como as pessoas que iam no carro, e encurtaram alguns minutos o caminho, com desgosto de Eugênia. Voltando a Andaraí, Estácio trazia a alma pura de todas as más impressões que lhe deixavam usualmente as visitas à casa de Camargo. Nenhuma briga houve naquele dia. Eugênia parecia modificada. Em casa esperava, porém, uma desagradável notícia: a tia sentira-se incomodada pouco depois que ele saiu e recolheu-se ao quarto. O caso afligiu-o, mas não tardou a apare- cer Helena, que o tranquilizou, dizendo-lhe que D. Úrsula tinha apenas uma forte dor de cabeça, já diminuída com o emprego de um remédio caseiro. No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia sossegadamente, Estácio abriu uma das janelas do quarto e passou os olhos pela chácara. A alguns passos de distância, entre duas laranjeiras, viu Helena a ler atentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as suas quatro páginas escritas. Seria alguma mensagem amorosa? Esta ideia mexeu muito com ele. Afastou-se da janela, ajustou as cortinas, e pela fresta pro- curou observar a irmã. Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página. Ali chegando, deu dois passos, tornou a parar, voltou ao princípio da carta, para a ler de novo, não já depressa, mas calmamente. Estácio sentiu-se movido de forte curiosidade, à qual vinha misturar-se uma sombra de despeito e ciúme. Helena.indd 56 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 57 A ideia de que Helena podia repartir o coração com outra pessoa desconsolava-o, ao mesmo tempo que o irritava. A ra- zão de semelhante exclusivismo não a explicou ele, nem tentou investigá-la; sentiu somente os efeitos, e ficou ali sem saber que faria. Duas vezes saiu da janela para encontrar-se com a irmã, mas recuou de ambas, refletindo que a curiosidade pareceria falta de educação, se não era talvez tirania. Ao fim de alguns minutos de dúvida, saiu do quarto e dirigiu-se à chácara. Quando ali chegou, Helena passeava lentamente, com os olhos no chão. Estácio parou diante dela. — Já fora de casa! Exclamou em tom de gracejo. Helena tinha a carta na mão esquerda; instintivamente a amarrotou como para escondê-la melhor. Estácio, a quem não escapou o gesto, perguntou-lhe rindo se era alguma nota falsa. — Nota verdadeira, disse ela, alisando tranquilamente o papel, e dobrando-o conforme havia recebido; é uma carta. — Segredos de moça? — Quer lê-la? Perguntou Helena, apresentando-lhe. Estácio ficou vermelho e recusou com um gesto. Helena dobrou lentamente o papel e guardou-o no bolso do vestido. A inocência não teria mais puro rosto; a hipocrisia não encontraria mais impassível máscara. Estácio contemplava-a, a um tempo envergonhado e suspeitoso; a carta fazia-lhe cócegas; o olhar ambicionava ser como o da Providência que penetra nos mais íntimos cantos do coração. Vieram, entretanto, dizer a Helena que D. Úrsula lhe pedia que fosse ter com ela. Estácio ficou só. Uma vez só, entregou-se a um inquérito mental sobre a proce- dência da misteriosa carta. Um indício havia de que podia con- ter alguma coisa secreta: era o gesto com que ela a escondeu. Mas não podia ser de alguma antiga companheira do colégio, que lhe confiava segredos seus? Estácio abraçou com alvoroço esta hipótese. Depois, ocorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga, a carta podia tratar de alguma questão de colégio, em que Helena fosse participante, questão viva ou morta, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso, que tinha ele com isso? Helena.indd 57 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 58 Fazendo esta última reflexão, Estácio sacudiu do espírito o assunto e seguiu a examinar as novas obras da chácara, entre as quais estava um grande tanque. Já ali estavam os operários; ia começar o trabalho do dia. Estácio viu a obra feita e deu várias indicações novas. Algumas eram contrárias ao plano combinado; como lhe fizessem tal observação, Estácio retificou-as. Depois admirou-se de não ver um vaso, que aliás dois dias antes ha- via mandado remover; enfim, recomendou que regassem uma planta, ainda úmida da água que o serviçal lhe havia colocado nessa manhã. D. Úrsula não estava de todo boa, mas pôde almoçar à mesa comum. O sobrinho apareceu aborrecido, a sobrinha triste; o diálogo foi mastigado como o almoço. No fim deste, recebeu Estácio uma carta de Eugênia. Era uma tagarelice meio boba, meio sentimental, mistura de risos e suspiros, sem objeto defi- nido a não ser pedir-lhe que escrevesse se não pudesse ir vê-la. Acabava ele de ler a carta, quando Helena lhe apareceu à porta do gabinete. Não a escondeu; lembrou-se de mostrá-la à irmã na esperança de que ela, pagando-lhe com igual confiança, lhe mostrasse a sua. Helena percorreu com os olhos a carta de Eugênia e esteve algum tempo silenciosa. — Permite-me um conselho? Perguntou ela. E como se Estácio respondesse com um gesto de confir- mação: — Vá ter com Eugênia, solicite licença para ir pedi-la a seu pai, e conclua isso quanto antes. Não é verdade que se amam? Dela creio poder afirmar que sim; de você... — De mim? — Penso que é mais duvidoso; ou você é mais hábil. Há de ser isso. Naturalmente parece que amar é fraqueza para você, — isto é, a coisa mais natural do mundo, — a mais bela, — não direi a mais sublime. Os homens sérios têm preconceitos extravagantes. Confesse que ama, que não é indiferente a esse sentimento inexprimível que liga, ou para sempre, ou por algum tempo, duas criaturas humanas. “Ou por algum tempo!” Repetiu mentalmente Estácio. E estas quatro palavras, tão naturais e tão comuns, ti- Helena.indd 58 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 59 nham ares de uma revelação nova no estado de espírito em que ele se achava. Se Helena tivesse propósito de lhe lançar a perplexidade na alma, não empregaria mais eficaz conceito. Seria na verdade aquele amor, tão travado de desânimos, dissentimentos e alternativas, tão discutido em seu próprio coração, uma afeição destinada a perecer no se pôr da primeira lua matrimonial? — Pois sim, concordou ele, ao fim de alguns instantes, é verdade. Eugênia não é indiferente a mim; mas poderei estar certo dos sentimentos dela? Ela mesma poderá afirmar alguma coisa a tal respeito? Há ali muita frivolidade que me assusta; ilude-a, talvez, uma impressão passageira. — Pode ser; mas ao marido cabe a tarefa de fixar essa impressão passageira... O casamento não é uma solução, penso eu; é um ponto de partida. O marido fará a mulher. Convenho que Eugênia não tem todas as qualidades que você desejaria; mas, não se pode exigir tudo: alguma coisa é preciso sacrificar, e do sacrifício recíproco é que nasce a feli- cidade doméstica. As reflexões eram exatas; por isso mesmo Estácio as interrom- peu. O filho do conselheiro achava-se numa posição difícil. Cami- nhava para o casamento com os olhos fechados; ao abri-los, viu-se à beira de uma coisa que lhe pareceu abismo, e era simplesmente um fosso estreito. De um pulo poderia transpô-lo; mas, se não era irresoluto nem débil, tinha ele por acaso vontade de dar esse salto? Insistindo Helena, prometeu ele que nessa tarde iria visitar Camargo. De tarde desabou um temporal violento. A força do vento e da trovoada abrandou; mas a chuva continuou a cair com a mesma violência; era impossível ir ao Rio Comprido. Estácio estimou aquele obstáculo; era melhor adorar de longe a imagem da moça do que ir colher algum desgosto junto a ela. De pé, encostado a uma das vidraças da sala de visitas, via cair as grossas toalhas de água. Ao lado estava sentada Helena, não alegre, mas sombria e melancólica. — E tão bom ver chover quando estamos abrigados! Ex- clamou ele. Tenho lá na estante um poeta latino que diz alguma coisa neste sentido... Que tem você? Helena.indd 59 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 60 — Estou pensando nos que não têm abrigo ou