas. Agora, vejamos o que acontece com a memória coletiva. Vários sociólogos e historiadores tem tentado demonstrar que a memória não deve ser abordada apenas em sua dimensão psicológica e individual. O sociólogo francês Maurice Halbwachs defendia que a memória deveria ser estudada como um fato social. Ou seja, mesmo as recordações que pare- cem ser mais individuais, estariam, no fundo, ligadas à memória coletiva. Portanto, a memória individual está inserida nas memórias da família, dos grupos sociais e da nação. A memória coletiva permite, inclusive, que o indivíduo tenha acesso a acontecimentos que ele não viveu, mas que são importantes para a identidade coletiva, como o processo de independência de uma nação, por exemplo. Embora o indivíduo não tenha participado desses eventos, eles ganham um peso tão grande no imaginário coletivo que a memória vai sendo transmitida de geração em geração (MITRE, 2003; CATROGA, 2015; POLLAK, 1992). Uma das principais funções sociais da memória é a constituição da identidade de um grupo social. Segundo o historiador Jacques Le Goff, nas sociedades ágrafas, povos sem escrita, como no caso dos indígenas do Brasil, o acúmulo de elementos na memória faz parte da vida cotidiana dos – 15 – Por que estudar história indígena? indivíduos. Um bom exemplo disso são os mitos de origem que procuram explicar o surgimento de todas as coisas e inserir o indivíduo como parte do grupo. Muitas vezes, nos povos sem escrita, a memória é transmitida em rituais que envolvem o canto, posto que os versos em forma de música são muito eficientes no processo de memorização dos ensinamentos que estão sendo transmitidos. Le Goff observa ainda que nos povos ágrafos a memória coletiva também é importante para a transmissão de conheci- mentos técnicos como aqueles ligados à agricultura, à pesca, à culinária etc. (LE GOFF, 2003). No caso das sociedades ocidentais não-indígenas, o conhecimento histórico estava presente na Grécia Antiga como um forte aliado da memó- ria em sua tarefa de salvar do esquecimento os feitos humanos realizados no tempo, como dizia Heródoto no início das suas Histórias. História e memória compartilham, também, a característica de serem construções seletivas sobre o passado. Isto é, nem uma nem outra são um armazém em que as experiências do passado simplesmente se acumulam de forma automática; elas incluem uma boa dose de esquecimento e imaginação. Em A memória, a história, o esquecimento (2007) o filósofo francês Paul Ricoeur sustenta que a memória não se confunde com uma espécie de “resgate do passado”. Pelo contrário, a memória é uma operação do pas- sado permeada pela imaginação, embora, jamais perca sua referência à anterioridade temporal. Outra característica comum à história e à memória diz respeito à forma como elas organizam e conferem significado ao pas- sado. Ambas lançam mão de um olhar retrospectivo que parte do presente para o passado, buscando fazer com que aquilo que parecia estranho e sem sentido se torne algo familiar e significativo. Desse modo, a narração das experiências do passado, seja pela via da história, seja pela via da memória, tenta oferecer um remédio contra os efeitos corrosivos do tempo e ajudar na constituição da identidade dos indivíduos e das sociedades (CATROGA, 2015). O início do século XX foi decisivo para a distinção entre história e memória no contexto das sociedades ocidentais não-indígenas. A partir do fortalecimento do diálogo entre a história e as Ciências Sociais, a historio- grafia passou a desconfiar dos mecanismos usados pela memória. Nesse movimento, a história assumiu a função de criticar e desmitificar algumas História e Cultura Indígena – 16 – construções de sentido para o passado realizadas pela memória. O soci- ólogo Maurice Halbwachs chegou a afirmar que a história como conhe- cimento científico começa quando termina a memória. Assim, a memória coletiva se tornou um dos objetos que a historiografia analisa criticamente. Se antes a história era quase confundida como sendo a memória de uma sociedade, agora ela irá tomar a memória como mais um de seus objetos de estudo. O passado analisado pela história científica é diferente do pas- sado elaborado pela memória coletiva. A historiografia busca reconstruir metodicamente o passado com base em documentos e consulta a arquivos (NORA, 1993; MITRE, 2003). No caso dos povos indígenas, a relação estabelecida entre os con- ceitos de memória e história é, em certo sentido, diferente daquela apre- sentada pelas sociedades ocidentais não-indígenas. Aqui, em nenhum momento, a memória se separou da história na constituição da iden- tidade. Pelo contrário, nas sociedades indígenas o que predomina é a memória coletiva, que está diretamente ligada à transmissão de expe- riências de forma oral. Para os povos indígenas, viver em sociedade é sinônimo de “recordar juntos”. Nesse sentido, têm força as narrati- vas orais que transmitem as experiências de pessoa para pessoa. Se no campo historiográfico não-indígena, a partir do século XX, buscou-se separar e diferenciar a história da memória, nas sociedades indígenas,que não contam com tantos registros escritos como as sociedades oci- dentais, a memória oral é um elemento fundamental. Diante disso, uma pergunta importante que deve ser feita é: como a memória contribui para a constituição da identidade dos povos indígenas? Como essa memória é preservada e transmitida? A memória é preservada e transmitida, sobretudo, pelos idosos da comunidade, que são concebidos como os “guardiões da memória”. Eles são responsáveis por transmitir e, assim, atualizar, em cada presente, os saberes do povo por meio da oralidade. Desse modo, memória e história se confundem. Ademais, as narrativas e os relatos desses anciões buscam legitimidade no passado e na tradição, e desejam evocar “sentimentos de identificação do e para o grupo” (BERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010, p. 65-66). Por isso, não é exagero dizer que para os povos indígenas do Brasil vale o provérbio africano: quando um velho morre é como se uma – 17 – Por que estudar história indígena? biblioteca se incendiasse. Conforme expresso pelo professor e escritor indígena Daniel Munduruku (2008), Detentores que são de um conhecimento ancestral aprendido pelos sons das palavras dos avôs e avós antigos, estes povos sempre prio- rizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de trans- missão da tradição obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas. A memória é, pois, ao mesmo tempo passado e presente que se encontram para atualizar os repertórios e encontrar novos senti- dos que se perpetuarão em novos rituais que abrigarão elementos novos num circular movimento repetido à exaustão ao longo de sua história. Assim estes povos traziam consigo a memória ancestral. Por fim, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (1992, p. 20), uma das principais referências em História Indígena no Brasil, sublinha que: “[...] ter uma identidade é ter uma memória própria. Por isso a recu- peração da própria história é um direito fundamental das sociedades”. No caso dos povos indígenas, a defesa da memória e da identidade étnica, na atualidade, estão diretamente relacionadas com a salvaguarda de seus direitos. Recuperar, manter e preservar as memórias e as tradições dos povos nativos é, portanto, fundamental. Figura 1.2 – Indígenas brasileiros tocando flauta na região amazônica Fonte: Shutterstock.com/ Filipe Frazao. História e Cultura Indígena – 18 – Síntese A história indígena é o estudo da história das sociedades indígenas e dos contatos destes com os não-indígenas. A importância de estudar his- tória indígena no Brasil, como visto ao longo do capítulo, reside no fato de apreender e valorizar as diferentes histórias, culturas e sujeitos que compõem o país. Além disso, salientamos que as noções de “assimila- ção cultural” e “aculturação” contribuem para explicar o lugar secundário destinado aos indígenas na historiografia brasileira desde o século XIX até as últimas décadas do século XX. Para a superação dessa perspectiva, é preciso perceber que os povos indígenas estão submetidos à ação do tempo e das transformações pertinentes ao processo histórico, sem que isso signifique perda da identidade étnica. Apontamos, ainda, a importân- cia da memória, da identidade e da oralidade na preservação dos saberes dos povos indígenas. Atividades 1. Estabeleça a relação entre o estudo de história indígena com a noção de “dever de memória”. 2. Leia atentamente o excerto a seguir: “A escrita é uma técnica. É preciso dominar esta técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da gente indígena. Téc- nica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro [...]. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É preciso notar que ela – a memória – está buscando dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas, mas há também o vídeo, o museu, os festivais, as apre- sentações culturais, a internet com suas variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida que cada uma delas é importante, mas – 19 – Por que estudar história indígena? poucos são capazes de perceber que é também uma forma con- temporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamen- tal para os dias atuais”. MUNDURUKU, Daniel. Literatura indígena e o tênue fio entre escrita e oralidade. Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/literatura-indigena>. Acesso em: 14 maio 2018. De acordo com a leitura do capítulo e mediante o texto anterior, estabeleça a importância dos registros (escrita, vídeo etc.) para a memória dos povos indígenas. 3. Conforme as discussões realizadas ao longo do capítulo, estabe- leça uma comparação sobre a relação entre memória e história para as sociedades indígenas e não-indígenas. Lembrando que a concepção de história esboçada pelas sociedades Ocidentais modernas encontra-se assentada nos conhecimentos produzidos no meio acadêmico, enquanto a concepção das sociedades indí- genas – ou mesmo pré-modernas – se fundamenta no entrecru- zamento de passado, memória e mito. 4. A partir dos ele- mentos contidos na tira a seguir, dis- corra sobre os con- ceitos de “acultura- ção”, “assimilação cultural”, “apro- priação” e “ressig- nificação cultural”. Fonte: Norberto Liberator. 2 As culturas e as línguas indígenas No presente capítulo, aborda-se a importância dos mitos para as culturas ndígenas, pautando-se em sua relação com o tempo, a natureza e a oralidade presente nessas culturas. Os mitos são ele- mentos constituintes da concepção social dos indígenas, estabele- cendo normas de conduta, justificando o lugar dessas comunida- des no mundo, ordenando e hierarquizando as categorias culturais e naturais com as quais eles se relacionam. O capítulo segue seu desenvolvimento apresentando os principais grupos linguísticos presentes no Brasil contemporâneo e a diversidade de línguas que englobam. Finalmente, analisa brevemente as principais contri- buições das culturas indígenas na atualidade, seja por meio da língua, da alimentação ou de produtos medicinais. História e Cultura Indígena – 22 – 2.1 O lugar do tempo, do mito e da narrativa nas culturas indígenas Os vínculos entre tempo, mito e narrativa, observados entre as cultu- ras indígenas, constituem um desafio para nosso modo ocidental e urbano de compreender a vida. A questão torna-se ainda mais complexa quando nos atentamos para o fato de que as instituições modernas nas quais esta- mos inseridos reforçam estereótipos a respeito das culturas indígenas, estabelecendo para elas definições ligadas ao arcaico, ao selvagem, ao atrasado, ao fantástico e, mesmo, ao infantil. A compreensão ocidental moderna buscou estabelecer uma cronologia evolutiva, na qual as culturas pré-ibéricas deveriam percorrer um longo caminho até a civilização e o progresso, em que se encontram as sociedades mais avançadas. Apesar da antropologia contemporânea, dos estudos pós-modernos e pós-coloniais colaborarem para uma ruptura com esse modo linear e evolutivo de conceber as diferentes culturas ao redor do globo, ainda resta muito o que fazer para que essas mudanças de perspectiva possam pene- trar de forma eficiente nas escolas, nas redes de comunicação – a televi- são, o rádio, o cinema – e nas políticas públicas, de modo a alterar o senso comum do cidadão médio. Em um primeiro momento, enfatizamos que olhar para as culturas indígenas de maneira séria significa, acima de tudo, romper com essa line- aridade e buscar a compreensão de uma “heterogeneidade multitemporal” (CANCLINI, 2003). Ou seja, esforçar-se por compreender que dentro do espaçoterritorial que denominamos Brasil existem múltiplas culturas que apresentam distintas relações com o tempo. Sem esse esforço, é impossí- vel avançar no entendimento das variadas culturas indígenas com o tempo, a narrativa e os mitos. O mito é, talvez, a categoria mais interessante para iniciar nossa aná- lise, dado seu potencial explicativo e agregador. Melhor seria dizer “os mitos”, considerando que eles estão condicionados aos distintos grupos, os quais possuem identidade cultural própria. As narrativas míticas vincu- lam-se às condições de existência e à cosmovisão elaborada por cada um desses povos. – 23 – As culturas e as línguas indígenas Os mitos se articulam à vida social, aos rituais, às histórias, à filo- sofia, às categorias de pensamento elaboradas localmente, as quais se configuram em maneiras específicas de conceber os homens, o tempo, o espaço e o cosmos. Os mitos constituem-se como um dos aspectos pelos quais as identidades dos grupos são forjadas, a partir da introdução de seu lugar no mundo e na definição da relação dos demais seres frente ao grupo. Assim, o mito é uma das formas que definem quem é o grupo e quem são “os outros”, sejam eles elementos naturais ou espirituais. Ao explicar o cosmos, os mitos estabelecem ordens, classificações, oposi- ções lógicas, hierarquias, categorias inclusivas e exclusivas (LOPES DA SILVA, 1998, p. 75). Em princípio, os mitos são responsáveis por conferir uma complexi- dade temporal que dá sentido ao passado, ao presente e ao futuro de cada cultura. Segundo Lévi-Strauss, um mito sempre se refere a eventos passados, ‘antes da criação do mundo’ ou ‘nos primórdios’ – em todo caso, ‘há muito tempo’. Mas o valor intrínseco a ele atribuído provém do fato de os even- tos que se supõe ocorrer num momento do tempo também for- marem uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro. (LEVI-STRAUSS, 2008, posição 3329) A partir do trecho acima, pode-se inferir que os mitos, mais que um elemento fundamental da identidade cultural do grupo, colaboram tam- bém na definição das temporalidades experimentadas por eles. Ao marcar o passado distante, ele dá sentido ao presente e estabelece possibilidades de um futuro, de acordo com as crenças locais. Aracy Lopes (1998) aponta para esse caráter flexível dos mitos, enfatizando seu movimento constante com o tempo, seja permitindo aos viventes humanos um reencontro possí- vel com o passado, os ancestrais, as origens, seja indo ao futuro, no qual a existência individual ou do grupo se completaria após a morte, na supera- ção das limitações das condições humanas. Lynn Mario T. Menezes de Souza, ao lançar mão das argumentações de Roberto da Matta (DA MATTA, 1987), observa que algumas comu- nidades indígenas apresentam duas concepções distintas de tempo: a) o “presente anterior”, que remete a um passado no qual o mundo como é História e Cultura Indígena – 24 – hoje ainda não existia e; b) o “presente atual”, que se refere ao estado de coisas no mundo hoje em dia. Nessa perspectiva, o “presente anterior” seria um tempo em que existia a intercomunicação entre todos os seres, os quais mudavam de forma. Apenas no “presente atual” os seres se sepa- raram e, isolados, assumiram formas distintas e fixas. Ao observar essa divisão, podemos notar que a concepção de passado tal como a compreen- demos na modernidade não existe. Para muitas comunidades indígenas, o “presente anterior” continua existindo, isto é, o tempo movimentando-se de maneira cíclica. Para muitos estudiosos, esse é o plano e movimento do mito. Se o tempo mítico é cíclico, o tempo do presente atual é linear e pro- gressivo, chamado de “História”. De certa maneira, os dois mundos conti- nuam coexistindo, sendo o pajé capaz de viajar entre ambos em busca de curas, soluções e explicações para os eventos cotidianos (MENEZES DE SOUZA, 2018). Se os mitos estruturam o passado e indicam o futuro, no presente ser- vem para: explicar o mundo; os seres; os valores; conectar a natureza e as comunidades indígenas; estabelecer o lugar social do maravilhoso, do fan- tástico; colaborar em conformar uma realidade “ampliada”, que vincula a realidade sensorial a um mundo místico e sobrenatural (GUESSE, 2011). A natureza apresenta um papel fundamental na configuração desse mundo místico. Nas visões de mundo das comunidades indígenas, a natureza e a sociedade representam uma oposição que se inter-relaciona por um processo contínuo de reciprocidade, por meio de símbolos e metáforas, mitos e cerimoniais e, muitas vezes, nas relações do coti- diano dessas comunidades. É preciso enfatizar que essa inter-relação não significa que natureza e sociedade se confundam, mas antes que ambas fazem parte de um mesmo cosmos. Nesse sentido, tanto o mundo dos homens como o dos animais e das plantas estão carregados de sen- tidos simbólicos, o que os torna mais próximos. (VIDAL GIANNINI, 1998, p. 145). Vidal Giannini, ao estudar os índios Xikrin, habitantes das margens do rio Cateté, no Estado do Pará, mostra como os espaços naturais se relacionam com a comunidade. Estes são definidos de acordo com as seguintes divisões: a) a terra, fragmentada em clareira e floresta; b) o céu; c) o mundo aquático; d) o mundo subterrâneo. Cada uma dessas – 25 – As culturas e as línguas indígenas divisões possui atributos e habitantes distintos, com os quais os Xikrin se relacionam de maneiras diversas. Assim, fica claro que as relações dos indígenas com a natureza devem ser respeitosas e a ofensa a cada uma dessas divisões e a seus habitantes acarretam diferentes punições (VIDAL GIANNINI, 1998, p. 149). Sendo os mitos as narrativas fundamentais das culturas indíge- nas, é elementar sublinhar a importância da linguagem oral nessas comunidades. Em nossa cultura não indígena ocidental, estamos acos- tumados com a importância da escrita no ordenamento e na funciona- lidade de nossas vidas, sendo que muitas vezes a oralidade nos parece algo atrasado e pouco confiável. Nossas narrativas são cada vez mais estruturadas em revistas, livros e jornais. Nossos acordos firmados a partir de contratos escritos. Nossas crenças codificadas em livros sagrados. Isso não acontece nas culturas indígenas, pois elas são, de modo significativo, pautadas pelas narrativas orais. Essa diferença é primordial, posto que, enquanto a palavra escrita é fixa, não podendo ser alterada, a oralidade é plástica, fluida e muda de acordo com as circunstâncias históricas. No que toca aos mitos, Levi Strauss já apontava que eles “perten- cem à ordem da linguagem” (LEVI STRAUSS, 2008, posição 3351). Nas comunidades indígenas, a linguagem se expressa, sobretudo, por meio da oralidade. Quando pensamos nos mitos, essa oralidade exerce um papel de suma importância em sua constituição. Um primeiro ponto é pensar que, no caso da narrativa oral, narrador e ouvinte(s) interagem no mesmo local e de maneira simultânea, o que pos- sibilita que a narrativa se constitua não apenas por meio das palavras, mas se complemente com gesticulações e interrupções por parte do narrador e com interrupções por parte do mesmo e do ouvinte. Um segundo ponto é a fluidez dessa narrativa. A palavra escrita fixa a narrativa, possibilitando a definição de uma versão “original” em relação a suas futuras adaptações. Para a narrativa oral – e, no presente caso, a mito- lógica – essa não é uma questão. A busca por uma versão “original” dos mitos seria praticamente uma busca sem resolução para os antropólogos e/ ou historiadores que se arriscassem a tal. Como aponta Levi Strauss, é pre- História e Cultura Indígena – 26 – ciso compreender o mito pelo conjunto de suas versões (LEVI STRAUSS, posição 3475). O terceiro ponto seria em relação à autoria e à circulação dos mitos. Se nas sociedades urbanasa palavra escrita muitas vezes define uma relação de autoria-leitor, indicando um processo mais individual – ainda que massivo – de circulação e consumo, nas comunidades indígenas, a oralidade estabelece narrativas que são de domínio de toda a comuni- dade e que são, normalmente, contadas a mais de uma pessoa por vez. Assim, o processo de apreensão cultural dos mitos ocorre de maneira coletiva, sendo o narrador apenas um transmissor desse conhecimento, nunca o dono. Dica de Filme O curta metragem Awara Nane Putane – uma história do Cipó é uma ani- mação que conta o mito de origem do uso tradicional da ayahuasca, na versão do povo Yawanawa, que vive nas margens do Rio Gregório (AC). O curta é todo falado em idioma Yawanawa, povo que pertence ao tronco linguístico Pano. Ficha técnica Ano: 2013 Roteiro e direção: Sérgio de Carvalho. Direção de Animação: Silvio Toledo e Valu Vasconcelos. Edição: Bruno Saucedo. – 27 – As culturas e as línguas indígenas Trilha sonora e mixagem: Duda Mello. Produção indígena: Shaneihu Yawanawa, Vinnya Yawanawa e Vadé Yawanawa. Direção de arte: Fred Marinho e Silvio Toledo. Pesquisa: Talita Oliveira e Ney Ricardo. Vozes: Shaneihu Yawanawa, Tika Matxuru, Nãynawa, Alda Artidor Yawanawa, Yuva Yawanawa Kapacuru Yawanawa. Story board: Clementino Almeida. Em nossos dias, existe uma forte preocupação das comunidades indígenas em transpor seus mitos e narrativas para a forma escrita, como um modo de resgatar suas culturas e sociedades. Esse esforço se deu a partir da Constituição de 1988, que reconheceu a existência das línguas indígenas no Brasil, abrindo caminho para uma educação bilín- gue indígena e à criação de um novo modelo de escola indígena, dando um novo impulso à recuperação de suas culturas. A partir desse novo modelo de educação indígena, surgiu a necessidade de construir novos materiais didáticos, que possibilitassem a transmissão dos conhecimen- tos das culturas indígenas, ocasionando vários programas de autoria indígena, surgidos em cursos de formação de professores (MENEZES DE SOUZA, 2018). A transposição de narrativas orais para materiais didáticos escritos leva a novas problematizações, tais como a diferença entre estas nar- rativas em um livro didático para o ensino de línguas e outras para o ensino de história ou de ciências. Outra questão é a referente à autoria: se os mitos e narrativas pertencem à coletividade, qual é o lugar de quem transpõe essas narrativas para o material didático? As narrativas mitológicas seriam ficcionais ou não? Toda essa complexidade decor- rida da passagem da oralidade à narrativa escrita se reflete na identifica- ção dos gêneros de escrita. Há de se levar em consideração que muitas vezes os editores não são indígenas, o que os leva a classificar as obras de acordo com o gênero textual que lhes parece mais próximo de sua compreensão ocidental. São questões ainda em aberto que demonstram História e Cultura Indígena – 28 – encontros e desencontros de culturas. Para que a democracia se torne mais aberta ou, no dizer de Canclini (2003), para que o projeto eman- cipatório da modernidade avance, é preciso construir e reforçar esses novos espaços. Algo importante deve ser dito em relação à transposição da narrativa oral para a escrita pelos indígenas: a escrita indígena, no Brasil, busca, antes de tudo, um modo de reforçar suas identidades culturais ou, mesmo, de buscar compreender e construir uma nova identidade, híbrida, em con- tato com o “homem branco”. Saiba mais As imagens têm grande valor para os indígenas na transposição de suas narrativas orais para a palavra escrita, sendo que muitas vezes é o texto que complementa o desenho e não o contrário. Embora isso possa pare- cer estranho para nossa cultura, muito concentrada na escrita, isso não é um problema para outras nas quais as narrativas foram construídas a partir da oralidade e da performance. De fato, muitas editoras classi- ficam as obras produzidas pelos indígenas na sessão de livros infantis, devido às ilustrações (MENEZES DE SOUZA, 2018). 2.2 As línguas indígenas Existem atualmente no Brasil três grandes grupos linguísticos: Jê, Tupi e Arawak. Estes grupos estão espalhados por grande extensão terri- torial no país. Existem também vários outros menores, com distribuição mais restrita no mapa. São eles: Chapacura, Guaykuru, Katukina, Maku, Mura, Nambikwara, Pano, Tukano e Yanomami.1 1 Para conhecer mais sobre as línguas e a diversidade das populações indígenas do Brasil, acesse: a) o mapa interativo do dicionário ilustrado tupi guarani, disponível no link: <ht- – 29 – As culturas e as línguas indígenas É necessário não confundir os grupos linguísticos com as línguas existentes: cada um desses grupos comporta diversas variações linguís- ticas. Sendo assim, ressalta-se que existem ainda línguas isoladas, que não se encontram vinculadas a nenhuma das referidas famílias. Essa multiplicidade de línguas demonstra a pluralidade de culturas indígenas encontradas no território brasileiro, o que nos convida mais uma vez a repensar os estereótipos construídos sobre os indígenas. Como dito no capítulo 1, as comunidades indígenas, em um primeiro momento, não se identificavam como “índios’, sendo essa uma categoria construída pelos colonizadores e só recentemente foi incorporada pelos indígenas como uma estratégia de identificação e luta por direitos. Segundo a Unesco, atualmente os povos indígenas do Brasil con- servam e falam cerca de 180 línguas nativas. Dessas, 40 estão ameaça- das de extinção devido ao número reduzido de falantes, à baixa transmis- são às novas gerações e aos poucos idosos que as dominam. Embora a quantidade de línguas faladas seja bastante ampla, isso não significa, de maneira alguma, que houve um cuidado ou políticas públicas eficientes para a manutenção das culturas indígenas. Prova disso é a estimativa de que, quando da chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto Seguro, existiam entre 1200 a 1500 línguas no brasil. A seguir, abordaremos um pouco dos principais grupos linguísticos encontrados no território brasileiro. 2.2.1 Macro-Jê Mesmo em grupos linguísticos mais consolidados, como os Jê, algu- mas distinções são feitas. É comum, nesses casos, uma ampliação do grupo linguístico – como é o caso do Macro-Jê − incorporando línguas mais antigas. tps://www.dicionariotupiguarani.com.br/mapa-familias-linguisticas/ >; e b) o mecanismo de busca que permite conhecer os diferentes Povos Indígenas do Brasil e sua distribuição por estados ou por família linguística: <https://pib.socioambiental.org/pt/Página_principal >. História e Cultura Indígena – 30 – Figura 2.1 – Tronco linguístico dos Macro-Jê Fonte: Dicionário Ilustrado Tupi-Guarani. Disponível em: <https://www. dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/macro-je/>. Acesso em: 26 maio 2018. – 31 – As culturas e as línguas indígenas Nesse caso, as línguas vinculadas à família Jê representariam um ramo relativamente recente. Segundo Urban (1992), a julgar pelas seme- lhanças internas entre as línguas Jê, essas se separaram há cerca de 3 mil anos ou mais. No que se refere aos Macro-Jê, as relações linguísticas são mais distantes, datando de uns 5 ou 6 mil anos, pelo menos. O tronco lin- guístico dos Macro-Jê se estende pelas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, como demonstrado no mapa a seguir: Figura 2.2 – Distribuição do tronco linguístico dos Macro-Jê no território brasileiro Fonte: Dicionário Ilustrado Tupi-Guarani. Disponível em: <https://www. dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/macro-je/>. Acesso em: 26 maio 2018. 2.2.2 Tupi A filiação genética do Macro-Tupi é a mais conhecida do país, visto que a principal família do grupo, a Tupi-Guarani, foi amplamente estu- História e Cultura Indígena– 32 – dada. Fato é que também houve uma maior expansão dos povos Tupi- -Guarani ao longo do território nacional. Enquanto as outras famílias desse grupo linguístico estão concentradas em uma área do Centro-Oeste, entre o rio Madeira a oeste e o rio Xingu a leste, o Tupi-Guarani se espa- lhou para outras regiões do país, tais como o Nordeste, o Sul e o Sudeste. Figura 2.3 – Línguas do tronco Tupi e línguas gerais derivadas do Tupi e Guarani Fonte: CC BY 3.0/Wikimédia 2.2.3 Arawak Incorpora as famílias linguísticas Maipure, Aruan, Puquina e Toyeri ou Harakmbet. Dentre essas famílias, a mais dispersa é a Maipure, cuja distribuição é genericamente ocidental. As teorias sustentam que os Mai- pure tenham se originado no Peru e tenham migrado para o Brasil através – 33 – As culturas e as línguas indígenas da periferia da bacia amazônica, tanto pelo norte como pelo sul, estabele- cendo-se mais tarde em regiões de terras baixas amazônicas. Figura 2.4 – Línguas Arawak Legenda: As línguas Arawak da América do Sul. Os pontos representam as loca- lizações precisas das línguas bem documentadas. O resto das áreas sombreadas reconstroem a extensão da distribuição das línguas no passado. Em azul-claro, as línguas arawak setentrionais, e, em azul-escuro, as línguas arawak meridionais. Fonte: Davius/CC BY 3.0/Wikimedia História e Cultura Indígena – 34 – 2.3 Nossa herança cultural indígena Passados mais de 500 anos do início da colonização, muitos elemen- tos oriundos das culturas indígenas parecem indistintos em meio à mistura que se tornou a sociedade brasileira. No entanto, com o olhar um pouco mais atento, é possível notar como grande parte desses elementos foram absorvidos pelos europeus e hoje fazem parte de nosso cotidiano. Muito mais que em nomes de ruas e cidades, eles se encontram presentes em diversas palavras e hábitos do nosso cotidiano. Antes de prosseguir, imagine um primeiro fato: os portugueses, quando chegaram aqui, encontraram-se diante não apenas de povos desconhecidos, mas também de animais e frutas nunca antes vistos na Europa. Esses mesmos portugueses, inexperientes nas novas terras, tive- ram de aprender a caçar nesse território, a conhecer suas florestas, a aprender sobre o potencial medicinal de suas plantas. Enfim, eles preci- saram conhecer as relações culturais, sociais e políticas dos indígenas. Dessa fusão – e, mais tarde, com a introdução da mão-de-obra escra- vista – configurou-se no Brasil um novo padrão cultural, distinto do nativo e do europeu. Técnicas de plantio foram aproveitadas, como a coivara2 e lendas incorporadas, como o Curupira e o Boto sedutor. No campo da alimentação, as contribuições foram diversas: o cultivo da mandioca, do milho, da batata-doce, do cará, das favas, do amendoim, da abóbora, da pimenta, do abacaxi, do caju, do cacau, do mamão, das bananas e do maracujá. A introdução desses itens mudou a alimentação dos portugueses que aqui chegaram e se tornaram presença permanente na mesa dos brasileiros. Para além dos itens mencionados acima, é preciso ainda acrescen- tar: a) o tabaco, o qual, em princípio, foi consumido pelos indígenas para efeitos mágicos, terapêutico medicinal e estimulante. Depois foi utilizado pelos portugueses em suas várias formas: cigarro, charuto, 2 Trata-se de queimar extensões de terra, limpando-as de pragas, insetos daninhos e vege- tação rasteira. Embora a técnica prejudique o solo a médio prazo, pois deixa a área refém do calor do sol ou de pancadas de chuva – que podem levar o húmus vegetal para rios e lagos −, os indígenas a empregavam, pois era o modo mais prático, visto que desconhe- ciam a enxada. – 35 – As culturas e as línguas indígenas cachimbo, rapé para cheirar e fumo para mascar; b) o algodão, que, ape- sar de já ser conhecido na Europa e no Oriente, acabou sendo substituído pelo americano devido a sua melhor qualidade; c) a erva-mate, utili- zada pelos indígenas para fins medicinais, atualmente dela se deriva o chá mate, consumido largamente no Brasil e no mundo; e d) o guaraná, poderoso estimulante. Diversos produtos que atualmente são coletados no país também já eram extraídos pelos indígenas antes da chegada dos portugueses. É o caso do babaçu, do qual se retirava azeite para comer e para iluminação; o palmito, retirado das palmas; a castanha-do-pará; os pinhões; a castanha- -sapucaia; e a castanha-do-maranhão. Para além da questão alimentícia, é possível enfatizar também os aspectos medicinais das culturas indígenas apropriados pelo “homem branco”. Dentre eles, podemos citar o curare indígena, veneno extraído da casca de cipós, letal apenas quando entra na circulação sanguínea, levando à paralisia dos músculos do coração. Dele se extrai a curanina, um alca- loide empregado como relaxante muscular em intervenções cirúrgicas. Pode-se mencionar, ainda, o jaborandi, um forte sudorífico; a copaíba, atualmente utilizada contra afecções das vias urinárias; a quina, da qual se extrai a quinina – dentre outros alcaloides – utilizada para a cura da malária (RIBEIRO, 2009). No campo da linguística, as culturas indígenas legaram uma série de palavras usadas no português contemporâneo. Elas estão presentes na designação de pessoas: caipira, caipora; de comidas: pururuca, pipoca, aipim; de animais e figuras míticas: graúna, colibri, arara, sabiá, jaguar, jacaré, tatu, paca, boitatá, taturana, saracura; de vegetais: imbira, urucu, tapioca, araçá, jenipapo, mandioca, goiaba; substantivos: Iracema, Jaçanã, Maracanã, Guanabara, Butantã (SANTOS SOUZA, 2016). Concluindo, enfatizamos a importância das culturas indígenas para a necessidade de políticas públicas que preservem seu patrimônio e que lhes propiciem melhores condições de manterem seus modos de vida, suas tradições e, de acordo com o desejo de cada comunidade, a inserção delas nas culturas urbanas sem que isso signifique o fim de suas identi- dades e tradições. História e Cultura Indígena – 36 – Síntese O estudo das culturas indígenas deve ser acompanhado de um pro- cesso de relativização dos valores e concepções das culturas dos não-indí- genas. Os mitos ocupam um lugar imprescindível para as comunidades indígenas, integrando o tempo, o cosmos e a natureza a partir de um fio condutor narrativo que, apesar de aberto a mudanças, nunca se altera estru- turalmente. O estudo das culturas indígenas colabora para uma melhor compreensão de nosso próprio presente, permitindo a reflexão sobre seu papel no processo de formação cultural do Brasil, presente na língua, nos hábitos alimentares, na produção de remédios. A multiplicidade de cul- turas indígenas é um convite para a reflexão, de modo a considerar de maneira menos estereotipada suas colaborações para a formação cultural brasileira e as próprias identidades e lutas indígenas. Atividades 1. Explique a importância dos mitos para os indígenas e sua rela- ção com a natureza. 2. Leia o trecho a seguir: “Uma das lembranças mais agradáveis que tenho da minha infância é a de meu avô me ensinando a ler. Mas não ler as pala- vras dos livros e, sim, os sinais da natureza, sinais que estão presentes na floresta e que são necessários saber para poder nela sobreviver. Meu avô deitava-se sobre a relva e começava a nos ensinar o alfabeto da natureza: apontava para o alto e nos dizia o que o voo dos pássaros queria nos informar.” (MUNDURUKU, Daniel. A escrita e a autoria fortalecendo a identidade. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/ pt/A_escrita_e_a_autoria_fortalecendo_a_identidade>. Acesso em: 26 maio 2018.) – 37 – As culturas e as línguas indígenas A partir do fragmento acima e do que leu neste capítulo, dis- serte sobre a importância da oralidade para as culturas e iden- tidades indígenas. 3. Relacione a maneira como os indígenasentendem o tempo e sua diferença frente ao modo como o tempo é experimentado pelo não-indígena ocidental. 4. “Mandioca [...]. Logo no início da colonização, ela se impôs como o pão da terra. Sua importância na hierarquia das plan- tas alimentícias americanas só cede lugar à batata e ao milho. A mandioca está hoje difundida por toda a zona tropical da África, da Ásia e da América, de onde é nativa, tendo sido domesticada provavelmente no Brasil”. (RIBEIRO, 2009, p. 107) A partir do excerto acima, discorra sobre a importância con- temporânea dos cultivos naturais originalmente praticados pelos indígenas. 3 Teorias raciais e a ilusão do primitivismo Nesse capítulo iremos abordar as teorias raciais, sua inci- dência sobre as sociedades indígenas e, ainda, as representações que se construíram sobre os índios no romantismo brasileiro. É preciso sublinhar que buscaremos compreender a visão, as teses e os estereótipos criados pelos “homens brancos” sobre os indí- genas. Afinal, essas noções a respeito dos povos nativos orien- taram as formas de contato entre não-índios e índios e, ainda, os projetos estatais na formulação de suas políticas indigenistas. Lembrando que essas se referem às legislações postuladas pelos não-indígenas e direcionadas aos indígenas. 3.1 Teorias raciais As teses raciais – como evolucionismo social e darwinismo social – foram formuladas, sobretudo, nos países europeus e nos Estados Unidos durante o século XIX. Elas foram intro- duzidas no Brasil em meados de oitocentos e ganharam força a partir de 1870, tendo grande vitalidade até aproximadamente 1930 (SCHWARCZ, 1993). As teorias racialistas, conforme Lilia História e Cultura Indígena – 40 – Moritz Schwarcz, impuseram um contundente dilema para a intelectua- lidade brasileira do século XIX, a saber: como pensar a nação brasileira – extremamente miscigenada – diante dos prognósticos tão negativos pos- tulados pelas análises científicas da época? As noções de miscigenação e hibridismo racial não eram vistas com bons olhos, tanto para europeus como para brasileiros, desde o tempo colonial. O Brasil independente em 1822 era um país formado pela mistura do índio, do africano e do europeu. Não havia como negar a miscigenação existente. Na ordem do dia estava a busca por compreender a formação populacional brasileira à luz das ideias em circulação naquele período. Assim, objetivamos apresentar as bases das imagens formuladas a respeito dos indígenas, as quais, em grande medida, nortearam as formas de contato, integração e exclusão dos índios na história do Brasil. No século XIX, o conceito de “raça” foi além de sua definição bioló- gica, abarcando também uma interpretação social: o termo raça, antes de aparecer como um conceito fechado, fixo e natural, é entendido como objeto de conhecimento, cujo signi- ficado estará sendo constantemente renegociado e experimentado nesse contexto histórico específico, que tanto investiu em modelos biológicos de análise (SCHWARCZ, 1993, p. 24). Diante disso, como indicado por Lilia M. Schwarcz, a noção de raça foi constantemente ressignificada e renegociada a fim de atender as demandas dos diferentes agentes daquele contexto histórico. No entanto, nessa nova apreensão, a ideia de raça corresponderia à “existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos” (SCHWARCZ, 1993, p. 63). Para John M. Monteiro, mesmo antes da introdução das teorias e técnicas de estudo das raças, os estudos etnográficos já haviam postulado questões que influenciaram no tipo de teses estrangeiras sobre as raças humanas que seriam consumidas, assunto que será abordado na sequência. Antes, no entanto, faz-se necessário delimitar as teorias raciais que ganharam espaço no Brasil durante o século XIX e início do século XX. As teses raciais possuem seus pilares em noções que perpassam a com- preensão de etnocentrismo, que consiste na visão ou na concepção de pen- samento que postula a supremacia étnica e cultural de um povo ou nacionali- dade sobre outros. Durante o século XIX, as ideias etnocêntricas e científicas – 41 – Teorias raciais e a ilusão do primitivismo caminharam lado a lado e foram utilizadas para justificar uma suposta supre- macia dos brancos, europeus e “civilizados” sobre os demais povos. Conforme Roque de Barros Laraia (2002), a partir da publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin, em 1859,1 a Europa vivenciou a publicação de uma série de estudos que buscavam aplicar as ideias evo- lucionistas ao contexto das instituições sociais. Disso emergiu interpreta- ções que propunham o desenvolvimento uniforme da cultura e uma noção linear da evolução dos povos. Isto é, postulou-se a existência uma “escala de civilização” pela qual todos os povos estavam determinados a percor- rer. Em um extremo dessa escala estaria os povos selvagem/primitivos e no outro extremo estaria as sociedades europeias, consideradas as mais civilizadas/avançadas naquele contexto oitocentista: Desta maneira era fácil estabelecer uma escala evolutiva que não deixava de ser um processo discriminatório, através do qual as diferentes sociedades humanas eram classificadas hierarquica- mente, com nítida vantagem para as culturas europeias (LARAIA, 2002, p. 34). Diante disso, consonante ao evolucionismo social, a raça branca apresentava maior capacidade intelectual e estava em um estágio mais avançado da evolução que as demais raças. Essa interpretação de desen- volvimento social associada às características biológicas colocava o Brasil na retaguarda da evolução, pois, além de ser formado por negros e índios, era – e é – um país miscigenado. Outra tese racial vigente nessa conjuntura – e que possui estreita relação com o evolucionismo social – é o darwinismo social. Segundo as observações feitas por Charles Darwin em plantas e animais, a natu- reza realizaria uma seleção natural, em que o ambiente preservaria os mais adaptados e eliminaria os menos aptos, já que os recursos naturais são escassos e existe uma luta pela sobrevivência. Essas noções foram deslocadas para o âmbito social e político, os quais serviram para justi- ficar as políticas de dominação, de extermínio e a expansão imperialista do século XIX. 1 É importante destacar que Charles Darwin formulou sua teoria sobre a seleção natural, a origem e a evolução das espécies para o âmbito da biologia e não para a aplicação e análise das sociedades humanas. História e Cultura Indígena – 42 – Em suma, conforme Lilia M. Schwarcz (1993, p. 75): “bastou mini- mizar a importância da origem comum e relevar as máximas deterministas, presentes na ótica darwinista, que apontavam para a importância das leis e regularidades da natureza”. Assim, quando aplicadas ao contexto social, as ideias de seleção natural eram utilizadas para pensar uma suposta dege- neração social e as leis da natureza determinavam o estágio do progresso e do desenvolvimento civilizacional de povos e nações. Saiba mais É primordial ter em mente que as divisões de raças em branca, negra, amarela, entre outras, foram cientificamente desconstruídas. Ou seja: em termos biológicos, inexistem raças humanas. O pesquisador Sér- gio D. J. Pena (UFMG) desenvolveu um importante trabalho em que demonstra a existência de somente uma espécie: a humana. Sobre este tema, confira o vídeo: <https://www.youtube.com/ watch?v=2n4wnjQqWYQ > 3.2 Os índios e as teses racialistas no Brasil do século XIX Vimos no tópico anterior algumas teorias raciais que circularam no Brasil durante o século XIX e que tiveram significativo impacto sobre os povos indígenas. Mas, qual é a origem das visões negativas e distorcidas acerca dos índios brasileiros? E, sobretudo, qual o efeito das teorias raciais oitocentistas sobre os povos indígenas? Em princípio,como sublinhado pelos historiadores Giovani José da Silva e Anna Maria Ribeiro (2018, p. 17-18), desde dos primeiros anos do processo de colonização, foram criadas imagens estereotipadas sobre os indígenas: A começar com a chegada dos portugueses e prosseguindo ao longo dos séculos, a figura do índio foi construída com base em registros históricos e iconográficos. Imagens e textos sobre o Novo Mundo e seus habitantes podem ser observados em Hans Staden, Jean de Léry, André Thevet, Theodor de Bry, Gabriel Soares de – 43 – Teorias raciais e a ilusão do primitivismo Sousa, Fernão Cardim, Yves d’Évreux, entre outros, com ênfase nas práticas de canibalismo. As cartas jesuíticas também colabo- raram para a construção desse imaginário, pois, ao relatarem as vicissitudes dos trabalhos de colonização e catequese, reforçaram as ideias de selvagem e barbárie. A disseminação das imagens do “selvagem”, da “barbárie”, das prá- ticas antropofágicas criou as justificativas necessárias para o processo de colonização, de dominação, de tutela e, inclusive, de extermínio dos ameríndios.2 Dessa forma, tendo como finalidade incutir os ditos valores civilizados nos indígenas, empregou-se a catequese, os aldeamentos, e até mesmo a adoção das crianças indígenas por famílias não-indígenas. Essas práticas e representações sobre os povos indígenas se mantiveram também durante os anos do Império e da República. Elas também contribuíram para a forma como as teorias raciais estrangeiras foram recebidas e apro- priadas pela intelectualidade brasileira do século XIX e início do XX. Figura 3.1 – Gravura intitulada Os filhos de Pindorama, 1557. Artista Theodor de Bry (1528-1598) Nessa imagem, o editor belga Bry representou as práticas do canibalismo dos índios Tupinambás que habitavam a América portuguesa. Fonte: Theodor de Bry/Wikipedia>. 2 Sobre as imagens e as representações acerca dos indígenas no período colonial, ver: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. História e Cultura Indígena – 44 – O historiador John M. Monteiro destacou três fatores que nortea- ram o consumo das teses raciais no Brasil, os quais possuem vínculos diretos com os índios brasileiros. O primeiro deles consiste no binômio Tupi-Tapuia, cujos significados foram construídos com base nos tratados, crônicas, cartas, legislações, entre outros tipos de documentos produzi- dos durante os séculos de colonização. O termo Tupi, na América portu- guesa, foi utilizado para se referir aos aliados dos portugueses. Enquanto a expressão Tapuia foi utilizada para se referir, genericamente, aos inimigos, àqueles grupos que resistiram às investidas lusitanas e que representavam um obstáculo ao avanço da civilização. No século XIX, a expressão Tupi passou a remeter à matriz da nacionalidade brasileira, visto que: foram as alianças e a mestiçagem luso-tupi que consolidaram a presença portuguesa na América e que estabeleceram os primeiros troncos de famílias brasileiras. Para os pensadores do Império, os índios Tupis, relegados ao passado remoto das origens da naciona- lidade, teriam desaparecido enquanto povo, porém tendo contribu- ído sobremaneira para a gênese da nação, através da mestiçagem e da herança de sua língua. (MONTEIRO, 2001, p. 172). O segundo elemento apontado por Monteiro (2001, p. 172-173) a respeito da recepção das teses racialistas centra-se na política indigenista aplicada durante o Período Imperial, que se fundamentava no par Tupi- -Tapuia. Trata-se de uma questão herdada ainda do Período Colonial, a qual residia nas conflitantes demandas dos distintos agentes (autoridades locais, proprietários de terras, padres etc.) entre as políticas assimilacio- nistas e repressivas. Isto é, se eles iriam atrair e civilizar os índios ou se eles iriam reprimir e exterminar os índios. O terceiro fator remete à importância do fim do tráfico negreiro (1850) e à abolição da escravidão no Brasil (1888) no debate sobre a ques- tão indígena. É importante ressaltar que a incorporação do indígena às sociedades colonial ou pós-colonial passa de modo significativo pelo uso de sua força de trabalho. Assim, tanto no período colonial como no impe- rial, houve aqueles que defenderam a substituição do escravizado africano pelo indígena. Diante disso, para Monteiro: As teses raciais passaram a permear esta discussão, colocando em causa a potencialidade não apenas dos índios, como também dos mestiços, dos descendentes de escravos e dos próprios ex-escra- – 45 – Teorias raciais e a ilusão do primitivismo vos, face à propalada superioridade de imigrantes brancos. Tais questões alimentavam uma parcela significativa do pensamento social brasileiro no ocaso do Império e no início da República e ocupavam, neste período, a agenda dos cientistas então abriga- dos nos museus de história natural e nas academias de medicina (MONTEIRO, 2001, p. 174). Monteiro indicou que houve um consenso em torno de uma espécie de padrão evolucionista, segundo o qual os indígenas que restaram forma- vam uma “raça” ou mesmo um conjunto de “raças”, que estava em vias de extinção. Havia diferentes vertentes intelectuais que se dispunham a pensar a questão indígena no Brasil. Uma dessas vertentes enfatizava a existência de variados atributos positivos das “raças” nativas que pode- riam contribuir para a formação do povo brasileiro, por meio da misci- genação. Para outra vertente, que fazia uso das teses raciais europeias e estadunidenses, a ênfase recaía sobre os atributos negativos das “raças” nativas que, segundo eles, consistia na existência de uma inferioridade moral, física e intelectual. Esses elementos eram empregados como justi- ficavas para a exclusão dos povos indígenas do futuro brasileiro, ainda que para isso fosse necessário o emprego da violência. Nessa perspectiva, o que estava na ordem do dia para esses intelec- tuais do século XIX era a imagem do Brasil como um país civilizado ou, ainda, como um país que teria a possibilidade de superar os atrasos e as contradições e, assim, atingir o nível dos países ocidentais civilizados. Para que esse lugar tão almejado pelos construtores da nação brasileira fosse alcançado, era necessário solucionar o dilema da incorporação, eli- minação ou substituição dos indígenas e dos escravizados (MONTEIRO, 2001, p. 174). Os prognósticos acerca dos povos indígenas, de modo geral, não eram nada esperançosos. Pois, como Monteiro (2001, p. 175) destacou, a partir dos estudos de George Stocking Jr., certos grupos intelectuais postulavam a impossibilidade de certas raças alcançarem a civilização. Para fazerem tal afirmação, esses pensadores se baseavam nas circunstâncias históricas vivenciadas pela expansão europeia no século XV e XVI, em que muitas sociedades primitivas nas Américas e no Pacífico Sul desapareceram. No Brasil, a vertente pessimista ganhou espaço e vislumbrava o desapareci- mento total dos índios, o que felizmente não aconteceu. História e Cultura Indígena – 46 – Podemos dizer, em poucas palavras, que os efeitos das teses raciais sobre os indígenas brasileiros foram diversos. Afinal, houve pessoas que, apoiadas nas ideias racialistas, defenderam a incorporação dos indígenas à sociedade brasileira por meio das políticas filantrópicas – como a adoção das crianças indígenas pelas famílias não-indígenas –, da catequese e do trabalho. Ou aquelas pessoas que, também amparadas pelas teorias raciais, argumentaram a favor do uso da violência e do extermínio dos índios, por considerarem que eles eram “degenerados” e “atrasados”. Figura 3.2 – Imagem intitulada Festa do Coroado, produzida pelos naturalistas alemães Johann B. Spix e Carl F. P. von Martius, no período em que visitaram o Brasil, entre 1817 e 1820 Fonte: Johann B. Spix e Carl F. P. von Martius/Wikipédia. Saiba mais Expedições naturalistas do século XIX Após a vinda da Coroa Portuguesa para a América portuguesa, em 1808, teve início a prática de expedições científicas europeias através do território brasileiro, as quais buscavam conhecer sua geografia, sua natureza e sua gente. Muitos dos viajantes europeus que aqui estiveram registraram diários, coletaram espécimes e fizeram desenhos bastante – 47 – Teorias raciais e a ilusão do primitivismo detalhados, capturando os costumes dos indígenas. Esses registros fei- tos pelos viajantes, em geral, eram publicados, divulgados e bastante consumidos pelos europeus, que tinham grande curiosidade sobre o “exótico”. Dentre os principais viajantes estão: Saint-Hilaire (1779- 1856), Alexander von Humboldt (1769-1859), Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), Johann Baptist von Spix (1781-1826), etc. Muitas das imagens referentes aos indígenas, que ilustram os livros didáticos de história atuais, foram produzidas pelos naturalistas europeus do século XIX e estão inseridas nesse contexto permeado pelo olhar etno- centrista e eurocentrista que contrapõe “barbárie” e “civilização”. 3.3 A ilusão do primitivismo Na verdade, cada qual considera bárbaro o que não é praticado em sua terra. Montaigne O que significa ser “primitivo”? De onde vem essa concepção? A partir do século XVIII, os povos considerados “selvagens” passaram a ser compreendidos e caracterizados como “primitivos”. A noção de “pri- mitivo” deriva de uma visão bíblica, segundo a qual a humanidade pos- suiria uma origem e uma evolução comum. Nesse caso, o significado de “primitivo” remeteria a “primeiro”, isto é, ao começo da espécie humano a partir de Adão e Eva (SCHWARCZ, 1993, p. 58). Além disso, o termo “primitivo” era usado, grosso modo, pelos homens dos séculos XVIII e XIX, no Brasil, remetendo aos povos que eles consideravam desprovidos de rei, de lei, de religiosidade, de história, de propriedade privada indi- vidual e cujo modo de vida era caracterizado pelo nomadismo (TURIN, 2006). É preciso salientar, ainda, que a expressão “primitivo” coincide também com a existência de uma suposta “infância da humanidade”, em que os povos indígenas – assim como crianças – poderiam aprender os valores “civilizados”. Essas acepções do termo “primitivo” nos conduzem para o debate sobre o reconhecimento da diversidade cultural existente entre os diferen- tes grupos humanos e sobre a importância das concepções de alteridade História e Cultura Indígena – 48 – e etnicidade. Para desfazer a “ilusão do primitivismo”, é preciso reco- nhecer a existência de um outro além de si mesmo, o qual não é inferior, nem superior, mas sendo igual em condição humana e diferente em cul- tura. O filósofo Michel de Montaigne, na epígrafe anterior, sintetizou com eficiência o que as teses raciais e as representações formuladas sobre os indígenas significaram: a dificuldade daqueles homens em reconhecerem um outro. Diante disso, cumpre sublinhar a inexistência de uma escala segundo a qual parte-se do primitivo para alcançar o mais avançado. Existem for- mas de desenvolvimento cultural distintas, afinal, a cultura é um elemento histórico, dinâmico, flexível e que apresenta plasticidade; de tal modo que, as distintas sociedades humanas, em face de suas experiências históricas e culturais, apresentam desenvolvimentos diferentes. 3.4 Os índios e o romantismo do século XIX Ao longo do século XIX, vislumbramos distintas representações a respeito dos índios brasileiros, as quais, como um pêndulo, deslocam-se entre visões preconceituosas, estigmatizadas, idealizadas e românticas. Embora o índio dentro do imaginário racial daquele período fosse com- preendido como um ser “primitivo”, ele também foi tomado como sím- bolo nacional. Porém, como transformar o índio “selvagem”, “obstáculo da civilização”, em matriz da identidade brasileira? Para atender a esse fim, foi criada uma imagem romântica do índio, a qual não correspondia à realidade dos nativos que habitavam o interior do país, mas cumpria um papel dentro dos propósitos dos construtores da nação do século XIX. Assim, enquanto nas correspondências trocadas entre as autoridades locais ou nos debates entre os intelectuais do Instinto Histórico e Geográfico Brasileiro,3 a questão indígena era apresentada como um problema; nos discursos, nas obras literárias, nas pinturas que 3 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), como veremos no capítulo 4, foi uma instituição criada em 1838, no contexto de construção do Estado nacional brasileiro. Os membros desse organismo estavam preocupados em construir uma narrativa do passado nacional, mapear as riquezas, geografias e populações que formavam o território brasileiro. – 49 – Teorias raciais e a ilusão do primitivismo se encontram inseridas no romantismo brasileiro, o indígena era tomado como o “bom selvagem”, símbolo da identidade brasileira. Segundo a pesquisadora Heloísa Toller (2007, p. 116), o modelo do “bom selvagem” pode ser entendido como símbolo da natureza, síntese da bondade e da sabedoria. Essas representações exaltavam um suposto índio que pertencia ao passado do território brasileiro, ao mesmo tempo em que ignoravam e depreciavam os índios daquele presente oitocentista. Portanto, a imagem do índio, durante o século XIX, serviu aos inte- resses do Estado como símbolo nacional e de identidade pátria. Toller (2007, p. 116) salienta que o indianismo brasileiro se colocou a serviço das ordens dominantes. Dois exemplos desse movimento podem ser per- cebidos nas poesias de Gonçalves Dias e nos romances O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) de José de Alencar. O poeta Gonçalves Dias (1823-1864) é considerado um dos expoen- tes do romantismo e do indianismo no Brasil. Ele publicou poemas impor- tantes como Canção dos Tamoios, I-Juca Pirama e Os Timbiras, nos quais exaltava as qualidades das suas personagens indígenas, tais como a cora- gem, a bondade filial e a honra. Como podemos observar no excerto do canto IV de “I-Juca Pirama”: Meu canto de morte Guerreiros ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros descendo Da tribo Tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci: Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, História e Cultura Indígena – 50 – Guerreiros ouvi. [...] Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Enquanto não chego, Qual seja, - dizei! José de Alencar, por sua vez, conferia ao índio um lugar preponde- rante na formação da nacionalidade e na miscigenação que se realizou com a cultura europeia (ALONSO apud SILVA; GRUPIONI, 1995, p. 247-248). O elogio ao “bom selvagem” em Alencar se manifestou, por exemplo, em O Guarani no seguinte fragmento: “A sua inteligência sem cultura, mas brilhante como o sol de nossa terra, vigorosa como a vege- tação deste solo, guiava-se nesse raciocínio com uma lógica e uma pru- dência, dignas do homem civilizado” (ALENCAR, [s. d.], p. 114). Nesse fragmento podemos ainda perceber uma certa correspondência que o autor estabeleceu entre o índio e os valores do “homem branco e civilizado”. Em suma, a imagem do índio no Brasil foi apropriada de dife- rentes formas, atendendo a interesses diversos. Essas imagens, em grande parte, dissolveram a diversidade existente entre os distintos gru- pos indígenas e reforçaram a noção do “índio genérico” – expressão cunhada por Darcy Ribeiro na segunda metade do século XX. A lite- ratura do século XIX, a qual buscava criar as bases de uma literatura nacional e sustentar políticas que contribuíssem para a construção de uma identidade brasileira, tomou o índio como símbolo de nacionali-
Compartilhar