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Quem é bárbaro_ - Artepensamento (1)

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19/03/2020 Quem é bárbaro? - Artepensamento
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2004
QUEM É BÁRBARO?
por 
Resumo
Quem é bárbaro? Quem é civilizado? Duas respostas são igualmente tentadoras. A mais
difundida, para todos os povos, em qualquer época, é dizer: nós somos os civilizados, os
outros são bárbaros; sua língua, seus costumes, suas tradições, seus deuses, seus valores
não são os de homens verdadeiros. Sabe-se que os gregos da Antiguidade que sabiam não
estarem sozinhos no mundo, atribuíam-se uma superioridade de civilização sobre todos os
outros povos: é bárbaro todo povo que não fale grego. Os chamamentos, mais recentes, às
guerras santas de todas as espécies, do Bem (nós somos a civilização) contra o Mal (os
outros são a barbárie) são outras ilustrações.
A segunda resposta consiste em negar o problema, a relativizar as noções: nenhum povo é
mais civilizado do que outro, nenhum costume é bárbaro. Todas as culturas são
equivalentes de forma absoluta, tudo depende do critério escolhido: o único valor
universal é a adaptação de cada cultura a seu próprio meio natural. No limite, como dizia
Claude Lévi-Strauss, em fórmula magnífica: “É bárbaro aquele que crê na barbárie”. Esta
atitude não é nova: os próprios gregos, que inventaram a ideia etnocêntrica de barbárie,
também inventaram o relativismo cultural, desde o nascimento da pesquisa histórica e
sociológica com Heródoto.
Estas duas respostas têm princípios e consequências éticas e políticas inaceitáveis. A
primeira é a fonte do escravismo, do colonialismo e do imperialismo. A segunda corre o
risco de levar ao ceticismo sobre suas próprias crenças, mas sobretudo à negação de todo
valor humano universal: o que pensar, realmente, e, acima de tudo, o que fazer, quando
julgamos (segundo nossos próprios critérios culturais) que outras culturas (consideradas
tão “civilizadas” quanto a nossa) são produtoras de humilhação, de opressão, de
exploração? Não podemos condená-las? Mas em nome de que, senão de valores que
pensamos ser absolutos e não daqueles de nossa própria tribo?
Será que podemos sair desta alternativa insustentável, de um lado “somente nossos
valores”, de outro, “tudo se equivale”? Assim sendo nos perguntaremos como determinar
um critério objetivo e absoluto de “civilização”… e pois de “barbárie”… reconhecendo
igual valor a todas as culturas. A resposta talvez esteja na questão: seria então bárbara
toda cultura que não disponha, em seu próprio interior, de possibilidades que lhe
permitissem admitir, assimilar ou reconhecer uma outra?
Francis Wolff
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Samuel Huntington, autor de O choque das civilizações, anunciou a inevitabilidade
de um novo enfrentamento entre o Ocidente cristão e o mundo muçulmano… E o
11 de setembro de 2001 poderia parecer dar-lhe razão. Com efeito, várias redes
islâmicas transnacionais, das quais a Al-Qaeda é a mais conhecida, travam uma
guerra religiosa mundial (para expulsar os infiéis dos lugares sagrados), e ao
mesmo tempo uma guerra política (para unificar politicamente o mundo
muçulmano e impedir de todas as maneiras a integração das minorias
muçulmanas nos países europeus ou nos Estados Unidos). Essas finalidades
estratégicas passam pelo objetivo tático que consiste em enfrentar diretamente o
“Ocidente cristão”, encabeçado pelos Estados Unidos, denominados como “o
Grande Satã”, país que simboliza a um só tempo a onipotência racionalista, o
cristianismo individualista e o materialismo moderno, os três inimigos, segundo a
Al Qaeda, da civilização, ou seja, do islã. Os atentados criminosos de 11 de
setembro contra os Estados Unidos, pela primeira vez no âmago do país inimigo,
foram sua mais espetacular manifestação. Nas horas que se seguiram aos
atentados, o presidente dos Estados Unidos se colocou no mesmo terreno, o da
luta da civilização contra a barbárie: ele falou em “cruzada”, em “luta do Bem
contra o Mal”, e qualificou os atentados como “ataque à civilização” — estando os
islâmicos do lado do Mal e da barbárie. O presidente do Conselho italiano, Silvio
Berlusconi, foi mais explícito em seu desprezo, afirmando a “supremacia da
civilização ocidental sobre o islã”.
Mas quem é bárbaro? A resposta a essa pergunta não deixa dúvidas para os
partidários de Bin Laden: a única civilização é a civilização do islã tal como a
concebem, e a barbárie é a dos infiéis, ou seja, do Ocidente. A resposta dos
presidentes Bush e Berlusconi a essa mesma pergunta tampouco é mais hesitante:
a civilização está em perigo, ameaçada pelo terrorismo cego, pelo fanatismo
frenético e pelo obscurantismo arcaico dos novos bárbaros, que são as redes
islâmicas encabeçadas pelos três países do eixo do Mal: o Afeganistão, o Iraque e a
Coréia do Norte.
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Então, quem é civilizado, e quem é bárbaro? Os fanáticos terroristas suicidas do
11 de setembro são a vanguarda da civilização? Ninguém defende essa opinião,
nem mesmo os muçulmanos ou os países árabes, até porque esses atentados nos
parecem, por sua dimensão inédita e sua brutalidade cega, atos particularmente
bárbaros. Porém, simetricamente, os Estados Unidos podem pretender encarnar a
civilização, e podem-se considerar bárbaros os seus inimigos, ou aqueles que não
reconhecem seus valores? É igualmente difícil pensar assim, mesmo porque
quando um país, uma sociedade ou uma cultura se identifica à civilização,
qualificando como bárbaros seus adversários, quase sempre é para justificar
iniciativas imperialistas menos recomendáveis. Há então outro risco, simétrico ao
anterior: o de que uma pretensão à universalidade (a civilização é única, é a
mesma para todos e para toda a humanidade) esteja a serviço de um desejo de
uniformização (um único modelo de humanidade para toda a humanidade) ou,
pior, de um objetivo expansionista (“nós somos a civilização, eles são a barbárie”).
Nesse caso, a escolha histórica com que depararíamos hoje já não seria entre
“civilização e barbárie”, e sim um entre duas formas de barbárie: a barbárie
destrutiva do fanatismo versus a barbárie devastadora da civilização.
É evidentemente tentador, com efeito, não enxergar diferenças entre as duas
posições. Já que cada um qualifica o outro de bárbaro a fim de defender sua
própria e única concepção de civilização, parece sensato declarar que não existe
civilização, pelo menos não uma ideia única de civilização, apenas culturas
diferentes; portanto, não existem bárbaros, tudo é uma questão de ponto de vista,
cada um chama de civilizado aquilo que ele mesmo é, conhece, compreende, e de
bárbaro o que lhe é estrangeiro ou desconhecido. Também não acredito nisso.
Gostaria inclusive de demonstrar que essa segunda posição (não existe barbárie) é
tão falsa, ou mesmo tão perigosa, quanto a outra, aquela para a qual bárbaro é o
outro.
É preciso então responder realmente, com seriedade, à pergunta: “Quem é
bárbaro?”.
Antes de procurar responder a essa pergunta, porém, é preciso tentar resolver um
problema de definição. O que chamamos de bárbaro? O que é a barbárie?
OS TRÊS SENTIDOS DA BARBÁRIE
Consideremos três fatos, quase ao acaso:
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1. Certos grupos étnicos na Nova Guiné recorrem à antropofagia devoram seus
prisioneiros. Um costume e um povo bárbaros.
2. No ano de 2001, o regime talibã destruiu, no Afeganistão, estátuas gigantescas
e admiráveis que datavam da Idade Média, patrimônios da humanidade. Uma
prática e uma cultura bárbaras.
3. Em 1975, depois que o Khmer vermelhotomou o poder em Phnom Pehn,
houve um gigantesco massacre da população cambojana das cidades, que
resultou em 1 milhão de mortos. Uma prática e um regime bárbaros.
Esses três exemplos de costumes, culturas e regimes que podem com efeito ser
qualificados de “bárbaros” talvez nos remetam a três sentidos bastante distintos da
palavra e, portanto, de seu antônimo: “civilização”.
1. No primeiro, civilização designa um processo, supostamente progressivo, pelo
qual os povos são libertados dos costumes grosseiros e rudimentares das
sociedades tradicionais e fechadas para se “civilizar”, o que supõe que
pertençam a uma sociedade maior, aberta e complexa e, portanto, urbanizada.
A civilização designa esse processo de paulatino abrandamento dos costumes,
de respeito aos modos, ao refinamento, à delicadeza, ao pudor, à elegância
etc., notadamente no cumprimento das funções naturais (comer, defecar,
copular, assoar o nariz, cuspir) e das relações sociais (polidez, modos à mesa,
modos de dirigir-se ao outro). Observe-se que os cínicos, discípulos de
Sócrates, recomendavam a transgressão desses usos e regras da civilização,
tomada nesse sentido, por julgarem-nos artificiais e convencionais: a polidez,
o pudor, a monogamia. E iam além. Recomendavam também o que seus
contemporâneos consideravam atos bárbaros por excelência, a consumação do
incesto ou o consumo de carne crua.
Seja como for, são chamados bárbaros, nesse sentido, os que se comportam como
brutos grosseiros e ignoram as boas maneiras. O bárbaro, no imaginário popular, é
o canibal que vive quase nu no meio das selvas. É também o camponês não
educado, em oposição à civilidade da cidade. A urbe, com efeito, é ao mesmo
tempo a cidade, a pólis, espaço de relações variadas, e a sociedade em geral é o
espaço de intersecção entre a urbanidade e a cidadania. O bárbaro supostamente
se inclui num estágio inferior da evolução política, num estágio pré-civil ou, pelo
menos, pré-urbano.
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Compreendida a civilização nesse sentido, seu grande teórico é o sociólogo alemão
do século XX Norbert Elias, que mostra como, entre os séculos XI e XIX,
desenvolveu-se essa “paulatina modelagem da sensibilidade e do comportamento
humanos”, em um longo processo de racionalização das condutas, ligado a uma
interdependência crescente dos atos de todos os indivíduos, de modo que cada um
possa vir a preencher uma função cada vez mais complexa: desde a mais tenra
infância, todos devem aprender a dar a seus gestos maior firmeza e regularidade,
devem controlar melhor as próprias reações imediatas, impulsos, sentimentos,
afetos, para torná-los compatíveis com uma vida social cada vez mais exigente. Tal
é, para Elias, a marcha da civilização. Não desenvolverei esse ponto no momento.
1. No segundo sentido, a civilização designa as ciências, as letras e as artes, em
suma, o patrimônio mais elevado de uma sociedade. Não se trata exatamente
da cultura, de toda a cultura, e sim da parte mais “desinteressada”, mais
“liberal”, da cultura humana. A “civilização”, compreendida nesse sentido,
designa, portanto, menos as técnicas e os ofícios, menos o know-how prático e
utilitário, do que a parte especulativa, contemplativa e espiritual da vida, o
saber puro, a ciência pela ciência, a arte pela arte, a filosofia, a literatura, a
poesia, a música erudita etc. Os bárbaros são insensíveis ao saber ou à beleza
pura, não respeitam o valor destes ou não compreendem seu sentido, só
reconhecem valor no útil, na satisfação das necessidades vitais ou dos prazeres
grosseiros. O bárbaro, portanto, é aquele que pilha as igrejas para fundir o
ouro que nelas encontra, que queima os livros ou… destrói as estátuas. Para
alguns, é simplesmente a civilização Disneylândia e McDonald’s, pela imagem
que passa da diversão ou da gastronomia.
Nesse segundo sentido, supõe-se que o bárbaro pertença não apenas a um estágio
anterior de socialização ou de história política, como também a um estágio
anterior da cultura humana.
É o sentido mais antigo do termo. Remonta ao barbarus latino, termo que,
adaptado do grego, designava sob o Império romano todos os povos estrangeiros
àquele império. É o termo que serviu para designar todas as grandes invasões da
Europa a partir do século III, notadamente as primeiras, que, produtos de povos
ainda “selvagens”, destruíam tudo à sua passagem, como as magníficas
construções urbanas da Gália.
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O melhor teórico da civilização compreendida nesse sentido é Morgan, grande
antropólogo inglês do século XIX que queria, a um só tempo, retraçar o passado
das sociedades modernas e propor uma tipologia das diversas culturas existentes
em sua época. Trata-se da tese “evolucionista”. Segundo Morgan, toda a
humanidade atravessa sucessivamente, seguindo uma única direção, tão natural
quanto necessária, uma trajetória do simples para o complexo, do irracional para o
racional, compreendendo três fases de desenvolvimento: a selvageria, a barbárie e,
finalmente, a civilização. À selvageria correspondem o arco, as flechas e uma
forma de organização política, a horda primitiva. À barbárie correspondem a
cerâmica, as ferramentas de ferro e uma forma política: a “tribo”. A civilização,
segundo Morgan, é marcada pelo surgimento da escrita e da forma política do
Estado.
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1. No terceiro sentido, ainda mais forte, menos técnico, mas muito mais comum,
“civilização” designa tudo aquilo que, nos costumes, em especial nas relações
com outros homens e outras sociedades, parece humano, realmente humano
— o que pressupõe respeito pelo outro, assistência, cooperação, compaixão,
conciliação e pacificação das relações —, em oposição ao que se supõe natural
ou bestial, a uma violência vista como primitiva ou arcaica, a uma luta
impiedosa pela vida. Os bárbaros são descritos como bichos do mato, dotados
de uma brutalidade feroz, cega e selvagem, sem motivo razoável e, sobretudo,
sem limite racional. É nesses termos que o etnólogo britânico Colin Turnbull
descreveu, em The mountain people (1972), a situação do povo Ik, expulso de
seu ancestral território de caça no Nordeste de Uganda pela criação de um
parque nacional e confinado nas montanhas que separam Uganda do Sudão e
do Quênia. Incapazes de voltar à atividade agrícola, aqueles caçadores, antes
prósperos e felizes, em menos de três gerações se transformaram em pequenas
comunidades de aldeãos degenerados, desprovidos de vida social, como
também de esperança, compaixão, amor e bondade: filhos arrancam a comida
da boca dos pais, estes expulsam os filhos do recinto familiar para não ter de
alimentá-los, deixam morrer em total indiferença os velhos, doentes e
deficientes. A “barbárie” representa aqui a perda de qualquer sentimento
humanitário (assistência ao mais fraco, piedade, benevolência), e parece,
nesse caso, resultar da dessocialização e da desculturação. Mas esse nem
sempre é o caso: também são chamados de bárbaros, no mesmo sentido, os
campos de extermínio do Khmer vermelho ou do regime nazista. De modo
geral, a barbárie, considerada nesse sentido, designa fenômenos
essencialmente destruidores, manifestações de desumanidade incontrolada;
fala-se em “crime bárbaro” em referência a mutilações atrozes, assassinatos
horríveis, sacrifícios humanos em massa, holocaustos, etnocídios, genocídios.
Em suma, no primeiro sentido, civilização é civilidade; no segundo, é a parte
espiritual da cultura; no terceiro, é a humanidade do sentido moral. O primeiro
tipo de bárbaro parece pertencer a um estágio arcaico de socialização; o segundo,
a um estágio arcaico da cultura; e, mais grave ainda, é a um estágio pré-humano
que o terceiro parece pertencer: é o homem que permaneceu em estado selvagem,
que se tornou, ou tornou a ser, desumano.
TRAÇOS COMUNS ENTRE OS TRÊS SENTIDOS19/03/2020 Quem é bárbaro? - Artepensamento
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Há, evidentemente, traços comuns entre esses três sentidos — e parece que
passamos de um a outro imperceptivelmente, ao ponto de seus limites parecerem
difíceis de definir. Nos três casos, a oposição civilização/barbárie determina uma
espécie de divórcio entre o que há de humano, de propriamente humano e,
sobretudo, de supremamente humano, em oposição ao que parece primitivo,
selvagem, bruto, inculto, arcaico. Desse ponto de vista, a oposição
civilização/barbárie parece comparável à oposição cultura/natureza.
Há, porém, duas diferenças importantes entre “cultura” e civilização. A primeira é
de ordem quantitativa. Uma civilização supõe um vasto conjunto geográfico e
histórico, estende-se por longas gerações a diversas sociedades, a numerosas
etnias ou nações, e atravessa continentes, línguas, ou mesmo religiões e regimes
políticos — a cultura, em contrapartida, é local. Pode-se falar, por exemplo, em
“civilização neolítica” para designar o vasto movimento que assinalou, há 8 mil
anos, em diversos lugares da Europa central e do Ocidente mediterrâneo, a
passagem da pedra talhada para a pedra polida, o surgimento da agricultura e da
pecuária, com a domesticação das primeiras plantas e animais e, portanto, a
sedentarização dos homens e o surgimento das primeiras aldeias — o que não
impedia a existência local de técnicas, crenças, costumes e ritos diferentes, que
constituíam diferentes culturas. No mesmo sentido, pode-se também falar em
“cultura francesa” ou “brasileira”, mas diz-se “civilização ocidental” para designar
um conjunto tão vasto quanto indeterminado no espaço e no tempo. Em última
instância, uma civilização é algo tão amplo que nos referimos a ela no singular, a
civilização, como se só houvesse uma. O bárbaro é então, evidentemente,
simplesmente, aquele que está sem civilização ou fora da civilização.
Evidentemente, deparamos aqui com um problema: a civilização é una ou
múltipla? As duas posições parecem problemáticas. Se há apenas uma civilização,
é necessariamente o conjunto a que nós próprios pertencemos, e fora dela há
apenas bárbaros de toda espécie, qualquer que seja a cultura a que pertençam. Em
contrapartida, se há várias civilizações, torna-se difícil diferenciá-las das culturas e
estabelecer entre elas uma hierarquia segundo uma escala que indique um suposto
avanço da civilização. É então que se chega à segunda diferença entre cultura e
civilização, que não é mais apenas quantitativa, mas é também qualitativa.
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Com efeito, a oposição cultura/natureza é uma oposição axiologicamente neutra,
ou seja, sem noção de valor. Podemos defender o valor da cultura contra o da
natureza ou, inversamente, defender a superioridade da natureza sobre a cultura.
Pode-se, por exemplo, julgar necessário defender o natural (o simples, o
originário, o autêntico) contra o cultural (sofisticado demais, corrompido,
desnaturado, depravado etc.). Ao contrário, quando se passa da oposição
cultura/natureza para a oposição civilização/barbárie, o valor está,
incontestavelmente, apenas do lado da civilização, e o bárbaro é sempre
desvalorizado. Quando se quiser falar depreciativamente de uma forma de
humanidade “próxima de um estado natural”, não se qualificará essa forma como
natural, nem como selvagem ou primitiva, mas como bárbara. Inversamente,
quando se quer valorizar uma cultura em detrimento de outra, ou de todas as
outras, fala-se em civilização. Por isso, civilização não é cultura, mas é a cultura
apenas no que esta supostamente tem de mais elevado, ou é a cultura
supostamente mais elevada — qualquer que seja o aspecto que se queira valorizar:
a socialização (primeiro sentido), o saber (segundo), as relações humanas em
geral (terceiro). Bárbaro, portanto, é o indivíduo, a etnia, a sociedade, a cultura
que parece estranha aos valores ao mesmo tempo mais elevados e mais evoluídos
da humanidade. Em suma, a oposição entre civilização e barbárie é a oposição
entre o Bem e o Mal.
Compreende-se assim como era fácil, para alguns, interpretar o 11 de setembro,
ataque-surpresa de um movimento terrorista panislâmico, como um ataque da
barbárie contra a civilização. O ataque parece inserir-se nos três sentidos da
palavra bárbaro: massacre em massa (em tempo de paz) perpetrado em uma
espécie de arcaico auto-sacrifício humano, animado por um ódio inexpiável pela
Cidade e pela Modernidade, já que atingiu as torres-símbolo da Modernidade, na
cidade que simboliza a Cidade, Nova York.
Mas, justamente, será legítimo esse uso, não apenas nesse caso, mas em geral?
Temos o direito de falar em barbárie? Será possível unificar os três usos da palavra
bárbaro? Estará a mesma ideia de civilização contida nos três casos?
EXISTE UMA LIGAÇÃO ENTRE OS TRÊS SENTIDOS?
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Existiria um estágio pré-humano da humanidade — a barbárie — em que nenhum
dos verdadeiros valores da humanidade fosse reconhecido? Ou melhor, existiria
um processo único que se chamaria civilização, que faria com que, à medida que
os costumes se tornassem mais polidos (primeiro sentido), a cultura se tornasse
mais sábia e refinada (segundo sentido) e o homem, menos brutal, mais moral,
mais “humano” (terceiro)?
Esta é, em certo sentido, a tese que anima O processo civilizador (1939), livro de
Norbert Elias. Segundo Elias, o processo civilizador ocidental é um amplo
movimento histórico que tem um motor secreto: o surgimento do Estado, ou
melhor, a monopolização do poder por parte de uma autoridade única, em um
dado território. Essa autoridade central torna-se a única a poder utilizar a
violência; institui um exército e uma polícia, e autoriza-se a recolher impostos.
Isso tem como consequência o desarmamento dos indivíduos, dos pequenos
grupos, dos potentados locais — e, portanto, uma pacificação geral dos costumes.
Há, porém, outras consequências, particularmente, uma diferenciação cada vez
mais acirrada das funções sociais, com maior pressão da competitividade — e,
portanto, um “crescimento contínuo do número de funções e de homens” dos
quais cada indivíduo depende, o que quer que ele faça. Isso tem consequências
sobretudo psicológicas, que estão na origem de outros dois aspectos daquilo que
chamamos de civilização: repressão dos impulsos espontâneos, domínio das
emoções, ampliação do espaço mental, hábito de refletir sobre as causas passadas
e as consequências futuras dos próprios atos. A vida torna-se menos perigosa, mas
também menos apaixonada e menos agradável, pelo menos no que diz respeito à
satisfação imediata dos apetites. Há um refúgio no sonho, nos livros, na imagem; a
nobreza em via de curialização (corte) põe-se a ler romances de cavalaria, o
burguês admirará no cinema a violência e a paixão do amor. As pulsões são
satisfeitas de modo sublimado, na imaginação, mediante a adoção de uma atitude
de espectador e ouvinte, deixando-se levar por sonhos e devaneios. Observe-se
como os três sentidos do conceito de “civilização” para os quais chamei a atenção
estão ligados na história da Europa ocidental: a humanização e a pacificação dos
costumes (terceiro sentido) são acompanhadas pelo refinamento das relações
sociais (polidez, cortesia, afabilidade, tato, distinção) (primeiro sentido) e pelo
desenvolvimento de uma cultura do espírito e do lazer (literatura, artes liberais,
contemplação estética) (segundo sentido).
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Não se trata aqui de discutir a admirável construção de Elias acerca da história da
Europa. Gostaria apenas de demonstrar, com alguns exemplos, quão equivocado
seria pensar como interligados os três sentidos da barbárie que nos esforçamos por
diferenciar.
Com efeito, é possível demonstrar que os comportamentos mais bárbaros, no
terceirosentido — ou seja, comportamentos selvagens e sanguinários —, são
muitas vezes atos de homens, sociedades e culturas que são — ou se consideram
— os mais civilizados no primeiro e no segundo sentidos. Essa já era, aliás, a tese
de Rousseau em seu Discurso sobre as ciências e as artes: o refinamento dos modos
da corte — por conseguinte, a civilização em seu primeiro sentido — e o avanço
das ciências e das artes — ou seja, a civilização no segundo sentido —, longe de
contribuírem para a depuração dos costumes — para a civilização no terceiro
sentido —, colaboraram, isto sim, para sua perdição — ou seja, para a barbárie no
terceiro sentido.
Vejamos alguns exemplos.
Os gregos consideravam legítima a escravidão dos persas, já que não eram gregos,
ou seja, civilizados, e eram, portanto, bárbaros. Mas o que é mais bárbaro,
desconhecer a retórica ou praticar a escravatura?
Outro exemplo, ainda mais significativo: o dos conquistadores.
Alguns povos que Colombo encontrou eram considerados bárbaros porque viviam
nus e desconheciam a escrita. Outros, como os astecas ou maias, visivelmente
pertenciam a grandes civilizações complexas e urbanizadas, mas eram tidos como
bárbaros porque praticavam uma religião cujos ritos incluíam sacrifícios humanos
em massa. Mas em proporções muito maiores, e em nome da civilização cristã,
todos esses povos foram reduzidos à escravidão, torturados, massacrados, e sua
cultura, seus templos e suas estátuas foram destruídos pelos espanhóis, que,
encantados com o ouro, cometeram ali o primeiro grande genocídio conhecido da
história moderna. Bartolomé de Las Casas já observava: os espanhóis dizem que
eles são bárbaros, mas a barbárie dos espanhóis em relação a eles é muito maior.
Quando finalmente reconheceram que os índios eram dotados de uma alma que os
habilitava à civilização e à conversão cristã, não substituíram a mão-de-obra
gratuita que representavam pelo tráfico de escravos trazidos da África negra? Foi
então que começou o mais longo e racional empreendimento de barbárie da
história moderna, o comércio triangular — em nome (novamente!) da
“civilização” que era preciso levar para além-mar.
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De fato, é muitas vezes em nome do fato de que se é (ou se pensa ser) portador da
civilização (no primeiro sentido, o de refinamento, ou mesmo no segundo, das
ciências e das artes) que se é transformado em bárbaro (no terceiro sentido): essa
é a história de todas as formas de colonialismo, mas também do apartheid. O
discurso do civilizador tem sempre esta estrutura: “Vamos levar a civilização (ou a
verdadeira religião) aos povos bárbaros. Nossa superioridade nos autoriza a tratá-
los como inferiores. Eles nos devem gratidão, já que contribuímos para arrancá-los
de sua barbárie — ou da ignorância, ou do paganismo”. De modo geral, a noção
de civilização serve tanto para valorizar a si mesmo como para justificar a sujeição
de outros povos (ou sociedades). Essa ideologia apoia-se no mito paternalista:
para tirar os povos de sua infância, ou seja, da barbárie primitiva, para trazê-los
para a humanidade (ou seja, para a civilização), todos os meios são válidos. O
problema é que esse empreendimento, dito “civilizador”, nunca beneficiou a não
ser os próprios colonizadores: é essa a forma mais sutil, porém mais indiscutível,
de barbárie (no terceiro sentido).
Talvez exista algo pior, uma barbárie maior ainda. Um povo, uma nação, um
homem pode chegar ao cúmulo da barbárie dando mostras, por outro lado, de um
refinamento ou de uma polidez extremos (sendo civilizados, no primeiro sentido),
e de uma altíssima cultura (sendo civilizados no segundo sentido). É o caso da
Alemanha nazista e das condições em que ocorreu um dos crimes mais bárbaros
da história, o extermínio dos judeus e dos ciganos. Que esse genocídio tenha
ocorrido no país de Goethe e Schiller, de Kant e Hegel, de Beethoven e Schubert,
ou seja, algumas das sumidades da civilização ocidental, só acrescenta mais horror
à barbárie. Havia, é claro, torturadores nazistas sanguinários e ignorantes. Mas
esse não era o perfil predominante. Foi um crime desproporcional, mas cometido
racionalmente, industrialmente, por burocratas frios e militares polidos.
Como observa, a respeito da polidez, André Comte-Sponville, no Pequeno tratado
das grandes virtudes (p. 16):
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A polidez torna o mau mais odioso porque nele denota uma educação sem a qual sua
maldade seria de certo modo desculpável. O crápula polido é o contrário do bruto
tosco, grosseiro, inculto, que é por certo assustador, mas cuja violência inata e
limitada nós podemos ao menos explicar pela falta de cultura. O crápula polido não é
uma fera, nem um selvagem, nem um bruto: pelo contrário, é civilizado, educado, e
por isso indesculpável. Quem poderá dizer do malcriado agressivo se é mau ou
simplesmente mal-educado? Já para o carrasco seleto, pelo contrário, não restam
dúvidas. Assim como o sangue se vê melhor em luvas brancas, o horror mostra-se
mais quando policiado. Diz-se que os nazistas, ou pelo menos alguns deles, primavam
nesse papel. E compreende-se que parte da ignomínia alemã se deva a essa mescla de
barbárie e civilização, de violência e civilidade, a essa crueldade ora polida, ora
bestial, mas sempre cruel, e talvez mais culpada por ser polida, mais inumana por ser
humana, correta, mais bárbara por ser civilizada. Numa criatura grosseira, podemos
acusar o animal, a ignorância, a incultura, atribuir a falta à pilhagem de uma
infância ou ao fracasso de uma sociedade. Num ser polido, não. A polidez é, nesse
caso, como uma circunstância agravante, que acusa diretamente o homem, povo, ou
indivíduo, e a sociedade, não dos seus fracassos, que poderiam ser outras tantas
desculpas, mas dos seus êxitos.
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Desse ponto de vista, é significativa a confrontação entre o horror suscitado pelo
genocídio dos judeus na Alemanha nazista e o genocídio dos tútsis em Ruanda.
Quaisquer que sejam as diferenças de duração e de contexto político, qualquer que
seja a diferença no planejamento e na realização, esses dois genocídios não
deixam de ser comparáveis em sua amplitude e sistematicidade: houve, nos dois
casos, o desejo metódico de massacrar uma etnia e todos os indivíduos (homens,
mulheres, crianças) que dela faziam parte, pelo simples fato de dela fazerem
parte. No entanto, esses dois genocídios ocupam posições opostas no imaginário
ocidental contemporâneo. A barbárie dos hútus, em sua fúria repentina e no modo
técnico de sua realização (com machetes), sempre nos parece — não obstante as
claras determinações políticas, históricas e sociais — uma espécie de regressão a
uma selvageria originária, uma fúria fulgurante de desumanidade, uma violência
bruta e absoluta. A barbárie nazista, por seu caráter sistemático de longo prazo e
por sua realização técnica (da organização hiper-racional das deportações ao
funcionamento industrial das câmaras de gás), parece, ao contrário, ser a
quintessência, e ao mesmo tempo a perversão, da ideia de civilização no que esta
tem de mais elevado. Associada, num dos casos, à monstruosidade bestial, a
barbárie, no outro, vincula-se a seu oposto, à própria civilização. De um lado, o
homem parece desnaturado pela perda da civilização, um defeito o faz desumano
e semelhante a um bruto; de outro, o homem parece desnaturado por excesso de
civilização, desumano como que por excesso, e semelhante a um demônio. E o que
torna o genocídio nazista ainda mais terrível, mais opaco, é que ele une as marcas
mais tangíveis da monstruosidade e da selvageria com os sinais mais evidentes do
saber e da racionalidade.
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Mas esse paralelo entre os dois genocídios refuta, por outrolado, todas as
explicações simplistas que se deram de um e de outro, e que por vezes ainda
vigoram. Foi possível, outrora, acreditar que os grandes massacres genocidas do
passado, como o extermínio de índios, eram uma espécie de retorno do homem a
um estado de natureza selvagem, quando os princípios da civilização se dissolvem
e as leis sociais não vigoram mais. O nazismo mandou para o espaço essa teoria.
Ao desenvolver-se em um dos Estados mais “polidos” da história, no cerne da
nação que, ao longo dos dois séculos anteriores, fora um dos mais indiscutíveis
berços das artes, das ciências e das letras, deitou por terra essa visão simplista.
Passou-se então para a explicação inversa. Assim, depois da guerra, a moda
filosófica, tanto nos meios “heideggerianos” como em torno da Escola de
Frankfurt, foi explicar o genocídio pelo excessivo desenvolvimento da técnica
moderna, e relacioná-lo, consequentemente, à razão ocidental, de acordo com
uma equação simplista: se o genocídio nazista precisou de tal tecnicidade e
racionalidade, é porque era a consequência inelutável do desejo de poder contido
na técnica e no projeto das Luzes. Depois de um outro genocídio, pode-se dizer
que essa teoria também caducou. É possível, sem Kant nem Wagner, querer
exterminar um povo inteiro. É possível matar com machetes 1 milhão de pessoas.
Vamos concluir esta primeira parte. Tínhamos perguntado: “O que é ser
bárbaro?”. Podemos responder: a barbárie, a ideia simples e única de barbárie,
oposta à ideia única e simples de civilização, não existe. Há várias formas de
barbárie e, contrariando o preconceito evolucionista, elas não estão ligadas entre
si. Não existe um eixo único no progresso da humanidade, que parta da selvageria
primitiva e se encaminhe para a mais alta civilização. Na história, há, decerto,
lugares ou momentos de alta civilização, ou seja, de grande desenvolvimento do
pensamento, dos saberes e das artes, por vezes ligado a revoluções técnicas,
muitas vezes vinculado a desenvolvimentos políticos e econômicos, por vezes
relacionado também à centralização do poder e à extensão das cidades. Esses
lugares, esses momentos de alta cultura são muitas vezes acompanhados de uma
socialização refinada (o garfo ou os pauzinhos, a polidez ou as boas maneiras),
mas isso não tem nada a ver com uma suavização das relações com outros povos,
outras etnias, outras culturas. Algumas vezes, os povos menos civilizados nos
sentidos precedentes, outras, os mais civilizados é que são mais bárbaros nesse
sentido. Ora, a verdadeira “barbárie” não é exatamente essa? Não é o recurso
ordinário ou sistemático a práticas ferozes, desumanas, cruéis? — seja na escala
familiar das mutilações rituais ou na escala política dos extermínios em massa?
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Há, portanto, e apesar de tudo, um sentido indiscutível ao se falar em barbárie: o
terceiro, desde que seja dissociado dos outros dois e abstraído da ideologia
simplista da civilização em que normalmente está imerso, segundo a qual a
humanidade segue um avanço único ou obedece a uma só ideia.
QUEM É BÁRBARO?
Já começamos, portanto, a responder a nossa segunda pergunta: “Quem é
bárbaro?”. Em todo caso, já eliminamos implicitamente a resposta mais imediata.
Por desconfiança do outro, por medo do desconhecido, cada povo se sente
espontaneamente o único representante possível da humanidade. “Nós somos a
civilização, e os outros (os estrangeiros, nossos inferiores, nossos inimigos) são
bárbaros.”
Com efeito, não existe uma ideia única de barbárie que reúna os três sentidos que
identificamos.
O mais errado, porém, seria imaginar que certos povos, certas culturas ou certas
religiões seriam, por natureza, “bárbaros” no terceiro sentido, ou seja, mais
perigosos, agressivos ou intolerantes que os outros — de modo que deveríamos
hoje nos preparar para uma guerra em defesa da civilização ameaçada por uma
(ou mais) civilização ou civilizações ameaçadoras.
Tomemos o exemplo da religião (ou da civilização) islâmica. Primeiro, é preciso
lembrar que ela foi um farol da civilização nos dois primeiros sentidos do termo.
Enquanto nos séculos IX e X os monges, como representados por Umberto Eco em
O nome da rosa, rasgavam os livros de magia, ou queimavam-nos, fazendo com
que o Ocidente perdesse dois terços da civilização greco-romana, o islã conservou
textos inteiros de filosofia (Aristóteles), medicina (Galiano) e matemática grega.
Ele foi o primeiro veiculador da civilização antiga na Idade Média; é seu herdeiro,
no mínimo tão legítimo quanto o Ocidente cristão. Na época, o islã tinha a ciência,
a química, a álgebra. Assim, o sistema numérico decimal provém de uma região,
hoje abandonada, do Uzbequistão, o Khwarzem. Os árabes introduziram o zero,
que viera da Índia. Fizeram a síntese do álcool, que proibiram a si mesmos de
tomar. Criaram o poder que permite transferir fundos de um país para outro, o
cheque. Deram ao Ocidente, além da bússola, a vela dita “latina”, que é uma vela
árabe.
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Mas limitemo-nos no momento ao terceiro sentido. Ora, como observou A. Adler,
e muitos outros antes dele, no islã, o grau de tolerância pode ser extremo, como se
viu nos períodos de “apogeu” do islã, como na Bagdá abissínia do século IX, na
Andaluzia omíada dos séculos IX-X, na Constantinopla das grandes sultãos
otomanos, que notadamente acolheram os judeus expulsos da Espanha, ou na
Índia dos primeiros mongóis, nos séculos XVI e XVII… E o islã e seu califado
podem ser infinitamente mais tolerantes que o cristianismo e seu papado: nem a
Europa carolíngia, nem a bizantina, nem a espanhola, com as fogueiras da
Inquisição, podem se permitir julgar do alto o que foi o califado.
Poderão alegar que o Corão contém textos cuja aplicação se revela incompatível
com a ideia de tolerância com outras religiões. É possível. Mas consideremos, por
exemplo, o seguinte texto: “O senhor te dará essas nações diante de ti e as fará
pasmar com grande pasmo, até que sejam destruídas. Também os seus reis te
entregará na mão, para que desfaças os seus nomes de debaixo dos céus; nenhum
homem parará diante de ti, até que os destruas”. Ora, esse texto não foi tirado do
Corão, e sim do Antigo Testamento (Deuteronômio, 7:23-4).
Poderão afirmar que não do ponto de vista da política externa, mas da interna —
por exemplo, a respeito da condição da mulher —, os preceitos do Corão são
especialmente iníquos e tirânicos. Consideremos o seguinte texto:
O homem é a cabeça da mulher […] Toda mulher, porém, que ora ou profetiza com a
cabeça sem véu desonra a sua própria cabeça, porque é como se a tivesse rapada.
Portanto, se a mulher não usa véu, nesse caso, que rape o cabelo. Mas, se lhe é
vergonhoso o tosquiar-se ou rapar-se, cumpre-lhe usar véu. Porque, na verdade, o
homem não deve cobrir a cabeça, por ser ele imagem e glória de Deus, mas a mulher
é glória do homem. Porque o homem não foi feito da mulher, e sim a mulher, do
homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a
mulher, por causa do homem. Portanto, deve a mulher […] trazer véu na cabeça,
como sinal de autoridade.
Ora, esse texto não foi tirado do Corão, mas do Novo Testamento, é um texto de
são Paulo, extraído da Primeira Epístola aos Coríntios. Portanto, o islã não é, por
natureza, mais intolerante que o cristianismo ou o judaísmo. Toda religião tem sua
história, feita de altos e baixos, de momentos de abertura para o outro e de
fechamento sobre si mesma.
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Mas, se é assim, já que, como vimos, é difícil vincular as práticas bárbaras a um
nível supostamente inferior de civilização ou cultura, já que, por outro lado,
nenhuma religião ou crença conduz à barbárie ou é uma proteção contra ela, é
tentador, então, dar um passo adiante e dizer simplesmente: “Não existe
barbárie”,trata-se de uma ilusão de óptica; ou, como Montaigne: “Cada um chama
de barbárie o que não é do seu próprio uso” (Ensaios, I, 30). Hoje, essa ideia é
sustentada com base no conceito “etnográfico” de cultura: não existe barbárie,
todo povo tem sua cultura e todas as culturas se equivalem. Essa é a posição do
relativismo cultural. Eu gostaria de mostrar que tal posição é tão insustentável
quanto a outra, que defende a ideia de uma civilização única e superior, e de
culturas naturalmente inferiores e bárbaras.
Mas vamos dar a palavra, primeiro, aos relativistas. Eles parecem estar com a
razão. Como, com base em quê, perguntam eles, declarar que uma cultura é
inferior a outra? A ideia de “barbárie” parece ter sido inventada por culturas que
se acham superiores para assim tentar justificar o poder que podem exercer sobre
as outras. Portanto, não existe barbárie, mas apenas homens que acreditam na
barbárie, ou afirmam que os outros são bárbaros para tentar utilizá-los em
proveito próprio. Tomemos um exemplo, o de Lévi-Strauss: enquanto os espanhóis
realizavam diversas experiências para verificar se os índios possuíam uma alma
que pudesse ser salva e conduzida à vida eterna, os índios, nas Antilhas,
submergiam os brancos prisioneiros para verificar se o cadáver estaria ou não
sujeito à putrefação, já que eles se achavam imortais. Quem é mais bárbaro?
Aquele que, como o homem branco, se pergunta se o índio é mesmo um ser
humano e não um animal, ou aquele que, como o índio, se pergunta se o branco é
apenas um homem, ou talvez um deus? O mais bárbaro não será justamente
aquele que acredita na barbárie? Percebe-se que o suposto humanismo, a vocação
pretensamente universalista do Ocidente não são apenas máscaras do
imperialismo. Além disso, a propagação planetária da civilização ocidental opõe-se
à variedade das condições históricas e geográficas em que vivem os grupos
humanos. Há que reconhecer o direito que estes têm de conservar sua cultura de
origem e proclamar seu igual valor. Em suma, as verdadeiras Luzes não consistem
em opor a civilização à barbárie, mas em proclamar a palavra de ordem: “Cada
um com a sua cultura — não existe barbárie”.
Lévi-Strauss oferece outro exemplo: o da antropofagia, ou seja, uma das práticas
humanas que nos parecem bárbaras por excelência.
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Lembremos a magnífica análise proposta pelo autor de Tristes trópicos (capítulo
XXXVIII). Nós a julgamos bárbara porque não a compreendemos: “A ingestão de
uma parcela do corpo de um antepassado ou de um fragmento do cadáver de um
inimigo permite a incorporação de suas virtudes ou, ainda, a neutralização do seu
poder […]”. Se retornamos à razão de ser dessa antropofagia ritual, se
compreendemos interiormente o ponto de vista das sociedades que a praticam,
compreendemos que elas “vêem na absorção de certos indivíduos, detentores de
forças temíveis, o único meio de neutralizar essas forças, ou até de beneficiar-se
delas”. Lévi-Strauss faz então uma comparação com nossos próprios costumes
judiciários, que consistem, por sua vez, em encerrar em prisões os indivíduos que
transgridem as leis.
Estudando-as de perto, ficaríamos tentados a opor dois tipos de sociedade: as que
praticam a antropofagia, ou seja, que vêem na absorção de certos indivíduos,
detentores de forças temíveis, o único meio de neutralizar essas forças, e até de
beneficiar-se delas; e aquelas que, como a nossa, adotam o que se poderia chamar de
antropemia (do grego émein, vomitar); diante do mesmo problema, optaram pela
solução inversa, que consiste em expulsar esses seres temíveis para fora do corpo
social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a
humanidade, em estabelecimentos destinados a esse uso. Na maioria das sociedades
que chamamos de primitivas, esse costume inspiraria um horror profundo; ele nos
marcaria, aos olhos delas, com a mesma barbárie que estaríamos tentados a imputar-
lhes por causa de seus costumes simétricos.
Basta, portanto, mudar de ponto de vista para inverter os julgamentos: o que,
visto do lado de fora de uma sociedade, parece bárbaro (a antropofagia para os
que praticam a prisão, a prisão para os que recorrem à antropofagia ritual) parece
humano e civilizado quando visto do lado de dentro (eliminar os indivíduos
nocivos) — e vice-versa. Essa inversão dos pontos de vista é a estratégia clássica
do relativismo.
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A grande lição do relativismo é uma lição espinosista: antes de criticar, de
denegrir, é preciso tentar compreender. Pois bem, façamos o mesmo: antes de
criticar o relativismo, tentemos compreender a que objetivos ele obedece. O
relativismo cultural responde, em Lévi-Strauss, a uma tripla necessidade. Primeiro,
é uma posição ético-política contra os males do expansionismo ocidental,
notadamente colonialista, praticados em nome de um ideal “civilizador”. É
também, segundo ele, uma necessidade metodológica: com efeito, o etnólogo só
pode alcançar resultados científicos se suspender a priori qualquer julgamento
moral sobre o que parece chocante ou “bárbaro” nas populações que estuda.
Finalmente, para o teórico do social que ele é, trata-se de uma questão
epistemológica. De fato, uma das grandes teses antropológicas de Lévi-Strauss é
que onde houver o humano haverá o social; toda sociedade se constrói adaptando-
se, à sua maneira singular, às condições naturais: é a oposição universal, mas
sempre diferente, entre “natureza” e “cultura”. Em Raça e história, Lévi-Strauss
ilustra e desenvolve magistralmente essa tese, comparando as diversas culturas do
ponto de vista de seu modo de adaptação à natureza e, mais genericamente, do
ideal humano que nele se privilegia. Em outros termos, toda cultura tem uma
estrutura interna, cujos elementos devem todos se relacionar entre si para ser
compreendidos. “Estando todo modelo cultural circunscrito à sua área de
validade, nenhum deles é, por direito universal ou absoluto, superior aos
outros.” É a tese oposta ao evolucionismo (tirado de Morgan), que explica as
sociedades por sua história mais do que por sua estrutura, e considera todas as
sociedades como momentos sucessivos de um mesmo devir humano. A
contrapartida do estruturalismo straussiano é, portanto, o igual valor de todas as
culturas, as quais são todas expressões possíveis do humano. Não pode haver
sociedade bárbara.
Conforme lembra Lévi-Strauss, o paradoxo do bárbaro, com efeito, é o seguinte
(Antropologia estrutural, II): “Essa atitude mental, em nome da qual se relegam os
‘selvagens’ (ou os ‘bárbaros’) para fora da humanidade, é justamente a atitude
mais marcante e mais distintiva desses mesmos selvagens […] A tal ponto que um
bom número de populações ditas primitivas designam a si próprias com um nome
que significa ‘os homens’ (ou, às vezes […] os bons, os excelentes, os completos)”.
“O bárbaro, portanto, é antes de tudo o homem que acredita na barbárie.”
Para Lévi-Strauss, portanto, só existem duas atitudes mentais possíveis: o
etnocentrismo, do Ocidente ou do selvagem, que defende o valor absoluto de sua
própria cultura e acredita, portanto, na barbárie; e o relativismo, que reconhece
um valor apenas relativo e igual em todas as culturas, e nega a ideia de barbárie.
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O relativismo cultural parece possuir incontestáveis vantagens morais, políticas e
intelectuais. É desnecessário insistir em suas virtudes políticas e morais. Ele parece
ser consequência natural do humanismo das Luzes. Proclamar o igual valor de
todas as culturas parece ser outro modo de proclamar a igual dignidade de todos
os homens, a melhor proteção contra a uniformização e o imperialismo culturais.
A imensa virtude intelectual do relativismo é que ele é o melhor remédio para o
etnocentrismo ingênuo. Mas é notório um imenso inconvenienteintelectual do
relativismo — que é a contrapartida de sua vantagem: para ele, toda prática, todo
costume, toda crença parece inseparável de uma cultura, e toda cultura
assemelha-se a uma espécie de totalidade fechada, sem janelas para as outras e
inacessível ao julgamento tanto interno como externo. Vamos verificar se esse
inconveniente intelectual não acarreta outros inconvenientes, morais e políticos. E
perguntar-nos se existe uma terceira via entre o etnocentrismo e o relativismo.
Acredito que podemos submeter o relativismo cultural a dois grandes tipos de
crítica: uma crítica moral e uma crítica lógica.
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1. Crítica moral: pode-se observar, primeiramente, que o relativismo cultural
conduz necessariamente ao relativismo moral. Tudo se equivale. Para o
relativista, não existe valor universal, nem prática universalmente válida ou
condenável, nem costume, nem uso — existem apenas culturas específicas.
Quem quer que fale (ou pense falar) em nome do universal estará sempre
falando em nome de uma cultura específica. De fato, para o relativista, não se
pode escapar à própria cultura, tampouco à própria época. Não se pode,
portanto, criticar nenhuma cultura — o que é decerto uma posição de
prudência metodológica contra qualquer forma de etnocentrismo —, mas
também não se podem sequer criticar um uso ou uma crença específicos, ou
um costume, qualquer que seja, ou um valor pertencente a outra cultura, já
que todos justamente pertencem a uma cultura! E já que, no absoluto, toda
cultura é tão respeitável quanto outra. Nada é universal, tudo o que é humano
é cultura, e toda cultura é específica: aquilo em cujo nome se critica — que
não é universalmente válido ou correto — e aquilo que se critica — que não é
universalmente condenável ou injusto. (Observemos, entre parênteses, que
essa posição deixa todo o mundo numa posição muito mais indulgente e
compreensiva em relação aos valores das outras culturas do que em relação
aos valores vigentes em sua própria tribo, já que nenhuma sociedade, por
onipotente que seja no modo de fusão de seus indivíduos, deixa de garantir-
lhes uma margem, por menor que seja, para a crítica, a derrisão, a dúvida, a
desconfiança, a rebelião ou a revolta.) Mas, afinal, como criticar a condição da
mulher entre os talibãs, como criticar o tráfico de crianças praticado na Arábia
Saudita ou nas Filipinas, a tortura como forma sistemática de interrogatório
em certos sistemas judiciários, a escravidão intertribal ainda praticada em
certos países africanos? Em nome do que lutar contra a excisão de milhões de
meninas na África negra, contra o suplício de mulheres adúlteras na Nigéria,
contra o suicídio forçado das viúvas na Índia — se “tudo é cultura” e se todas
as culturas se equivalem? Afinal, não é o “ponto” específico dessas culturas
considerar a mulher como objeto, a criança como mercadoria, um possuído
pelo demônio como possível supliciado, um vencido na guerra como mão-de-
obra servil?
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Não é um costume tradicional, e por isso mesmo respeitável, mutilar meninas ou
forçar as viúvas a imolar-se? Irão alegar que não há motivo para que nós
condenemos a condição das mulheres no Afeganistão, já que elas a aceitam — já
que essa ordem lhes parece tão natural quanto o movimento do sol? Mas, vai
saber! Uma cultura, uma sociedade será um todo tão homogêneo ao ponto de
tampouco haver, dentro dela e aos olhos de alguns de seus próprios membros,
contradições, valores contestados, práticas contestáveis, usos revoltantes,
exploração de uns pelos outros? Será que, também para os escravos negros, a
ordem que os sujeitava aos senhores brancos não tinha se tornado natural?
É necessário, portanto, recorrer a um universal moral, acima de qualquer cultura
específica, e rejeitar como práticas bárbaras o tráfico de crianças, a escravidão, a
excisão, os sacrifícios humanos. Pode-se alegar que esse universal (um apelo à
ideia, supostamente universal, dos “direitos humanos”, por exemplo) não é
realmente universal, já que ele mesmo representa um “ponto” específico, surgido
em sociedades específicas, num momento específico (as sociedades ocidentais do
final do século XVIII), e que essas sociedades não têm o monopólio da moral, nem,
sobretudo, o direito de dar lições aos outros, tendo em vista sua própria história e
as barbáries das quais elas próprias se fizeram culpadas. No entanto, temos de
supor que, qualquer que seja seu local de nascimento e sua expressão específica,
existem valores humanos universalizáveis: do contrário, cada cultura permanece
encerrada em sua ideia específica de humanidade, e ninguém pode criticar
nenhuma prática, nenhum uso, nenhum costume de outra cultura, qualquer que
seja ela — inclusive, portanto, a sua própria.
Resta, então, saber: supondo que exista um universal verdadeiro, e não falso — ou
seja, um ponto específico criado por uma cultura para submeter todas as outras e
reduzi-las à sua própria uniformidade —, como reconhecê-lo? e quem pode
enunciá-lo? E, sobretudo, como fazer com que esse universal de civilização seja
compatível com a diversidade das culturas e que ele não se imponha ao preço da
diversidade destas, nem em benefício de um hegemonismo cultural? É esse ponto
difícil que a segunda crítica do relativismo deveria nos permitir resolver.
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2. Crítica lógica: existe uma crítica “lógica” ao relativismo que remonta a Platão e
Aristóteles. Protágoras defendia que “o homem é a medida de todas as coisas”:
isso equivalia a defender que cada homem, ou cada cidade, é em última
instância juiz do que lhe parece verdadeiro — ou justo, ou bom. Contra esse
relativismo epistemológico, Platão observava, no Teeteto (169 d-171 e), que o
relativista é obrigado a reconhecer, em nome de sua própria teoria, o igual
valor da teoria contrária, ou seja, a teoria que reconhece haver valores
absolutos e universais; em contrapartida, os que acreditam na existência de
valores absolutos não têm a obrigação, dados seus princípios, de reconhecer o
valor do relativismo, já que acreditam apenas em seus próprios valores.
Podemos tentar adaptar essa crítica platônica ao relativismo cultural e traduzi-
la nos termos da oposição civilização/barbárie.
O relativista, aquele que acredita que não existem costumes, práticas ou culturas
bárbaras, e que todas as culturas se equivalem, fica preso num dilema:
Primeira possibilidade: ele abre uma exceção para si mesmo e para a sua própria
posição relativista, e declara que ela é a única não relativizável e absoluta. Entra,
portanto, em contradição consigo mesmo, já que existe um discurso
universalizável, aquele que admite o igual valor de todos os outros. Existem, claro,
discursos inferiores, que são os discursos etnocêntricos de todas as tribos. Existe
também, por conseguinte, uma posição superior, a que não reconhece nenhum
valor absoluto. Essa posição superior é a dele próprio. Ele não só entra em
contradição consigo mesmo como também entra em contradição com todos os
outros, ou seja, com todas as culturas que, por seu lado, só dão valor a seus
próprios valores — ou seja, só reconhecem a existência de seus próprios deuses.
Ele, o relativista, e apenas ele, não pertencerá a nenhuma tribo, ou melhor,
pertencerá a uma espécie de tribo superior, que não crê nos deuses de nenhuma
tribo.
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Segunda possibilidade: ele reconhece que sua própria posição, a posição
relativista, é também uma posição relativizável. Que representa, no fundo, o
“ponto” específico de uma cultura específica, a sua. Que é, por exemplo, uma
invenção do Ocidente. “Ponto” que nenhuma outra cultura reconhece, nem
deveria reconhecer, já que ele não quer impor sua própria cultura “ocidental”aos
outros. Ele não reconhece, para si mesmo, o direito de impor sua posição
relativista às outras culturas, já que isso significaria uma pretensão a absolutizar
seus próprios valores; mas, em compensação, ele deve reconhecer, para as outras
culturas, o dever de impor seus valores às outras, inclusive à sua, já que o “ponto”
delas é querer acreditar em seus próprios deuses e (por exemplo) impô-los à força
a todas as outras. Como ele poderia, sendo um relativista consequente que
reconhece a igualdade de todos os valores específicos de todas as culturas, se opor
a esse “ponto” específico que consiste, por exemplo, para uma dada cultura, em
acreditar que seus deuses são universalmente válidos e em querer, por
conseguinte, impô-los a todo o mundo?
Essa segunda posição tem o mérito aparente da coerência. Esse relativista é um
relativista ao extremo, ou seja, é relativista consigo mesmo, e não com os outros,
já que os outros não o são. Porém (além das dificuldades morais que já
mencionamos), ele depara com uma séria dificuldade intelectual. É que essa é,
sem tirar nem pôr, a posição de seus adversários mais ferozes, os fanáticos, por
exemplo, da Inquisição, ou da Al-Qaeda. Eles acreditam que seus valores e seus
deuses são os únicos possíveis, não só para eles como (já que não são relativistas)
para todo o mundo. De acordo com o fanático, o Ocidente (ou aquilo que ele julga
ser uma cultura específica que ele chama de Ocidente) é o inimigo, justamente por
ser relativista. De acordo com o fanático, o relativismo é uma criação desiludida
de uma civilização decadente que perdeu todo o sentido do absoluto, que não
acredita mais em nenhum valor, já que para ela tudo se equivale, que perdeu até
seus próprios deuses, já que, para ela, todos os deuses se equivalem. O relativismo
não é, portanto, para ele, uma posição universalizável que permitiria a
coexistência de todas as culturas, quaisquer que fossem, de todos os valores que se
querem absolutos, de todos os deuses que se querem únicos, e sim o “ponto”
específico de uma cultura específica, e é justamente isso que ele combate nessa
cultura. O inimigo principal, para o fanático, não é o outro deus absoluto da outra
tribo, é a relativização de todos os deuses — e é isso o que ele chama, portanto, de
Ocidente, na medida em que este lhe parece relativista.
Quantas dificuldades para o relativista, ou seja, para aquele que não acredita na
barbárie!
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E, também, quantas dificuldades em não ser relativista — ou seja, acreditar na
barbárie e na civilização e, portanto, na superioridade de certas culturas e,
portanto, na de sua própria!
Lembremos as duas dificuldades principais do relativista:
1. Ele encerra todo indivíduo, toda prática, todo costume dentro de uma cultura, e
também encerra cada cultura em sua especificidade, já que nega a existência de
valores universais (como a humanidade ou “a” civilização em geral).
2. Se for coerente, ele não poderá criticar, e menos ainda lutar contra as práticas
consideradas “bárbaras” de uma cultura qualquer, já que todas as culturas se
equivalem e todas têm o direito de existir: ele não pode fazê-lo nem em nome de
sua própria cultura específica, que é tão específica como qualquer outra, nem em
nome de um universal moral, já que este não existe.
Mas lembremos também as duas principais dificuldades da noção de “barbárie”,
mesmo limitada ao sentido restrito que afinal lhe atribuímos. Admitir que existe
barbárie significa, de fato, admitir a existência de civilização e, portanto, de
culturas superiores e inferiores. Mas quem irá decidir isso, e em nome do quê?
Se é uma cultura específica que decide, só pode ser a cultura dominante em dado
momento, por exemplo, o que hoje se denomina, com uma palavra tão vaga
quanto discutível, o Ocidente. Como evitar, então, o hegemonismo cultural do
Ocidente?
Se não for em nome dos valores específicos de uma cultura específica, só pode ser
em nome de valores universais. Supondo que se saiba reconhecer o universal
verdadeiro, já que ele deve ser imposto a todo o mundo, como evitar a
uniformização generalizada e, portanto, o desaparecimento de todas as culturas
específicas, regionais, dominadas?
Como sair desses dois tipos de dificuldade? Será possível escapar à opção entre
um relativismo incoerente e um etnocentrismo uniformizador e expansionista?
Parece-me que existe um meio de resolver essas duas últimas dificuldades, sem
tornar a cair nas dificuldades próprias do relativismo.
19/03/2020 Quem é bárbaro? - Artepensamento
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Antropologia Costumes Crise História Mutações Política
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Renato Janine Ribeiro
Observemos, primeiro, que todo o raciocínio anterior sofre de um grave defeito.
Coloca no mesmo plano práticas, costumes e culturas específicas, de um lado, e, de
outro, a condição geral de sua existência ou coexistência. Ora, a “civilização” não é
uma cultura específica, é a forma que permite a existência das culturas humanas
em sua diversidade e, por conseguinte, em sua coexistência. Para dizê-lo
negativamente: a barbárie não é uma prática humana, um costume humano, e
tampouco uma cultura humana específica, é uma prática, um costume, uma
cultura que se define pelo fato de negar tal ou tal forma específica de humanidade.
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