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Indaial – 2019 Psicologia da Educação dos surdos Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: L685p Leyser, Kevin Daniel dos Santos Psicologia da educação dos surdos. / Kevin Daniel dos Santos Leyser. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 276 p.; il. ISBN 978-85-515-0352-2 1. Surdos - Educação. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 371.912 III aPrEsEntação Caro acadêmico, antes de apresentar o conteúdo deste livro, gostaria de me apresentar a você. Sou Bacharel e Licenciado em Psicologia (2005) e Licenciado em Filosofia (2004) pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó, e Bacharel em Teologia pela Faculdade de Educação Teológica Logos (2002). Especialista em Psicopedagogia e Práticas Pedagógicas e Gestão Escolar pela Faculdade de Administração, Ciências, Educação, Letras (2007), Especialista em Educação a Distância: Gestão e Tutoria pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (2018) e Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (2011). Agora vamos ao Livro Didático. Este livro tem como objetivo sistematizar os elementos básicos da disciplina de Psicologia da Educação para Surdos, que proporcionará um contato com os principais tópicos, autores e obras, além dos instrumentos necessários, não apenas para acompanhar a presente disciplina, mas também para os estudos autônomos posteriores. A primeira unidade fornecerá uma introdução sobre como os alunos, incluindo os surdos, aprendem em contextos formais e informais. As relações entre ensino e aprendizagem também serão destacadas, pois nem sempre são tão óbvias quanto parecem. Nesse contexto, enfatizaremos o tema de que os alunos surdos não são simplesmente alunos que não podem ouvir, mas podem ter necessidades e pontos fortes acadêmicos diferentes de seus pares ouvintes. No nível mais básico, é somente pela compreensão dos fundamentos da aprendizagem e as maneiras pelas quais a educação e a instrução podem promovê-la, que seremos capazes de reconhecer os desafios que os alunos surdos enfrentam nos contextos educacionais e a necessidade de várias acomodações de ensino-aprendizagem. Em última análise, o objetivo desta unidade é fornecer uma compreensão completa de como podemos combinar melhor os métodos e materiais de ensino com os estilos de aprendizagem dos alunos surdos, ao mesmo tempo em que acomodamos as grandes diferenças individuais entre eles. A segunda unidade se concentrará em três temas centrais. Primeiro, exploraremos o desenvolvimento da linguagem, em sentido amplo, e da língua, em sentido estrito, para o aprendiz surdo. Com isso também introduziremos várias questões de aprendizagem que são influenciadas por esse desenvolvimento. Segundo, discutiremos especificamente as questões de ensino e avaliação da linguagem e da língua para indivíduos surdos. Finalmente, o terceiro tema será uma descrição dos perfis cognitivos de alunos surdos e suas implicações para a educação. IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! A terceira unidade introduzirá questões mais específicas da educação e aprendizagem para surdos no âmbito da educação formal. Primeiro, discutiremos as questões referentes à realização escolar e às instruções quanto a literacia. No mesmo teor, discutiremos as questões sobre a numeracia, no segundo tópico. Prosseguiremos então para apresentar as novas tecnologias de aprendizagem para aprendizes surdos. Finalizando com uma discussão sobre os contextos de aprendizagem para esse público específico. Desejo uma boa jornada a todos rumo à edificação da educação e sucesso frente aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados pelo estudo da Psicologia da Educação para Surdos. Prof. Me. Kevin Daniel dos Santos Leyser NOTA V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII UNIDADE 1 – PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS ............. 1 TÓPICO 1 – APRENDIZAGEM E ENSINO ....................................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM ................................................................................ 4 3 A NATUREZA ECOLÓGICA DA APRENDIZAGEM .................................................................. 6 4 AS ORIGENS DA APRENDIZAGEM .............................................................................................. 9 5 APRENDIZAGEM FORMAL EM ESCOLAS .................................................................................. 12 6 APRENDIZAGEM INDIVIDUAL, COOPERATIVA E COLABORATIVA ............................... 14 7 APRENDER E ENSINAR .................................................................................................................... 16 7.1 ENSINO E INSTRUÇÃO ................................................................................................................ 17 7.2 O ENSINO E O RELACIONAMENTOS ALUNO-PROFESSOR .............................................. 21 8 EDUCAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS ................................................................................... 22 8.1 VIABILIDADE DOS DELINEAMENTOS DE PESQUISA ......................................................... 24 8.2 PRÁTICAS DE PUBLICAÇÃO ...................................................................................................... 25 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 25 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 26 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................29 TÓPICO 2 – APRENDIZES SURDOS ................................................................................................. 31 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 31 2 FALA, SOM E AUDIÇÃO ................................................................................................................... 33 3 PERDA AUDITIVA .............................................................................................................................. 36 4 APARELHOS AUDITIVOS E IMPLANTES COCLEARES .......................................................... 40 5 DEFICIÊNCIA AUDITIVA E SURDEZ ............................................................................................ 44 6 SER SURDO NA ESCOLA .................................................................................................................. 46 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 48 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 49 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 52 TÓPICO 3 – O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS .................................................. 53 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 53 2 LÍNGUA E COMUNICAÇÃO ............................................................................................................ 55 3 FUNDAÇÕES DA INTERAÇÃO SOCIAL ...................................................................................... 57 4 O LÚDICO COMO JANELA E SALA ............................................................................................... 62 5 UMA CRIANÇA SURDA NA FAMÍLIA.......................................................................................... 63 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 65 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 71 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 74 UNIDADE 2 – LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS ...... 75 TÓPICO 1 – DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ................................................................ 77 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 77 sumário VIII 2 A LINGUAGEM ................................................................................................................................... 77 3 LÍNGUAS DE SINAIS ......................................................................................................................... 80 4 MULTIMODALIDADE E SISTEMAS DE SINAIS ....................................................................... 83 5 O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ................................................................................ 87 6 AQUISIÇÃO DO BILINGUISMO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA ...... 91 7 AQUISIÇÃO DE LÍNGUA FALADA POR CRIANÇAS SURDAS ............................................ 93 8 AQUISIÇÃO DA LÍNGUA DE SINAIS POR CRIANÇAS SURDAS ........................................ 97 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 101 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 103 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 106 TÓPICO 2 – ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM .............................................................. 107 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 107 2 AQUISIÇÃO DE LÍNGUAS EM CASA E APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS NA ESCOLA 108 3 AVALIAÇÃO DA PROFICIÊNCIA LINGUÍSTICA ...................................................................... 110 4 AUMENTANDO A ACESSIBILIDADE À LÍNGUA NA EDUCAÇÃO..................................... 115 4.1 AUMENTANDO A ACESSIBILIDADE À LÍNGUA APRIMORANDO A ACÚSTICA DA SALA DE AULA ............................................................................................................................... 115 4.2 AUMENTANDO A ACESSIBILIDADE À LÍNGUA ADICIONANDO UM CÓDIGO MANUAL À LÍNGUA FALADA .................................................................................................. 117 4.3 AUMENTANDO A ACESSIBILIDADE À LÍNGUA ATRAVÉS DA LÍNGUA DE SINAIS .... 122 5 PROMOÇÃO DA COMPETÊNCIA EM LÍNGUAS ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE .............................................................................................................................................. 123 6 FACILITANDO O DESENVOLVIMENTO DA LÍNGUA ATRAVÉS DA INTERAÇÃO EM SALA DE AULA .................................................................................................................................... 127 7 INSTRUÇÃO DIRETA DE LÍNGUA ................................................................................................ 130 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 133 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 134 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 137 TÓPICO 3 – PERFIS COGNITIVOS DE ALUNOS SURDOS ........................................................ 139 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 139 2 INTELIGÊNCIA VERSUS COGNIÇÃO .......................................................................................... 140 3 ATENÇÃO VISUAL E COGNIÇÃO VISUAL ............................................................................... 144 4 MEMÓRIA E APRENDIZAGEM ...................................................................................................... 148 5 FUNCIONAMENTO EXECUTIVO E METACOGNIÇÃO ........................................................... 150 6 COGNIÇÃO SOCIAL E TEORIA DA MENTE .............................................................................. 153 6.1 PREDITORES DA TEORIA DO DESENVOLVIMENTO DA MENTE EM CRIANÇAS SURDAS ............................................................................................................................................ 155 6.2 TEORIA DA MENTE EM CRIANÇAS COM IMPLANTES COCLEARES ............................. 157 6.3 IMPLICAÇÕES MAIS AMPLAS DA TEORIA DO DESENVOLVIMENTO DA MENTE .... 160 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 162 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 163 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 166 UNIDADE 3 – REALIZAÇÃO ESCOLAR E INSTRUÇÕES .......................................................... 167 TÓPICO 1 – REALIZAÇÃO ESCOLAR E INSTRUÇÕES: LITERACIA ...................................... 169 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 169 2 ENTENDENDO A REALIZAÇÃO DOS APRENDIZES DE SURDOS ..................................... 170 3 LEITURA ................................................................................................................................................ 173 3.1 ELEMENTOS DA LEITURA .......................................................................................................... 174 IX 3.1.1 Reconhecendo Palavras ......................................................................................................... 175 3.1.2 Entendendo o que palavras significam ............................................................................... 177 3.1.3 Gramática: as regras da língua ............................................................................................. 180 3.1.4 Então, o que devemos fazer sobre isso? .............................................................................. 181 4 EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA ALUNOS SURDOS .................................................................... 182 5 A ESCRITA ............................................................................................................................................ 184 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 189 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 192 TÓPICO 2 – REALIZAÇÃO ESCOLAR E INSTRUÇÕES: NUMERACIA .................................. 193 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 193 2 MATEMÁTICA ..................................................................................................................................... 193 2.1 ENTÃO, O QUE NÓS PODEMOS FAZER SOBRE ISSO? ......................................................... 198 3 A CIÊNCIA DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS ................................................................................ 200 3.1 BARREIRAS PARA A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS PARA ALUNOS SURDOS .................. 200 3.2 ENTÃO, O QUE NÓS PODEMOS FAZER SOBRE ISSO? ......................................................... 203 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 207 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 210 TÓPICO 3 – NOVAS TECNOLOGIAS DE APRENDIZAGEM PARA APRENDIZES SURDOS ............................................................................................................................ 211 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 211 2 A REVOLUÇÃO DIGITAL ................................................................................................................. 211 2.1 REVOLUÇÃO NA COMUNIDADE SURDA .............................................................................. 212 2.2 REVOLUÇÃO NA EDUCAÇÃO DOS SURDOS ........................................................................ 213 3 APRENDIZAGEM MULTIMÍDIA .................................................................................................... 214 4 CARACTERÍSTICAS DO ALUNO QUE AFETAM A APRENDIZAGEM MULTIMÉDIA ..... 217 5 PROJETO DE MULTIMÍDIA INSTRUCIONAL EFICAZ ............................................................ 218 5.1 IMAGENS E ANIMAÇÕES ............................................................................................................ 218 5.2 EXIBIÇÃO DE INFORMAÇÕES ................................................................................................... 219 5.3 HIPERMÍDIA.................................................................................................................................... 220 5.4 NAVEGAÇÃO .................................................................................................................................. 222 6 SUPORTE EDUCACIONAL ............................................................................................................... 224 7 EFEITOS DA APRENDIZAGEM MULTIMÍDIA ASSISTIDA POR COMPUTADOR EM ESTUDANTES SURDOS .................................................................................................................... 225 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 232 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 235 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 237 X 1 UNIDADE 1 PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • apresentar o modelo ecológico de ensino-aprendizagem para aprendizes surdos; • introduzir contexto da pessoa surda e os desafios educacionais iniciais; • compreender como ocorre o início da aprendizagem da criança surda em casa e a relação dela com os pais. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – APRENDIZAGEM E ENSINO TÓPICO 2 – APRENDIZES SURDOS TÓPICO 3 – O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 APRENDIZAGEM E ENSINO 1 INTRODUÇÃO Se quisermos ensinar efetivamente os alunos surdos, para que eles realmente aprendam com nosso ensino, então este deve estar firmemente fundamentado no que sabemos sobre a aprendizagem em geral e sobre o ensino em relação ao aprendizado em particular. O conhecimento dos processos básicos de aprendizagem é (ou deveria ser) um requisito para todos aqueles que ensinam. Por isso, iniciamos este livro com um tópico que fornece uma introdução sobre como os alunos, incluindo os surdos, aprendem em contextos formais e informais. As relações entre ensino e aprendizagem também serão destacadas, pois nem sempre são tão óbvias quanto parecem. Nesse contexto, enfatizaremos o tema de que os alunos surdos não são simplesmente alunos que não podem ouvir, mas podem ter necessidades e pontos fortes acadêmicos diferentes de seus pares ouvintes. No nível mais básico, é somente pela compreensão dos fundamentos da aprendizagem e as maneiras pelas quais a educação e a instrução podem promovê-la, que seremos capazes de reconhecer os desafios que os alunos surdos enfrentam nos contextos educacionais e a necessidade de várias acomodações de ensino-aprendizagem. Em última análise, o objetivo é fornecer uma compreensão completa de como podemos combinar melhor os métodos e materiais de ensino com os estilos de aprendizagem dos alunos surdos, ao mesmo tempo em que acomodamos as grandes diferenças individuais entre eles. A aprendizagem é o resultado de uma interação complexa entre características do indivíduo, fatores socioemocionais e variáveis instrucionais. É, portanto, um processo consideravelmente mais complexo do que muitos apreciam, mesmo porque o aprendizado geralmente parece tão automático. No entanto, como Alexander, Schallert e Reynolds (2009, p. 176) apontaram, “[...] não se pode começar a entender a verdadeira natureza da aprendizagem humana sem abraçar sua complexidade interacional”. O ensino tradicional aproxima-se na educação de surdos, em contraste, muitas vezes baseado na identificação e aplicação de respostas simples para questões complexas. O resultado tem sido o insucessoacadêmico de muitos alunos surdos. Se quisermos melhorar os resultados do ensino, ou seja, os resultados acadêmicos dos alunos surdos, os professores precisam aplicar o que é frequentemente chamado de abordagem ecológica da instrução, levando em conta as características dos alunos (incluindo os pontos fortes e fracos que descreveremos posteriormente), bem como o ambiente educacional. Em essência, se alguém estuda a aprendizagem, deve UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 4 estudar o desenvolvimento em contexto (BRONFENBRENNER, 1996). No decorrer deste tópico, descreveremos o que tal modelo ecológico significa para ensinar aprendizes surdos. 2 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM Durante o curso de sua vida, os seres humanos se desenvolvem de várias maneiras. É claro que eles se desenvolvem fisicamente, ficando mais altos, maiores e mais velhos. No entanto, também, no desenvolvimento ao longo da vida, são igualmente importantes as funções mentais como linguagem, resolução de problemas e criatividade. O desenvolvimento dessas funções mentais está intimamente associado ao desenvolvimento do cérebro e é grandemente influenciado pela experiência. Em parte, o desenvolvimento dos seres humanos é geneticamente especificado e, portanto, predeterminado pela natureza. Os genes, espalhados nos cromossomos encontrados em todas as células do corpo, determinam o curso do desenvolvimento, mas também podem criar desvios do curso “natural”. Um desvio que pode ocorrer no desenvolvimento humano, com potencialmente muitas causas genéticas, é a perda auditiva. A perda auditiva, como outras características individuais, pode ser causada por mutações genéticas, mudanças permanentes de tamanhos variados nas sequências de DNA encontradas nos cromossomos. Essas mutações podem estar presentes no nascimento ou adquiridas a qualquer momento durante a vida de uma pessoa. No entanto, embora as especificações genéticas (o genótipo) sejam importantes para o desenvolvimento, o crescimento do indivíduo (o fenótipo) é influenciado não apenas pela natureza, mas também pelo que é adquirido, aprendido, no meio ambiente. A forma como os humanos crescem fisicamente, por exemplo, é amplamente especificada geneticamente, mas o crescimento físico das crianças fica em perigo se elas não receberem alimento e exercício suficientes. O cérebro e as funções mentais associadas a ele também precisam de nutrição para o desenvolvimento do pensamento e da linguagem na forma de diversidade experiencial no mundo. A contribuição ambiental, portanto, é de importância crucial para o desenvolvimento de estruturas e processos cerebrais geneticamente especificados. O cérebro consiste essencialmente em uma grande massa de células cerebrais ou neurônios, cerca de 86 bilhões deles, que estão conectados uns aos outros em vastas redes. Estruturalmente, as células cerebrais são agrupadas em várias partes do cérebro, das quais as mais proeminentes são os hemisférios cerebrais direito e esquerdo. O input ambiental não leva tanto a um aumento do número de neurônios, mas, mais importante, a conexões cada vez mais eficazes entre eles. Com o tempo, vários circuitos ou redes de neurônios tornam-se especializados para funções específicas. Por exemplo, em todas as pessoas destras e na maioria das canhotas, o hemisfério esquerdo do cérebro torna-se especializado (ou lateralizado) para o processamento, compreensão e produção da linguagem, independentemente da modalidade dessa língua, falada ou de sinais. Indivíduos TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 5 surdos que crescem usando a língua de sinais desde o nascimento, entretanto, tendem a ser mais organizados bilateralmente para a linguagem; isto é, ambos os hemisférios cerebrais estão provavelmente envolvidos. As crianças não adquirem sua língua nativa ouvindo fitas de áudio ou assistindo televisão, mas através de interações e comunicação próximas com seus pais (KUHL, 2004). Elas ouvem ou, no caso de pais que falam a língua de sinais, observam a língua sendo produzida sob várias situações, processam-na, criam representações mentais dela, e ativamente constroem e testam hipóteses sobre significados. As condições socioambientais em que o input da língua é dado, portanto, são tão importantes quanto o input em si, proporcionando treinamento complexo e variável em contextos de aprendizagem que destacam informações e características essenciais de várias tarefas linguísticas e não linguísticas. Durante toda a infância, enquanto a linguagem está sendo adquirida, o cérebro está amadurecendo e se desenvolvendo. É somente no início da idade adulta que o córtex motor pré-frontal, importante para o monitoramento e controle das ações, atinge seu estado maduro. Naquela época, o cérebro tornou-se bastante especializado e, em alguns aspectos, parece funcionar como um conjunto de módulos relativamente independentes. O cérebro adulto, portanto, pode ser visto como o resultado final de “interações multidirecionais dinâmicas entre genes, cérebro, cognição, comportamento e ambiente” (KARMILOFF-SMITH, 2009, p. 100). Todavia, isso não significa que o cérebro adulto seja uma entidade fixa. Em vez disso, ele permanece plástico (mutável) e dinâmico em suas funções ao longo da infância e na idade adulta. Por um lado, isso significa que o desenvolvimento das funções mentais e, assim, o aprendizado não precisam esperar até que o cérebro atinja seu estado adulto. Muito pelo contrário, a aprendizagem começa muito cedo, mesmo antes do nascimento (DECASPER; FIFER, 1980), e os processos de aprendizagem ajudam a moldar o cérebro ao longo do desenvolvimento. A falta de controle pré- frontal (maturação completa do cérebro) em crianças pequenas é realmente útil para o aprendizado. Como resultado, bebês e crianças pequenas são relativamente desinibidos em suas explorações, aumentando assim a aprendizagem flexível e estimulando a criatividade (GOPNIK, 2010). Por outro lado, a aprendizagem não para quando o cérebro termina de crescer. É a plasticidade do cérebro que permite que os humanos se envolvam na aprendizagem ao longo da vida. Onde isso deixa a noção de que há períodos críticos no desenvolvimento, por exemplo, na aprendizagem da língua nativa? Segundo Kuhl (2004), os sistemas visual, auditivo e de linguagem diferem em relação aos períodos em que podem ser aprendidos sem muito esforço. No entanto, mesmo dentro desses sistemas, há muito mais plasticidade do que frequentemente se supõe. Períodos críticos para alguns domínios da aprendizagem existem, mas parecem menos rígidos do que se pensava anteriormente. Em primeiro lugar, a aprendizagem de línguas implica o desenvolvimento de redes de atenção. Essas redes ajudam uma UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 6 criança a se concentrar em propriedades específicas da fala ou de expressões e gestos de sinais. Com a experiência e a exposição à linguagem, essas propriedades tornam-se codificadas, essencialmente catalogadas no cérebro. Essa codificação literalmente resulta em mudanças no cérebro, levando ao tecido neural que se torna especializado na análise de padrões de linguagem específicos. Kuhl (2004) chama isso de uma forma de comprometimento neural. O aprendizado inicial resulta em comprometimento neural que atua como um tipo de filtro, apoiando e restringindo o aprendizado futuro de idiomas. A aprendizagem de padrões de línguas não nativas torna-se mais difícil porque o cérebro já se tornou um tanto limitado pela aquisição da primeira língua. A ideia de um período crítico no desenvolvimento da linguagem, portanto, não deve ser vista tanto como uma janela que é fechada em algum momento, mas muito mais como um processo, determinado pela maturidade e pelo aprendizado. Como veremos na Unidade 2, no entanto, o processo não é aberto. O fraco acesso à linguagem de alta qualidade no início da vida, por exemplo, por perda auditiva significativasem acesso a uma língua falada e/ou de sinais, pode resultar em dificuldades permanentes na linguagem, particularmente na área gramatical (MARKMAN et al., 2011). Isso não significa que inputs tardios impeçam totalmente a aquisição de linguagem, mas problemas persistentes com processamento, compreensão e produção de estruturas gramaticais devido a inputs degradados ou insuficientes terão impacto sobre a aprendizagem, a alfabetização e o sucesso pessoal na sociedade. 3 A NATUREZA ECOLÓGICA DA APRENDIZAGEM A aprendizagem impulsiona o desenvolvimento, refere-se essencialmente às mudanças no conhecimento de um indivíduo como resultado de experiências. O desenvolvimento, por sua vez, é impulsionado por vários mecanismos de aprendizagem, como aprendizado baseado em erros, aprendizado através da construção ativa de significado, aprendizado probabilístico e aprendizado auto-organizável (ALEXANDER; SCHALLERT; REYNOLDS, 2009). Se o desenvolvimento é governado pelo que precisa ser aprendido em fases específicas da vida, a aprendizagem é restringida por fatores intrínsecos a tarefas específicas e ao conhecimento e habilidades do indivíduo. Algumas tarefas são mais facilmente aprendidas do que outras através de um mecanismo de aprendizagem específico, mas a aprendizagem também é influenciada por fatores extrínsecos, como ambientes físicos e sociais. O ambiente físico, por exemplo, pode ter um impacto na aprendizagem através do número de pessoas no ambiente de aprendizagem (aglomeração), a quantidade de ruído de fundo irrelevante, o tamanho das escolas ou salas de aula, a qualidade dos edifícios como casas e escolas, a iluminação e o clima interno (EVANS, 2006). Aspectos do ambiente social que afetam a aprendizagem são o clima pedagógico, o número e a qualidade das interações e a qualidade da linguagem nas interações (HART; RISLEY, 1995). TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 7 Aprender assim é um processo ecológico moldado tanto por aspectos da situação de aprendizagem como pelas características do aprendiz. Ou seja, a aprendizagem sempre ocorre em contextos específicos, seja informalmente durante atividades em casa ou interações com outras pessoas ou formalmente como resultado de instrução em sala de aula ou outro ambiente educacional. Esses contextos moldam o processo e os resultados da aprendizagem, às vezes de forma sutil e às vezes não tão sutil (CAPRA et al., 2006). O contexto não determina totalmente a aprendizagem, no entanto. Os humanos aprendem ativamente e constantemente construindo o significado por si mesmos. Esse modo de aprendizagem resulta do processamento de informações verbais e visuais, geralmente por meio de vias separadas. Além do conteúdo em si, o indivíduo também aprende a atender e processar a correlação entre diferentes fontes de informação. A aprendizagem humana é, portanto, uma atividade cognitiva cumulativa e interativa, limitada, em certa medida, por causa das restrições de processamento, como a velocidade ou a discriminação do input ou a influência do conhecimento prévio, memória e funcionamento executivo (veremos mais sobre estes aspectos na Unidade 2 deste livro). Alexander, Schallert e Reynolds (2009, p. 186) definiram a aprendizagem da seguinte forma: um processo multidimensional que resulta em uma mudança relativamente duradoura em uma pessoa ou pessoas e, consequentemente, como essa pessoa ou pessoas perceberão o mundo e reciprocamente responderão física, psicológica e socialmente às possibilidades [affordances] oferecidas pelo ambiente. O processo de aprendizagem tem como base a relação sistêmica, dinâmica e interativa entre a natureza do aprendiz e o objeto da aprendizagem ecologicamente situado em um determinado tempo e lugar, bem como ao longo do tempo. Essa definição se encaixa bem com a sugestão que oferecemos no próximo tópico desta unidade, de que quando um indivíduo não tem acesso à informação em uma modalidade sensorial (uma dimensão do processo, por exemplo, audição), em certo sentido, todo o indivíduo é modificado, pelo menos em termos de processamento psicológico e cognitivo (MARSCHARK; KNOORS, 2012; MYKLEBUST, 1960). A aprendizagem é caracterizada por vários princípios fundamentais. Em primeiro lugar, aprender significa mudar, obviamente, a mudança no conhecimento armazenado na memória de longo prazo, seja quantitativamente (mais conhecimento) ou qualitativamente (em sua organização, veja o Tópico 3 da Unidade 2). Essa mudança no aluno pode levar a mudanças no ambiente do aluno, o que pode novamente afetar o aluno. Por exemplo, aprender a cozinhar com proficiência frequente leva os indivíduos a reorganizar suas cozinhas e, com utensílios específicos mais próximos, os hábitos de cozinhar podem mudar. Tornar-se especialista em um campo, por exemplo, a psicologia escolar, pode levar à reorganização das estantes de livros, o que, por sua vez, pode afetar a recuperação futura de informações (desses livros). Por meio de processos cíclicos UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 8 como esses, a aprendizagem é constante e contínua, e nem crianças, nem adultos podem impedir que o aprendizado aconteça, pois é inevitável, essencial e ubíquo. As crianças irão adquirir a linguagem e o idioma desde que haja alguma forma de input linguístico. Elas não podem decidir não aprender a linguagem e o idioma, em específico; o processo é inevitável. Sem aprendizagem, os humanos simplesmente não sobreviveriam. É de vital importância que muito ou talvez a maior parte da aprendizagem ocorra automaticamente. Os exemplos anteriores apontam que a aprendizagem pode ser não intencional e incidental ou consciente e intencional. Mesmo na educação, nem toda aprendizagem é explícita. Pelo contrário, grande parte dela que ocorre durante os anos escolares resulta de processos implícitos (dentro e fora da escola). Já observamos que a aprendizagem do primeiro idioma, primeira língua, geralmente evolui implicitamente, pelo menos se houver modelos de linguagem acessíveis para aprender. Quando tais modelos não estão disponíveis, como quando uma criança com surdez profunda está em uma família ouvinte não familiarizada com a língua de sinais, a aprendizagem geralmente implícita da língua tem que se tornar mais explícita. No entanto, mesmo que a aprendizagem ocorra explicitamente, o uso do que foi aprendido pode estar implícito. Ou seja, a maneira como aprendemos está fortemente relacionada à maneira como somos constituídos como humanos. A arquitetura neurocognitiva dos seres humanos molda amplamente a aprendizagem e é moldada pela aprendizagem, assim como a linguagem (e a língua, particularmente) molda a aprendizagem e é moldada por ela. Muitos dos processos envolvidos no desenvolvimento, portanto, são recíprocos. Certamente, há considerável variação entre os seres humanos nos processos e resultados da aprendizagem, em parte por causa do fato de que são muitas vezes pequenas, contudo importantes, diferenças em nossa arquitetura ou funcionamento neurocognitivo. Em estudos separados, por exemplo, McEvoy, Marschark e Nelson (1999) e Marschark et al. (2004) descobriram que a organização do conhecimento lexical nas memórias de longo prazo de estudantes universitários surdos e ouvintes se sobrepunha aproximadamente a 77% a 80%. Eles argumentaram, no entanto, que os 20% ou mais de conhecimento conceitual provavelmente desempenham um papel significativo nas diferenças observadas entre as duas populações em leitura, resolução de problemas e aprendizagem em geral. Em resumo, a aprendizagem é tanto um processo quanto um produto. O produto é a mudança que resulta da aprendizagem; o processo é o modo como essa mudança foi realizada. As pessoas podem aprender de maneira diferente em diferentes momentos no tempo. Em parte, aprender como um processo de desenvolvimento é o resultado de nossa arquitetura neurocognitiva se desenvolvendo com o tempo e amadurecendo.Todavia, como vimos, a TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 9 aprendizagem também é recursiva e iterativa: as mudanças estabelecidas por ela influenciam os processos de aprendizagens subsequentes. E, finalmente, a aprendizagem é interativa. As mudanças trazidas por ela não ocorrem apenas nos aprendizes, mas também no contexto da aprendizagem (BRONFENBRENNER, 1996). 4 AS ORIGENS DA APRENDIZAGEM Geary (2009) sugeriu que, se alguém quiser entender a aprendizagem, não só precisa abordar o quê, onde, quem e quando aprender, mas também o porquê. Por que aprendemos? Em um contexto evolucionário, a aprendizagem resulta em indivíduos que têm várias opções para resolver conflitos sociais ou desafios de subsistência. Eles podem prever o comportamento de outras pessoas ou de animais, onde conseguir alimentos, levando as vantagens competitivas em comparação com os seres humanos que aprenderam menos. No início de nossa evolução, essa aprendizagem foi amplamente implícita e seus objetivos muitas vezes não eram óbvios para os aprendizes. Hoje, muito da aprendizagem tornou- se mais explícito, e a busca de objetivos específicos muitas vezes tem que ser motivada explicitamente. Esforços bem-sucedidos para entender a aprendizagem humana, portanto, exigem ênfase simultânea em ambientes informais e formais de aprendizagem (BRANSFORD et al., 2010). A aprendizagem estruturada geralmente ocorre em contextos formais, principalmente, por meio de ensino explícito conduzido em salas de aula, laboratórios ou situações de tarefas específicas. O ensino e a aprendizagem em ambientes educacionais formais geralmente envolvem currículos planejados e predeterminados. A aprendizagem informal, em contraste, é frequentemente implícita, ocorrendo simplesmente através da participação em atividades cotidianas no mundo. Em contraste com a aprendizagem formal e estruturada, a informal parece ser rápida e sem esforço. Talvez até 90% de toda a aprendizagem ocorra dessa maneira, em contextos informais. Este processo informal está intimamente ligado ao conceito de aprendizagem situada, isto é, a ideia de que este processo está situado em contextos sociais e físicos particulares, o mesmo contexto no qual ele é aplicado (LAVE; WENGER, 1991). Procede, portanto, detectando (geralmente inconscientemente) padrões de covariação em eventos no ambiente. As crianças e os adolescentes trazem muito conhecimento informal para o contexto escolar, nas aulas, brincadeiras e momentos lúdicos. Em todos os casos, fornece uma base importante para a aprendizagem mais formal em contextos acadêmicos. Aprender, em última instância, pode levar à especialização ou expertise. O que distingue os experts dos novatos é a quantidade e a qualidade das informações que eles possuem sobre um determinado tópico. Isso fornece aos experts a capacidade de perceber aspectos específicos de problemas e situações que podem passar despercebidos aos novatos. Em outras palavras, os alunos experts são muito melhores no reconhecimento de padrões e na identificação UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 10 de características distintas que colocam algo em uma categoria ou outra em comparação com os alunos novatos. Alunos experts, portanto, não apenas aprenderam com as experiências, mas também aprenderam a experimentar e experienciar. Seu conhecimento é estreitamente conectado e bem organizado em torno de conceitos fundamentais. A maior parte da aprendizagem durante a primeira infância, do nascimento até cerca de quatro ou cinco anos de idade, ocorre em casa. É informal e, em grande medida, implícita (ver Tópico 3 desta unidade), procedendo rapidamente e aparentemente sem muito esforço. Um scaffolding (uma estrutura de suporte) eficaz de experiências precoces por parte dos pais, não apenas no domínio da língua, mas também em outros domínios cognitivos, contribui para a facilidade de aprendizagem. Essa pode ser uma das razões pelas quais os filhos de professores parecem ter melhor desempenho na escola do que muitos de seus colegas. Seus pais-professores aprenderam (explícita e implicitamente) a melhor forma de estruturar situações de aprendizagem que correspondam às habilidades de uma criança. De maneira mais geral, o ambiente intrinsecamente familiar e autônomo em casa também é uma base importante para a aprendizagem. Esse ambiente e as pessoas e os eventos vivenciados são altamente previsíveis para as crianças pequenas, devido a sua frequência, transparência em termos da progressão ordenada das atividades e da linguagem que normalmente a acompanha. Às vezes, porém, os pais simplificam demais as atividades e a linguagem dirigida aos filhos pequenos, com a expectativa de que sejam menos competentes do que realmente são. Essa tendência tem sido vista particularmente entre os pais de crianças com necessidades especiais, o que pode levar essas crianças a se tornarem excessivamente dependentes dos outros. As crianças parecem aprender sobre o mundo ao seu redor da mesma maneira que os cientistas conduzem experimentos. De acordo com a "teoria da teoria", as crianças têm teorias intuitivas sobre o mundo, análogas às teorias científicas. Essas teorias mudam de maneira semelhante à ocorrência de mudanças nas teorias científicas (GOPNIK, 2018). Ou seja, as crianças analisam o ambiente, prestam atenção às regularidades e formam teorias intuitivas sobre o mundo biológico, físico ou psicológico. Piaget (1970) referiu-se a isso como raciocínio hipotético-dedutivo e presumiu que não ocorria até a infância tardia, nos anos pré- adolescentes. Reconhecemos agora que as crianças pequenas são aprendizes mais sofisticados, percorrendo o mundo de uma maneira analítica mais deliberada e compreendendo muito mais do que Piaget jamais imaginou. Por exemplo, como provou Stanislas Dehaene (1997) em relação ao senso numérico das crianças. O que caracteriza a aprendizagem exuberante que ocorre durante a infância? Meltzoff et al. (2009) resumiram pesquisas relevantes, resultando no estabelecimento de fundamentos para uma nova teoria da aprendizagem em bebês e crianças. Eles identificaram três principais forças motrizes na aprendizagem inicial. TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 11 A primeira força motriz refere-se ao fato de a aprendizagem das crianças ser computacional. Elas prestam atenção às regularidades estatísticas e à covariação na linguagem e nos eventos ao seu redor, derivando informações de seus ambientes que lhes permitem reconhecer e prever implicitamente as relações de causa e efeito em torno delas. A segunda força motriz refere-se à aprendizagem das crianças ser social. As interações sociais com outras pessoas oferecem uma fonte rica de informações para a aprendizagem das crianças, não apenas na linguagem, mas também em termos de dinâmica comportamental, cognitiva e social. A imitação, a atenção compartilhada e a compreensão dos sentimentos e perspectivas dos outros (veremos mais sobre este aspecto no Tópico 3 da Unidade 2) são pedras angulares desses processos de aprendizagem social. A aprendizagem é acelerada pela imitação, e as oportunidades de aprendizado são multiplicadas pela imitação, levando a um processo mais rápido com menos erros em comparação com a descoberta individual ou a aprendizagem de tentativa e erro. No entanto, a imitação pelas crianças não é simplesmente a cópia da linguagem ou comportamento de adultos ou colegas. Em vez disso, geralmente envolve a reconstrução de metas, ações e intenções de outros para alcançar resultados semelhantes. Assim, compartilhar a atenção com os outros facilita a aprendizagem social, porque essa atenção compartilhada por um evento ou objeto cria um terreno comum para comunicação e ensino. Tomadas em conjunto, as capacidades para tomar a perspectiva dos outros e compreender suas emoções são os ingredientes essenciais da aprendizagem cooperativa (ver Tópico 3, Unidade 2), atividades que se tornarão cadavez mais importantes à medida que a criança se envolve com os colegas e ingressa na escola. A terceira força motriz refere-se ao fato de a aprendizagem ser toda baseada em redes cerebrais neurais. Estas redes ligam a percepção e a ação em suporte à aprendizagem. A aprendizagem das crianças, portanto, é, até certo ponto, determinada pela arquitetura neurocognitiva específica que elas possuem em virtude de serem humanas. Aprendizagem e o brincar, muitas vezes, fundem-se em crianças pequenas. Vamos considerar o brincar com alguma profundidade no Tópico 3 desta unidade, no que se refere especificamente ao desenvolvimento linguístico, cognitivo e social. Neste ponto, é suficiente notar que o brincar é um componente natural e importante na vida das crianças (JOIA, 2018). O brincar – e a ludicidade, no sentido mais amplo – envolve as crianças no explorar de seus ambientes físicos e sociais, estabelecendo assim a base para a posterior exploração e aprendizagem acadêmica, bem como a descoberta dos seus próprios potenciais físicos (HIRSH- PASEK et al., 2009). Como veremos, a brincadeira é uma base essencial para a formação do conhecimento cognitivo e procedimental, atenção sustentada, representação simbólica, resolução de problemas e desenvolvimento da memória. UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 12 5 APRENDIZAGEM FORMAL EM ESCOLAS Quando as crianças vão à escola, a aprendizagem formal – a capacidade de se beneficiar da instrução explícita – torna-se cada vez mais importante. A aprendizagem informal também ocorre em contextos educacionais, mas a aprendizagem formal envolve um conjunto diferente de habilidades e aptidões do que é necessário na aprendizagem informal. Dependendo de onde moram, as crianças nos países ocidentais costumam frequentar a escola entre quatro e seis anos de idade. As crianças surdas, muitas vezes, frequentam a escola com menos de três anos de idade, muitas vezes em programas destinados a aumentar a prontidão escolar. Na escola, as crianças se transformam em estudantes. Elas precisam aprender informações cada vez mais complexas, muitas vezes novas, bem como usar seus conhecimentos existentes de novas maneiras. Aprender, no entanto, é muito mais do que a aquisição de informações. Na verdade, é a construção do conhecimento, a construção de representações mentais. Este é um processo ativo em que a instrução orienta os alunos a atribuir significado à instrução e aos materiais didáticos, ao mesmo tempo em que promove habilidades que permitem que as crianças se tornem aprendizes independentes no sentido formal, assim como já estão no sentido informal. A informação é assim transformada em conhecimento. O objetivo essencial da instrução é aprimorar a aprendizagem significativa pelo estímulo do processamento ativo do conteúdo pelos alunos, enquanto reduzindo a carga cognitiva. Vamos descompactar essa noção a seguir. Os seres humanos têm vias separadas para perceber e processar informações (BADDELEY; ANDERSON; EYSENCK, 2011). Devido aos limites de memória de trabalho, só podemos processar quantidades limitadas de novas informações em cada via. Para criar uma aprendizagem significativa, temos que colocar o esforço consciente em processos cognitivos, como selecionar, organizar e integrar novas informações com conhecimento prévio. O Tópico 3 da Unidade 2 descreverá como isso envolve memória de curto prazo ou de trabalho, memória de longo prazo e funcionamento executivo (que essencialmente controla o fluxo interno de informações). O processo é uma combinação de processamento “de cima para baixo” (top down) e “de baixo para cima” (bottom up), pois o que sabemos influencia a maneira como percebemos e lidamos com as informações recebidas e as informações recebidas alteram o que sabemos. O elemento-chave da aprendizagem, portanto, é que ela leva a mudanças na informação armazenada na memória de longo prazo, tanto quantitativa quanto qualitativamente. A memória de longo prazo, portanto, pode ser vista como um depósito dinâmico e em evolução, contendo informações sobre experiências passadas e conhecimento de vários domínios. Alguns desses conhecimentos são explícitos (por exemplo, a circunferência da Terra) e alguns deles são implícitos (por exemplo, como se mediria a circunferência da Terra). TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 13 A aprendizagem pode ser mediada por fatores motivacionais que aumentam ou diminuem o engajamento. A metacognição, essencialmente a cognição sobre a cognição ou pensamento sobre o pensamento (ver Tópico 3, Unidade 2), também medeia a aprendizagem regulando o processamento cognitivo e o afeto. Diferenças nos conhecimentos prévios e nas habilidades dos aprendizes podem influenciar a aprendizagem de novas informações diretamente, em relação à medida em que as novas informações são capazes de se “encaixar” com o que já é conhecido (MORENO; MAYER, 2007), ou indiretamente, em relação à medida em que o aluno é motivado a se envolver no esforço cognitivo necessário. De qualquer maneira, um risco potencial é que as demandas cognitivas das tarefas de aprendizagem ou a quantidade de informação que precisa ser processada excedem as habilidades de processamento cognitivo dos aprendizes, o que é usualmente referido como sobrecarga cognitiva (PAAS; VAN GOG; SWELLER, 2010). Quando os processos cognitivos necessários não são capazes de lidar com a taxa ou a complexidade da informação recebida, o indivíduo pode ficar sobrecarregado antes que a aprendizagem significativa comece. Consistente com a descrição anterior, isso pode ocorrer porque as informações ou eventos que estão sendo experimentados não são familiares (ou seja, não se encaixam bem com o que está na memória de longo prazo) ou o aluno não é motivado ou capaz de alocar os processos necessários, ou pode ser uma consequência da qualidade da interação ou da comunicação entre pessoas, como professores e alunos. Quanto mais complexa a tarefa cognitiva em relação ao conhecimento e habilidades do aprendiz, maior a probabilidade de criar um "gargalo" no processamento cognitivo (SWELLER; VAN MERRIENBOER; PAAS, 1998). Informações irrelevantes, não relacionadas à tarefa, podem levar à distração nas quais o aluno processa informações de maneira inadequada à tarefa em questão (KIRSCHNER; PAAS; KIRSCHNER, 2009). Evitar a sobrecarga cognitiva durante a construção do significado a partir de novas informações envolve lidar com a capacidade limitada da memória operacional. Como a instrução geralmente envolve novas informações, um objetivo do professor (formal ou informal) é projetar ou agrupar as informações de maneira a acomodar essas limitações e, assim, ajudar o aluno a evitar ou superar os gargalos. Tais ajustes são ainda mais importantes – mas também mais difíceis – se os professores e alunos não compartilharem uma língua comum fluente ou se o acesso à língua de ensino for limitado por parte dos alunos. Nesses casos, e mais notavelmente entre os alunos surdos, grande parte da capacidade de memória de trabalho dos alunos deve ser dedicada apenas à compreensão da língua – compreensão de palavras e frases individuais –, deixando menos capacidade de construir o significado real que resulta na aprendizagem. Quando um aprendiz consegue integrar efetivamente novas informações com conhecimento prévio por meio de uma combinação de habilidades cognitivas, características da informação e adaptação à memória de longo prazo, UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 14 as limitações de processamento desaparecem. Quantidades muito grandes de informações podem ser armazenadas, recuperadas e utilizadas para obter ainda mais informações. Em outras palavras, a aprendizagem ocorre. 6 APRENDIZAGEM INDIVIDUAL, COOPERATIVA E COLABORATIVA Embora os professores desempenhem um papel importante na aprendizagem dos alunos na escola, a aprendizagem não se restringe às interaçõesprofessor-aluno. Aprender com os colegas também é importante, não apenas fora da sala de aula, mas também dentro dela. Assim, os alunos na escola não apenas aprendem como indivíduos, mas também coletivamente, durante o trabalho em grupo e com as discussões. O trabalho em grupo nas escolas pode implicar tutoria entre pares, aprendizagem cooperativa e aprendizagem colaborativa. Estas três formas de trabalho em grupo distinguem-se por níveis crescentes de igualdade e envolvimento mútuo entre estudantes (TOLMIE et al., 2010). A tutoria entre pares é caracterizada por uma relação vertical entre os alunos: um aluno, o tutor, sabe mais do que o(s) outro(s) ou, por algum motivo, é mais capaz de lidar com a tarefa em mãos. A aprendizagem cooperativa faz uso de programas altamente estruturados de atividade nos quais os alunos completam tarefas individualmente e discutem os resultados uns com os outros. Em ambos os casos, os alunos precisam ser capazes de implantar uma variedade de habilidades sociais, incluindo fazer turnos, expressar opiniões, estimular colegas, fornecer e receber ajuda, ouvir outras pessoas e esclarecer tarefas. Também precisa haver um senso de coesão e interdependência do grupo. O comportamento pró-social é, portanto, absolutamente necessário para a aprendizagem cooperativa e está positivamente associado ao sucesso acadêmico (WENTZEL, 1994). Na medida em que a aprendizagem colaborativa requer atividade conjunta e compreensão compartilhada, ela não tem apenas um impacto cognitivo, mas também social. Além dos ganhos sociais, os indivíduos engajados na aprendizagem colaborativa frequentemente adquirem melhores habilidades de diálogo e melhoram ainda mais suas habilidades de trabalho em grupo. Nesse sentido, o trabalho em grupo oferece uma mistura de aprendizagem formal e informal semelhante àquela em que as crianças se envolvem mais cedo, durante as interações entre pais e filhos. A colaboração pode levar a uma melhor resolução de problemas do que trabalhar individualmente (JOHNSON; JOHNSON, 1981). Isso é especialmente verdadeiro para tarefas complexas, em que múltiplos indivíduos podem essencialmente expandir a capacidade de processamento disponível, levando a uma solução de problemas mais eficiente e eficaz (PAAS; VAN GOG; SWELLER, 2010). A solução colaborativa de problemas, no entanto, exige claramente uma comunicação fluente em grupo e habilidades eficientes de gerenciamento de grupo (KIRSCHNER; PAAS; KIRSCHNER, 2009). Isso pode ser um desafio quando os alunos não são fluentes em uma língua comum, assim como no caso TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 15 de interações aluno-professor. Em tais situações, há também a possibilidade de que os alunos que são mais fluentes na língua de instrução ou talvez mais velhos possam dominar a aprendizagem colaborativa, mesmo que não sejam os mais conhecedores ou proficientes na tarefa em questão. Esta é obviamente uma dificuldade potencial em salas de aula mistas com surdos e ouvintes. No entanto, também é problemática em grupos de surdos por causa do efeito Dunning-Kruger, em que o mecanismo de superioridade ilusória faz com que indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto passem a acreditar que sabem mais que outros mais competentes (KRUGER; DUNNING, 1999). Tal efeito pode levá-los a tomar decisões erradas e chegar a resultados indevidos. Diversos estudos demonstraram que os alunos surdos tendem a pensar que aprenderam ou sabem mais do que realmente sabem em maior grau do que os alunos ouvintes (MARSCHARK et al., 2005). Como resultado, a aprendizagem colaborativa ou a tutoria de pares em um grupo de alunos surdos pode ser mais lenta ou até mesmo desviada de sua meta. O progresso da aprendizagem colaborativa em grupos de alunos surdos, portanto, pode exigir um acompanhamento mais próximo do professor do que em grupos de alunos ouvintes, para garantir que os líderes compreendam verdadeiramente a tarefa e a meta, mas também, reconhecendo que sempre existe o potencial da autocorreção no interior do grupo como um todo. Dada a necessidade de interdependência no trabalho em grupo, não deveria surpreender que a qualidade da aprendizagem cooperativa e colaborativa seja prevista pela percepção da disponibilidade de suporte socioemocional e acadêmico dos pares (HIJZEN; BOEKAERTS; VEDDER, 2006). O contexto educacional e o tom estabelecido pelo professor também desempenham um papel importante no estabelecimento de uma boa qualidade de aprendizagem colaborativa. Os professores precisam conscientizar os alunos sobre o que é necessário aprender e trabalhar juntos, habilidades que as crianças surdas, em particular, podem não ter adquirido antes de irem à escola. O acompanhamento dos professores da colaboração e aprendizagem cooperativa na sala de aula, portanto, precisa ocorrer em vários níveis. Isso é facilitado pela consulta regular com grupos de alunos, em vez de esperar que os indivíduos levantem questões, mas isso precisa ocorrer sem que o professor se torne intrusivo ou controlador. Em suma, a aprendizagem baseada na escola é uma atividade cognitiva e social. Requer um ambiente de apoio em que os alunos interajam uns com os outros e em que as interações sejam construídas não apenas em habilidades comunicativas e proficiências de linguagem, mas também em habilidades sociais. Em todos esses domínios, os aprendizes surdos correm mais riscos do que os aprendizes ouvintes, particularmente em salas de aula onde os pares ouvintes dominam o ambiente. Habilidades de comunicação insuficientes, incompatibilidades no modo de comunicação entre os alunos, proficiências na língua relativamente baixas (ver Tópico 1, Unidade 2) e problemas com regras sociais e regulação emocional (ver Tópico 4, Unidade 2) podem contribuir para um ambiente de sala de aula no qual os alunos surdos têm problemas em serem UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 16 aceitos por seus pares. Tal ambiente de sala de aula pode influenciar negativamente as oportunidades de aprendizagem para os alunos surdos tanto a curto como a longo prazo. 7 APRENDER E ENSINAR Em contextos educacionais formais, o ensino é, por definição, um processo importante no estabelecimento da aprendizagem. Mais comumente, isso envolve instrução direta de profissionais, mas, como observamos, o ensino também pode ocorrer entre pares e, de formas mais indiretas, por meio de processos mediados (por exemplo, com a ajuda de intérpretes) ou através da aprendizagem a distância com a ajuda de tecnologia e materiais multimídia (BRANSFORD et al., 2010). No entanto, alguma aprendizagem ocorre em situações em que os aprendizes constroem significado sem instrução explícita. Normalmente, isso envolve o que Geary (2008) chamou de informação biologicamente primária. Informações biologicamente primárias são informações que podem ser adquiridas pelos alunos sem esforço consciente ou com mínimo esforço. A capacidade de fazê-lo se desenvolveu no curso da evolução dos seres humanos. Um exemplo de tal informação referida anteriormente é a nossa primária ou primeira língua. Em contraste com a informação biologicamente primária, a informação biologicamente secundária não pode ser aprendida sem instrução explícita e encorajamento motivacional. Ler, escrever e resolver problemas matemáticos são exemplos de informações biologicamente secundárias. Apesar de haver, de acordo com Geary (1995), um sistema biologicamente primário de habilidades quantitativas que incluem um tipo de compreensão implícita da criança de contagem e outras operações mais simples, a resolução de problemas matemáticos é de ordem secundária. A quantidade deste tipo de informação biologicamente secundária cresceu tanto durante a evolução humana que escolas e outros tipos de instalações educacionais tiveram que ser criados para a transmissão efetiva desta informação culturalmente importante, mas não necessariamente óbvia.Nas palavras de Geary (2008, p. 186), “escolas [...] são uma inovação cultural imposta a crianças e adolescentes por adultos para facilitar as transmissões entre gerações de habilidades secundárias (por exemplo, escrita) e conhecimento”. A aprendizagem secundária nas escolas refere-se à aquisição de informações e habilidades que são consideradas pela cultura ou comunidade como importantes. A aquisição de tais informações procede através de mecanismos criados para permitir que indivíduos processem e compreendam novas informações que podem não ser adquiridas espontaneamente. Em essência, a aprendizagem de informação biologicamente secundária é tipicamente a aprendizagem formal que ocorre principalmente nas escolas. TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 17 7.1 ENSINO E INSTRUÇÃO Espera-se que as escolas não apenas promovam a aprendizagem acadêmica, mas também melhorem a saúde e previnam ou evitem comportamentos problemáticos (GREENBERG et al., 2003). A instrução em sala de aula que é culturalmente apropriada e adaptada ao desenvolvimento produz resultados sociais e emocionais positivos, bem como resultados cognitivos. Os alunos precisam reconhecer e gerenciar suas emoções e apreciar as perspectivas dos outros, habilidades que serão usadas dentro e fora da sala de aula. Além disso, os alunos precisam aprender a tomar decisões positivas, a lidar efetivamente com as relações interpessoais e a responder aos inputs apropriados (e inapropriados) de outras pessoas. A competência social e emocional contribui, assim, para a motivação dos aprendizes e para seu desempenho acadêmico. Os contextos formais de aprendizagem nas escolas, no entanto, são amplamente moldados pelos professores. Eles desenvolvem e gerenciam o ambiente social, bem como o ambiente acadêmico, preparando o terreno para a formação de relacionamentos entre pares e apoiando os alunos por meio do incentivo e do fornecimento de feedback (JENNINGS; GREENBERG, 2009). O que os professores sabem sobre a aprendizagem certamente contribui para o seu ensino, mas o conhecimento da aprendizagem não se traduz simplesmente em conhecimento de ensino. Ensinar requer mais que isso. Além de ensinar sobre o conteúdo da disciplina, o ensino envolve a aplicação cuidadosa do conhecimento, a manutenção do controle apropriado sobre os fatores instrucionais e contextuais, e a garantia de que as relações professor-aluno, assim como os relacionamentos entre os pares, apoiem o ensino e a aprendizagem. Ensinar, assim, é essencialmente apoiar os aprendizes na aquisição de informação e na construção de conhecimento. No núcleo do ensino está a instrução (contudo, o ensino não pode ser reduzido à instrução). O objetivo da instrução é ajudar os aprendizes a compreender o conteúdo do que é instruído (MORENO; MAYER, 2007). O que os alunos apreendem da instrução, no entanto, também é mediado por sua motivação para aprender e por sua capacidade de controlar seus próprios processos de aprendizagem por meio de estratégias metacognitivas. Em um sentido amplo, isso significa que a instrução se refere a todas as ações de instrutores que melhoram a aprendizagem (MAYER, 2008). Não se trata apenas de transmitir informações, mas também de orientar os alunos em seus esforços para resolver problemas e aprender sozinhos, inclusive aprender a aprender. Poderíamos presumir que os alunos aprenderiam simplesmente ao ser expostos a informações e experiências com o mínimo de orientação, ou precisariam de instrução explícita e direta? Eles descobrem conceitos e procedimentos por meio do manuseio de informações, ou precisam de ensino formal? Temos enfatizado que, na aprendizagem, os alunos constroem ativamente o significado. Todavia, será isso suficiente? UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 18 Aprender/construir significado sem ensino explícito parece estar limitado a domínios biologicamente primários. Aprender o conteúdo de disciplinas acadêmicas, domínios biologicamente secundários, requer orientação instrucional direta, especialmente quando a informação é nova ou o aprendiz é novo (KIRSCHNER; SWELLER; CLARK, 2006). Para estabelecer as mudanças na memória de longo prazo que definem a aprendizagem, é mais eficaz e eficiente que os professores expliquem completamente novos conceitos, procedimentos e estratégias de aprendizagem para seus alunos. Em outras palavras, ao contrário das suposições frequentes, a instrução direta geralmente leva a resultados melhores e mais rápidos em comparação com a aprendizagem da descoberta, ou seja, “deixar o aluno descobrir por si mesmo”. Alunos inexperientes ou aprendizes experientes diante de novas informações, tarefas ou contextos, normalmente, terão conhecimento insuficiente na memória de longo prazo e talvez habilidades cognitivas insuficientes para uma aprendizagem totalmente independente. Essas situações frequentemente levam a esforços improdutivos de solução de problemas. Em termos da teoria da carga cognitiva, quando os alunos se deparam com tarefas cognitivamente desafiadoras, como aprender a ler, escrever e calcular, cargas pesadas de memória afetarão negativamente a aprendizagem. Os novos alunos, em particular, enfrentam dificuldades porque lhes faltam esquemas mentais adequados para incorporar novas informações e sintetizá-las com seu conhecimento prévio. Existem várias possibilidades instrucionais que permitem aos professores gerenciar a carga cognitiva em seus alunos (PAAS; VAN GOG; SWELLER, 2010). Uma abordagem é usar “exemplos trabalhados” nos quais o aluno é orientado não apenas para o problema, mas também para possíveis soluções. Isso evita que o aluno tenha que resolver um problema do zero, em vez disso, é levado a entender o problema e a ver como resolvê-lo. Os exemplos permitem que a aprendizagem ocorra, dando aos alunos a oportunidade de refletir sobre uma solução e alternativas, bem como caminhos para a solução. O fornecimento de instruções diretas, apresentando exemplos trabalhados, reduz a carga de memória de trabalho direcionando a atenção, restringindo a busca do aluno pela solução e evitando o efeito labirinto (garden paths) no qual consumirá muito tempo e talvez será confuso retornar. IMPORTANT E A teoria de Garden Path (traduzido literalmente como “caminho do jardim”), ou teoria do labirinto, foi desenvolvida por Frazier (1979). Este modelo teórico argumenta que os leitores consideram apenas uma estrutura sintática para uma sentença e o significado não está envolvido na seleção do significado sintático preliminar. Assim, leitores e ouvintes podem ser enganados por frases ambíguas (ou seja, frases tipo labirintos). TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 19 A carga cognitiva na aprendizagem também pode ser reduzida pela chamada abordagem parte-todo. Nesta abordagem, a quantidade de informação (por exemplo, elementos problemáticos e operações) é reduzida dividindo uma tarefa complexa em tarefas mais simples. Como o aluno demonstra a capacidade de entender e resolver partes da tarefa maior, informações ou subtarefas podem ser adicionadas até que a tarefa original requeira apenas mais uma pequena etapa. Alternativamente, os alunos podem ser solicitados a explicar em voz alta como conseguiram resolver um problema, muitas vezes chamado de "pensar em voz alta". O uso de planilhas de processo é outra maneira de orientar a instrução e reduzir a carga cognitiva. As planilhas contêm descrições explícitas das várias etapas na solução de um problema complexo ou na conclusão de uma tarefa, incluindo dicas e heurísticas relevantes para a classe de problemas/tarefas. Grande parte da instrução nas escolas é voltada para ajudar os alunos a automatizar estratégias de aprendizagem para que a resolução de problemas se torne mais eficiente. Problemas não rotineiros tornam-se problemas rotineiros quando os alunos podem aplicar estratégias de solução de problemas que já possuem em situações novas (uma definiçãocomum de inteligência). Esse processo é referido como transferência de esquema (BRANSFORD et al., 2010). A aprendizagem inicial meticulosa, a prática de aplicar conceitos abstratos em contextos variados e o uso de estratégias de processamento destinadas a estabelecer o vínculo entre informações antigas e novas contribuem para a transferência de esquemas. A transferência de esquemas impede que os aprendizes se tornem sobrecarregados pelas demandas de atenção e pela carga cognitiva, porque o não familiar é tornado familiar. Com prática suficiente, os processos relevantes tornam-se automáticos, não exigindo mais alocação explícita de atenção ou pesquisa de informação na memória de longo prazo (FELDON, 2007). Há uma desvantagem na automatização, no entanto, porque uma vez que uma habilidade é automatizada, ela não está mais sujeita ao monitoramento ativo pelo indivíduo. Torna-se difícil mudar um processo tão automático, por exemplo, aprender a amarrar o cadarço do sapato na direção oposta à direção que você usou toda a sua vida. No caso de processos acadêmicos, é crucial que os processos sejam automatizados corretamente na primeira vez. Uma parte da instrução, portanto, é a orientação dos alunos no processamento e armazenamento de novas informações na memória de longo prazo, acabando por automatizar sua recuperação e uso (FELDON, 2007). Professores experientes mostram vantagens distintas a esse respeito em comparação com os novos professores. Eles demonstram como levar em conta que, durante a instrução nas salas de aula, vastas quantidades de informações sensoriais e semânticas estão sendo disponibilizadas aos alunos. Dada a capacidade limitada da memória de trabalho, eles utilizam técnicas que orientam os alunos para informações mais relevantes e os ensinam a distingui- las das informações irrelevantes, reduzindo novamente a carga cognitiva. Ao mesmo tempo, com base em sua experiência, informações concretas e princípios UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 20 abstratos relacionados ao ensino e à aprendizagem, também são mais capazes de diferenciar entre dicas relevantes e irrelevantes de seus alunos. Assim como no caso de alunos mais experientes, os professores mais experientes têm a capacidade de interpretar e reagir a eventos em sala de aula porque possuem procedimentos de interpretação mais automatizados. Assim, eles são capazes de acomodar uma maior complexidade na sala de aula em comparação com os professores novos, adaptando-se mais efetivamente a situações inesperadas ou incomuns. Professores mais experientes também são capazes de atribuir mais atenção a diferenças individuais específicas entre os alunos, permitindo-lhes responder de forma mais suave e eficaz aos desafios encontrados por cada aluno. Tudo isso permite que professores experientes sejam mais eficazes em ensinar e gerenciar simultaneamente os alunos da turma. Como o exposto acima deve deixar claro, o principal desafio para a formação de professores é preencher a lacuna entre a teoria e a prática, automatizando os processos cognitivos, instrucionais e gerenciais apropriados a diferentes subgrupos de alunos. A formação de professores, portanto, deve envolver não apenas o ensino da teoria, mas também estratégias para traduzir a teoria em habilidades de ensino que ajudem os alunos a alcançar seu potencial. Paralelamente aos seus futuros alunos, os professores precisam praticar essas habilidades intensiva e repetidamente antes de trabalhar na sala de aula para se tornarem automatizados. Os graduados em cursos de formação de professores que oferecem oportunidades práticas abrangentes e bem orientadas tendem a ser mais eficazes e consistentes em seu ensino, em comparação àqueles que recebem prioritariamente instrução circunscrita em teoria e em sala de aula. Tanto para os futuros professores quanto para os professores que já atuam no campo, a orientação do mentor usando o feedback em vídeo, que visa identificar pontos cruciais de decisão no ensino, pode ser muito eficaz. A reflexão sobre esses pontos de decisão deve acompanhar a discussão de respostas alternativas viáveis, da mesma forma que encorajamos essas atividades em crianças aprendizes. É claro que os professores precisam de um conhecimento considerável sobre o assunto que estão ensinando, algo que está faltando frequentemente entre os professores de surdos (PAGLIARO, 1998). Ao mesmo tempo, é importante que os professores evitem perder suas intuições sobre o que é aprender como um novato. Professores eficazes precisam ter conhecimento pedagógico, que é mais do que apenas conhecimento de conteúdo. Implica também conhecimento sobre os conflitos dos jovens aprendizes e sobre formas de apoiá-los na sua aprendizagem. TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 21 7.2 O ENSINO E O RELACIONAMENTOS ALUNO- PROFESSOR Bergin e Bergin (2009) argumentam que o bem-estar social e emocional dos estudantes é fundamental para o sucesso escolar. Uma das bases sobre as quais o bem-estar socioemocional é construído é o apego. Como veremos no Tópico 3 desta unidade, o apego se refere ao vínculo emocional entre os indivíduos no tempo e no espaço (BOWLBY, 1969, 2002). O apego entre pais e bebês resulta em crianças se sentindo seguras, permitindo que explorem livremente seus ambientes. O apego está envolvido de forma mais ampla na socialização das crianças durante toda a infância, não apenas durante a primeiríssima infância e a primeira infância. A segurança no apego dos pais, portanto, tem sido encontrada fortemente ligada a uma variedade de efeitos para a criança, incluindo o sucesso na escola. Embora considerado com menos frequência, o apego professor-aluno também é muito importante (BERGIN; BERGIN, 2009). Alunos que experienciam bons relacionamentos professor-aluno tendem a ter um bom desempenho acadêmico. Eles obtêm pontuações mais altas nos testes de desempenho, experimentam atitudes mais positivas em relação à escola, mostram mais envolvimento na sala de aula e são menos propensos a serem retidos (HAMRE; PIANTA, 2001). De um modo mais geral, as variáveis dos professores centrados nos alunos são importantes indicadores de resultados positivos dos alunos. As variáveis do professor, como ter relações positivas com os alunos, ser não diretivo, demonstrar empatia e cordialidade e incentivar o pensamento e a aprendizagem (CORNELIUS-WHITE, 2007) fornecem aos alunos bases “seguras” as quais poderão explorar academicamente. Como os professores podem desenvolver relacionamentos mais seguros com seus alunos? Primeiro, os professores precisam estar bem preparados para a aula. Novamente em paralelo aos seus alunos, uma melhor preparação permite aos professores mais capacidade cognitiva de atender a aspectos da sala de aula além do conteúdo em si, incluindo o funcionamento interpessoal. Em segundo lugar, os professores precisam de autenticidade. Mostrar aos alunos quem eles realmente são, seus “selves verdadeiros”, ajuda os professores a apoiarem laços socioemocionais. Em terceiro lugar, manter altas expectativas para os alunos também contribui para relacionamentos positivos professor-aluno. Isso é especialmente benéfico quando associado à compreensão precisa das competências do aluno e das diferenças individuais. Finalmente, os professores precisam ter uma atitude de apoio à autonomia em vez de serem controladores (GURLAND; GROLNICK, 2003). O apoio à autonomia pode ser estabelecido por ser sensível aos objetivos de cada criança e por oferecer às crianças escolhas. UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 22 Os professores parecem reagir mais negativamente aos alunos inseguros do que aos alunos seguros. As crianças que foram maltratadas em casa ou na escola muitas vezes anseiam por relações seguras com seus professores, mas geralmente é mais difícil para os professores realmente gostarem delas. Mesmo nesses casos, no entanto, é possível desenvolverrelacionamentos seguros professor-aluno (BERGIN; BERGIN, 2009). Indo um passo além, assim como no apego entre pais e filhos e entre professores e alunos, o vínculo com a escola pode contribuir para os sentimentos de segurança e bem-estar dos alunos. Quando os alunos experimentam um sentimento de pertencer a sua escola, eles participam de redes de amizade com os colegas e têm relações positivas com seus professores. O vínculo escolar muitas vezes parece mais difícil no Ensino Médio, provavelmente tanto devido à estrutura menos que ideal do Ensino Médio quanto aos fatores interpessoais entre os alunos. Em comparação com as escolas de Ensino Fundamental, por exemplo, as escolas de Ensino Médio normalmente envolvem uma ênfase maior no professor e no controle administrativo. As relações professor-aluno tornam-se menos pessoais no Ensino Médio, uma função tanto do contexto e dos indivíduos nele inseridos (BERGIN; BERGIN, 2009). Os problemas que os alunos surdos frequentemente experimentam no relacionamento com seus pares (ver Tópico 4, Unidade 2) também podem influenciar as relações professor-aluno. Comunicações menos fluentes, habilidades sociais menos desenvolvidas e uma língua incompatível entre os alunos surdos e seus professores podem levar a relacionamentos professor-aluno que são menos positivamente experimentados por ambas as partes. 8 EDUCAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS Muitas pessoas, investidores e governos atribuem grande valor à implementação e uso de práticas baseadas em evidências em domínios como saúde e educação. O paradigma dominante é que a eficácia e a eficiência das intervenções nesses domínios são melhor garantidas se as práticas forem apoiadas ou informadas pela pesquisa. Práticas baseadas em evidências na educação são aquelas práticas que melhoram os resultados do aluno, conforme demonstrado pela pesquisa (GARY; PRING, 2007). Nos Estados Unidos, por exemplo, a Lei No Child Left Behind (Nenhuma Criança Deixada para Trás) de 2002 enfatizou o uso de evidências de pesquisa para melhorar a instrução. Na República da Irlanda, a Lei Education of Persons With Special Education Needs (Educação de Pessoas com Necessidades Educativas Especiais) de 2004 determinou a prática baseada em evidências para todos os indivíduos com necessidades educacionais especiais. No Brasil, o desempenho dos alunos no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) avançou muito pouco, apesar de ter sido o único país na América Latina a melhorar em todas as disciplinas entre o ano 2000 e 2009. Ainda assim, as principais bases de dados são o IBGE, o Ministério do Trabalho, a Secretaria do Tesouro Nacional e o INEP. “Apesar da lei de acesso à informação, o TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 23 acesso de pesquisadores às bases de microdados no Brasil ainda é muito limitado, complicado e burocratizado, o que coloca os pesquisadores brasileiros em enorme desvantagem em relação aos seus colegas de outros países” (ELACQUA et al., 2015, p. 22). A ideia da prática baseada em evidências é simplesmente que a instrução deve ser baseada em evidências de pesquisa e em um senso de responsabilidade, levando a uma cultura de mensurar e compartilhar resultados educacionais (GARY; PRING, 2007). A prática baseada em evidências é frequentemente equacionada com o uso de métodos educacionais que foram provados eficazes pela pesquisa científica. Essa interpretação estrita, em nossa opinião, não é muito útil, porque a maioria dos pesquisadores em pesquisas sociais ou educacionais negaria o objetivo (e até mesmo a possibilidade) de se “provar” algo. Além disso, há fatores mais importantes a serem levados em conta na tomada de decisões educacionais dos professores do que apenas a pesquisa. Uma perspectiva muito mais útil, e na verdade uma que foi pretendida pelos criadores da prática baseada em evidências na medicina, é aquela que reconhece tanto a pesquisa quanto a expertise prática. Aplicando a definição da medicina baseada em evidências de Sackett et al. (1996, p. 71) ao campo da educação de surdos, diríamos que a educação de surdos baseada em evidências é o “uso consciente, explícito e criterioso da melhor evidência atual na tomada de decisões” sobre tal campo. A prática da educação baseada em evidências significa integrar a experiência individual de ensino com as melhores evidências educacionais externas disponíveis da pesquisa sistemática. Seguindo a visão de Sackett et al. (1996) sobre os bons médicos, os bons professores usarão tanto o conhecimento individual de ensino quanto a melhor evidência externa disponível, pois nenhum destes sozinho é suficiente. Sem experiência de ensino, a prática corre o risco de se tornar tiranizada por evidências de pesquisa, pois mesmo uma excelente evidência externa pode ser inaplicável ou inapropriada para um aluno individual. Sem a melhor evidência atual, no entanto, a prática corre o risco de se tornar rapidamente desatualizada, em detrimento dos alunos. Esta questão é particularmente proeminente na educação de surdos, em que a natureza da população estudantil mudou significativamente ao longo das últimas décadas. Alguns estudiosos preferem o termo “práticas informadas por evidência” ao invés de “baseadas em evidências” (SEBBA, 2007). Nessa visão, as pessoas que usam evidências de pesquisa para suas ações não baseiam suas ações na pesquisa, mas permitem que a pesquisa as guie. Qualquer que seja a maneira como é vista, é claro, a pesquisa deve ser confiável. Meta-análises ou, melhor ainda, revisões sistemáticas de pesquisas são vistas como fontes confiáveis de informações de pesquisa. Uma extensa e completa visão geral das evidências disponíveis para práticas em educação de surdos pode ser encontrada em Spencer e Marschark (2010). Idealmente, essas informações são integradas por professores e outros profissionais com suas próprias experiências, preferências e valores, bem como com os desejos dos alunos para os quais trabalham e com o contexto em que trabalham e vivem. UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 24 8.1 VIABILIDADE DOS DELINEAMENTOS DE PESQUISA Ensaios clínicos randomizados (ECRs) são tipicamente encontrados em pesquisas médicas, particularmente em pesquisas que buscam demonstrar a eficácia de drogas ou outros tratamentos. Em um ECR, o objetivo é determinar se o resultado do tratamento é o resultado de um medicamento, uma cirurgia ou alguma outra intervenção terapêutica. O profissional que administra o tratamento não faz parte da intervenção. Pode-se argumentar sobre se essa perspectiva é sempre apropriada no campo da medicina, mas certamente é muito limitada para intervenções sociais ou educacionais. Em psicoterapia, por exemplo, é bem aceito que pelo menos 30% do efeito da terapia é explicado pelo terapeuta e não pelo método. Isso também parece plausível na educação, porque sabemos, a partir dos estudos de eficácia educacional, que os professores são tão importantes quanto a didática e os métodos de contribuição ao desempenho acadêmico. Professores eficazes podem alcançar até quatro vezes mais crescimento de aprendizagem em seus alunos do que professores menos eficazes (MARZANO, 2003). Concentrar-se simplesmente nos efeitos das intervenções educacionais, portanto, nega a importância daqueles que as aplicam. Além disso, muitas vezes é impossível realizar experimentos educacionais com alocação randomizada de participantes individuais para condições experimentais de uma forma eticamente adequada. Suponha, por exemplo, que gostaríamos de estudar o efeito das configurações educacionais na aprendizagem social entre os alunos surdos. Quais pais concordariam com um experimento no qual os alunos surdos fossem colocados aleatoriamente no ensino regular ou especial apenas para estudar essa questão? E como poderíamos garantir que a colocação em si fosse a única diferença? A realidade é que, na pesquisa educacional, pelo menos do ponto devista metodológico, os projetos mais restritos quase nunca serão aplicáveis. A alocação randomizada de classes de estudantes em vez de invíduos é às vezes possível, mas tais projetos quase- experimentais se beneficiam grandemente da adição de métodos qualitativos para obter informações relevantes. Finalmente, muitos experimentos ocorrem em condições de laboratório e não no mundo real. As condições sob as quais a manipulação ocorre, portanto, diferirão em maior ou menor extensão com a vida real e os participantes se comportarão do mesmo modo. Como consequência, neste tipo de experimento, a eficácia de uma intervenção (se produz ou não um efeito) pode ser demonstrada, mas não a efetividade (quão bem funciona). Para realizar o último, o experimento tem que ser repetido em condições reais, condições que geralmente são muito mais difíceis de controlar. TÓPICO 1 | APRENDIZAGEM E ENSINO 25 8.2 PRÁTICAS DE PUBLICAÇÃO Há mais uma questão a ser levada em conta na discussão da pesquisa educacional. A pesquisa formal é tipicamente publicada em revistas científicas. Os periódicos e publicações que recebem mais respeito são aqueles que são revisados por pares, isto é, aqueles que são lidos (geralmente anonimamente) e criticados por dois ou mais acadêmicos que possuem experiência na área da pesquisa. A revisão por pares contribui para a qualidade das publicações, mas é bem conhecido que estudos que podem relatar efeitos estatisticamente significativos têm uma chance muito maior de serem publicados do que estudos que não mostram efeito. Esse viés pode parecer apropriado, porque a falha em demonstrar a eficácia da manipulação pode realmente significar que não tem efeito ou pode ser o resultado de uma metodologia de pesquisa fraca ou insuficiente (por exemplo, participantes insuficientes para superar diferenças individuais). No entanto, o viés leva claramente a mal-entendidos e a uma visão incompleta das evidências da pesquisa. Isso significa que, se alguém reunir as evidências disponíveis para um tratamento ou intervenção com base em uma revisão de publicações em revistas científicas, deve-se levar em conta que a revisão provavelmente será positivamente enviesada. Ou seja, pesquisas que falharam em mostrar um efeito da manipulação de interesse serão sub-representadas, se não totalmente ausentes. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS O conhecimento profissional, em geral, e o conhecimento do professor, em particular, envolvem muito mais do que conhecer os resultados de pesquisas relevantes. Divulgar os resultados da pesquisa é meramente fornecer informações na esperança de que as pessoas as atendam e usem. O conhecimento é a integração dessas informações com as experiências, habilidades e atitudes de um profissional. Essa integração da expertise individual do professor com a melhor informação disponível da pesquisa e a subsequente aplicação desse conhecimento não são nada fáceis para professores ou outros profissionais. Ainda assim, isso é importante para avançarmos com a educação e, em particular, se quisermos avançar mais na educação dos surdos. 26 Neste tópico você aprendeu que: • Se alguém estuda a aprendizagem, deve estudar o desenvolvimento em contexto. • A contribuição ambiental é de importância crucial para o desenvolvimento de estruturas e processos cerebrais geneticamente especificados. • As condições socioambientais em que o input da língua é dado são tão importantes quanto o input em si, proporcionando treinamento complexo e variável em contextos de aprendizagem que destacam informações e características essenciais de várias tarefas linguísticas e não linguísticas. • É a plasticidade do cérebro que permite que os humanos se envolvam na aprendizagem ao longo da vida. • A aprendizagem de padrões de línguas não nativas torna-se mais difícil porque o cérebro já se tornou um tanto limitado pela aquisição da primeira língua. • Aspectos do ambiente social que afetam a aprendizagem são o clima pedagógico, o número e a qualidade das interações, e a qualidade da linguagem nas interações. • Aprender é um processo ecológico moldado tanto por aspectos da situação de aprendizagem como pelas características do aprendiz. • Quando um indivíduo não tem acesso à informação em uma modalidade sensorial, em certo sentido, todo o indivíduo é modificado, pelo menos em termos de processamento psicológico e cognitivo. • Mesmo que a aprendizagem ocorra explicitamente, o uso do que foi aprendido pode estar implícito. • A aprendizagem é tanto um processo quanto um produto. • Se alguém quiser entender a aprendizagem, não só precisa abordar o quê, onde, quem e quando aprender, mas também o porquê. • Os alunos experts são muito melhores no reconhecimento de padrões e na identificação de características distintas que colocam algo em uma categoria ou outra em comparação com os alunos novatos. RESUMO DO TÓPICO 1 27 • O ambiente intrinsecamente familiar e autônomo em casa é uma base importante para a aprendizagem. • De acordo com a "teoria da teoria", as crianças têm teorias intuitivas sobre o mundo, análogasàs teorias científicas. • A primeira força motriz na aprendizagem inicial refere-se ao fato de a aprendizagem das crianças ser computacional. • A segunda força motriz refere-se à aprendizagem das crianças ser social. • A terceira força motriz refere-se ao fato de a aprendizagem ser toda baseada em redes cerebrais neurais. • O objetivo essencial da instrução é aprimorar a aprendizagem significativa pelo estímulo do processamento ativo do conteúdo pelos alunos, enquanto reduzindo a carga cognitiva. • Os seres humanos têm vias separadas para perceber e processar informações. • A aprendizagem pode ser mediada por fatores motivacionais que aumentam ou diminuem o engajamento. • Quando os processos cognitivos necessários não são capazes de lidar com a taxa ou a complexidade da informação recebida, o indivíduo pode ficar sobrecarregado antes que a aprendizagem significativa comece. • O progresso da aprendizagem colaborativa em grupos de alunos surdos pode exigir um acompanhamento mais próximo do professor do que em grupos de alunos ouvintes. • Os aprendizes surdos correm mais riscos do que os aprendizes ouvintes, particularmente em salas de aula onde os pares ouvintes dominam o ambiente. • A informação biologicamente secundária não pode ser aprendida sem instrução explícita e encorajamento motivacional. • Para estabelecer as mudanças na memória de longo prazo que definem a aprendizagem, é mais eficaz e eficiente que os professores expliquem completamente novos conceitos, procedimentos e estratégias de aprendizagem para seus alunos. • A carga cognitiva na aprendizagem também pode ser reduzida pela chamada abordagem parte-todo. • O apego está envolvido de forma mais ampla na socialização das crianças durante toda a infância, não apenas durante a primeiríssima infância e a primeira infância. 28 • Os problemas que os alunos surdos frequentemente experimentam no relacionamento com seus pares também podem influenciar as relações professor-aluno. • A prática da educação baseada em evidências significa integrar a experiência individual de ensino com as melhores evidências educacionais externas disponíveis da pesquisa sistemática. 29 1 Em qual idade o córtex motor pré-frontal atinge o seu estado maduro? AUTOATIVIDADE 2 Quais aspectos do ambiente físico e social afetam a aprendizagem? 3 O que diz a teoria da teoria sobre a aprendizagem? 4 Meltzoff et al. (2009) resumiram pesquisas relevantes, resultando no estabelecimento de fundamentos para uma nova teoria da aprendizagem em bebês e crianças. Eles identificaram três principais forças motrizes na aprendizagem inicial. Quais são estas três forças motrizes? 30 31 TÓPICO 2 APRENDIZES SURDOS UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Como observado no primeiro tópico, é a crença do autor deste livro de estudos de que ensinar alunos surdos não é o mesmo que – ou não deveriaser o mesmo que – ensinar alunos ouvintes. Ficará evidente em todo o livro que essa suposição tem vários níveis. Talvez o mais óbvio seja que ter uma perda auditiva pode prejudicar seriamente a comunicação, simplesmente porque a maior parte da comunicação interpessoal ocorre por meio da língua falada. Se uma criança nasce com audição limitada ou adquire uma perda auditiva no início da vida (especialmente antes dos dois anos de idade), o desenvolvimento da língua falada será similarmente limitado, pelo menos até certo ponto. Certamente, algumas crianças surdas e com deficiência auditiva adquirem habilidades de língua falada muito boas, mas elas raramente são tão boas quanto as de uma criança com audição normal. Simplificando, o desenvolvimento de uma língua falada depende em grande parte de ser capaz de ouvir essa língua. Como veremos em tópicos posteriores, os aparelhos auditivos e implantes cocleares, por exemplo, permitem que os indivíduos ouçam mais. Todavia, até mesmo perda auditiva mínima pode interferir na capacidade das crianças de receber e aprender a língua falada que as rodeia. Ao mesmo tempo, a perda auditiva pode interferir na aprendizagem, tanto a aprendizagem informal e incidental que acontece nas atividades cotidianas, quanto na aprendizagem mais formal associada à escolaridade. Todas essas questões e suas implicações maiores são o objetivo deste livro de estudos. Ao longo do livro, enfatizaremos que, embora a língua falada e a língua de sinais sejam apropriadas para o ensino de alunos surdos, elas não são equivalentes. Existem diferenças sociais, cognitivas e acadêmicas associadas ao uso de uma modalidade de língua ou outra que, acreditamos, afetarão a aprendizagem. Esta não é uma questão de orientação filosófica ou de ser politicamente correto, mas uma conclusão baseada no exame das evidências disponíveis da pesquisa em vários campos. De fato, um dos principais objetivos deste livro de estudos é evitar as controvérsias filosóficas e políticas que têm atormentado a educação de alunos surdos, interferindo e, às vezes, ignorando possíveis intervenções e oportunidades que possam compensar os desafios da educação de surdos. Deste modo, temos que ser claros neste ponto: muitas crianças surdas têm sucesso na escola e há UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 32 muitos adultos surdos de sucesso. Todavia, em um mundo em que cerca de 95% das pessoas passam a maior parte da vida ouvindo, a perda auditiva cria inúmeros desafios. A partir da psicologia e de outras ciências e práticas profissionais voltadas para a saúde e educação, o maior desafio associado à perda auditiva e aprendizagem está relacionado à linguagem, de modo amplo, e à língua, especificamente. Como a linguagem é a pedra angular da educação, as escolas em que a comunicação efetiva é limitada tendem a se tornar ambientes de aprendizagem restritivos para os alunos surdos. No entanto, a perda auditiva precoce e a comunicação limitada também afetam o desenvolvimento cognitivo e socioemocional, e isso também pode impedir a aprendizagem. Como os próximos tópicos irão revelar, mesmo que o risco de obstrução da aquisição da língua falada seja o primeiro a preocupar os pais de uma criança surda, e mais tarde isso é o mais evidente para colegas e professores, as implicações da perda auditiva vão muito além. Um psicólogo que estuda as implicações da perda auditiva em crianças explica o seguinte: “Quando falta um tipo de sentido, ela altera a integração e a função de todos os outros. A experiência é agora constituída de maneira diferente; o mundo da percepção, concepção, imaginação e pensamento tem um fundamento alterado, uma nova configuração” (MYKLEBUST, 1960, p. 1). É essencialmente por esta razão que argumentamos que crianças surdas não são simplesmente crianças que não podem ouvir, esta é a razão por trás dos esforços internacionais para fornecer triagem auditiva neonatal universal e intervenção precoce para crianças com perda auditiva, e é a razão porque acreditamos que um livro destinado ao ensino/educação de alunos surdos é necessário. Para apreciar os desafios que os alunos surdos enfrentam na educação e as oportunidades que os pais e professores têm de ajudar os alunos a reduzir ou superar esses desafios, é preciso entender o que são audição e perda auditiva e, mais importante, o que significa ser surdo. Em um nível, isso inclui compreender as características básicas do som, da audição e da fala, bem como a da perda auditiva. Este nível inclui possibilidades de reabilitação ou habilitação, mas também suas limitações. Em um nível diferente, para muitos indivíduos, ser surdo é muito mais do que uma condição audiológica. É também um estilo de vida. No Brasil, “deficiência auditiva” é uma das cinco categorias de deficiência identificadas pelo governo (BRASIL, 1999; BRASIL, 2004), mas as pessoas surdas constituem a única dessas categorias que também é considerada uma minoria linguística e cultural (KAUCHAKJE, 2003). As comunidades surdas e a cultura surda existem em muitos países ao redor do mundo. Estas têm características associadas a outras comunidades e culturas: história, literatura, costumes e reconhecimento de contribuições para campos como ciência e tecnologia. Como Marschark (2007) sugeriu, nesse TÓPICO 2 | APRENDIZES SURDOS 33 sentido, ser surdo oferece o mesmo tipo de diversidade cultural que famílias afro-americanas, hispânicas ou judias nos Estados Unidos, que podem apreciar tanto a cultura americana dominante quanto um elo com uma herança especial. Consistente com a convenção normal neste campo de estudo, portanto, ao longo deste livro de estudos usaremos o termo “surdo”, com letra inicial minúscula, como um adjetivo genérico, em grande parte relacionado à perda auditiva, e usaremos o termo “Surdo”, com letra inicial maiúscula, no sentido mais restrito quando nos referirmos à cultura e à comunidade Surda ou aos indivíduos pertencentes a ela. Deixamos claro agora que há mais em ser surdo/Surdo do que apenas o status auditivo. Contudo, também devemos ser explícitos que essas características, a gestalt (no sentido de que, para compreender as partes, é necessário compreender o todo, pois o todo é maior do que as somas das partes) do indivíduo surdo, são diretamente pertinentes ao ensino de alunos surdos. O restante deste tópico, portanto, fornece uma breve introdução a algumas dessas questões básicas envolvidas, além de apontar outras que serão abordadas posteriormente. Se nosso foco fosse estritamente o ser surdo/Surdo, poderíamos proceder de maneira diferente. No entanto, nosso foco é a educação, o processo de ensino e aprendizagem, de surdos, a partir do olhar da psicologia. Portanto, procedemos concentrando-nos no entendimento do que significa ouvir e não ouvir. 2 FALA, SOM E AUDIÇÃO O som é a transmissão de ondas pelo ar. As ondas sonoras são sinusoidais, como uma onda senoidal, em forma e possuem duas características importantes. A altura ou amplitude das ondas resulta no volume de um som. O número de sinusoidais em um período de tempo específico expressa a frequência de um som. A sonoridade é medida em decibéis (dB); a frequência é medida em hertz (Hz). Um tom de 10 dB é muito suave, como um suspiro alto; a fala normal tem um volume de 60 a 65 dB; e o jato de um avião-caça a uma altura de 90 metros cria um som de cerca de 140 dB. Os decibéis são medidos em escala logarítmica, como a Escala Richter para terremotos. Isso significa que o impacto de 40 dB não é o dobro de 20 dB, mas 100 vezes isso (LEVY, 2015). A fala é uma combinação específica de sons, tipicamente uma combinação complexa de sons entre 250 e 8000 Hz. Não é tão simples quanto uma única onda senoidal poderia sugerir. A percepção auditiva da fala também é um processo complexo, tipicamente caracterizado como ocorrendo em estágios (LEVY, 2015). O primeiro e mais básico estágio é a detecçãodo som da fala. Esta é essencialmente a capacidade de ouvir se há som ou não. Então, quando uma árvore cai na floresta e não há ninguém para ouvi-la, ela cria um som (ondas sonoras são geradas no ar), mas não há percepção auditiva (nenhum receptor). UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 34 O segundo estágio da percepção da fala envolve a discriminação dos sons da fala, ou seja, a capacidade de perceber semelhanças e diferenças entre os sons da fala. Um dos aspectos fascinantes do desenvolvimento da linguagem é que os bebês podem perceber essencialmente quaisquer sons de fala, não apenas aqueles do ambiente da língua em que nascem. No entanto, à medida que experimentam a língua falada, seus cérebros se tornam “sintonizados” com a língua que estão vivenciando e acabam se tornando incapazes de ouvir as diferenças que não estão presentes no que se tornará sua língua nativa. Entretanto, pesquisas mais recentes foram publicadas mostrando que durante os últimos dois meses no útero, quando o feto já está ouvindo a voz da mãe, alguns dos circuitos cerebrais para a percepção da fala estão pré-sintonizados com a língua que ela está falando (MOON; LAGERCRANTZ; KUHL, 2012). Portanto, embora sejam necessárias mais pesquisas, os recém-nascidos podem não estar igualmente preparados para perceber qualquer som da fala. O terceiro estágio da percepção auditiva da fala é a identificação de sons da fala individuais. Isso envolve, por exemplo, a capacidade de identificar as vogais. Finalmente, o quarto e último estágio da percepção da fala é a compreensão, que se refere à compreensão do significado de uma combinação de sons da fala, uma frase, uma palavra ou um morfema – a menor unidade significativa. Geralmente pensamos na fala em termos de percepção auditiva da fala, mas a fala também pode ser percebida visualmente pela leitura dela, também chamada de leitura labial (embora envolva realmente a língua, os dentes e algumas características faciais, assim como os lábios) ou de leitura orofacial. É claro que, para a leitura da fala ser possível, a face do falante deve ser visível para o ouvinte, mas mesmo assim a fala é apenas parcialmente visível. Muitas palavras faladas criam expressões faciais ou visemes (expressões faciais e posições labiais particulares a cada som da fala – fonema) similares, ou possuem uma articulação invisível. A pronúncia de sons com “p” e “m”, “d” e “n” e “s” e “z” pode ser facilmente confundida entre si. Ana Mangili, em uma entrevista, relata que: Pesquisadores do Instituto Max Planck para Cognição Humana e Ciências Cerebrais (Alemanha) descobriram, em 2012, que o sulco temporal superior esquerdo (região do lobo temporal cerebral) é a área do cérebro, presente em todos os humanos, responsável por entender o que uma pessoa diz sem escutá-la direito. Quanto maior a ativação do sulco temporal superior esquerdo, melhor será a habilidade de Leitura Labial de cada pessoa. Também em 2012, outro estudo realizado no Florida Atlantic University (Estados Unidos) revelou que os bebês fazem uso da Leitura Labial nos seus pais para aprender a falar. Com o desenvolvimento da audição e da linguagem da criança, por volta do primeiro ano de vida ela abandona o uso desta técnica. Porém, nas crianças com deficiência auditiva, dependendo dos estímulos recebidos e do grau da perda da audição, a Leitura Labial poderá continuar sendo usada ao longo da vida (MANGILI, 2014, s.p.). TÓPICO 2 | APRENDIZES SURDOS 35 Sob condições ótimas, com excelente visibilidade da boca e da face do falante, uma taxa de articulação lenta e iluminação adequada, a maioria das pessoas só consegue perceber um máximo de 25% da fala visualmente. Alguns surdos, no entanto, são capazes de compreender quase tudo que lhes é dito apenas pela leitura orofacial. Como isso é possível? Suas habilidades de percepção visual não são superiores às pessoas que ouvem (pelo menos neste caso, mas veja o Tópico 3 da Unidade 2). Em vez disso, através de muitos anos de prática, indivíduos surdos muitas vezes são capazes de usar o contexto (verbal e não verbal) e aprendem regularidades da língua falada para preencher as lacunas inerentes à percepção visual da fala. Assim, a leitura orofacial é essencialmente uma forma de adivinhação instruída, aproveitando as habilidades cognitivas que os indivíduos surdos desenvolveram e que os indivíduos ouvintes não desenvolveram. Indivíduos ouvintes, nesse sentido, são leitores preguiçosos da fala, pois nunca tiveram que depender exclusivamente ou principalmente da visão para entender a língua falada, mesmo que o que eles veem nos lábios afete o que ouvem (MCGURK; MCDONALD, 1976). A leitura orofacial também é uma atividade intensa, mesmo para um adulto surdo que é especializado nisso. Requer muita energia e rapidamente leva à fadiga em alunos surdos (CAMPBELL; DODD; BURNHAM, 1998). A audição é tipicamente vista como envolvendo apenas a orelha que vemos no lado da cabeça. Todo o órgão auditivo, no entanto, consiste no ouvido externo, ouvido médio e ouvido interno, muito mais do que apenas a parte visível – ouvido externo (LEVY, 2015). O ouvido externo consiste no pavilhão auricular (ou aurícula, a aba ou apêndice na lateral da cabeça) e no canal auditivo, que termina no tímpano. A transdução de som começa com ondas sonoras entrando no canal auditivo, afuniladas pelo pavilhão auricular. As ondas sonoras fazem com que o tímpano vibre, um movimento que passa pelos três menores ossos do corpo humano, o malleus (martelo), o incus (bigorna) e o stapes (estribo) no ouvido médio, até a janela do vestíbulo ou janela oval. A janela oval é uma membrana que age exatamente como o tímpano, passando vibrações para fluidos além dela, no ouvido interno. Sons com frequências mais altas têm distâncias mais curtas entre as ondas, criando vibrações mais rápidas passadas ao longo desta cadeia. Junto com os fluidos do ouvido interno, especificadamente a cóclea (um canal em forma de caracol), estão as células sensoriais ou ciliadas que formam o órgão de Corti, normalmente ordenadas em fileiras internas e externas. As células ciliadas internas são as células reais que transmitem o som eletricamente ao nervo acústico, ou nervo vestibulococlear, enquanto ondulam no fluido perilinfático, como algas marinhas no fundo do oceano. No entanto, tudo isso é mecânico ou eletromecânico. Para entender o que ouvimos, é necessária uma maior transmissão dos estímulos auditivos para o córtex auditivo no cérebro. Isso é feito através do nervo acústico, que conecta a cóclea com vários centros no tronco cerebral e, finalmente, com o córtex auditivo. Podemos dizer que ouvimos sons com nossos ouvidos, mas interpretamos e entendemos sons com nosso cérebro (LEVY, 2015). UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 36 3 PERDA AUDITIVA A perda auditiva pode ocorrer como resultado de obstrução ou dano em qualquer parte do ouvido (BENTO et al., 1998). Obstrução do ouvido externo devido a uma malformação, excesso de cera do ouvido (cerume) ou uma ruptura do tímpano resultam em uma perda auditiva condutiva. As ondas sonoras não podem alcançar o ouvido interno através do ouvido externo e médio, mas são conduzidas apenas indiretamente, através dos ossos do crânio. O resultado é uma perda de volume que dificulta a detecção de sons, mas não impede completamente a discriminação de sons. As pessoas ouvintes podem ouvir a ponta do dedo batendo levemente nos dentes, mesmo que quaisquer ondas sonoras através do ar sejam insuficientes para vibrar o tímpano. Perdas auditivas condutivas também podem ocorrer como resultado de infecções do ouvido médio acompanhadas de acúmulo de fluido (otite média com efusão – OME) ou otosclerose, em que os ossos do ouvido médio se fundem e não podem mover-se o suficiente para transmitir ondas sonoras. Embora as consequências da perda auditiva condutiva certamente não devam ser subestimadas,especialmente se ocorrerem precocemente durante o período de aquisição da língua, a perda auditiva condutiva é mais fácil de curar e menos grave do que a perda auditiva neurossensorial que resulta de danos no ouvido interno (PILTCHER et al., 2015). A perda auditiva neurossensorial pode ocorrer se as células ciliadas da cóclea estiverem danificadas, se sua função for limitada (conhecida como patologia coclear) ou se o nervo acústico ou os centros sensoriais no tronco cerebral não funcionarem adequadamente (patologia retrococlear ou neuropatia auditiva). Nesses casos, os sons não chegam ao cérebro, não porque estejam fisicamente bloqueados, mas por causa de deficiências neurológicas, resultando em problemas dinâmicos e de discriminação. A cura não está (ainda) disponível para perda auditiva neurossensorial, embora a reabilitação auditiva por meio de aparelhos auditivos ou implantes cocleares possa restaurar a audição funcional até certo ponto. A comparação da perda auditiva condutiva versus neurossensorial é paralela à deficiência visual causada por alterações no próprio globo ocular (por exemplo, miopia ou hipermetropia) versus perda de células nervosas dentro do olho (por exemplo, na retinite pigmentosa). No primeiro caso, quando a distância entre a lente e a retina do olho é menor ou maior do que deveria ser para os objetos estarem em foco, a visão normal pode ser restaurada usando óculos. Neste último caso, os óculos não serão muito úteis devido ao dano neurológico irreversível. Da mesma forma, no caso de uma perda auditiva condutiva, a audição pode ser restaurada em uma extensão considerável através do uso de aparelhos auditivos. Eles serão muito menos bem-sucedidos em compensar uma perda auditiva neurossensorial, devido ao dano neurológico irreversível à cóclea, ao nervo auditivo, ao tronco cerebral ou ao córtex auditivo. TÓPICO 2 | APRENDIZES SURDOS 37 O grau de perda auditiva é expresso como o nível médio de amplificação necessário para permitir que alguém ouça o som de uma frequência específica. O índice de Fletcher (FI) é frequentemente usado para indicar o grau de perda auditiva. Este índice é a perda auditiva média, expressa em decibéis, calculada sobre as frequências de tom puro de 500, 1000 e 2000 Hz. É também chamada de média de tom puro (PTA), normalmente medida sem ajuda (sem amplificação por um aparelho auditivo ou implante coclear) no ouvido melhor, o que contribuirá mais para a percepção do som. Às vezes, a frequência de 4000 Hz é incluída no PTA, resultando no que é chamado de Fletcher High Index. As frequências médias para o PTA são as mais importantes para a percepção da fala (PILTCHER et al., 2015; ROESER; VALENTE; HOSFORD-DUNN, 2007). Uma perda auditiva média (PTA) acima de 20 dB é considerada significante para a aquisição da língua falada, pois é nesse ponto que a percepção da fala se torna obstruída. Os PTAs entre 20 e 40 dB podem ser referidos como perdas auditivas leves. PTAs entre 41 e 70 dB podem ser consideradas como perdas auditivas moderadas. PTAs entre 71 e 90 dB são consideradas perdas auditivas severas e aquelas que excedem 91 dB são consideradas profundas. Em alguns países da Europa Ocidental é feita uma outra distinção, rotulando as perdas entre 35 e 90 dB como “deficientes auditivos” e reservando o rótulo “surdos” para perdas de 90 dB ou mais. Recentemente, um número de pesquisadores se referiu a perdas auditivas mínimas, até 15 dB, um nível que ainda pode afetar a língua e a aprendizagem em crianças (GOLDBERG; RICHBURG, 2004). Entretanto, a menos que seja indicado o contrário, os alunos surdos que são o tópico principal deste livro de estudos normalmente têm perdas auditivas neurossensoriais bilaterais (de ambas os ouvidos) mais graves, congenitamente ou adquiridas no início da vida. A perda auditiva neurossensorial bilateral em crianças é tipicamente congênita (presente ao nascimento) ou adquirida no início da vida. Nos países ocidentais, a surdez congênita profunda na primeira infância é uma incapacidade de baixa incidência, ocorrendo em 0,7 a 1 criança em cada 1000 (LEIGH; NEWALL; NEWALL, 2010). Mais de 50% de todos os casos de perda auditiva sensorial bilateral podem ser atribuídos a fatores genéticos. Fatores genéticos podem ser os únicos a causar perda auditiva ou fazer parte de síndromes genéticas mais amplas, levando a uma distinção entre perdas auditivas hereditárias não sindrômicas e sindrômicas (COHEN; GORLIN, 1995). A perda auditiva hereditária não sindrômica pode ser autossômica dominante (na qual somente a cópia do gene em um cromossomo precisa ser anormal), autossômica recessiva (em que ambas as cópias do gene devem ser anormais) ou X-ligada (na qual uma mutação no cromossomo X leva à expressão dominante em machos, que possuem apenas um cromossomo X, sendo recessivos em fêmeas, que possuem dois). As causas sindrômicas de perda auditiva incluem, por exemplo, a síndrome de Usher (também resultando em perda da visão, levando à surdocegueira), síndrome de Lange-Nielsen e síndrome de Waardenburg (PILTCHER et al., 2015; COHEN; GORLIN, 1995). UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 38 Além dos fatores genéticos, a perda auditiva congênita pode ser causada por doença materna (por exemplo, diabetes materna, rubéola), infecções infantis (por exemplo, rubéola, citomegalovírus) ou toxinas (ototoxinas, por exemplo, associadas ao fator Rh no sangue). Agora que a rubéola materna foi em grande parte eliminada, a causa mais prevalente de surdez congênita não hereditária nos países ocidentais é a prematuridade extrema (PILTCHER et al., 2015). As causas de surdez na infância adquirida precocemente incluem meningite, encefalite, sarampo, caxumba e trauma como resultado de traumatismo craniano. As causas de perda auditiva hereditárias não sindrômicas (congênitas) geralmente oferecem o melhor prognóstico para o desenvolvimento infantil, porque a chance de deficiência intelectual, motora ou visual relacionada é pequena comparada às causas sindrômicas e adquiridas da surdez infantil. A meningite, em particular, frequentemente leva a danos neurológicos adicionais, resultando em distúrbios de aprendizagem, bem como perda auditiva. De fato, deficiências neurológicas entre crianças surdas ocorrem até seis vezes mais frequentemente que em crianças ouvintes. Como resultado, estimativas sugerem que talvez 40% de todas as crianças surdas sofram de múltiplas deficiências, como surdocegueira, perda auditiva, deficiência intelectual ou transtornos do espectro do autismo. Como observado anteriormente, os efeitos potenciais da surdez congênita ou adquirida precocemente na infância são suficientemente significativos, de modo que é importante que a triagem auditiva, o diagnóstico e a intervenção sejam fornecidos o mais cedo possível. A medição das emissões otoacústicas e da audiometria de tronco encefálico tornaram a triagem auditiva neonatal universal eficiente e relativamente barata (LEIGH; NEWALL; NEWALL, 2010). Na triagem auditiva otoacústica, “cliques”, na verdade timbres consistindo de uma ampla gama de frequências, são gerados e recebidos por um computador. As emissões são essencialmente ecos, enviados de volta por uma cóclea saudável em resposta ao som. A triagem auditiva otoacústica pode ser realizada durante visitas domiciliares ou no hospital, horas ou dias após o nascimento. A detecção de emissões otoacústicas indica que o ouvido externo, médio e interno está funcionando adequadamente. Isso não significa, no entanto, que a criança necessariamente ouça. Problemas ao nível do nervo auditivo ou do cérebro ainda podem criar perda auditiva (neurossensorial). Da mesma forma, se as emissões não forem detectadas e a criança não "passar" pela triagem, isso não significa que ela seja surda. Resíduos no canal auditivo ou movimentos leves da cabeça durante a medição podem causar um resultado semelhante,sendo este último o motivo pelo qual a triagem é frequentemente realizada quando os bebês estão dormindo. Se uma criança não passar em uma primeira triagem, uma segunda e, finalmente, uma terceira medição de triagem normalmente será realizada antes que uma criança seja encaminhada para avaliação otológica e audiológica completa. Infelizmente, no entanto, até 50% dos pais não fazem o acompanhamento depois que a criança não passa na triagem auditiva. TÓPICO 2 | APRENDIZES SURDOS 39 Mais uma vez, a triagem das emissões otoacústicas não revelará se há um problema de audição além da cóclea: uma patologia retrococlear ou mau funcionamento dos nervos auditivos ou núcleos auditivos no tronco encefálico. A audiometria do tronco encefálico é necessária para esse tipo de avaliação, permitindo que os audiologistas (uma especialidade da fonoaudiologia) avaliem se os núcleos no tronco encefálico estão processando sons ou não (LEVY, 2015). Em alguns países, a medição da resposta do tronco encefálico em vez do teste de emissões otoacústicas é feita durante a triagem neonatal universal, especialmente quando uma criança é considerada em risco. Isso permite o diagnóstico definitivo de perdas auditivas sensorioneurais com um único teste que também permite que o grau da perda auditiva seja aproximado pelo menos em termos de leve/ moderado versus grave/profundo. A identificação de quais frequências estão implicadas em uma perda auditiva é mais difícil, mas a medição das respostas auditivas do estado estacionário (desencadeando atividade elétrica, ou potenciais evocados, no cérebro) oferece algumas possibilidades. Se uma criança é diagnosticada com uma perda auditiva significativa no início da vida (após a triagem auditiva neonatal, mas de preferência até três meses de idade), esse tipo de avaliação pode dizer aos pais em termos gerais se a criança é profundamente surda ou não. O perfil de frequência preciso da perda auditiva e seu impacto na percepção da fala, no desenvolvimento da língua e no desenvolvimento geral são coisas que terão que ser determinadas mais tarde na infância. Após a triagem auditiva neonatal, as técnicas mais utilizadas para avaliar a capacidade auditiva em crianças e adolescentes com perda auditiva são a audiometria tonal limiar e a audiometria vocal (LEVY, 2015; ROESER; VALENTE; HOSFORD-DUNN, 2007). Na audiometria tonal limiar, tons puros de uma intensidade e frequência específicas são apresentados a um indivíduo (através de fones de ouvido), que então tem que indicar sempre que um som é detectado. Todas as frequências de fala são testadas sistematicamente, resultando em uma exibição gráfica, um audiograma, que mostra a quantidade de amplificação (em dB) necessária para uma pessoa perceber um tom de uma frequência específica (expressa em Hz). A audiometria vocal envolve um procedimento semelhante, realizado com palavras faladas, falado por um profissional e reproduzido digitalmente via computador. É importante ressaltar que ambos os tipos de avaliação audiológica requerem um nível de capacidade cognitiva suficiente para entender e executar as tarefas necessárias. A audiometria vocal também exige que as palavras usadas façam parte do vocabulário receptivo do indivíduo que está sendo testado. Essas formas de avaliação, portanto, não podem ser usadas de maneira confiável com crianças muito pequenas ou com pessoas com deficiências intelectuais graves. UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 40 A triagem auditiva neonatal universal possibilita diagnósticos precoces da surdez infantil, levando ao início precoce da intervenção centrada na família. O diagnóstico e a intervenção precoces contribuem para todos os aspectos do desenvolvimento infantil e, especificamente, têm demonstrado facilitar a comunicação e o desenvolvimento da língua em crianças surdas (YOSHINAGA- ITANO; SEDEY, 2000). Parte da intervenção precoce centrada na família tem um caráter audiológico. A amplificação sonora, o fornecimento de próteses auditivas, o implante coclear em caso de perdas auditivas profundas e a reabilitação da língua falada podem fazer parte de programas de intervenção precoce, muitas vezes combinados a meios manuais de apoio à comunicação e ao desenvolvimento da língua, como a língua de sinais, fala apoiada em sinais, ou palavra complementada (ver Tópico 2, Unidade 2). 4 APARELHOS AUDITIVOS E IMPLANTES COCLEARES Existem vários tipos de aparelhos auditivos (MADELL; FLEXER, 2008), mas todos eles são essencialmente dispositivos que amplificam os sons recebidos. Os aparelhos auditivos incluem um microfone, um alto-falante, eletrônicos e uma bateria. Os aparelhos auditivos analógicos amplificam os sons ao longo de todo o espectro de frequências, enquanto os aparelhos auditivos digitais contêm um microchip programado precisamente para compensar as necessidades de amplificação do perfil de perda auditiva de um indivíduo (ou seja, diferentes níveis de amplificação em diferentes frequências). Os aparelhos auditivos digitais, que são consideravelmente mais caros do que os aparelhos analógicos, são quase sempre usados com crianças, pelo menos se forem pagos por seguros, serviços sociais ou pais abastados. Aparelhos auditivos podem ser usados no ouvido ou parcialmente atrás da orelha. No último caso, um molde auricular é colocado no ouvido e conectado ao dispositivo real atrás da orelha. Aparelhos auditivos atrás da orelha são usados com mais frequência em crianças, certamente se essas crianças tiverem perdas auditivas severas a profundas, porque o output desses aparelhos é mais poderoso. Com o tempo, a amplificação sonora através dos aparelhos auditivos ajudará muitas crianças surdas na percepção da fala. Assim como no diagnóstico e intervenção precoces, a amplificação precoce é importante, mas não é fácil proporcionar aparelhos auditivos para bebês surdos. Ajustar esses aparelhos com o crescimento contínuo do ouvido externo de um bebê é difícil, eles podem desenvolver alergias devido a substâncias nos moldes auriculares e há o fato óbvio de que os bebês dormem muito. Durante o sono, os bebês também percebem a linguagem falada e outros sons, embora isso ocorra no nível de processos abaixo do limiar consciente, ajuda a conectar o cérebro à percepção auditiva. No entanto, usar aparelhos auditivos durante o sono não é muito confortável e a maioria dos pais os remove quando seus bebês estão dormindo. Nesses momentos, outros dispositivos de amplificação podem ser usados, incluindo amplificadores conectados a seus berços. TÓPICO 2 | APRENDIZES SURDOS 41 A amplificação precoce também apresenta algumas desvantagens significativas. Estabelecer uma relação sinal-ruído ou razão sinal- ruído (frequentemente abreviada por S/N ou SNR, do inglês, signal-to-noise ratio e RSR em português) ideal com aparelhos auditivos é muito difícil e, quando os audiologistas não conseguem obter feedback de crianças (muito jovens), pode ser praticamente impossível ajustar um aparelho auditivo digital adequadamente. O problema do sinal (fala) e ruído (por exemplo, televisões, fala múltipla de outras crianças) ficar confuso é um problema nessa situação e mais geralmente quando se trata de ouvir em um ambiente natural do que em uma cabine de teste auditivo. Mesmo sob as melhores condições, no entanto, a percepção auditiva da fala com aparelhos auditivos nunca é tão boa quanto a audição “normal” e, sob condições de escuta adversas, torna-se realmente muito difícil. As salas de aula da escola são notoriamente pobres a esse respeito, normalmente com muito ruído de fundo e pouca acústica (ver Tópico 2, Unidade 2). O Sistema de Frequência Modulada Pessoal (FM), que exige que o professor e o aluno usem um dispositivo auxiliar, pode ajudar a melhorar as relações sinal- ruído e, assim, apoiar a percepção da fala na sala de aula. Observe o que diz uma nota da Secretaria de Estado da Saúde do Governode Santa Catarina sobre o Sistema FM (Frequência Modulada): Com a publicação da PORTARIA Nº 1.274, DE 25 DE JUNHO DE 2013, o Sistema FM entrou na tabela SUS. O Sistema FM é a mais importante e essencial ferramenta educacional já desenvolvida para os indivíduos com deficiência auditiva, pois é o meio mais efetivo para favorecer a relação sinal/ruído, principalmente em ambiente educacional. Equipamento que auxilia no aprendizado e na captação da voz do professor para o deficiente auditivo na escola. O aluno escuta a voz do professor diretamente em seu Aparelho Auditivo. Sem que o barulho do ambiente atrapalhe o entendimento da voz do professor. Quem pode receber o sistema FM? - Todo e qualquer paciente que faça uso de aparelho auditivo ou Implante coclear. - Com faixa etária entre 5 e 17 anos. - Estar matriculado no Ensino Fundamental I ou II ou Ensino Médio. - Possuir domínio da linguagem oral ou em fase de desenvolvimento. Como funciona? O som é captado por um microfone e enviado por meio de frequência modulada para o receptor que deverá estar conectado ao aparelho auditivo (SANTA CATARINA, 2013, s. p.). Ainda assim, embora crianças e adolescentes com perdas auditivas profundas possam ser capazes de detectar a linguagem falada usando aparelhos auditivos, é pouco provável que sejam capazes de discriminar completamente a fala, quanto mais de identificá-la e compreendê-la. Isso porque a causa das perdas auditivas mais profundas é o dano à cóclea. Como observamos anteriormente, a amplificação simples é mais eficaz para perdas auditivas condutivas, em que o aumento do volume ajuda o som a passar por partes menos funcionais do ouvido externo ou médio. UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 42 Nos casos em que as perdas auditivas profundas das crianças são causadas por uma cóclea disfuncional, malformada ou mesmo ausente, o implante coclear (IC) pode ser uma boa alternativa (NIPARKO et al., 2009). No implante coclear, um fio fino contendo 18 a 22 eletrodos correspondentes a diferentes frequências é cirurgicamente inserido na cóclea. Deitados contra a parede interna da cóclea, os eletrodos estimulam o nervo auditivo diretamente, ignorando as células ciliadas frequentemente danificadas. O fio contendo os eletrodos é conectado a um transmissor, colocado cirurgicamente junto com um pequeno ímã, no crânio logo atrás da orelha. Este transmissor magnético é conectado (através da pele por indução magnética) com a parte externa de um implante coclear, que contém um receptor e um microprocessador. Crianças surdas têm recebido implantes cocleares desde o final dos anos 80. Nos Estados Unidos, os implantes estão disponíveis para crianças a partir dos dois anos de idade desde 1990 e com 18 meses de idade desde 1998. Desde 2002, os ICs foram aprovados para bebês de até 12 meses de idade e em alguns outros países as crianças os recebem desde os seis meses de idade ou até mais jovens (assim que o crânio é grande o suficiente). No caso do Brasil, o Ministério da Saúde determina alguns critérios para a indicação de implantes cocleares (BRASIL, 1999, 2004). Tefili et al. (2013) sintetizam bem estes critérios a seguir: • Em adultos a) pessoas com surdez neurossensorial profunda bilateral com código linguístico estabelecido (casos de surdez pós-lingual ou de surdez pré- lingual, adequadamente reabilitados); b) ausência de benefício com prótese auditiva (menos de 30% de discriminação vocal em teste com sentenças); c) adequação psicológica e motivação para o uso de implante coclear. • Em crianças: a) experiência com prótese auditiva, durante pelo menos três meses; b) incapacidade de reconhecimento de palavras em conjunto fechado; c) família adequada e motivada para o uso do implante coclear; d) condições adequadas de reabilitação na cidade de origem (TEFILI et al., 2013, p. 417) Além disso, Tefili et al. (2013) afirmam que os planos de saúde privados em território nacional têm a obrigação de oferecer cobertura para ICs desde o ano de 2012. Estas coberturas, evidentemente, possuem também seus próprios critérios de avaliação. os requisitos básicos são perda auditiva neurossensorial severa ou profunda bilateral; motivação adequada da família (para menores de 12 anos ou deficientes pós-linguais) ou do paciente (se maior de 12 anos ou deficiente pré-lingual) para o uso do implante coclear e para o processo de reabilitação fonoaudiológica. Para crianças até 7 anos, é exigida ainda experiência com uso de próteses auditivas por um período mínimo de 3 meses após diagnóstico de perda auditiva severa. Maiores de 12 anos devem ter resultado igual ou menor que 50% de reconhecimento de sentenças em formato aberto com uso de prótese auditiva em ambas as orelhas; e, em caso de deficiência pré- lingual, presença de código (TEFILI et al., 2013, p. 417-418). TÓPICO 2 | APRENDIZES SURDOS 43 A taxa de implante coclear para crianças tem aumentado constantemente, a idade de implantação tem diminuído constantemente e o uso de implantes bilaterais ou binaurais, um em cada orelha, está se tornando comum. Enquanto isso, melhorias estão sendo feitas regularmente no software usado pelos microprocessadores de implantes para processamento de fala (e música). O implante coclear precoce melhorou, assim, a percepção da fala e o desenvolvimento da língua falada para muitas crianças surdas (NIPARKO et al., 2009; SPENCER; MARSCHARK; SPENCER, 2011). O implante coclear também diminuiu as lacunas na proficiência em língua e alfabetização entre crianças surdas e ouvintes, embora essas lacunas não tenham sido completamente fechadas (MARSCHARK et al., 2010). Não obstante os avanços decorrentes do implante coclear precoce, continuam a existir grandes diferenças individuais nos desfechos, cujas causas são apenas parcialmente compreendidas. As alegações de que os implantes cocleares podem curar a surdez infantil, portanto, simplesmente não são verdadeiras. De fato, se a cura ou não da surdez é um objetivo realista e para quem pode ser desejável é outra questão, abordada até certo ponto mais adiante neste tópico. Nesta conjuntura, é importante enfatizar novamente um ponto: o uso de aparelhos auditivos ou implantes cocleares por uma criança pequena não necessariamente ou automaticamente leva à percepção da fala. O fornecimento profissional desses dispositivos de escuta assistida por audiologistas especializados em crianças pequenas é uma precondição para o sucesso. Outra é a terapia cuidadosa e contínua e as oportunidades de input de alta qualidade da língua falada. Finalmente, a boa manutenção dos dispositivos de assistência auditiva requer não apenas a disponibilidade de técnicos devidamente treinados, mas também o conhecimento das habilidades básicas de reparo em crianças e adolescentes surdos mais velhos, seus pais e seus professores. Mesmo quando todas essas condições são atendidas e a percepção da fala é otimizada, os alunos surdos não ouvirão a mesma quantidade ou a mesma qualidade de som e fala que os ouvintes. Eles sempre terão que depender, muito mais do que seus colegas ouvintes, de meios visuais de comunicação, incluindo leitura orofacial e atenção a dicas visuais no ambiente. Como a língua falada é entendida, dependerá muito das características do ouvinte individual e das condições de escuta (incluindo o falante). De maneira mais geral, tanto o desenvolvimento da linguagem, da língua, quanto a aprendizagem por meio da língua falada exigirão não apenas um input de língua falada de alta qualidade, mas também aprender a usar a visão na comunicação e na linguagem de modo geral (ver Tópico 2, Unidade 2). UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 44 5 DEFICIÊNCIA AUDITIVA E SURDEZ Notamos anteriormente que ser surdo é tanto uma deficiência quanto, para algumas pessoas surdas, também ou predominantemente uma identidade linguística e cultural. Mais de 95% de todas ascrianças surdas nascem em famílias ouvintes. Para os pais ouvintes, uma criança surda quase sempre é totalmente inesperada. Sua visão instintiva da surdez é principalmente patológica: a perda auditiva é causada por uma condição médica; deve ser curada se for possível e, se não for, cuidada. Essa visão é compartilhada por muitos profissionais, certamente a maioria dos otorrinolaringologistas, mas também por muitos fonoaudiólogos e professores. Muitos surdos, no entanto, certamente aqueles com pais surdos, mas também muitos com pais ouvintes, aderem a outra visão, que valoriza sua comunidade Surda, sua cultura Surda e sua língua de sinais (KAUCHAKJE, 2003; WOLL; LADD, 2011). Essa visão de ser surdo é sociocultural, apontando para o status da comunidade Surda como uma minoria linguístico-cultural. É apoiada por muitos adultos ouvintes filhos de pais surdos, ou CODAs (do inglês, Children of Deaf Adults) – expressão traduzida em português como “filho de pais surdos” ou “filhos de surdos adultos” (BEZERRA; MATEUS, 2017, p. 452) –, mas também por profissionais ouvintes (por exemplo, linguistas de língua de sinais, psicólogos, professores) e por alguns pais ouvintes. A comunidade Surda não é uma comunidade monolítica mais do que a comunidade de ouvintes. Há muita diversidade na comunidade, expressa, por exemplo, em valores variados associados ao uso das línguas falada e de sinais (SILVA; KAUCHAKJE; GESUELI, 2003). O que une muitos Surdos, apesar de sua diversidade, é um sentimento intenso de pertencer a outras pessoas que sabem como é ser Surdo em um mundo dominado por pessoas ouvintes – pessoas que muitas vezes ignoram os desafios que os Surdos enfrentam e as forças específicas que eles têm. Esse vínculo entre os Surdos costumava ser celebrado em clubes sociais e associações de Surdos. Mais recentemente, em parte como resultado de uma melhor comunicação por meio da tecnologia, a comunidade Surda tornou-se muito mais fluida. Hoje podemos ver redes de pessoas Surdas que se encontram às vezes face a face, mas cada vez mais na Internet e nas redes sociais. Nas últimas décadas, as comunidades Surdas em muitos países realizaram conquistas consideráveis em relação ao reconhecimento formal e/ou social de suas línguas de sinais e cultura Surda. Esse reconhecimento levou a um maior acesso por meio da tecnologia e da interpretação da língua de sinais. Em extremos opostos, as visões patológicas e culturais da surdez podem ser expressas pelo desejo de curá-la ou celebrá-la. Na prática, a maioria dos surdos e Surdos, seus pais e os profissionais envolvidos com eles e a comunidade Surda veem a surdez em termos menos extremos. No entanto, essas diferentes visões continuam a levar a controvérsias com relação a questões como a testagem genética, o implante coclear, o uso da língua de sinais na educação e a educação regular para alunos surdos. TÓPICO 2 | APRENDIZES SURDOS 45 O que é importante no contexto deste livro é o fato de que, para muitos aprendizes surdos, a surdez não é apenas uma condição audiológica, mas também um modo de ser. Educar esses alunos, e especialmente os mais velhos, portanto, é uma questão de prestar atenção não apenas à perda auditiva, mas também ao fato de serem Surdos. Ter outros alunos surdos ou Surdos na sala de aula pode significar coisas diferentes para eles do que para seus professores ou colegas de classe. Para os alunos audiologicamente surdos, o ensino regular pode significar tomar medidas para aumentar a disponibilidade de ensino da língua falada, por exemplo, através do ritmo de instrução, condições acústicas na sala de aula, uso da língua escrita, arranjos de assentos e FM ou outros dispositivos de assistência. Questões semelhantes também podem ser importantes até certo ponto para os alunos Surdos, mas eles também esperam respeito pela sua língua e cultura. A inclusão de alunos Surdos na educação regular significa, portanto, também a inclusão da língua de sinais para instrução, professores Surdos, colegas Surdos e eventos culturais Surdos. Ambos os grupos podem ser incluídos no ensino regular ou especial, mas a inclusão completa de alunos Surdos em salas de aula regulares é um desafio maior do que ocorre em escolas especiais projetadas para surdos (STINSON; ANTIA, 1999). Como consequência da introdução do implante coclear precoce, algumas pessoas Surdas (e algumas ouvintes) temem que as línguas de sinais e as culturas surdas voltem a estar sob pressão, como nos anos em que a língua de sinais geralmente era proibida em sala de aula (MOORES, 2010). Esse sentimento persiste apesar de ser uma minoria de crianças surdas (uma proporção apenas daquelas com perdas auditivas profundas) que está recebendo esses implantes. Nessa visão, os pais e profissionais ouvintes precisam valorizar a língua de sinais e a cultura dos Surdos para criar e educar crianças surdas assim como valorizam a língua falada, os aparelhos auditivos e os implantes cocleares. A noção de Ganhos Surdos, por exemplo, enfatiza os efeitos positivos de ser Surdo em áreas como aprendizagem visual, literatura, arte e arquitetura. Além disso, defensores de uma abordagem bilíngue-bicultural à educação de surdos argumentam que, por meio dessa abordagem, os danos ao desenvolvimento de crianças surdas podem ser evitados (HUMPHRIES et al., 2012; LISSI; SVARTHOLM; GONZALEZ, 2012). Outros clamam por mais flexibilidade nas políticas, não negando o potencial da língua de sinais e da cultura de Surdos no desenvolvimento de alunos surdos, mas pedindo evidências dos benefícios da educação bilíngue bicultural (KNOORS; MARSCHARK, 2012; FERNADNES, 2005). Pode-se entender a visão instintiva dos pais (ouvintes) sobre a perda auditiva como uma condição patológica, mas esforços devem ser feitos para ampliar essa perspectiva normativa com outra perspectiva mais sociocultural que valoriza a língua de sinais e a cultura Surda sem negar a importância da proficiência em língua falada e escrita e participação na sociedade como um todo (KNOORS, 2007). UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 46 6 SER SURDO NA ESCOLA Por volta do século XVI, algumas crianças surdas na Europa estavam recebendo educação formal em ambientes projetados especificamente para elas (LANG, 2011). No início, essas crianças vieram em grande parte de famílias ricas e a instrução era ministrada por tutores ou escolas particulares. A educação apoiada pelo governo para crianças surdas teve que esperar até a Era do Iluminismo. Em 1760, o Abade Charles-Michel de l'Épée estabeleceu a primeira escola para surdos, a École National des Sourds et Muets em Paris (atual Institut National des Jeunes Sourds). Logo, seu exemplo foi seguido em outros países. Samuel Heinicke começou uma escola para surdos em 1778 em Leipzig, Alemanha. Em 1783, Thomas Braidwood começou uma escola para surdos em Londres, Inglaterra. Henri Daniel Guyot foi o fundador da primeira escola para surdos na Holanda, em 1790 em Groningen, agora parte da Royal Dutch Kentalis. Thomas Hopkins Gallaudet contratou Laurent Clerc, um dos professores surdos da escola de Paris, para ajudar a criar um programa para educar alunos surdos no Connecticut Asylum for the Deaf and Dumb (agora a Escola Americana para Surdos), em 1817. Excelentes introduções à história da educação de surdos, a forma mais antiga de educação especial, podem ser encontradas em Lane (1984) e Lang (2011). Desde o início, as escolhas sobre a língua de ensino e a condição auditiva do corpo docente na educação de surdos levaram a violentas controvérsias, dividindo os profissionais em campos descritos como os oralistas, aqueles que apoiavam a comunicação exclusivamente pela língua falada, e os gestualistas, proponentes do uso de sinais e língua de sinais e da indicação de professores surdos (MOORES, 2010). Esta “guerra de métodos” de 200 anos na educação de surdos incluiu uma batalha particularmente destrutiva na SegundaConferência Internacional de Educadores de Surdos (ICED) em Milão, em 1880. Naquela conferência, em que participaram apenas 164 professores, sendo todos menos um deles ouvinte, os delegados proclamaram que as crianças surdas deveriam ser criadas e educadas exclusivamente com a língua falada (GALLAUDET, 1881). Esta decisão agora infame levou ao abandono da língua de sinais de muitas escolas para surdos nos países ocidentais. Em alguns lugares, como o Gallaudet College (agora Gallaudet University) em Washington, DC, a comunicação por sinais permaneceu em uso (a língua de sinais não foi reconhecida pelos linguistas como uma verdadeira língua até 1960). Na maioria dos outros lugares, no entanto, o uso exclusivo da língua falada na educação de surdos no século XX ganhou ainda mais ímpeto com a invenção de aparelhos de amplificação, como os aparelhos auditivos. A língua de sinais e a cultura Surda foram para a clandestinidade, com a língua de sinais sendo secretamente usada por alunos surdos nos dormitórios de escolas residenciais para surdos e em clubes de Surdos. TÓPICO 2 | APRENDIZES SURDOS 47 As línguas de sinais não se tornaram amplamente e abertamente apreciadas mais uma vez, até que linguistas como William Stokoe (2005) mostraram convincentemente que eram línguas reais, ricas e bem estruturadas; e psicólogos como Vernon (2005) e Schlesinger e Meadow (1972) demonstraram sua importância para o desenvolvimento e educação da criança. O subsequente movimento de emancipação das pessoas Surdas, apoiado por muitos pais e profissionais, levou ao estabelecimento de escolas bilíngues para surdos nos anos 80 e 90, primeiro em países escandinavos, como a Suécia e a Dinamarca, e um pouco mais tarde em outros, incluindo os Estados Unidos, Reino Unido e Holanda. Na 21ª reunião do ICED em Vancouver, Canadá, em 2010, um pedido formal de desculpas foi oferecido pelo Comitê Organizador do ICED para a decisão feita em Milão em 1880. Para muitas pessoas, isso foi visto como um fim oficial da guerra de métodos que caracterizou a educação de surdos por tanto tempo, desperdiçando energia e recursos que poderiam ter sido dedicados ao delineamento de melhores técnicas de ensino, melhoria da didática e desenvolvimento de currículos de ponta para alunos surdos. A guerra pode ter acabado, mas as tensões permanecem, em parte devido à introdução do implante coclear precoce e em parte devido a mudanças na política educacional em muitos países que levaram ao aumento da integração de estudantes surdos em escolas regulares não bilíngues. Ao mesmo tempo, a marginalização da língua falada em programas que alegam ser bilíngues afastou alguns pais de crianças surdas que têm melhores oportunidades de uma língua falada (SWANWICK et al., 2014). No Brasil o movimento das escolas bilíngues ainda está ganhando força, mas encontra diversos empecilhos (SKLIAR, 1999). Historicamente, a maioria das primeiras escolas para surdos eram programas residenciais. Os alunos surdos permaneciam em dormitórios durante a semana, com muitos deles indo para casa nos fins de semana e feriados. A língua de sinais e a cultura Surda floresceram nesse cenário, assim como nas famílias Surdas. Juntamente com crianças jovens surdas sendo “orientadas” por alunos mais velhos e particularmente por aqueles com pais surdos, este crescimento foi suportado pelo fato de que escolas residenciais para surdos dominaram a educação de surdos por décadas devido às distâncias que estes alunos tinham que viajar e dificuldades com transporte público. Gradualmente, porém, outras escolas para surdos começaram a surgir, incluindo escolas diurnas. Nesses programas, os alunos surdos ficavam com “pais adotivos” durante a semana ou, na década de 1960, podiam morar em casa e viajar diariamente para a escola. Nas últimas décadas, cada vez mais estudantes surdos foram educados em suas escolas locais. Essa mudança é, em parte, consequência de políticas governamentais deliberadas que buscaram a inclusão de alunos com deficiência no ensino regular (FUCHS; FUCHS, 1994). "Uma escola para todos" é um grito de guerra popular para este movimento, que começou nos Estados Unidos com pais de crianças com deficiência intelectual protestando contra a institucionalização de seus filhos, mas teve talvez seu maior impacto na educação de surdos. UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 48 O movimento de inclusão certamente tem objetivos nobres, mas na realidade as implicações da inclusão plena – participação plena na instrução e nas atividades sociais na sala de aula, não apenas na presença física – são frequentemente subestimadas (STINSON; ANTIA, 1999). Às vezes, as autoridades educacionais estimulam a educação inclusiva porque acham que é menos dispendiosa do que as escolas especiais para surdos. De fato, a inclusão plena de alunos surdos no ensino regular pode ser muito mais cara do que a educação especial, dado que todos os alunos precisam aprender a se comunicar uns com os outros, que os professores precisam aprender a ensinar alunos surdos e as instalações da escola e serviços precisam ser adequadamente projetados para acomodar alunos surdos. E, como veremos em tópicos posteriores, a ideia de que as escolas regulares oferecem o ambiente menos restritivo (LRE) para alunos com deficiência claramente não se aplica a muitos alunos surdos. É por estas razões que, ao advogar pela igualdade de direitos para estudantes com e sem deficiência, tanto a Declaração de Salamanca e a Estrutura de Ação em Educação Especial (BRASIL, 1997) como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2010) apoiaram a educação inclusiva, mas também se referiram explicitamente à opção adicional para alunos surdos serem educados em escolas especiais. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar das demandas por uma ampla gama de opções educacionais para alunos surdos, as matrículas em escolas especiais para surdos diminuíram nos últimos anos, principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, e até certo ponto nos países escandinavos (SWANWICK et al., 2014). No Brasil o fenômeno é semelhante, uma diminuição ou manutenção de matrículas em escolas especiais e um aumento de matrículas nas escolas regulares (LAPLANE, 2015). Ao mesmo tempo, alunos surdos que estão sendo educados em ambientes de educação especial frequentemente são caracterizados como tendo mais necessidades do que seus pares surdos ou ouvintes em salas de aula regulares, incluindo uma maior frequência de problemas de saúde mental e aprendizagem e mais frequentemente provenientes de meios socioeconômicos desfavorecidos (SHAVER et al., 2014). Muitos alunos surdos são colocados em escolas regulares em uma base individual, apoiados por professores de surdos que fornecem apoio de meio período, conforme necessário. Em alguns países, o acesso à instrução por esses alunos também é suportado pelo fornecimento de dispositivos FM, texto em tempo real e/ou interpretação da língua de sinais. Em alguns lugares, iniciativas foram tomadas para combinar o melhor da educação regular e especial em programas para alunos surdos. Qualquer que seja o ambiente educacional, os alunos surdos permanecem surdos, com algumas necessidades e pontos fortes diferentes dos colegas ouvintes. O restante deste livro aborda questões associadas ao ensino e aprendizagem de todos esses alunos. 49 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • Se uma criança nasce com audição limitada ou adquire uma perda auditiva no início da vida (especialmente antes dos dois anos de idade), o desenvolvimento da língua falada será similarmente limitado, pelo menos até certo ponto. • Embora a língua falada e a língua de sinais sejam apropriadas para o ensino de alunos surdos, elas não são equivalentes. • Como a linguagem é a pedra angular da educação, as escolas em que a comunicação efetiva é limitada tendem a se tornar ambientes de aprendizagem restritivospara os alunos surdos. • Em um nível diferente, para muitos indivíduos, ser surdo é muito mais do que uma condição audiológica. • As comunidades surdas e a cultura surda existem em muitos países ao redor do mundo. • A fala é uma combinação específica de sons, tipicamente uma combinação complexa de sons entre 250 e 8000 Hz. • A percepção auditiva da fala também é um processo complexo, tipicamente caracterizado como ocorrendo em estágios. • Geralmente pensamos na fala em termos de percepção auditiva da fala, mas a fala também pode ser percebida visualmente pela leitura dela, também chamada de leitura labial ou de leitura orofacial. • A perda auditiva pode ocorrer como resultado de obstrução ou dano em qualquer parte do ouvido. • A perda auditiva condutiva é mais fácil de curar e menos grave do que a perda auditiva neurossensorial que resulta de danos no ouvido interno. • A perda auditiva neurossensorial pode ocorrer se as células ciliadas da cóclea estiverem danificadas, se sua função for limitada ou se o nervo acústico ou os centros sensoriais no tronco cerebral não funcionarem adequadamente. • O grau de perda auditiva é expresso como o nível médio de amplificação necessário para permitir que alguém ouça o som de uma frequência específica. 50 • Uma perda auditiva média (PTA) acima de 20 dB é considerada significante para a aquisição da língua falada, pois é nesse ponto que a percepção da fala se torna obstruída. • A perda auditiva neurossensorial bilateral em crianças é tipicamente congênita (presente ao nascimento) ou adquirida no início da vida. • A perda auditiva hereditária não sindrômica pode ser autossômica dominante, autossômica recessiva ou X-ligada. • Além dos fatores genéticos, a perda auditiva congênita pode ser causada por doença materna, infecções infantis ou toxinas. • A triagem auditiva otoacústica pode ser realizada durante visitas domiciliares ou no hospital, horas ou dias após o nascimento. • A identificação de quais frequências estão implicadas em uma perda auditiva é mais difícil, mas a medição das respostas auditivas do estado estacionário oferece algumas possibilidades. • Após a triagem auditiva neonatal, as técnicas mais utilizadas para avaliar a capacidade auditiva em crianças e adolescentes com perda auditiva são a audiometria tonal limiar e a audiometria vocal. • Existem vários tipos de aparelhos auditivos, mas todos eles são essencialmente dispositivos que amplificam os sons recebidos. • Aparelhos auditivos podem ser usados no ouvido ou parcialmente atrás da orelha. • Durante o sono, os bebês também percebem a linguagem falada e outros sons, e embora isso ocorra no nível de processos abaixo do limiar consciente, ajuda a conectar o cérebro à percepção auditiva. • A amplificação precoce também apresenta algumas desvantagens significativas. • Sistema de Frequência Modulada Pessoal (FM), que exige que o professor e o aluno usem um dispositivo auxiliar, pode ajudar a melhorar as relações sinal- ruído e, assim, apoiar a percepção da fala na sala de aula. • Nos casos em que as perdas auditivas profundas das crianças são causadas por uma cóclea disfuncional, malformada ou mesmo ausente, o implante coclear (IC) pode ser uma boa alternativa. • A taxa de implante coclear para crianças tem aumentado constantemente, a idade de implantação tem diminuído constantemente e o uso de implantes bilaterais ou binaurais, um em cada orelha, está se tornando comum. 51 • O uso de aparelhos auditivos ou implantes cocleares por uma criança pequena não necessariamente ou automaticamente leva à percepção da fala. • Ser surdo é tanto uma deficiência quanto, para algumas pessoas surdas, também oupredominantemente uma identidade linguística e cultural. • O que une muitos Surdos, apesar de sua diversidade, é um sentimento intenso de pertencer a outras pessoas que sabem como é ser Surdo em um mundo dominado por pessoas ouvintes. • Para muitos aprendizes surdos, a surdez não é apenas uma condição audiológica, mas também um modo de ser. • Como consequência da introdução do implante coclear precoce, algumas pessoas Surdas (e algumas ouvintes) temem que as línguas de sinais e as culturas surdas voltem a estar sob pressão, como nos anos em que a língua de sinais geralmente era proibida em sala de aula. • Desde o início, as escolhas sobre a língua de ensino e a condição auditiva do corpo docente na educação de surdos levaram a violentas controvérsias, dividindo os profissionais em campos descritos como os oralistas, aqueles que apoiavam a comunicação exclusivamente pela língua falada, e os gestualistas, proponentes do uso de sinais e língua de sinais e da indicação de professores surdos. • As línguas de sinais não se tornaram amplamente e abertamente apreciadas até que linguistas como William Stokoe mostraram convincentemente que eram línguas reais, ricas e bem estruturadas; e psicólogos como Vernon e Schlesinger e Meadow demonstraram sua importância para o desenvolvimento e educação da criança. 52 1 As comunidades surdas e a cultura surda existem em muitos países ao redor do mundo. Quais seriam algumas características destas comunidades? AUTOATIVIDADE 2 A fala é uma combinação específica de sons. Descreva algumas características da fala, inclusive os estágios de percepção auditiva dela. 3 O que é o Sistema de Frequência Modulada Pessoal (FM)? E como pode beneficiar o processo de aprendizagem em sala de aula? 53 TÓPICO 3 O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Imagine receber o seguinte e-mail de pais em busca de conselhos: Nosso filho recebeu seu primeiro implante aos cinco anos e o segundo aos sete anos. Ele agora tem oito anos e só fala frases de cinco a seis palavras (gramaticalmente incorretas) e entende um pouco mais. Ele só pode ler no nível dos anos pré-escolares. Ele estava em uma escola mal administrada, então nos mudamos há oito meses para uma grande escola particular de ensino oral. Ele está ganhando habilidades de língua e alfabetização, mas tememos que não seja rápido o suficiente para diminuir a distância. Eu sei que não estamos nesta escola há muito tempo e devemos esperar mais, mas o tempo é algo que já perdemos muito. Eu não quero um jovem de 20 anos que não tenha uma língua utilizável e não possa ler, mas também sinto que mudar para Libras [Língua Brasileira de Sinais] dificultará ainda mais a leitura. O que eu faço? Embora estejam fazendo perguntas básicas sobre o desenvolvimento de seu filho surdo, esses pais abordaram várias questões problemáticas e controversas que continuam a surgir na educação de surdos. Questões que frequentemente recebem respostas baseadas em filosofias pessoais, crenças e tradição, em vez de evidências de pesquisa. Neste caso, eles poderiam receber a seguinte resposta, todas relacionadas a pontos levantados em vários lugares ao longo deste livro: 1. Quase todas as crianças surdas têm dificuldade em aprender a ler (TRAXLER, 2000). 2. A educação “oral” não elimina atrasos de linguagem (GEERS, 2006). 3. Não há evidências de que a aprendizagem da língua de sinais interfira na aprendizagem da linguagem falada (para crianças com ou sem implantes cocleares), mas também não levará necessariamente à alfabetização escrita (MAYER; AKAMATSU, 1999). 4. Os implantes cocleares são uma ajuda tremenda para muitas crianças surdas, mas não as fazem crianças ouvintes (SPENCER; MARSCHARK; SPENCER, 2011). 5. Infelizmente, não há uma resposta simples ou única para a sua situação, uma situação que seja compartilhada por muitos, se não pela maioria dos pais de crianças surdas. 54 UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS Em suma, mesmo que as perguntas desses pais fossem simples, elas também solicitariam respostas complexas. Até mesmo para começar a respondê- las exigiria não apenas que se soubesse e se pudesse destilar as evidências gerais em relação às interações da língua, alfabetização e escolaridade,mas também que se conhecesse as características específicas da criança e da família. O primeiro requisito envolveria pesquisa apropriada e sua avaliação (ver Tópico 1 desta unidade); o segundo envolveria uma avaliação completa e adequada centrada na família (ver Tópico 2 da Unidade 2). Em resposta a questões como essas, os pais de crianças surdas frequentemente obtêm informações contraditórias de pessoas diferentes, frequentemente deixando-os mais preocupados. Felizmente, pesquisas recentes forneceram uma melhor compreensão sobre os fatores que afetam a língua e a aprendizagem entre crianças surdas e as maneiras pelas quais os ambientes iniciais e as interações entre pais e filhos moldam seu desenvolvimento. A triagem auditiva neonatal universal e os programas de intervenção precoce estão proporcionando às crianças surdas jovens e suas famílias experiências sociais e educacionais, informações baseadas em evidências e apoio prático. Sabemos, a partir de vários estudos, que os pais que recebem forte apoio da família e dos amigos, assim como dos profissionais, são mais capazes de lidar com as demandas de ter uma criança surda (CALDERON; GREENBERG, 2011). Estar plenamente informado permite que eles tenham expectativas razoáveis para si e para seu filho. Também impede que eles acreditem que há algo que transformará magicamente seu filho surdo em uma criança ouvinte ou que seu filho está condenado a uma vida de dependência e fracasso. A coleta de informações é, portanto, essencial para os pais que têm filhos surdos, especialmente durante os primeiros meses de vida. Isso é ainda mais importante, pois sabemos que, devido ao número de decisões apresentadas aos pais de crianças surdas em um período relativamente curto, eles frequentemente relatam sentirem-se como se estivessem vivendo em uma montanha-russa (BOSTEELS; VAN HOVE; VANDENBROECK, 2012). Além disso, as informações frequentemente são apresentadas aos pais de maneiras preconceituosas, muitas vezes exagerando os aspectos médicos da surdez e negligenciando outros aspectos do que significa ser surdo/Surdo (MATTHIJS et al., 2012), como se um bebê não fosse mais do que seus ouvidos. Uma das coisas mais importantes que os pais de uma criança surda têm que aprender é que, como observamos no Tópico 2, embora as crianças surdas e ouvintes tenham muitas das mesmas forças externas agindo sobre elas e respondem mais ou menos da mesma maneira, existem modos além de apenas ouvir os limiares e a modalidade da língua em que elas são diferentes. Afinal, as diferenças individuais estão presentes até mesmo entre gêmeos idênticos. Essas diferenças podem ser maiores entre as crianças surdas do que entre as crianças ouvintes, mas isso não é necessariamente ruim. As crianças são extremamente flexíveis e resistentes. Elas se ajustam a seus ambientes familiares e sociais, e crianças surdas, literalmente, não sabem o que estão perdendo (por não ouvir). O que é essencial para os adultos no mundo de uma criança surda é reconhecer os TÓPICO 3 | O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 55 pontos fortes e as necessidades da criança – construir sobre a primeira e trabalhar para acomodar a segunda. Tudo isso começa essencialmente no nascimento, e este tópico considerará como e o que as crianças surdas aprendem em casa. Não por coincidência, também incluirá o que pais de crianças surdas estão aprendendo em casa ao mesmo tempo, quer eles percebam isso ou não. 2 LÍNGUA E COMUNICAÇÃO Ao longo deste livro de estudos, enfatizamos repetidamente a importância da comunicação efetiva ou bem-sucedida entre pais e filhos, pois é o melhor preditor de sucesso em praticamente todas as áreas de desenvolvimento de crianças surdas e ouvintes. A falta de comunicação natural e bem-sucedida desde o início talvez seja a consequência mais séria do diagnóstico tardio de perda auditiva e é importante que os pais não subestimem a importância da comunicação durante os primeiros meses de vida (LEDERBERG; BEAL-ALVAREZ, 2011). Ter uma criança que não responde à voz da mãe ou presta atenção às coisas que acontecem ao seu redor pode parecer um problema menor, mas terá um impacto duradouro na criança, nos pais da criança e nas relações entre eles. Além disso, como vimos no Tópico 1, muito do que uma criança pequena sabe vem incidentalmente, simplesmente do brincar e da interação com o mundo. Outro conhecimento vem da experimentação mental: pensar sobre as coisas, entender as conexões ou o modo como as coisas funcionam e, às vezes, testá-las no mundo real. Provavelmente, a maior parte do conhecimento de uma criança em determinado momento vem de outras pessoas que fornecem novas informações (como que os cavalos não fossem cachorros), novos comportamentos (como amarrar um cadarço) e novas coisas com as quais interagir (como brinquedos, jogos e ideias). Família e colegas são, portanto, grandes contribuintes para o desenvolvimento e a aprendizagem, e muito do que eles fornecem vem através da língua. Por toda a sua importância, a aquisição da língua é um desafio considerável para a grande maioria das crianças surdas e a maioria tem pais e professores que não têm certeza de como melhor ajudá-los a realizar essa façanha. Crianças surdas de pais surdos têm o benefício de acesso total à língua desde o nascimento por meio de uma linguagem visual natural, e o trabalho de vários pesquisadores indica que essas crianças passam por vários marcos do desenvolvimento da língua na mesma ordem e na mesma velocidade que as crianças ouvintes, pelo menos até os dois anos de idade (MEIER; NEWPORT, 1990). Depois disso, até os filhos surdos de pais surdos podem ter atrasos no desenvolvimento da linguagem. Dois estudos longitudinais de crianças surdas de pais surdos que estavam a par com os pares ouvintes aos dois anos descobriram que tinham vocabulários (de sinais) significativamente menores do que os vocabulários falados das crianças ouvintes aos três anos, de acordo com a mesma ferramenta de avaliação (ANDERSON; REILLY, 2002; WOOLFE et al., 2010). Um padrão semelhante parece ser comum 56 UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS na língua de sinais de crianças ouvintes de pais surdos, sugerindo que não se trata de crianças surdas, mas de como os pais surdos “ensinam” para seus filhos uma primeira língua. Se esses achados forem verificados em pesquisas futuras, pode-se imaginar várias fontes de atrasos da língua entre filhos de pais surdos (assim como de pais ouvintes). Por um lado, pelo menos durante a primeira infância e nos anos pré-escolares, os filhos de pais surdos provavelmente serão expostos a menos usuários fluentes da língua do que crianças ouvintes da mesma idade. Eles também perderão oportunidades que as crianças ouvintes de pais ouvintes têm para a aprendizagem incidental da língua, ouvindo por acaso as conversas de seus pais e de outras pessoas. Obviamente, isso afetará o número de palavras que eles aprendem. Além disso, haverá um efeito cumulativo na linguagem, pois quanto mais contato com a língua eles tiverem, mais complexas serão suas interações com os outros e mais linguagem elas adquirirão. Relacionado a isso também é o fato de que muitos adultos surdos não possuem habilidades de letramento ou nível de escolaridade de adultos ouvintes (QI; MITCHELL, 2012), portanto, podem não ser os melhores modelos de língua para seus filhos em termos do nível de seus discursos. Pais e irmãos (e até mesmo o pet da família) proporcionam aos bebês e às crianças pequenas as primeiras interações que apoiam a aprendizagem em áreas sociais, linguísticas e cognitivas. Embora as barreiras iniciais da língua possam parecer um problema para os pais ouvintes que têm filhos surdos, a comunicação não é apenas sobre a língua. Independentemente de as crianças surdas terem ou não aparelhos auditivos ou implantes cocleares e se elas usam principalmente a língua de sinais ou falada, é atravésda visão e do toque que os bebês surdos terão acesso ao mundo da experiência. Koester, Papousek e Smith-Gray (2000) descreveram os comportamentos naturais que os pais surdos usam nas interações com seus filhos surdos, o que tem sido chamado de parentalidade intuitiva. Por exemplo, é comum ver pais surdos (e outros habilidosos usuários de sinais) modificando sua língua de sinais e expressões complementares da mesma maneira que os pais ouvintes modificam sua língua falada para bebês, chamada de “manhês” (motherese), mas também para seus animais de estimação (HIRSH-PASEK; TREIMAN, 1982). Isso inclui produção lenta, expressão facial exagerada, repetição e sorrisos complementares (MOHAY et al.,1998). Os pais surdos também usam o toque com mais frequência e eficácia do que os pais ouvintes em obter e manter a atenção do filho surdo (KOESTER; BROOKS; TRACI, 2000). Tais comportamentos ensinam a criança a prestar atenção a certas coisas, como a mãe, um comportamento importante que pode ser transferido (generalizado) para outras pessoas e coisas. Swisher (2000) apontou que as crianças pequenas não têm períodos de atenção visual muito longos e, como veremos no Tópico 3 da Unidade 2, o tempo de atenção das crianças surdas muitas vezes é ainda menor que o das crianças ouvintes. Ao desenvolver as habilidades necessárias para ser um aprendiz visual, TÓPICO 3 | O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 57 esperamos que as crianças surdas consigam adquirir mais tempo de atenção ao longo do tempo, mas não está claro o quanto essas habilidades se desenvolvem naturalmente ou precisam ser ensinadas. Pesquisadores mostraram que as crianças surdas de famílias surdas gastam pelo menos tanto tempo atendendo às mesmas coisas que suas mães (atenção conjunta) como fazem as crianças ouvintes de famílias ouvintes aos nove, 12 e 18 meses de idade (MEADOW-ORLANS; SPENCER; KOESTER, 2004). O fato de elas gastarem muito mais tempo fazendo isso do que as crianças surdas de famílias ouvintes sugere que as habilidades de atenção visual podem ser aprendidas em contextos apropriados (WAXMAN; SPENCER, 1997). Presumivelmente, este é o resultado das várias estratégias de obtenção de atenção e manutenção da atenção que foram documentadas nas interações das mães surdas com seus filhos (MARSCHARK, 2007). Essas primeiras interações também ajudam as crianças surdas a adquirir habilidades de tomada de vez/palavra (turn-taking) e os fundamentos das habilidades linguísticas (SWISHER, 2000) que, por sua vez, fornecem a base para níveis mais elevados de aprendizagem. Marschark e Hauser (2012) discutiram a importância de os pais ajudarem seus filhos surdos a ampliar seus campos visuais efetivos (ou seja, absorver mais do ambiente), algo que os pais surdos fazem com naturalidade. Considerando que a atenção das crianças ouvintes será atraída pelas coisas que elas ouvem ao seu redor, a maior sensibilidade das crianças surdas aos estímulos periféricos (por exemplo, movimento, mudanças no brilho) serve como um mecanismo compensatório (MARSCHARK; KNOORS, 2012). Essa adaptação aprendida é importante porque os torna mais visualmente conscientes de seus ambientes e oferece mais oportunidades de aprendizagem incidental. No entanto, também pode torná-las mais propensas à distração, uma das razões para o menor tempo de atenção. Com o tempo, essa distração será compensada por sua capacidade de desviar e voltar rapidamente a atenção visual para a pessoa ou coisa de interesse central (RETTENBACK; DILLER; SIRETEANU, 1999). Exatamente como isso acontece não foi documentado, mas há claramente grandes diferenças individuais em quando e quão bem as crianças diferentes alcançam esse equilíbrio nas interações com indivíduos e com o mundo. Vamos, portanto, examinar as interações iniciais e suas implicações mais de perto, começando pelas relações sociais. 3 FUNDAÇÕES DA INTERAÇÃO SOCIAL Durante os primeiros estágios do desenvolvimento social, as mães e as crianças desenvolvem maneiras de interagir umas com as outras por meio de uma variedade de experiências compartilhadas. Eventualmente, suas ações se entrelaçam de uma maneira que tanto simplifica suas rotinas cotidianas como ensina a criança sobre estratégias bem-sucedidas (e malsucedidas) de interação social. 58 UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS Para entender como os bebês surdos desenvolvem habilidades para interação social, precisamos apenas observar as interações entre eles e seus pais durante os primeiros meses de vida. É através de suas mães, em particular, que os bebês têm seus primeiros contatos com o mundo, alimentando, acariciando, dando banho e, pelo menos para as crianças ouvintes, ouvindo as vozes de suas mães. Essas primeiras experiências não determinam o curso do desenvolvimento, mas têm implicações cumulativas para o crescimento na interação social, exploração e aprendizagem formal e informal. Porque os seres humanos são criaturas sociais, quase qualquer interação face a face ou tátil será um evento social para crianças surdas e suas mães. O que o bebê aprende com as interações comportamentais com os pais e com os outros afetará a forma como eles constroem relacionamentos sociais mais complexos com os familiares e, eventualmente, com os que estão fora da família. Mesmo nos primeiros estágios, a língua normalmente desempenha um papel central e torna-se cada vez mais importante. Durante os últimos três meses de gravidez, o feto geralmente descansa com a cabeça contra a pélvis da mãe. Neste ponto do desenvolvimento, a maioria dos fetos se desenvolveu até o ponto em que eles podem ouvir e até mesmo reagir à fala humana (DECASPER; FIFER, 1980). Para aquelas mães que falam e carregam bebês que podem ouvir, o feto realmente aprende a voz de sua mãe durante esse tempo através da condução óssea. Após o nascimento, isso permite ao recém-nascido distinguir sua voz das outras, incluindo a do pai. Sabemos, a partir de extensas pesquisas, que experiências auditivas antes do nascimento podem afetar a aprendizagem e a percepção posteriores tanto em humanos como em animais, e elas podem desempenhar um papel no apego social e emocional precoce de mães e bebês. Decasper e Spence (1986), por exemplo, mostraram que crianças com menos de três dias de idade podem aprender a sugar um mamilo mais rápido ou mais devagar do que a taxa normal para ligar um gravador que permite ouvir o som da voz de suas mães. Tais achados sugerem que ouvir a fala das mães ouvintes antes do nascimento e logo depois deste pode ter um papel nas interações sociais precoces, tornando a mãe “familiar” ao recém-nascido. No entanto, assim como uma criança provavelmente responde positivamente ao som familiar da voz de sua mãe, a mãe provavelmente responde positivamente, por sua vez, a uma criança que sorri, balbucia e olha para o seu rosto em resposta à sua voz. Com base nesse relacionamento original, mãe e filho gradualmente se tornam mais sintonizados entre si e expandem suas primeiras "conversas". Esse cenário típico não significa que os relacionamentos precoces mãe- bebê exigem comunicação vocal ou falada (embora as mães surdas vocalizem para seus bebês) e já vimos que há uma variedade de outras formas de interação precoce. Obviamente, a visão, o tato e até o cheiro ajudam o bebê a identificar pessoas e objetos familiares nos primeiros dias de vida. Nas primeiras relações entre bebês e seus pais, na verdade, sorrisos e toques e toques ritmicamente padronizados parecem ser tão reconfortantes quanto vozes familiares. O toque TÓPICO 3 | O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 59 materno, em particular, tem efeitos poderosos em recém-nascidos surdos e ouvintes (KOESTER; BROOKS; TRACI, 2000). As mães surdas tendem a tocar seus filhos mais do que as mães ouvintes, mas as mães ouvintes que estão cientes das perdas auditivas dos filhos também tendem a tocar mais os filhos, a usar essas expressões faciaisexageradas e a tentar manter os objetos e a si mesmas dentro da linha de visão dos bebês (MEADOW-ORLANS; SPENCER; KOESTER, 2004). Pais que ainda não descobriram que seus filhos são surdos também podem, sem saber, compensar a falta de audição com outros meios de comunicação, mas ainda não há dados disponíveis sobre essa possibilidade, porque se os pais ainda não estão cientes da perda auditiva de seus filhos, não há como identificá-los para estudo. Não obstante, é claro que existem múltiplos sinais, por vezes despercebidos, envolvidos na parentalidade intuitiva que guiam as primeiras interações sociais dos pais e dos seus filhos surdos. Essas sugestões contribuirão para o apego mãe- filho e outros relacionamentos. Neste ponto, é importante enfatizar que as crianças surdas podem não estar em nenhuma desvantagem particular porque não conseguem reconhecer as vozes de suas mães ao nascer. Os bebês surdos e suas mães ouvintes simplesmente começam seus relacionamentos interagindo de maneiras um pouco diferentes do que os bebês ouvintes e suas mães. A questão importante é como essas diferenças podem influenciar as interações sociais e a aprendizagem subsequentes. Na maioria das vezes, as interações de crianças surdas com pais surdos se parecem muito com as de crianças ouvintes com pais ouvintes. Quando completam um ano de idade, ambos os filhos surdos de pais surdos e os filhos ouvintes de pais ouvintes podem perceber quando os outros estão felizes, assustados ou tristes apenas olhando para seus rostos. Nessa idade, as crianças surdas demonstram tanto afeto aos pais quanto os filhos ouvintes. Crianças surdas de pais surdos sabem como chamar a atenção batendo no braço das pessoas ou acenando para elas, enquanto as que têm pais ouvintes geralmente usam suas vozes para chamar a atenção. Crianças surdas e mães surdas, portanto, têm relacionamentos iniciais bastante normais. Essencialmente, as únicas maneiras pelas quais elas parecem diferentes são o uso de comunicação por sinais em vez de falada e o uso de comportamentos visuais e táteis, em vez de estratégias de atenção e direcionamento de atenção auditiva (MEADOW-ORLANS; SPENCER; KOESTER, 2004). Embora não haja forte relação causal entre o apego materno-infantil e o comportamento social posterior, as crianças que possuem melhores relacionamentos e melhor comunicação com suas mães ou outros cuidadores primários também tendem a ser aquelas que desenvolvem boas relações sociais com seus pares e maior autoestima (CALDERON; GREENBERG, 2011). Crianças que são boas socializadoras provavelmente têm várias características de personalidade que as tornam mais capazes de conviver com outras crianças e, portanto, mais populares. A maioria dessas qualidades é adquirida cedo na vida através de interações dentro da família, mas outras podem vir como parte de seu temperamento natural. Algumas crianças surdas e ouvintes, por exemplo, simplesmente são mais sociáveis do que outras, uma qualidade que é vista cedo pelos pais e parece continuar nos anos escolares. Algumas crianças são melhores 60 UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS na resolução de problemas sociais, descobrindo como brincar com sucesso com outras crianças e para quem podem recorrer para apoio emocional ou prático. Parte dessa habilidade parece residir no fato de algumas crianças parecerem mais sensíveis às sugestões sociais dadas por outras crianças e adultos, e, portanto, são melhores em responder apropriadamente a aberturas positivas e negativas. Ter um meio eficaz de comunicação é necessário aqui, mas pode não ser suficiente (JAMBOR; ELLIOT, 2005). Não é de surpreender que o comportamento social das crianças com seus pares, assim como sua estabilidade emocional, seja afetado pela qualidade das relações entre pais e filhos. Por exemplo, comportamentos controladores ou superprotetores por parte das mães ouvintes podem afetar as interações das crianças surdas com os colegas e outros adultos, porque levam as crianças a “esperar” esses tipos de comportamento dos outros. Pais e professores que estão constantemente resgatando crianças surdas de situações embaraçosas irão impedi-los de desenvolver suas próprias estratégias para a solução de problemas sociais. Ao mesmo tempo, temos que reconhecer que algumas ações por parte das mães que podem parecer estar controlando podem ser necessárias para garantir a segurança, cooperação ou obediência de seus filhos (LEDERBERG; PREZBINDOWSKI, 2000). O que parece ser intrusão simplesmente pode ser parte do esforço de obter a atenção de seus filhos e parte de sua diretividade pode refletir tentativas de superar as barreiras da comunicação, em vez de ser um reflexo de qualquer desejo de controlar os comportamentos de seus filhos. Tudo isso alimenta os primeiros relacionamentos entre pais e filhos e torna-se parte dos padrões de interação que se expandem e se tornam mais complexos ao longo do tempo. Os pais ouvintes e seus filhos surdos estabelecem tais interações exatamente como pais e filhos que compartilham o mesmo status auditivo. Se às vezes leva mais tempo do que nos casos de crianças surdas de pais surdos ou de crianças ouvintes de pais ouvintes, isso pode ser tanto resultado da ansiedade dos pais quanto da falta de audição da criança. Dadas as dificuldades auditivas e de inteligibilidade da fala, mesmo com implantes cocleares (ver Tópico 2 desta unidade e Tópico 1 da Unidade 2), as crianças surdas mais velhas podem achar que os sinais sociais que funcionam em casa não funcionam bem fora da família imediata, a menos que estejam interagindo com outras pessoas familiares com língua de sinais ou com as vozes dos surdos. Muitas das habilidades envolvidas nas posteriores interações criança- criança são bem diferentes das envolvidas nas interações mãe-criança. As crianças surdas jovens podem se comportar em relação aos colegas da mesma maneira que os jovens ouvintes, mas sem um sistema de comunicação compartilhada, elas podem não obter ou dar tantas pistas sociais precisas quanto as crianças ouvintes. Essa situação se torna mais complexa pelo fato de que, em comparação a companheiros ouvintes da mesma idade, as crianças surdas jovens provavelmente tiveram menos contato com outras crianças com as quais interagiram socialmente. Programas de intervenção precoce são úteis nesse sentido, pois as crianças surdas são expostas a mais diversidade nas interações sociais e comunicativas nesses ambientes. TÓPICO 3 | O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 61 Pesquisas realizadas em locais de intervenção precoce mostraram que a estabilidade das amizades entre crianças surdas pré-escolares é semelhante àquela de crianças ouvintes. Ambos os grupos, por exemplo, mostram padrões semelhantes de preferência de parceiros de brincadeiras (LEDERBERG, 1993). Embora as crianças surdas mais jovens não usem muita linguagem formal nas interações com os colegas surdos ou ouvintes, elas usam uma variedade de comunicação não linguística. Crianças surdas mais velhas usam mais linguagem e comunicação gestual com outras crianças surdas do que com crianças ouvintes, indicando que adquiriram algumas habilidades de cognição social. Suas interações com parceiros de brincadeiras surdos também tendem a ser mais sociais e menos centradas em objetos do que as comunicações com parceiros de brincadeiras ouvintes. Finalmente, as crianças surdas que têm melhores habilidades linguísticas são mais propensas a brincar com crianças ouvintes, brincar com mais de uma criança de cada vez, interagir com professores e usar a língua durante a brincadeira. A situação social da aprendizagem tornar-se-á mais complexa à medida que as crianças crescem, uma questão que consideraremos no Tópico 4 da Unidade 2. Quando se olha para crianças matriculadas em programas de intervenção precoce que envolvem o ensino de língua de sinais e de língua falada, elas tendem a mostrar um jogo mais cooperativocom colegas do que crianças que recebem apenas instrução de língua falada, presumivelmente porque as crianças são mais capazes de se fazer entender (CORNELIUS; HORNETT, 1990). A disponibilidade de experiências sociais mais diversificadas, por sua vez, aumenta sua capacidade de lidar com as interações sociais posteriores e as necessidades de crescer em um mundo amplamente ouvinte. Ao mesmo tempo, é preciso ter cautela com as alegações de que a integração e a inclusão de crianças surdas jovens as beneficiam linguística e socialmente, simplesmente por estarem cercadas por colegas ouvintes. As crianças surdas jovens preferem claramente brincar e se comunicar com outras crianças surdas, embora seus comportamentos sociais sejam praticamente os mesmos, independentemente de brincarem com surdos ou ouvintes da mesma idade. Da mesma forma, as crianças ouvintes preferem brincar com os colegas ouvintes em vez de com os surdos, então a questão aqui não é o status de audição per se (KNUTSON et al., 1997). Em vez disso, as crianças preferem brincar com as crianças com quem podem se comunicar. Agora deve ficar claro que a vida emocional e acadêmica de crianças surdas jovens é reforçada por pais que estão cientes de suas necessidades e buscam programas de intervenção e educação para eles e seus filhos, incluindo instrução de comunicação (CALDERON; GREENBERG, 2011). Há também forte apoio para uma relação entre a comunicação precoce entre pais e filhos, comportamentos relacionados ao apego e habilidades sociais posteriores. As crianças com vínculos estáveis e seguros no início da vida tendem a ser mais competentes socialmente durante os anos escolares do que as crianças com menos apegos seguros (VAN GENT et al., 2012). 62 UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS Neste momento, não há evidências que sugiram que haja algum benefício no uso da língua falada sobre a língua de sinais, ou o contrário, no estabelecimento de vínculos precoces entre pais e filhos (LEDERBERG; PREZBINDOWSKI, 2000). O uso da língua de sinais pode preencher todos os papéis iniciais de socialização normalmente preenchidos pela fala dos pais. Ainda assim, alguns pais de crianças surdas não entendem a importância da comunicação precoce e têm hesitação ou mesmo medo em relação à língua de sinais. Alguns deles veem a língua de sinais como um método estranho e talvez perigoso que pode impedir o desenvolvimento da fala da criança. Outros pais ficam ansiosos para que seus filhos aparentem e ajam o mais “normal” possível e a língua de sinais claramente não se encaixa nesse requisito. Pouco eles percebem que, para algumas crianças, a aquisição precoce da língua de sinais pode ser a melhor maneira de ajudá-los a alcançar um funcionamento social “normal” e otimizar a aprendizagem. Oportunidades perdidas de comunicação e socialização logo no início podem dar um ponto de partida distintamente desvantajoso a uma criança em relação a outras crianças. 4 O LÚDICO COMO JANELA E SALA Spencer e Hafer (1998) descreveram a brincadeira de crianças surdas como “janela” e “sala”. Isto é, observando como as crianças progridem através dos vários estágios do brincar/lúdico – representacional, simbólico, dramático e imaginário –, podemos ver o crescimento no desenvolvimento cognitivo e o crescimento nas habilidades sociais (a “janela”). Também obtemos informações sobre os níveis de linguagem expressiva e receptiva de uma criança, suas habilidades na solução de problemas sociais e o desenvolvimento da teoria da mente (ver Tópico 3 da Unidade 2). Ao mesmo tempo, o brincar dá às crianças oportunidades de explorar, exercitar habilidades já adquiridas em novos contextos, experimentar vários papéis e aprender com o feedback que recebem de pessoas e coisas (o “quarto”). Os desafios das crianças surdas tentando brincar com crianças ouvintes foram mencionados anteriormente, mas o brincar tem uma função importante no desenvolvimento. Crianças surdas e ouvintes progridem através de fases semelhantes de comportamento lúdico, fases que parecem paralelas ao desenvolvimento da linguagem e da língua (MEADOW-ORLANS; SPENCER; KOESTER, 2004). As crianças com defasagens no desenvolvimento da linguagem mostram atrasos nos aspectos mais complexos da brincadeira, como planejamento e coordenação de objetos, pelo menos em parte, porque eles são menos capazes de se beneficiar de conselhos e feedback de suas mães e de seus pares mais avançados em termos de desenvolvimento. Descobriu-se que as crianças com níveis mais baixos de linguagem gastam menos tempo em níveis mais elevados de brincadeiras simbólicas (brincadeira de faz-de-conta/fingimento), mas o tempo gasto em brincadeiras representativas (por exemplo, “dirigir” um carro de brinquedo) e brincadeiras simbólicas (por exemplo, “dirigir” um bloco de madeira fazendo de TÓPICO 3 | O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 63 conta que é um carro de brinquedo) é igual ou superior ao de crianças com mais linguagem. Isso sugere novamente uma conexão entre o brincar e a linguagem, assim como a descoberta de que crianças surdas com linguagem apropriada para a sua idade mostram um comportamento lúdico normal (SPENCER; DEYO, 1993). Brincar é uma “sala” na qual as crianças exploram possibilidades. Para os pais de crianças surdas jovens, às vezes há uma preocupação de que eles devem utilizar tanto tempo quanto possível em situações de ensino estruturado, de modo a compensar ou evitar atrasos em vários domínios. Todavia, o brincar pode ser usado de forma estruturada para comunicar novos conceitos ou relações entre os conceitos antigos (por exemplo, a estrutura de categorias ou dimensões físicas), mas a brincadeira em si também desempenha um papel inestimável no desenvolvimento de todas as crianças (SPENCER, 2010). De fato, pelo menos com crianças ouvintes, são as interações de comunicação informais e não estruturadas de pais e filhos que apoiam e preveem habilidades de linguagem posteriores da criança (HART; RISLEY, 1995). Juntamente às descobertas que indicam que as crianças com habilidades linguísticas apropriadas à idade se dão melhor com seus colegas em contextos escolares, pesquisas sobre outros aspectos do brincar indicam que a intervenção precoce e contextos pré-escolares proporcionam uma variedade de oportunidades linguísticas e não linguísticas para as crianças surdas (e entre crianças surdas e crianças ouvintes) que não estariam de outra forma disponíveis. Embora as comparações de crianças mais velhas com e sem experiência social pré-escolar ainda necessitam ser mais exploradas, parece provável que a disponibilidade de experiências sociais, linguísticas e cognitivas mais diversas só pode aumentar a flexibilidade de crianças surdas jovens em lidar com interações sociais posteriores e a necessidade de crescer em um mundo amplamente ouvinte. 5 UMA CRIANÇA SURDA NA FAMÍLIA A primeira infância é um período de aprendizagem rápida para crianças surdas e ouvintes. Além de aprender sobre as coisas, as pessoas e o meio ambiente, elas também aprendem muito sobre como aprender e como interagir tanto de maneira verbal quanto de maneira não verbal. Quando as mães fazem perguntas aos bebês de um mês de idade em “manhês”, elas não estão realmente esperando respostas, exceto talvez através de sorrisos e outras expressões faciais. Quando pais e bebês compartilham uma língua, seja de sinal ou falada, essas brincadeiras podem ser episódios importantes de aprendizagem linguística. Essas interações ensinam as crianças sobre as interações sociais e apoiam o desenvolvimento de uma relação emocional recíproca entre mãe e filho, na qual cada um tem seus próprios papéis. Eventualmente, um vínculo de apego se formará, pois as crianças buscarão a mãe e outras figuras familiares e as usarão como bases “seguras” para a exploração de lugares e outras pessoas. 64 UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOSAjustar-se a ter uma criança surda não é uma experiência fácil para muitos pais ouvintes. Períodos de luto, depressão e culpa são frequentemente relatados, uma reação natural a ter um filho que parece “menos do que perfeito”. Todavia, esses sentimentos eventualmente darão lugar aos esforços combinados dos pais para determinar as necessidades e serviços disponíveis para seus filhos – e para si mesmos. As mães tendem a assumir as maiores responsabilidades emocionais e cotidianas para as crianças surdas, como acontece com a maioria das crianças com necessidades especiais na maioria das culturas; e elas às vezes se sentirão sobrecarregadas. As mães que recebem mais apoio social de amigos e familiares são as que melhor lidam com sua nova situação e os efeitos desse apoio são vistos em melhores interações comportamentais e maior sensibilidade às necessidades de comunicação de seus filhos. Normalmente, a língua desempenha um papel contínuo e crescente na interação social precoce, tanto pela comunicação explícita quanto pela percepção das relações entre comunicação e comportamentos dos cuidadores. Tanto quanto qualquer um pode dizer, a comunicação por sinais e falada é equivalente em seu potencial para fornecer toda a informação e experiência necessárias para o desenvolvimento social normal. Essa equivalência exige que os pais sejam usuários competentes da língua, em qualquer modo que seja mais acessível a seus filhos. Notamos anteriormente que uma forma de os pais ouvintes obterem as habilidades linguísticas necessárias, bem como o apoio emocional e prático às suas necessidades, é através de programas de intervenção precoce. Esses programas incluem instrução de comunicação para pais e filhos em língua de sinais, língua falada ou ambas. Eles também expõem crianças (e pais) a outras pessoas semelhantes a elas. Juntamente com a instrução explícita e implícita dentro do lar, esses programas promovem o desenvolvimento inicial das interações sociais entre crianças. À medida que as crianças surdas saem do ambiente doméstico para a comunidade maior, elas ganham diversidade muito necessária em sua experiência. Ter múltiplos parceiros sociais ajuda a compensar a tendência das mães ouvintes de serem controladoras e talvez superprotetoras de suas crianças surdas, e contribui para o desenvolvimento cognitivo e da língua, bem como para o desenvolvimento social. A comunicação com os que estão dentro e fora de casa agora assume uma importância ainda maior, e, portanto, voltaremos a considerar o desenvolvimento da língua com mais detalhe. TÓPICO 3 | O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 65 LEITURA COMPLEMENTAR A EDUCAÇÃO DO SURDO EM QUESTÃO Celma Regina Borghi Rodriguero [...] No que se refere à surdez, os estudos mostram argumentos em defesa de uma visão prospectiva dos processos humanos, atribuindo-se papel essencial às relações sociais no surgimento e na consolidação de capacidades potenciais das crianças. Neste sentido, Góes explica que a “deficiência não torna a criança um ser que tem possibilidades a menos; ela tem possibilidades diferentes”, uma vez que “a linguagem não depende da natureza do meio material que utiliza, mas o que é importante é o uso efetivo de signos, seja qual for a forma de realização, desde que possa assumir o papel correspondente ao da fala” (1996, p. 35). Goldfeld, por sua vez, ressalta que: A história dos surdos comprova as ideias de Vygotsky e Bakhtin quanto à importância da linguagem no desenvolvimento do pensamento e da consciência, mostrando também que a sua aquisição pela criança deve ocorrer através de diálogos, conversações, já que, sem uma língua de fácil acesso, os surdos não conseguiriam participar ativamente da sociedade (1997, p. 159). Para Vygotsky, seria mais fácil ao surdo aprender a linguagem de sinais ou dos gestos; no entanto, declara que essa linguagem é limitada e que o surdo ficaria inserido num mundo pequeno, ou seja, no daqueles que conhecem a língua. Além disso, defende que através dessa língua não é possível se chegar a conceitos ou representações abstratas. En verdad, el lenguage es no solo un medio de comunicación, sino tambien un medio del pensamento, y la consciencia se desarrolla principalmente com la ayuda del lenguage y surge a partir de la experiencia social (1989a, p. 67). Segundo o autor, sem a linguagem não existe a consciência, nem a autoconsciência. Conclui dizendo que a consciência é resultado de experiência social. Portanto, proporcionar a oralidade ao surdo corresponde a dar-lhe a possibilidade não apenas de comunicar-se, mas também de desenvolver a consciência, o pensamento e a autoconsciência e, assim, de trazê-lo de volta ao estado humano. Por outro lado, ensinar a criança surda a falar contraria a sua natureza, e se o intuito é ensinar a linguagem oral, a questão deve ser avaliada com maior amplitude, discutindo-se as particularidades dos métodos a serem utilizados. Vygotsky critica os métodos tradicionais, através dos quais a linguagem oral é ensinada aos surdos de forma mecânica. Para ele, o ideal é iniciar o ensino da linguagem desde cedo, permitindo, desta forma, que a criança surda, assim UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 66 como a ouvinte, passe naturalmente pelas fases de pronúncia, sem que se tema a pronúncia incorreta, a falta de articulação, a confusão de sons etc., antes do domínio correto da linguagem. Goldfeld (1997) afirma que no decorrer da história, a ideia sobre os surdos, feita pela sociedade no geral, mostrava apenas aspectos negativos, sendo que na antiguidade eles eram tratados com piedade e compaixão. Como pessoas castigadas, deveriam ser sacrificadas ou abandonadas. Esclarece que até o século XV persistia a ideia de que o surdo era um ser primitivo e não poderia ser educado. Os surdos, como outros povos dominados, foram proibidos de usar suas línguas, e a eles foi oferecida uma outra, importante para seu convívio com a sociedade, mas difícil de ser aprendida e praticamente impossível de ser adquirida de forma espontânea. Segundo Goldfeld (1997), através da história ficou evidenciado que essa proibição trouxe para os surdos dificuldades na escolarização e na socialização. Os educadores, no decorrer da história da educação dos surdos, criaram diferentes metodologias de ensino para eles. Alguns baseavam-se apenas na língua oral, isto é, a língua auditiva-oral utilizada no país. Outros pesquisaram a língua de sinais, uma língua espaço-visual criada pelas comunidades surdas através das gerações. E, outros ainda, criaram códigos visuais para facilitar a comunicação com os alunos, mas que não se configuravam como uma língua. Atualmente, no Brasil, destacam-se três abordagens ou filosofias educacionais, e como ressalta Goldfeld, todas têm relevância e representatividade no trabalho com os surdos. Em relação a essas filosofias educacionais, a autora comenta: o oralismo, ao considerar a oralização sua meta principal e ao não valorizar realmente o diálogo espontâneo e contextualizado, na única língua em que este é possível para a criança surda, a língua de sinais, provoca diversos danos ao desenvolvimento linguístico e cognitivo desta criança, já que o desenvolvimento cognitivo é determinado pela aquisição da linguagem, que deve ocorrer através do diálogo contextualizado (1997, p. 159). Dessa forma, mesmo atingindo seu objetivo, a oralização não consegue evitar danos no desenvolvimento da criança surda. Como escreve Skliar, a proposta oralista “supõe que é possível ensinar a linguagem e sustenta a ideia (...) de que existe uma dependência unívoca entre a eficiência ou eficácia oral e o desenvolvimento cognitivo” (1997, p. 11). A comunicação total, mesmo valorizando a comunicação e não a língua, não oferece à criança uma língua de fácil acesso, que possa lhe servir de ferramenta do pensamento e, portanto, não pode suprir todas as necessidades da criança surda. Poroutro lado, “estimula a criação de códigos e línguas artificiais independentes do meio socioeconômico e cultural” (GOLDFELD, 1997, p. 160). A autora refere-se ao bilinguismo como: TÓPICO 3 | O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 67 a melhor opção educacional para a criança surda, pois a expõe a uma língua, de fácil acesso, a língua de sinais, que pode evitar o atraso da linguagem e possibilitar um pleno desenvolvimento cognitivo, além de expor a criança à linguagem oral, que é essencial para seu convívio com a comunidade ouvinte e a sua própria família (1997, p. 160). Nesse sentido, a educação, quando baseada no bilinguismo, parte da conversação, como nas crianças ouvintes, possibilitando, desse modo, a internalização da linguagem e o desenvolvimento das funções superiores. O bilinguismo, se utilizado de modo correto, ou seja, permitindo o acesso da criança surda à comunidade que utilize a Libras (Língua Brasileira de Sinais), de forma que ela possa adquiri-la através de diálogos e, ao mesmo tempo, se forem estimulados os resíduos auditivos e a língua oral, pode-se dar às crianças surdas condições semelhantes às ouvintes, na aprendizagem e no desenvolvimento. Vygotsky (conforme citado por Góes, 1996) considera como cruéis os métodos que envolvem árduos treinamentos de articulação de sons e proibição da “mímica”, embora apresente como sugestão o desenvolvimento da fala, um recurso necessário e interessante para a vida da criança surda. Góes ressalta que, numa perspectiva teórica, “o desenvolvimento da criança surda deve ser compreendido como processo social, e suas experiências de linguagem concebidas como instâncias de significação e de mediação nas suas relações com a cultura, nas interações com o outro” (1996, p. 37). Na linguagem se dão as relações sociais nas quais a criança nasce imersa, e na surdez o modo e as possibilidades dessa imersão são cruciais, pois, conforme o caso, é quase impossível o acesso à linguagem falada. Mostra-se necessária, então, a incorporação de uma língua de sinais, de modo que se possa configurar condições mais adequadas ao aumento das relações interpessoais, que formam o funcionamento nas áreas cognitiva e afetiva. Portanto, os problemas tradicionalmente apontados como característicos da pessoa surda são produzidos por condições sociais. Não há limitações cognitivas ou afetivas inerentes à surdez, tudo dependendo das possibilidades oferecidas pelo grupo social para seu desenvolvimento, em especial para a consolidação da linguagem (GÓES, 1996, p. 38). Segundo Vygotsky (1989), o surdo está mais adaptado fisicamente que o cego para conhecer e participar da vida, pois conserva quase todas as possibilidades de reações físicas da pessoa normal, com exceção de alguns transtornos que o autor considera pouco significativos na esfera de sentido e equilíbrio. O importante é que o surdo-mudo conserva a visão e, com isso, tem a possibilidade de controle de seus movimentos. UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS 68 Como un aparato de trabajo, como una máquina humana, el cuerpo del sordomudo se diferencia un poco del cuerpo de una persona normal y, por lo tanto, toda la plenitud de las posibilidades físicas, del desarollo corporal, de la adquisición de los hábitos y habilidades de trabajo se conservan para el sordo2 (VYGOTSKY,1989a, p. 65). Dessa forma, o surdo tem acesso a todos os tipos de atividades laborais, exceto às relacionadas diretamente ao som. Mas a educação do surdo com um enfoque filantrópico acaba por reduzir o universo de trabalho, oferecendo possibilidades simples e, por vezes, inúteis. A surdez é menos complicada que a cegueira, pois é principalmente como um fenômeno visual que o mundo está representado na consciência humana. O surdo não perde nenhum elemento essencial do mundo. No entanto, a surdomudez dificulta o relacionamento com as pessoas, pois provoca um afastamento do convívio social, ou seja, ao ficar privado da fala, o surdo não participa da experiência social, ficando excluído da comunicação geral. Para o autor, "a sordomudez es un defecto, por excelência, social” (VYGOTSKY, 1989a, p. 66). Portanto, a preocupação maior na educação do surdo é ensiná-lo a falar, e isto é possível, uma vez que não há nenhum problema orgânico com os centros da linguagem. “Deste modo, la mudez no es una afección orgánica, sino simplemente un desarollo deficiente a causa de que el sordo no oye las palavras, y no puede aprender a hablar” (1989a, p. 66). Marchesi salienta que "o grau da perda auditiva é, possivelmente, a dimensão que tem maior influência no desenvolvimento das crianças surdas, não somente nas habilidades linguísticas, mas também nas cognitivas, sociais e educacionais" (1995, p. 199). O momento da perda auditiva tem clara repercussão sobre o desenvolvimento na infância. Isto implica que, quanto mais idade, mais experiência com o som e linguagem oral, maior a possibilidade de evolução linguística. A etiologia da surdez é também um fator de variabilidade relacionado com a idade da perda auditiva, possíveis distúrbios associados à reação emocional dos pais e desenvolvimento intelectual. O autor menciona as causas de base hereditária e as adquiridas e comenta que há um consenso em se aceitar que é menor a probabilidade de um distúrbio associado à surdez quando a origem é hereditária. Resultados de estudos comprovam que “as crianças surdas profundas, cuja causa é hereditária, têm um maior nível intelectual que os surdos com outro tipo de etiologia” (MARCHESI, 1995, p. 201). Se desde o momento da detecção da surdez houver a possibilidade de uma atenção educacional, há a garantia de um desenvolvimento satisfatório. Para Marchesi, uma educação que inclua “a estimulação sensorial, as atividades comunicativas e expressivas, o desenvolvimento simbólico, a participação dos TÓPICO 3 | O INÍCIO DA APRENDIZAGEM PARA SURDOS 69 pais, a utilização dos resíduos auditivos da criança etc., favorece a supressão de limitações que a perda auditiva acarreta” (1995, p. 210). E acrescenta ele: Uma educação adaptada a suas possibilidades, que utilize diferentes recursos comunicativos, que contribua para sua socialização, que seja capaz de não colocar à margem, nem do mundo dos ouvintes nem do mundo dos surdos, pode ter enormes repercussões favoráveis para sua aprendizagem e sua educação (MARCHESI, 1995, p. 201). Para o autor, é mais difícil se obter consequências favoráveis se a criança tiver que adaptar-se a modelos educacionais criados pensando-se em crianças ouvintes. CONSIDERAÇÕES FINAIS Houve um período em que a educação dos surdos objetivava a superação da surdez, através de técnicas e de outros recursos, negando a própria língua e a própria cultura. Hoje, embora ainda de modo discreto, surgem tentativas da comunidade surda, em conjunto com o sistema educacional, no sentido de resgatar a sua identidade e os direitos sociais, buscando uma interação que lhes possibilite participar da construção de sua história. A esse respeito, Glat (1995) argumenta que no atual modelo educacional, o que é enfatizado é a falha do meio em oferecer condições adequadas que possam promover a aprendizagem e o desenvolvimento do indivíduo e não sua deficiência intrínseca. Portanto, disponibilizar meios de superar as desvantagens naturais proporciona ao indivíduo uma participação mais ativa na vida social e comunitária. Esse aspecto é extremamente importante, uma vez que a linguagem e a fala são pontos-chave na percepção e no desenvolvimento cognitivo da criança. E, como prevê Vygotsky (1984), um adulto não pode transmitir à criança a sua forma de pensar, senão apresentar-lhe um significado que ela desenvolverá a partir das particularidades estruturais e genéticas de seu pensamento. Dessa forma, se for possibilitada ou respeitada a aquisição da primeira língua, a língua de sinais, o surdo terá facilitado o seu desenvolvimento.É indispensável, como lembra Góes (1997), que haja preocupação e cuidado com a maneira pela qual os sinais são incorporados ao contexto educacional e não somente com a eficácia comunicativa e o valor instrumental deles. Ao tomarmos a premissa vygotskyana de que o “aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que as cercam” (1984, p. 99), destacamos a linguagem como um dos principais meios através do qual ocorre o domínio dos meios sociais, ou seja, o crescimento intelectual da criança. 70 UNIDADE 1 | PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM E OS APRENDIZES SURDOS É na linguagem que se dão as relações sociais do indivíduo, e na surdez é difícil ou impossível o acesso às formas de linguagem que dependam dos recursos da audição; portanto, faz-se necessária a incorporação de uma linguagem que configure condições adequadas ao aumento das relações interpessoais, que proporcionam o desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança surda, o que não implica desconsiderar-se a oralização. Mas que não seja, no entanto, a única filosofia considerada viável. FONTE: RODRIGUERO, C. R. B. O desenvolvimento da linguagem e a educação do surdo. Psicologia em Estudo. DPI/CCH/UEM. v. 5, n. 2, p. 99-116, 2000. 71 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico você aprendeu que: • Pesquisas recentes forneceram uma melhor compreensão sobre os fatores que afetam a língua e a aprendizagem entre crianças surdas e as maneiras pelas quais os ambientes iniciais e as interações entre pais e filhos moldam seu desenvolvimento. • Os pais que recebem forte apoio da família e dos amigos, assim como dos profissionais, são mais capazes de lidar com as demandas de ter uma criança surda. • Embora as crianças surdas e ouvintes tenham muitas das mesmas forças externas agindo sobre elas e respondem mais ou menos da mesma maneira, existem modos além de apenas ouvir os limiares e a modalidade da língua em que elas são diferentes. • A comunicação efetiva ou bem-sucedida entre pais e filhos é o melhor preditor de sucesso em praticamente todas as áreas de desenvolvimento de crianças surdas e ouvintes. • A aquisição da língua é um desafio considerável para a grande maioria das crianças surdas e a maioria tem pais e professores que não têm certeza de como melhor ajudá-los a realizar essa façanha. • Pais e irmãos (e até mesmo o pet da família) proporcionam aos bebês e crianças pequenas as primeiras interações que apoiam a aprendizagem em áreas sociais, linguísticas e cognitivas. • Comportamentos naturais que os pais surdos usam nas interações com seus filhos surdos têm sido chamados de parentalidade intuitiva. • Os pais surdos usam o toque com mais frequência e eficácia do que os pais ouvintes para obter e manter a atenção do filho surdo. • Ao desenvolver as habilidades necessárias para ser um aprendiz visual, esperamos que as crianças surdas consigam adquirir mais tempo de atenção ao longo do tempo, mas não está claro o quanto essas habilidades se desenvolvem naturalmente ou precisam ser ensinadas. 72 • A atenção das crianças ouvintes será atraída pelas coisas que elas ouvem ao seu redor, a maior sensibilidade das crianças surdas aos estímulos periféricos (por exemplo, movimento, mudanças no brilho) serve como um mecanismo compensatório. • Durante os primeiros estágios do desenvolvimento social, as mães e as crianças desenvolvem maneiras de interagir umas com as outras por meio de uma variedade de experiências compartilhadas. • Para entender como os bebês surdos desenvolvem habilidades para interação social, precisamos apenas observar as interações entre eles e seus pais durante os primeiros meses de vida. • Ouvir a fala das mães ouvintes antes do nascimento e logo depois dele pode ter um papel nas interações sociais precoces, tornando a mãe “familiar” ao recém- nascido. • Nas primeiras relações entre bebês e seus pais, na verdade, sorrisos e toques e toques ritmicamente padronizados parecem ser tão reconfortantes quanto vozes familiares. • Os bebês surdos e suas mães ouvintes simplesmente começam seus relacionamentos interagindo de maneiras um pouco diferentes do que os bebês ouvintes e suas mães. • Embora não haja forte relação causal entre o apego materno-infantil e o comportamento social posterior, as crianças que possuem melhores relacionamentos e melhor comunicação com suas mães ou outros cuidadores primários também tendem a ser aquelas que desenvolvem boas relações sociais com seus pares e maior autoestima. • Os pais ouvintes e seus filhos surdos estabelecem interações exatamente como pais e filhos que compartilham o mesmo status auditivo. • As crianças surdas jovens podem se comportar em relação aos colegas da mesma maneira que os jovens ouvintes, mas sem um sistema de comunicação compartilhada, elas podem não obter ou dar tantas pistas sociais precisas quanto as crianças ouvintes. • Pesquisas realizadas em locais de intervenção precoce mostraram que a estabilidade das amizades entre crianças surdas pré-escolares é semelhante àquela de crianças ouvintes. • A vida emocional e acadêmica de crianças surdas jovens é reforçada por pais que estão cientes de suas necessidades e buscam programas de intervenção e educação para eles e seus filhos, incluindo instrução de comunicação. 73 • Neste momento, não há evidências que sugiram que haja algum benefício no uso da língua falada sobre a língua de sinais, ou o contrário, no estabelecimento de vínculos precoces entre pais e filhos. • Crianças surdas e ouvintes progridem através de fases semelhantes de comportamento lúdico, fases que parecem paralelas ao desenvolvimento da linguagem e da língua. • O brincar pode ser usado de forma estruturada para comunicar novos conceitos ou relações entre os conceitos antigos, mas a brincadeira em si também desempenha um papel inestimável no desenvolvimento de todas as crianças. • As mães tendem a assumir as maiores responsabilidades emocionais e cotidianas para as crianças surdas, como acontece com a maioria das crianças com necessidades especiais na maioria das culturas; e elas às vezes se sentirão sobrecarregadas. • Normalmente, a língua desempenha um papel contínuo e crescente na interação social precoce, tanto pela comunicação explícita quanto pela percepção das relações entre comunicação e comportamentos dos cuidadores. 74 1 Qual é o melhor preditor de sucesso em praticamente todas as áreas de desenvolvimento de crianças surdas e ouvintes? AUTOATIVIDADE 2 Independentemente de as crianças surdas terem ou não aparelhos auditivos ou implantes cocleares e se elas usam principalmente a língua de sinais ou falada, é através de quais sentidos que os bebês surdos terão acesso ao mundo da experiência? 3 As crianças surdas podem não estar em nenhuma desvantagem particular porque não conseguem reconhecer as vozes de suas mães ao nascer. No entanto, como descreveríamos as suas primeiras interações com suas mães? 75 UNIDADE 2 LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • apresentar o processo de aquisição e desenvolvimento da língua para aprendizes surdos e suas implicações na aprendizagem; • introduzir questões atuais sobre o ensino e avaliação da língua para aprendizes surdos; • compreender os perfis cognitivos de alunos surdos e suas implicações para a educação. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM TÓPICO 2 – ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM TÓPICO 3 – PERFIS COGNITIVOS DE ALUNOS SURDOS 76 77 TÓPICO 1 DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Até este momento o leitor está bem ciente da nossa crença de que a comunicação entre pais e filhos é uma base essencial para o desenvolvimentolinguístico, social e cognitivo. De fato, vimos que a aprendizagem nos sentidos formal e informal depende, em grande parte, da comunicação interpessoal, pelo menos se é para ser eficiente. Ao mesmo tempo, enfatizamos que comunicação e linguagem não são exatamente a mesma coisa, mesmo em humanos (vamos supor que isso é óbvio no caso de outros animais). Em última análise, é a linguagem, no sentido lato, e a língua, no sentido estrito, que possibilita a aprendizagem eficiente e o funcionamento interpessoal. No entanto, é claro que a aquisição de linguagem e da língua é um dos maiores desafios para os alunos surdos. O desafio para a aquisição de língua falada para uma criança surda ou com deficiência auditiva é bastante evidente: é difícil aprender uma língua falada que você não pode ouvir ou ouvir bem. Uma vez que uma criança surda tenha adquirido pelo menos o básico da língua falada, ainda existe a luta constante para entender e ser entendido pelos outros, porque é extremamente raro que um indivíduo surdo (mesmo aquele com um implante coclear) ouça tão bem quanto uma pessoa ouvinte típica e a fala de indivíduos surdos nem sempre são fáceis de entender (embora o implante coclear precoce tenha melhorado isso drasticamente). Em contraste com a língua falada, as línguas de sinais são relativamente fáceis e diretas para as crianças surdas adquirirem, porque são 100% visíveis. No entanto, é difícil para uma criança adquirir uma língua fluente se ela não for usada fluentemente em casa. Com 95% das crianças surdas tendo pais ouvintes, a língua de sinais raramente será a língua materna antes que a família tenha uma criança surda. Posteriormente, embora muitos pais e irmãos aprendam esta língua, raramente obterão a fluência que os pais ouvintes compartilham com seus filhos ouvintes. Voltaremos a essa questão mais adiante neste tópico. 2 A LINGUAGEM Uma das principais características que define humanos como humanos é a linguagem. Várias espécies de animais têm intrincados sistemas de comunicação (por exemplo, golfinhos, pássaros, abelhas), e alguns primatas são capazes de usar comunicação simbólica, como gestos ou sinais simples. Em contraste, a UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 78 capacidade de adquirir sistemas complexos de sons ou formas de mãos, posturas corporais e movimentos, e a capacidade de combiná-los em palavras ou sinais ordenados, enunciados e histórias, é exclusivamente humana. A linguagem, em princípio, é um sistema de blocos de construção sem sentido (sons ou movimentos com as mãos) que são reunidos em unidades significativas (morfemas: palavras e partes significativas das palavras), que, através da aplicação de um conjunto finito de regras, podem ser combinados e usados em uma infinita variedade de enunciados. Esse caráter simbólico e gerativo da linguagem, pode ser expresso quer pela modalidade auditivo-motora, pela audição e fala (língua falada), quer pela modalidade visual-motora, pela visão e sinais (língua de sinais). Independentemente da modalidade, todas as línguas possuem os mesmos níveis distintos de organização, a mesma arquitetura básica, por definição. De fato, foi seu reconhecimento de que a comunicação entre os surdos (na atual Universidade de Gallaudet) tinha essas características que primeiro indicaram a Stokoe (2005) que era uma língua verdadeira e não apenas uma coleção de gestos. A linguagem pode ser estudada em diferentes níveis. Trabalhando “de baixo para cima” (bottom-up), o uso de sons da fala e sua combinação em sílabas e palavras simples é chamado de fonologia. Fonética se refere à articulação real da fala. Morfologia refere-se à combinação de palavras simples ou partes de palavras em palavras mais complexas, incluindo processos como inflexão (“cavalo” + “s” = “cavalos”), derivação (“in” + “definido” = “indefinido”), e composição (“auto” + “estima” = “autoestima”). A semântica abrange aspectos lexicais de linguagens, como, por exemplo, o significado das palavras, tanto em termos de características semânticas quanto em termos de características gramaticais. Combinar palavras em frases ou enunciados aplicando regras (gramaticais) e restrições em regras é o domínio da sintaxe. Finalmente, a pragmática implica regras com as quais os enunciados podem ser usados em contextos maiores, como narrativas e conversas. As línguas diferem umas das outras nas estruturas formais específicas que são usadas para expressar significado, nos significados que são realmente expressos, e nas maneiras pelas quais a língua pode ser usada. Por exemplo, com relação às propriedades formais, algumas línguas têm regras de ordem de palavras relativamente rígidas e morfologia relativamente fraca, enquanto outras são conhecidas por terem uma morfologia rica e uma ordem de palavras relativamente livre. Qualquer combinação é suficiente para fornecer a geratividade gramatical descrita anteriormente. Em contraste com idiomas como o inglês, o holandês e o turco, os idiomas tonais, como o cantonês ou o chinês mandarim, usam diferenças no tom para expressar diferenças de significado. O cantonês, por exemplo, tem seis tons diferentes que aumentam, diminuem ou mantêm o tom do som da fala, de modo que, em teoria, a mesma “palavra” pode ser pronunciada de seis maneiras diferentes e ter seis significados diferentes (um verdadeiro desafio para as crianças surdas chinesas). Em suma, os idiomas aderem a princípios gerais de organização, mas diferem nas maneiras específicas como eles usam sons (ou movimentos das mãos), regras e restrições para expressar o significado. Algumas TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 79 dessas diferenças são específicas da modalidade, por exemplo, a expressão simultânea relativamente extensa de elementos linguísticos em línguas de sinais em oposição à ênfase na ordenação sequencial em línguas faladas. Diferenças em que significados são expressos e as regras que estruturam o uso de enunciados originam-se da sociedade na qual uma língua é usada, sua cultura específica e sua história. Assim, o português de Portugal e o português do Brasil são um pouco diferentes. O que é o uso culto da língua em uma sociedade pode estar quebrando regras pragmáticas ou sociais em outra (deixaremos os leitores usarem sua imaginação). E o número de palavras que uma língua tem para expressar conceitos, como “neve”, pode ser completamente diferente nas línguas inuítes do norte do Canadá ou línguas faladas no sul da Europa ou da América, simplesmente porque questões culturais e ambientais tornam a neve um tema muito mais importante para os inuítes do que para os povos italianos, espanhóis, portugueses ou brasileiros. Em outras palavras, isso não é algo relacionado a ser inuíte ou brasileiro. Os esquiadores de cross-country (nórdicos) portugueses têm muitas palavras diferentes para neve, correspondendo às ceras de cores diferentes usadas em esquis em diferentes condições. FIGURA 1 – INUÍTES POSANDO NA NEVE FONTE: <https://cdn-images-1.medium.com/max/1200/1*GrcNKdzVXtsG_nz5J_5g4g.jpeg>. Acesso em: 14 maio 2019. Legenda: Foto de sete crianças Inuítes. O mundo tem aproximadamente 6900 línguas faladas e 200 línguas de sinais (LEWIS, 2009). Algumas são usadas por um grande número de pessoas (por exemplo, inglês, espanhol, mandarim, língua de sinais americana [ASL], língua de sinais brasileira [LIBRAS]), outras por comunidades muito menores (por exemplo, frísio, basco, Língua de Sinais Quebequense ou LSQ). Algumas línguas não são mais usadas e são chamadas de mortas (como o latim), enquanto outras foram revividas para uso comum nas últimas décadas (como o hebraico). Os humanos têm usado a língua por muitos milhares de anos, mas a língua escrita é uma invenção relativamente recente, tendo procedido do cuneiforme, dos povos da Mesopotâmia, e dos hieróglifos, do antigo Egito, para os alfabetos romanos ou árabes relativamente simples e eficientes.Ao contrário da crença popular, muitas UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 80 línguas não têm uma ortografia, então elas não são expressas no papel ou em uma tela (computador). Esse é o caso não apenas das línguas de sinais, mas também de muitos idiomas falados. A função mais básica de todas as línguas é a comunicação. Isso pode acontecer em conversas casuais entre pessoas sobre pessoas, objetos ou eventos no passado, presente ou futuro. A comunicação também pode envolver muito mais funções cognitivamente desafiadoras, como instrução na educação ou explicação da natureza do amor. Os atos linguísticos, às vezes, ocorrem embutidos em contextos ricos que exigem alocação relativamente baixa de recursos cognitivos (por exemplo, dizendo a uma criança pequena para fechar uma porta, obviamente aberta) ou em contextos reduzidos que a tornam cognitivamente desafiadora (por exemplo, descrevendo a teoria da gramática universal para um estudante do ensino médio). A linguagem que é abstrata ou que envolve contextos reduzidos é tipicamente aprendida mais tarde na infância e adolescência, enquanto que a linguagem envolvendo contextos bem definidos e referências concretas é muito mais fácil e, portanto, é adquirida mais cedo na vida. Todavia, a importância da língua não se restringe à comunicação. A língua também é uma característica central de nossas identidades individuais e de grupo. Ela faz parte da cultura de um povo. Embora tenham sido feitas tentativas para criar e implementar idiomas falados universais (por exemplo, Esperanto) e línguas de sinais (por exemplo, Gestuno), todas essas tentativas falharam, pelo menos em termos de seu uso real. As pessoas simplesmente querem manter sua própria língua, porque é parte de quem elas são. 3 LÍNGUAS DE SINAIS As línguas de sinais não são idiomas universais, nem são inventadas. Elas são, como as línguas faladas, línguas naturais, cultivadas e transmitidas em comunidades de usuários do idioma. No caso das línguas de sinais, os núcleos dessas comunidades são surdos (e muitas vezes Surdos) e seus parentes surdos ou ouvintes. As línguas de sinais não são idiomas universais, essencialmente pela mesma razão que não existem línguas naturais universais faladas. As línguas são usadas e transmitidas de geração em geração em comunidades de pessoas e estão intimamente ligadas às culturas dessas pessoas. As línguas constituem uma das características mais importantes das identidades culturais e psicológicas de vários povos. Esse processo de identificação cultural explica por que pessoas surdas no Brasil usam LIBRAS, nos Estados Unidos usam ASL e surdos na França usam a Língua Francesa de Sinais (LSF). Apenas para enfatizar que a LIBRAS é diferente do português, observe que os surdos em Portugal usam a Língua Gestual Portuguesa (LGP) que tem uma relação com a Língua Gestual Sueca e a LIBRAS está mais próxima da LSF do que da LGP. A arquitetura das línguas de sinais se assemelha a das línguas faladas. Os níveis distintos de organização, vocabulário, fonologia (embora em forma manual), morfologia, sintaxe e pragmática podem ser identificadas nas línguas de TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 81 sinais, assim como nas línguas faladas. A expressão formal dessa arquitetura pode ser um pouco diferente, principalmente por causa de diferentes características da modalidade visual-manual em comparação com a modalidade auditivo-motora. Por exemplo, em comparação com as línguas faladas, o grau de organização sequencial nas línguas de sinais é menor, mas a simultaneidade (transmissão de múltiplos significados ao mesmo tempo) é muito maior. Esta última característica é simplesmente porque, com as mãos e braços como articuladores dominantes, é relativamente fácil expressar dois sinais ou partes de signos simultaneamente, enquanto os articuladores da linguagem falada (principalmente os lábios e a língua) limitam tais possibilidades (embora o volume, vocalizar e prosódia podem gerar diferenças significativas). Com relação à tipologia, a classificação das línguas de acordo com suas características estruturais, as línguas de sinais são bem diferentes das línguas faladas dominantes em países ocidentais como o alemão, o holandês, o francês, o inglês, o espanhol ou o português. Já mencionamos que as línguas de sinais geralmente exibem uma ordem de palavras relativamente livre e uma morfologia rica. Elas também contêm uma estrutura linguística chamada classificadores ou sinais polivalentes que são encontrados em alguns idiomas falados, como japonês e tailandês. Os classificadores são morfemas que identificam características de seus referentes. Línguas de sinais fazem isso usando configurações de mão (handshapes) particulares que possuem significados que são determinados pelo contexto. Na LIBRAS, os classificadores são formas que, substituindo o nome que as precedem, pode vir junto ao verbo para classificar o sujeito ou o objeto que está ligado à ação do verbo. Portanto os classificadores na LIBRAS são marcadores de concordância de gênero: pessoa, animal, coisa. UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 82 FIGURA 2 – CONFIGURAÇÕES DE MÃO DA LIBRAS FONTE: Felipe (2006, p. 28) ]28 IntroducMec_3_CORRECAO1.p65 17/3/2007, 14:5228 Legenda: Configurações de Mão da LIBRAS. Na LIBRAS existem dez tipos de classificadores. O classificar descritivo (CL-D), o classificador que especifica (CL-ESP), o classificador de uma parte do corpo (CL-PC), o classificador locativo (CL-L), o classificador semântico (CL-S), o classificador instrumental (CL-I), o classificador do corpo (CL-C), o classificador do plural (CL-P), o classificador de elemento (CL-E), e o classificador de nome TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 83 e número (CL-Nº). Classificadores tipicamente são descritos como indicando localização, movimento, forma de movimento ou forma. Excelentes relatos da estrutura de várias línguas de sinais podem ser encontrados em Valli e Lucas (2000) e Sandler e Lillo-Martin (2006). 4 MULTIMODALIDADE E SISTEMAS DE SINAIS Às vezes, o significado é expresso pela combinação de símbolos em duas modalidades diferentes ao mesmo tempo. O uso de gestos naturais, simultâneos ao discurso (cospeech), é um bom exemplo dessa multimodalidade (MCNEILL, 1996, 2005). As crianças usam gestos desde muito cedo, combinando-os com o discurso e a língua falada. A função primária dos gestos nos estágios iniciais da aquisição da língua, é permitir que as crianças se expressem quando ainda são muito jovens para usar a língua falada em conversação, normalmente nos primeiros 9 meses de vida. O uso de gestos na conversação interpessoal continua ao longo da vida, no entanto, eles são usados mesmo quando os indivíduos não estão frente a frente (por exemplo, durante conversas telefônicas). Gesticular na maioria das vezes acontece de maneira automática e inconsciente. Ela beneficia não apenas a comunicação, mas também a aquisição e o aprendizado da língua, a produção da língua e a compreensão da língua. Isso se refere especificamente aos gestos que acompanham uma palavra, os chamados gestos naturais simultâneos ao discurso ou cospeech. Por carregarem significado, seja sozinho ou em combinação, como os morfemas, os gestos cospeech ajudam os ouvintes a entender tanto o significado explícito das palavras do falante quanto o contexto físico e emocional do falante. Esses gestos se somam à fluência da expressão de um falante, influenciando positivamente a recordação de palavras e frases pelo receptor (FEYEREISEN, 2006). Eles diminuem a carga de memória de trabalho, mas somente se o gesto é simbólico e, portanto, significativo (WAGNER COOK; YIP; GOLDIN-MEADOW, 2011). Gestos simbólicos adicionam significado às palavras faladas, às vezes criando uma sobreposição de significado e, assim, criando redundância semântica, às vezes elaborando o significado e, às vezes,permanecendo sozinhos. Em vários estudos, Marschark e seus colegas descobriram que crianças surdas e ouvintes usavam todos esses tipos de gestos (MARSCHARK et al., 2005). Os gestos geralmente podem apoiar a aprendizagem de idiomas, por exemplo, com relação à prosódia em um segundo idioma, ou seja, os padrões rítmicos específicos dos enunciados falados em um segundo idioma, são aprendidos mais facilmente quando gestos são usados para enfatizar as estruturas prosódicas, como as questões de entonação ascendente (ou o levantamento ou abaixamento das sobrancelhas para indicar diferentes tipos de interrogativas em LIBRAS e em ASL). Aprender novas palavras em uma segunda língua também é apoiado por gestos de cospeech (TELLIER, 2008), desde que essas novas palavras não sejam foneticamente muito complexas, contendo sons de fala desconhecidos para a própria língua nativa de alguém (KELLY; LEE, 2012). UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 84 Como a maioria dos gestos são ambíguos e derivam seu significado da(s) palavra(s) que acompanham, o timing ou sincronia das palavras e gestos é importante. O início de um gesto cospeech normalmente ocorre um pouco antes do início da pronúncia da palavra. Se, no entanto, o gesto começar muito antes (um terço de segundo ou mais) do que a palavra, o benefício do gesto de compreensão é posto em perigo. Em outras palavras, a integração do significado da palavra e do gesto é mais ideal se o tempo for síncrono (HABETS et al., 2011). Essa descoberta é sustentada por observações de interações entre pais e filhos, nas quais palavras e gestos estão intimamente ligados. Os gestos de mães ou outros cuidadores, em comunicação precoce com bebês, ajudam crianças pequenas a atender a uma pessoa ou objeto no momento em que uma palavra é falada, apoiando assim a aquisição de novas palavras. A combinação de palavra e gesto resulta no que é referido como redundância intersensorial, desde que estejam sincronizados, ocorrendo próximos no tempo (BAHRICK; LICKLITER, 2000). Para crianças menores de 2 anos de idade, em particular, gestos dêiticos (apontando) simples parecem ser úteis no desenvolvimento da língua falada. Compreender palavras faladas acompanhadas de gestos simbólicos é mais difícil e, portanto, leva mais tempo, possivelmente porque leva algum tempo para as crianças poderem alocar atenção e fazer as conexões entre uma palavra, um gesto simbólico e seu referente, por exemplo, um objeto (PUCCINI; LISZKOWSKI, 2012). Palavras e gestos de cospeech podem ser integrados de outras maneiras que não em seu timing. O ambiente sonoro e o estado auditivo dos ouvintes, por exemplo, podem desempenhar papéis importantes, pelo menos para adultos. Em dois experimentos, Obermeier, Dolk e Gunter (2012), mostraram que a integração de gestos e palavras na audição e em adultos com dificuldades auditivas pode ocorrer mesmo se os sinais forem assíncronos. Em adultos ouvintes, essa integração só acontece quando o ruído de fundo interfere na percepção auditiva. Obermeier, Dolk e Gunter (2012), no entanto, descobriram que, presumivelmente, porque a percepção auditiva em adultos com dificuldades auditivas é sempre dificultada (por definição), elas integram palavras e gestos automaticamente, mesmo sob condições assíncronas. Eles concluíram que os gestos são benéficos no combate a condições comunicativas difíceis, independentemente de serem causadas por fatores ambientais (ruído) ou pessoais (perda auditiva). Alternativamente, um estudo recente usando fala degradada em combinação com sinais, em apresentações para bebês ouvintes, sugeriu que o uso de sinais pode limitar a capacidade de segmentar palavras em fala degradada (TING; BERGESON; MIYAMOTO, 2012). Mais pesquisas são necessárias para determinar se essa limitação resulta do sinal auditivo degradado ou se fatores como a sincronia temporal são responsáveis pelo efeito. De acordo com a hipótese dos sistemas integrados (KELLY; ÖZYÜREK; MARIS, 2010), os gestos cospeech e palavras são elementos de um sistema integrado na compreensão da língua (MCNEILL, 2005). Os gestos cospeech e as palavras faladas são vistos como dois lados da moeda da mesma língua. Na compreensão da língua, a palavra influencia o gesto e vice-versa, tornando a multimodalidade importante tanto para a aquisição da língua quanto para o uso desta. Se a TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 85 expressão multimodal de símbolos demonstrou facilitar a aquisição da língua em crianças ouvintes, ela tem ainda mais potencial para a aquisição de língua e o uso dela por crianças e adultos surdos. Esse benefício deriva não apenas pela visibilidade dos gestos cospeech, mas também pela possibilidade de combinar palavras faladas com sinais manuais cospeech. Sinais assemelham-se a gestos, pois ambos são símbolos produzidos manualmente, que devem ser percebidos pela visão. Os sinais diferem dos gestos porque são parte de uma língua e têm uma forma relativamente estável. Os gestos, por outro lado, não fazem parte de uma língua, mas funcionam como uma espécie de suporte paralinguístico a uma língua (MCNEILL, 1996). As formas de gestos variam muito, mas são semelhantes para indivíduos surdos e ouvintes (MARSCHARK et al.,1987). DICAS Para aprofundar seus estudos sobre gestos, cospeech e a comunicação, leia o artigo Aquisição dos gestos na comunicação pré-linguística: uma abordagem teórica de Etelvina do Rosário Silva Lima e Anabela Cruz-Santos (2012). <http://www.scielo.br/pdf/rsbf/ v17n4/22.pdf>. Acesso em: 14 maio 2019. A combinação de fala e sinais, por um lado, é um fenômeno natural, resultante do fato de que, até certo ponto, é possível combinar sinais e língua falada. Lucas e Valli (1992) sugeriram que os usuários surdos de língua de sinais tendem a usar mais sinais baseados na língua falada oficial da comunidade que pertencem (português no Brasil, por exemplo) em situações de contato linguístico envolvendo pessoas ouvintes, embora esse “sinal de contato” seja visto em praticamente todos as línguas de sinais. Contudo, a literatura sugere que indivíduos surdos com níveis mais altos de educação parecem usar o sinal de contato frequentemente entre si, mas é necessário realizar mais pesquisas para determinar a validade dessas observações e a influência de outros fatores contextuais e pessoais (por exemplo, contextos educacionais versus sociais). Em qualquer caso, o sinal de contato geralmente envolve a combinação de sinais com (partes de) palavras faladas e o uso da ordem de palavras do idioma falado. É um sistema orientado por sinais, não uma língua, mas uma comunicação multimodal, aderindo a características de processamento de informação visual e produção de linguagem manual. Por outro lado, existem sistemas de comunicação multimodais propositadamente criados por educadores que, procuram apoiar formas de linguagem faladas por meios visuais para melhorar o acesso à língua falada, para auxiliar a compreensão, ou mesmo para aumentar a aquisição desta. Exemplos desses sistemas incluem a combinação de fala e soletração com os dedos (o chamado Método Rochester), a combinação da fala com gestos que desambiguam a fala nos lábios (palavra complementada) e a combinação de fala e sinal usando UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 86 a estrutura gramatical da língua falada (comunicação simultânea ou fala apoiada por sinais). Existem também sistemas variados que combinam fala e sinal de acordo com regras diferentes. Esses sistemas diferem na medida em que representam as propriedades lexicais e gramaticais da língua falada via sinais. Alguns sistemas são estritos, projetados para representar os elementos de uma língua falada 100% em componentes manuais. Eles codificam manualmente o português ou o inglês integralmente, ou pelo menos essa é a intenção. Outros sistemas de sinais são mais “naturais” e menos ligados a regras, às vezes chamadosde sinais pidgin. Os sinais em pidgin pretendem transmitir o conteúdo proposicional, o significado de um enunciado falado em sinais, mas não todas as suas propriedades gramaticais. Sistemas de comunicação multimodal e simultânea na educação de surdos têm uma longa e controversa histórica. Nas últimas três ou quatro décadas, o uso da comunicação simultânea (em oposição a sistemas com elementos gramaticais criados artificialmente) tornou-se difundido. Embora o uso simultâneo da linguagem falada, juntamente a sinais de línguas de sinais nativas, tenha sido criticado por não ser uma língua real (JOHNSON; LIDDELL; ERTING, 1989; MARMOR; PETTITO, 1979), o princípio de ampliar palavras faladas com sinais não parece uma ideia tão ruim, dados os efeitos positivos dos gestos cospeech. Pelo menos dentro dos ambientes educacionais, a pesquisa por várias décadas mostrou consistentemente que os alunos surdos aprendem tanto com a comunicação simultânea quanto com qualquer outra forma de instrução na sala de aula (COKELY, 1990; MARSCHARK et al., 2005). Infelizmente, a pesquisa fundamental sobre o processamento cognitivo da fala e de sinais é escassa. Em um dos poucos estudos que abordaram essa questão, Giezen (2011) estudou se o input bimodal influenciava negativamente a percepção de fala aumentando a carga de memória de trabalho, uma hipótese proposta por Bergeson, Pisoni e Davis (2005). Alternativamente, pode haver um efeito positivo na carga de memória devido ao efeito de sinais redundantes (BAHRICK; LICKLITER, 2000). O estudo de Giezen (2011) incluiu oito crianças surdas holandesas com uma idade média de 6 anos e 11 meses no momento do teste; todas tinham implantes cocleares com uma idade média de implantação de 1 ano e 10 meses. Três crianças participaram de programas escolares convencionais; cinco foram para uma escola para surdos. Uma tarefa usando palavras familiares e novas foi usada, mensurando o reconhecimento de palavras e a aprendizagem de novas palavras. Algumas das palavras compunham pares mínimos, palavras que soavam muito parecidas (e, portanto, eram mais difíceis de discriminar); outros compunham pares distantes que não pareciam iguais. Os itens foram apresentados em três condições: falada, via sinal e bimodal. Os resultados indicaram que o input bimodal não interferiu negativamente no processamento da fala das crianças com implantes cocleares, mas melhorou a percepção de pares de palavras mínimos (KNOORS; MARSCHARK, 2012). No entanto, esse efeito positivo ocorreu apenas em crianças que frequentaram a escola para surdos, onde foram expostos ao input bimodal durante um período prolongado. Giezen (2011) apontou que esses resultados devem ser TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 87 interpretados com cautela, dado o pequeno número de participantes, e mais pesquisas são certamente necessárias. Contudo, os resultados são consistentes com os efeitos positivos da comunicação simultânea nos estudos educacionais mencionados anteriormente, e em trabalhos mais recentes sobre o uso de sinais na formação de vocabulário através de palavras escritas para crianças com surdez profunda (WAUTERS et al., 2001) e palavras faladas para crianças com perdas auditivas moderadas a severas (MOLLINK; HERMANS; KNOORS, 2008). Abordaremos o uso de sistemas de sinais no ensino de idiomas no próximo tópico desta unidade. DICAS Para saber um pouco mais sobre o funcionamento desse processo cognitivo, assista ao vídeo Conheça a memória de trabalho. Trabalho desenvolvido pela professora e designer instrucional Amanda Costa. <https://vimeo.com/258286014>. Acesso em: 14 maio 2019. 5 O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM Nas últimas décadas, muito conhecimento foi reunido sobre os mecanismos que possibilitam a aquisição relativamente rápida de uma primeira língua pelas crianças. Na década de 1950, Skinner (1978), sugeriu que as crianças adquirem a linguagem por meio do condicionamento instrumental, um mecanismo geral de aprendizagem em pombos e ratos, assim como humanos, em que a aprendizagem é amplamente governada por reforço e punição, generalização e discriminação. Sua teoria do comportamento verbal era que apenas imitando e associando rótulos verbais com coisas (e sendo apropriadamente reforçado), as crianças aprendem a linguagem. Em contraste com esse mecanismo “externo” de aprendizagem da linguagem, Chomsky (1959), argumentou que a gramática era tão abstrata que, para aprender esse sistema complexo governado por regras, as crianças precisam possuir um dispositivo de aquisição de língua (DAL) específico, uma gramática universal inata, que lhes permita aprender uma primeira língua ou língua nativa tão facilmente. O DAL de Chomsky era necessário, dada a suposição de que o input da linguagem é tão caótico, inconsistente e, muitas vezes, incorreto, que as crianças não poderiam adquirir a língua apenas nessa base. UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 88 DICAS Para aprofundar mais o seu conhecimento sobre a evolução das teorias sobre a relação entre a língua e a cognição no constante à aquisição da linguística, leia o texto Língua e Cognição: Antes e depois da revolução cognitiva de Letícia Maria Sicuro Corrêa (2006). <http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/Textos_Em_Psicolin/ Artigos/L%C3%ADngua%20e%20cogni%C3%A7%C3%A3o_antes%20e%20depois%20da%20 revolu%C3%A7%C3%A3o%20cognitiva.pdf>. Acesso em: 14 maio 2019. Outra razão para postular um dispositivo de aquisição de língua em crianças é a visão de que a aquisição da língua é limitada apenas à espécie humana. Pesquisa desde a década de 1960, no entanto, mostrou que alguns outros animais, especificamente primatas, são capazes de aprender aspectos básicos da língua (GARDNER; GARDNER, 1975). Além disso, uma investigação mais detalhada mostrou que o input linguístico em ambientes infantis é muito mais estruturado e voltado para suas capacidades de aprendizagem do que Chomsky e seus seguidores jamais imaginaram. A aquisição de língua agora é cada vez mais vista como um processo cognitivo que não requer um dispositivo ou módulo de aquisição de língua inato específico e não depende apenas do input linguístico. Em vez disso, a aquisição da língua resulta de uma série de processos cognitivos competitivos operando em um ambiente que contém inputs suficientemente ricos para crianças solucionadoras de problemas, a fim de extrair estrutura e significado (sintaxe e semântica) da língua que as rodeia. Em termos mais formais, a aquisição de língua é incorporada e situada em um contexto comunicativo que permite que as crianças atribuam significado a símbolos e estruturas enquanto, ao mesmo tempo, aprendem essas propriedades linguísticas. Esta teoria da linguagem ou da língua emergente destina-se a explicar a aprendizagem de primeira e segunda língua (MACWHINNEY, 2005), e se encaixa bem com a visão ecológica da aprendizagem que delineamos anteriormente. Segundo Tomasello (2005), a aquisição da linguagem é muito mais interconectada com outros tipos de aprendizagem do que se pensava anteriormente. Sua ênfase não era tanto nos aspectos formais da aprendizagem de línguas, mas muito mais nas funções sociocognitivas, argumentando que os aspectos formais da língua são um resultado do uso e não uma pré-condição para sua aquisição, como Chomsky (1959) argumentou. Para Chomsky, as teorias baseadas na teoria sustentam que a essência da língua é sua dimensão simbólica, sendo a gramática derivativa. Em contraste com a gramática gerativa e outras abordagens formais, nas abordagens baseadas no uso a dimensão gramatical da linguagem é um produto de um conjunto de processos históricos e ontogenéticos referenciados coletivamente como gramaticalização. Em sua opinião, a aprendizagem das crianças é integrada a outras habilidades cognitivas e sociocognitivas, como a leitura intencional ou a teoria da mente, a descoberta de padrões ou a aprendizagem estatística.O fato de as crianças aprenderem a TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 89 compartilhar a atenção com outras pessoas; seguir sua atenção e comunicação; dirigir a atenção dos outros para objetos, pessoas ou atividades; e aprender a identificar ações intencionais de outras pessoas influencia profundamente a aquisição de símbolos e estruturas linguísticas. Na visão de Tomasello (2005), para a qual somos claramente solidários na busca de compreender a aquisição da língua por crianças surdas, não há uma distinção clara entre símbolos e estruturas, nem entre expressões mais gerais e idiossincráticas. Todos eles precisam ser aprendidos pelos processos gerais de aquisição que observamos anteriormente, como encontrar padrões e ler intencionalmente. Nesse sentido, a teoria é tão “simples” quanto a de Skinner, mas coloca os mecanismos primários de aquisição da língua na cognição (a mente) e não em contingências comportamentais (o ambiente). Ainda não há uma explicação teórica adequada do processo de aquisição da linguagem ou da língua, mas Tomasello (2005) acha que sua teoria baseada no uso é a que mais se aproxima, considerando a capacidade humana para a linguagem como: uma conspiração de muitos processamentos cognitivos, cognitivos e informacionais diferentes e habilidades de aprendizagem, algumas das quais os seres humanos compartilham com outros primatas e algumas das quais são produtos únicos da avaliação humana (TOMASELLO, 2005, p. 321). No final, a aquisição e o uso da língua são atividades cognitivas, intimamente relacionadas ao desenvolvimento e ao funcionamento do cérebro. Regiões específicas do cérebro humano estão envolvidas no processamento da linguagem, com o desempenho real do processamento dependente da estrutura e do funcionamento dessas regiões e das conexões entre elas. Por um longo tempo, o conhecimento sobre a relação entre cérebro e linguagem resultou do estudo da patologia cerebral, por exemplo, em pessoas que sofreram acidentes vasculares cerebrais (AVC), como acidentes vasculares cerebrais ou trauma cerebral de acidentes ou guerra. Nesses estudos, mudanças no uso de linguagem após AVC ou trauma foram relacionadas a estudos post mortem de tecido cerebral. Com o advento das técnicas de imagem cerebral (KUHL, 2010), tornou-se possível estudar a estrutura e o funcionamento do cérebro em tempo real em adultos saudáveis e, cada vez mais, em crianças. Tais estudos indicaram que algumas regiões cerebrais e algumas conexões entre elas, que são importantes para o processamento da língua falada em adultos, já são ativadas em bebês com apenas alguns dias de vida (DEHAENE; DEHAENE-LAMBERTZ, 2009). Isso não quer dizer que o desenvolvimento do cérebro relacionado à linguagem esteja terminado. Pelo contrário, tanto através de processos biológicos em curso (natureza) e como consequência do input de linguagem (ambiente), o cérebro continua a se desenvolver, tornando possível o processamento mais efetivo de uma linguagem cada vez mais complexa (KUHL; RIVERA-GAXIOLA, 2008). Nos primeiros estágios do desenvolvimento do cérebro, o número de células cerebrais aumenta, assim como, ainda mais importante, o número de conexões (sinapses e vias) entre as células e as regiões UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 90 do cérebro. O aumento da mielinização (isolamento) das fibras nervosas é outro desenvolvimento importante, permitindo uma transmissão mais rápida dos impulsos nervosos, assim como a especialização progressiva (incluindo a lateralização) de partes do cérebro para funções cognitivas específicas. Nos estágios posteriores, o número de conexões entre as células do cérebro diminui como consequência de um processo chamado de poda sináptica, que leva a um uso mais efetivo do cérebro durante o processamento da linguagem e outras tarefas. Em grande medida, o desenvolvimento e funcionamento do cérebro é semelhante, independentemente da modalidade da língua. Adquirir e usar uma língua de sinais envolve as mesmas regiões cerebrais principais da língua falada (para uma visão abrangente da pesquisa sobre o processamento da língua de sinais no cérebro, ver Emmorey (2002). As diferenças observadas como consequência da modalidade da língua estão principalmente relacionadas ao envolvimento do córtex temporal e do córtex visual. O primeiro é ativado durante o processamento de língua auditiva em indivíduos ouvintes, mas geralmente não em pessoas profundamente surdas – a menos que usem implantes cocleares (KRAL; SHARMA, 2011). Nos surdos usuários da língua de sinais, essa região é usada no processamento visual da língua de sinais, embora esse processamento também envolva a ativação do córtex occipital, especializada em lidar com o input visual. Adquirir e usar uma segunda língua envolve principalmente as mesmas áreas do cérebro que adquirir e usar a língua nativa da pessoa. Embora existam indícios de que os estágios iniciais da segunda ou a aprendizagem posterior de línguas estrangeiras envolvam predominantemente o hemisfério direito (XIANG, 2012), a obtenção de proficiência substancial nessa segunda língua acaba resultando na ativação dominante do hemisfério esquerdo. A capacidade de adquirir uma língua nativa é limitada no tempo. Gradualmente, a competência para adquirir uma primeira língua diminui, especialmente se uma sintaxe complexa estiver envolvida (MAYBERRY, 2010). Outros domínios da língua, como o vocabulário, parecem mais flexíveis ao longo do tempo. A aquisição da língua ocorre normalmente em crianças que não apresentam sintomas de comprometimento neurológico e que recebem um input linguístico rico e consistente, começando preferencialmente desde o nascimento – na verdade, no caso da língua falada, no 2º ou 3º meses finais da gravidez (DECASPER; FIFER, 1980; MOON; LAGERCRANTZ; KUHL, 2012) –, mas definitivamente não mais tarde do que o 2º ano de idade. Vários estudos mostram que problemas com a qualidade ou o acesso ao input de linguagem em língua falada ou de sinais durante os primeiros 2 anos de vida, provavelmente, levarão a lacunas permanentes na proficiência da língua que não podem ser totalmente superadas mais tarde na vida (MARKMAN et al., 2011). Isso não deve significar que os atrasos no input de linguagem impedem totalmente a aquisição da língua, mas os problemas resultantes com a compreensão e produção de estruturas gramaticais afetam a alfabetização, a aprendizagem acadêmica e a conquista do sucesso pessoal na sociedade. TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 91 Como indicado anteriormente, as crianças não adquirem uma língua completamente a partir da interação e da comunicação apenas. Aspectos específicos do vocabulário e da gramática e o uso da língua para a alfabetização normalmente têm que ser aprendidos na escola através do ensino explícito de línguas. Ser capaz de ler e escrever também contribui para o desenvolvimento da linguagem, porque a leitura e a escrita aumentam o vocabulário e o conhecimento da sintaxe complexa em crianças e adolescentes (veja o Tópico 1 da Unidade 3). Os fundamentos básicos da língua nativa são normalmente adquiridos, predominantemente, através da interação pais-filhos em casa, mas o ensino da língua e da alfabetização são necessários para apoiar as habilidades de ordem superior. Nem todas as crianças ouvintes adquiriram os aspectos básicos da primeira língua antes de entrar na escola. Há uma variação considerável no ritmo de aquisição da língua e no sucesso final entre os indivíduos (BERMAN, 2004). Tanto para crianças ouvintes quanto para surdas leva vários anos para completar os estágios mais avançados da aquisição da língua. Portanto, as crianças surdas claramente não são o único grupo de crianças que tem que aprender pelo menos alguns aspectos básicos da língua durante os primeiros anos da escola. Essa situação é muito mais comum entre crianças surdas do que ouvintes, no entanto, criandodificuldades para professores de alunos surdos que acham que precisam estar ensinando a língua em vários níveis diferentes ao mesmo tempo em que tentam ensinar o conteúdo da disciplina. DICAS Para saber mais sobre a aquisição da Língua de Sinais, assista ao vídeo Aquisição de Língua de Sinais desenvolvido pelo departamento de Letras (LIBRAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/104231>. Acesso em: 14 maio 2019. 6 AQUISIÇÃO DO BILINGUISMO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Viver em um mundo cada vez mais global exige que muitas pessoas se tornem proficientes e se comuniquem em mais de um idioma. Muitas vezes, uma segunda ou terceira língua estão sendo aprendidas mais tarde na vida, como uma criança mais velha, adolescente ou adulto. Esta aprendizagem da segunda língua ou de línguas estrangeiras, é realizada com maior frequência através do ensino formal de línguas na escola. No entanto, também há muitas crianças que adquirem duas ou mais línguas desde o nascimento ou muito cedo na vida, às vezes por causa de uma escolha explícita feita pelos pais, mas na maioria das vezes UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 92 porque são criadas em situações em que ser multilíngue é apenas um fato da vida, portanto, a norma. Tornar-se multilíngue quando a criança não é problemática, embora certas circunstâncias sejam mais conducentes do que outras. Para a maioria das crianças, a aquisição da linguagem começa em casa. Lá elas adquirem os aspectos básicos de uma língua. Essas habilidades básicas de comunicação interpessoal são um aspecto muito perceptível da proficiência linguística, tipicamente adquirida em situações em que a aquisição é apoiada por inúmeras pistas contextuais diversas. É a língua que está sendo usada aqui e agora, envolvendo pessoas e objetos que estão presentes. Essa língua e as situações em que é utilizada são caracterizadas por baixos desafios cognitivos. Tanto a riqueza do contexto quanto os desafios cognitivos reduzidos contribuem para o ritmo acelerado com que esses aspectos básicos da língua são adquiridos. Mais importante para o sucesso acadêmico final é a língua avançada tipicamente aprendida na escola, levando à proficiência em linguagem cognitivo-acadêmica. Essa forma mais avançada da língua é usada em situações em que a informação contextual é escassa e as demandas cognitivas são altas e, consequentemente, leva mais tempo para ser adquirida. Na educação, as tarefas de linguagem podem ser estruturadas de acordo com a quantidade de informação contextual presente e as demandas cognitivas que são necessárias. Na educação bilíngue, isso tem que ser feito em duas línguas, para que o indivíduo se torne proficiente em ambas (MAYER; AKAMATSU, 2011). Às vezes, acredita-se que adquirir duas ou mais línguas é algo que só pode ser alcançado com sucesso por crianças muito brilhantes, mas essa visão é sustentada principalmente por pessoas que vivem em países que são basicamente monolíngues. De fato, muitas, se não a maioria das crianças do mundo, são bilíngues, e elas realmente lucram em vários níveis ao adquirir mais de um idioma. Aprender uma segunda língua depois de dominar uma primeira pode ser mais fácil, mas não em todos os aspectos e não em todas as condições. A transferência de habilidades da língua é limitada principalmente à proficiência em linguagem cognitivo-acadêmica e somente quando requisitos específicos são atendidos. Cummins (1981, p. 29) descreveu isso em sua hipótese de interdependência: “Na medida em que a instrução em L1 é eficaz em alcançar proficiência em L1, a transferência dessa proficiência para L2 pode ocorrer, desde que haja um input adequado de L2 e a pessoa estiver motivada a aprender L2”. Esta posição implica que a transferência só ocorrerá se as crianças forem proficientes em sua primeira língua, mas também precisam receber uma contribuição adequada na segunda língua e estar motivadas a aprender essa língua. Crescer como bilíngue leva a vantagens nos domínios cognitivos, assim como na linguagem, mas o impacto cognitivo não é positivo em todos os aspectos. Por exemplo, o bilinguismo aumenta o funcionamento executivo, incluindo atenção, inibição e alternância entre tarefas e memória de trabalho, mas afeta negativamente a recuperação de informações codificadas linguisticamente de longo prazo, memória semântica (BIALYSTOK; CRAIK, 2010). Nada disso parece afetar o cronograma geral do desenvolvimento da linguagem, já que crianças TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 93 monolíngues e bilíngues parecem alcançar os marcos críticos do desenvolvimento da linguagem na mesma proporção (KOVACS; MEHLER, 2009; PETITTO et al., 2001). Isso não quer dizer que a proficiência linguística nas duas línguas seja a mesma; pode variar de maneiras relacionadas ao domínio específico em que uma língua é usada. Os bilíngues que adquirem duas línguas faladas (bilíngues unimodais), por exemplo, exibem menor proficiência formal em linguagem do que os aprendizes monolíngues, resultando em vocabulários menores em cada idioma separado. São os vocabulários menores que tornam o acesso a itens no léxico mental da memória de longo prazo um pouco mais lento. Por outro lado, os bilíngues demonstram uma consciência metalinguística melhorada em comparação aos aprendizes monolíngues (CROMDAL, 1999), pelo menos entre os indivíduos ouvintes (MORRISON et al., 2013). Em resumo, crescer com mais de um idioma tem claramente algumas vantagens distintas, mas também algumas desvantagens. Quando se trata de proficiência linguística, um aprendiz bilíngue não é simplesmente o mesmo que dois aprendizes monolíngues em um único cérebro. Por essa razão, as comparações entre as habilidades de leitura dos alunos surdos usuários de língua de sinais e as mesmas habilidades dos alunos ouvintes podem não ser apropriadas (SINGLETON et al., 2004). Na vida real, conhecer mais de um idioma geralmente é uma consequência simples do mundo em que vivemos. A necessidade de os indivíduos conhecerem vários idiomas só aumentará. Há uma necessidade definitiva de criar condições educacionais que facilitem esse processo, tanto para os alunos surdos quanto para os ouvintes, em vez de prejudicá-lo. DICAS Assista ao vídeo Educação Bilíngue e Cultura Surda, material produzido pela UNIVESP para o curso de Pedagogia. Material fundamental para o início dos trabalhos e aprendizagens sobre a cultura surda e Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). <https://www. youtube.com/watch?v=-jgB_juQFqM>. Acesso em: 14 maio 2019. 7 AQUISIÇÃO DE LÍNGUA FALADA POR CRIANÇAS SURDAS Observamos, anteriormente, que o período anterior ao início da educação formal na escola é o mais importante para adquirir o básico de uma língua nativa. Para ser capaz de adquirir uma língua, uma criança precisa ter acesso ao input nesse idioma, a barreira crítica para a aquisição da língua falada para crianças surdas. Assim, a identificação e intervenção precoces precisam estar em vigor se UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 94 uma criança com perda auditiva significativa for adquirir a língua falada. De fato, um dos principais focos de muitos programas de intervenção precoce é melhorar o acesso à língua falada e manter ou estabelecer bons padrões de comunicação entre pais e filhos. Em todas essas áreas, muito progresso foi feito nas últimas décadas. Em muitos países ocidentais, a introdução da triagem auditiva neonatal universal, levou ao diagnóstico de surdez severa em crianças entre o nascimento e os 3 meses de idade. A partir desse momento, a intervenção precoce pode começar e há uma forte associação entre intervenção precoce e melhor proficiência na língua (YOSHINAGA-ITANO; SEDEY, 2000). A amplificação através de alto-falantes em berços e mais tarde através de aparelhos auditivos é destinada a estabelecer pelo menos algumacesso à fala e outros sons. Tais intervenções podem ser benéficas para crianças pequenas com limiares auditivos de até 90 decibéis (dB), embora o grau em que elas levam à aquisição da língua falada seja muito variável. Como vimos no Tópico 2 da Unidade 1, os aparelhos auditivos digitais fizeram uma diferença considerável na capacidade das crianças surdas de acessar a linguagem falada, porque elas são programadas de modo a corresponder ao padrão de perda auditiva neurossensorial que a criança apresenta. Crianças com perda auditiva profunda, em contraste, muitas vezes não lucram o suficiente com a amplificação sonora, pelo menos não para aquisição da língua. A perda auditiva neurossensorial dessas crianças geralmente decorre da disfunção da cóclea. Em particular, as células ciliadas na cóclea estão totalmente ou parcialmente ausentes ou não funcionam adequadamente. Pesquisadores já mostraram pela primeira vez que é possível regenerar células ciliadas em mamíferos, resultando em algum ganho auditivo (MIZUTARI et al., 2013), mas investigações similares envolvendo seres humanos ainda estão muito distantes. No Tópico 2 da Unidade 1, descrevemos como o implante coclear geralmente contorna a cóclea disfuncional, transmitindo sons por estimulação elétrica direta do nervo acústico (WALTZMAN; ROLAND, 2006). O sucesso do implante coclear em fornecer acesso suficiente à fala para posterior aquisição da língua falada depende de vários fatores, incluindo a profundidade na qual o fio do eletrodo pode ser inserido (afetando quantas frequências podem ser comunicadas ao nervo auditivo), a idade da criança na implantação e capacidades cognitivas e apoio dos pais, incluindo a qualidade da interação pai-filho. Os melhores resultados são obtidos quando há inserção completa de todos os eletrodos, quando a criança recebe o implante antes dos 2 anos de idade e não tem incapacidades adicionais, e quando há uma relação pai-filho sensível e responsiva, resultando em um input de linguagem de alta qualidade (MARKMAN et al., 2011). Implantes bilaterais podem levar a melhores resultados Markman et al. (2011) também apontaram a importância da educação materna e do background socioeconômico. Ou seja, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, a taxa de desenvolvimento de língua falada em crianças surdas, com implantes cocleares, é muito maior quando são de famílias relativamente ricas em comparação com crianças de famílias relativamente pobres, uma descoberta que já vimos também é verdade para crianças ouvintes (HART; RISLEY, 1995). TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 95 Nem todas as crianças surdas crescem em circunstâncias em que intervenções precoces, aparelhos auditivos digitais e implantes cocleares estão prontamente disponíveis, mesmo em países desenvolvidos. Se a perda auditiva de uma criança for detectada relativamente tarde ou se a criança não usar um implante ou aparelhos auditivos, o acesso à língua falada será diminuído ou ausente. A criança, então, tem que adquirir a língua falada apenas por meios visuais, através da leitura de fala possivelmente complementada por sinais, soletração com os dedos e através de formas escritas de linguagem. Embora a aquisição relativamente bem-sucedida não seja totalmente impossível nesta situação, a probabilidade de proficiência na língua falada é menor do que para crianças que obtiveram implantes ou efetivamente usam aparelhos auditivos digitais desde muito cedo. Grande parte das pesquisas atuais, envolvendo o desenvolvimento da língua em crianças surdas, concentra-se em crianças surdas com perdas auditivas severas a profundas, frequentemente com implantes cocleares. Muito menos se sabe sobre a aquisição de língua em crianças surdas com menores perdas auditivas. Comentários de Moeller et al. (2007) e Lederberg, Schick e Spencer (2013) são úteis para tirar algumas conclusões gerais, por exemplo, mesmo as crianças surdas que recebem intervenção e os implantes cocleares no início, tipicamente experimentam atrasos no desenvolvimento da língua falada, e a proficiência apropriada à idade não é frequentemente atingida. Blamey et al. (2001) relataram que as crianças surdas, geralmente, mostram uma taxa média de desenvolvimento da língua falada de 55% daquela observada em crianças ouvintes, mas a taxa vem melhorando rapidamente. Svirsky, Teoh e Neuburger (2004), por exemplo, relataram taxas de aquisição de língua em pelo menos algumas crianças com implantes que correspondiam à taxa de crianças ouvintes. Fatores que podem retardar essa taxa são a intervenção precoce que começa mais tarde, habilidades de leitura da fala relativamente ruins, menos tempo gasto em atividades de leitura e comprometimento ou distúrbio específico de linguagem (DEL). O DEL é um distúrbio neurobiológico do desenvolvimento, pelo menos até certo ponto geneticamente determinado, que impede o processamento da linguagem e, portanto, a aquisição da língua. Esse distúrbio ocorre em 3% a 7% das crianças ouvintes. Sabendo que algumas etiologias de perda auditiva (por exemplo, meningite, citomegalovírus) podem resultar em distúrbios neurológicos adicionais, parece provável que a prevalência de DEL em crianças surdas deva ser relativamente alta. Dados exatos estão faltando, mas descobertas iniciais de pesquisas realizadas no Reino Unido sugeriram, no entanto, que a prevalência pode não ser maior do que entre crianças ouvintes (MARSHALL et al., 2013). DICAS Para saber mais sobre o Distúrbio Específico de Linguagem (DEL), leia o artigo Distúrbio Específico de Linguagem: a relevância do diagnóstico inicial de Crestani et al. (2013). Na íntegra em: http://www.scielo.br/pdf/rcefac/2012nahead/188-11.pdf. UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 96 Cada vez mais, parte da grande variação nas habilidades de língua falada de crianças surdas, independentemente de terem ou não implantes cocleares, tem sido atribuída a habilidades de processamento cognitivo, como funcionamento executivo, memória de trabalho e habilidades motoras finas (CONWAY et al., 2011). Ao contrário da crença popular, o desenvolvimento da linguagem falada em crianças surdas geralmente não está associado ao grau de perda auditiva. Crianças moderadamente surdas à severamente surdas não adquirem a língua falada mais rapidamente do que crianças profundamente surdas. A quantidade de perda auditiva parece, no entanto, desempenhar um papel na percepção da fala, onde a visão (leitura orofacial) e a proficiência na língua, assim como a audição, são extremamente importantes. Em comparação com crianças surdas com perdas auditivas moderadas a graves ou crianças surdas com implantes, as crianças surdas com aparelhos auditivos têm de ser mais proficientes na língua falada para alcançar níveis semelhantes de percepção da fala. Atrasos na proficiência na língua falada são refletidos em todos os domínios da linguagem, mas principalmente na morfologia e sintaxe. Nas fases iniciais do desenvolvimento da linguagem, quando o balbucio e outras vocalizações repetitivas são comuns, não há muita diferença entre crianças surdas e ouvintes, mas isso muda com o tempo (MARSCHARK, 2007). Em comparação com a maioria das crianças ouvintes, a aquisição da fonologia expressiva começa mais tarde em crianças surdas, e a obtenção de um inventário fonético completo é relativamente rara. No entanto, a ordem de aquisição dos fonemas é mais ou menos a mesma em crianças surdas e ouvintes, com a ordem largamente determinada pela frequência de ocorrência, intensidade acústica e, para crianças surdas, visibilidade. As crianças surdas tendem a ter vocabulários menores do que as crianças ouvintes: menos palavras, menos significados de palavras, mas também significados de palavra menos relacionados refletidos, por exemplo, em menor conhecimento de categorias e exemplares e relações de superordenados e subordinados menos desenvolvidas (MARSCHARK et al., 2004). Aaprendizagem de palavras é reduzida em muitas crianças surdas, levando a um desenvolvimento de vocabulário atrasado e geralmente menos bem-sucedido (LEDERBERG; PREZBINDOWSKI; SPENCER, 2000). O acesso melhorado e mais precoce ao input de línguas faladas facilitou o desenvolvimento do vocabulário em muitas crianças surdas, mas Sarchet et al. (2014) descobriram que a defasagem no conhecimento do vocabulário em relação aos alunos ouvintes continua, pelo menos, até a idade universitária em estudantes com e sem implantes cocleares. Em contraste com a fonologia e o vocabulário, os problemas das crianças surdas com a morfologia da língua falada não são simplesmente uma questão de atraso. A ordem de adquirir vários morfemas parece diferir, particularmente, entre os morfemas ligados, aqueles ligados às palavras como resultado da inflexão ou derivação (por exemplo, o morfema que indica plural / -s /. Dificuldades na aquisição, são em grande parte, devido a esses morfemas ligados não serem muito salientes acusticamente, recebendo menos estresse do que outros morfemas quando falados. Além disso, muitos desses morfemas ocorrem em formas de palavras relativamente pouco frequentes. TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 97 Em holandês falado, por exemplo, o tempo passado pode ser formado adicionando-se o morfema / -te / ou / -de / ao radical de um verbo regular. Alternativamente, o pretérito pode ser criado por uma mudança de vogal no radical de verbos irregulares. Esses verbos irregulares são muito mais frequentes que os regulares em holandês falado casual, então, os problemas vistos na aquisição de morfemas ligados por crianças surdas holandesas, com implantes cocleares, podem ser o resultado de uma combinação de baixa saliência perceptiva e frequência limitada de input (HAMMER, 2010). O padrão de desenvolvimento da sintaxe da língua falada em crianças surdas também difere do padrão observado em crianças ouvintes. A extensão dos enunciados (extensão média do enunciado ou EME) cresce mais lentamente; a compreensão e a produção de enunciados mais complexos gramaticalmente, aqueles com cláusulas relativas, sentenças passivas e assim por diante, são postergados; e a ordem de adquirir estruturas gramaticais é um pouco diferente. Assim como no desenvolvimento da língua de sinais, o desenvolvimento da língua falada mostra evidências de um período crítico em que o input acessível de linguagem precisa estar disponível para obter proficiência normal em um idioma. Pesquisas recentes sobre os efeitos dos implantes cocleares mostraram que o período ideal para melhorar o acesso por meio do implante é entre o nascimento e os 2 anos de idade. Algumas crianças que receberam o implante entre as idades de 2 e 4 anos fazem progressos consideráveis no desenvolvimento da língua falada, desde que recebam um forte apoio dos pais. O implante coclear após os 2 anos de idade está tipicamente associado a atrasos no desenvolvimento da língua falada e o implante após os quatro anos quase sempre está associado a estes atrasos (NIPARKO et al., 2009). 8 AQUISIÇÃO DA LÍNGUA DE SINAIS POR CRIANÇAS SURDAS O processo de aquisição da língua de sinais é, notavelmente, similar à aquisição da língua falada, desde que as crianças recebam uma linguagem rica e apropriada desde cedo. Essa condição, no entanto, não é facilmente satisfeita na maioria dos casos, porque a grande maioria das crianças surdas tem pais ouvintes que não são proficientes na língua de sinais (se é que sabem alguma coisa). Se os pais decidirem criar o filho com uma língua de sinais, terão que aprender. Como isso leva tempo, alguns pais levam surdos usuários da língua de sinais nativos ou outros modelos de língua de sinais para o lar (MOHAY et al., 1998) e para a educação de seus filhos surdos. Mesmo assim, o ambiente linguístico da língua de sinais raramente corresponde ao de crianças surdas com pais surdos usuários da língua, porque a aquisição proficiente da língua de sinais depende tanto da idade do input da língua de sinais quanto da subsequente qualidade desse input, uma questão que expandiremos mais adiante neste tópico. UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 98 A aquisição nativa da língua de sinais ocorre apenas quando crianças surdas ou ouvintes crescem em famílias usuárias de uma língua de sinais com membros surdos. Estas são relativamente escassas. Famílias com pais surdos e avós surdos, isto é, com múltiplas gerações de usuários de língua de sinais, são ainda mais raros. No entanto, há algumas excelentes descrições da aquisição nativa de línguas de sinais (SCHICK; MARSCHARK; SPENCER, 2006). O seguinte é largamente baseado em visões gerais do desenvolvimento de uma língua de sinais fornecido por Schick (2011) e Lederberg, Schick e Spencer (2013). Como um precursor do desenvolvimento fonológico, as crianças surdas balbuciam manualmente, assim como as crianças ouvintes balbuciam vocalmente. Assim como suas contrapartes faladas, os balbucios manuais são rítmicos e organizados na forma de sílabas, compartilhando propriedades formacionais com línguas de sinais adultas, como a forma da mão, a localização da mão e o movimento da mão. O início dos balbucios manuais é entre os 6 e os 14 meses de idade, com formas manuais simples e mais tarde seguidas por formas mais complexas. Esse mesmo padrão de desenvolvimento é visto em relação à localização e movimento das mãos. Também como na aquisição da língua falada, os erros articulatórios ocorrem nas produções iniciais de crianças surdas, tipicamente substituindo formas mais complexas por mais fáceis. Os movimentos, por exemplo, são afetados por fatores motores, linguísticos e perceptivos, incluindo as capacidades motoras grossas e finas da criança e a saliência perceptual, por exemplo, a proximidade com a face (ou seja, a probabilidade de estar na visão central). DICAS Para aprofundar seu conhecimento sobre a aquisição de línguas de sinais por crianças surdas leia o artigo Aspectos da Aquisição de Línguas de Sinais por Crianças Surdas de Lodenir B. Karnopp (2011), no link: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/ handle/10183/143213/000946898.pdf?sequence=1. Os primeiros léxicos de crianças nativas na língua de sinais assemelham- se aos de falantes nativos em termos de conteúdo. Diferenças estão relacionadas a diferenças na estrutura gramatical, por exemplo, a alta frequência relativa de verbos e outros predicados em vocabulários de sinais. Há alguma evidência de que os primeiros sinais são produzidos um mês ou dois antes das primeiras palavras (sinais tipicamente entre 8 e 10 meses de idade), possivelmente devido à maturação mais rápida das habilidades motoras grossas (por exemplo, dos braços) do que das habilidades motoras finas (por exemplo, dos lábios, laringe). Essa vantagem não dura muito, entretanto, e não há indicações de que essa ligeira vantagem desenvolvimental leve a benefícios na aquisição posterior da linguagem (ABRAHAMSEN; CAVALLO; MCCLUER, 1985). TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 99 Para crianças surdas e ouvintes, gestos como agarrar, alcançar e apontar ocorrem entre 6 e 10 meses de idade. Para crianças surdas, eles frequentemente se desenvolvem em combinações gesto-sinal, um dos primeiros exemplos de desenvolvimento sintático. Um marco nesse desenvolvimento é a ocorrência de combinações de pontos e sinais lexicais em aproximadamente 12 meses, seguidos por combinações de dois sinais lexicais em torno de 16 a 18 meses de idade. Embora a forma de gestos de apontar e pronomes em línguas de sinais seja a mesma, a aquisição do sistema de pronomes na língua de sinais não é um fenômeno inicial (ao menos em algumas línguas de sinais). A aquisição da interação entre forma e função nos pronomes leva tempo e resulta em erros semelhantes aos encontrados também no desenvolvimento da língua falada (por exemplo, erros de reversão pronominal, “você” para “eu”).Ao mesmo tempo, a ordem de sinalização em línguas de sinais geralmente parece ser sujeito-verbo-objeto, assim como em português ou inglês, mas as línguas de sinais permitem mais flexibilidade na ordem de sinalização do que idiomas falados como português, inglês, alemão, holandês ou francês. A ordem de sinais bastante flexível nas expressões da língua de sinais reflete influências pragmáticas, como a ordenação em tópico e comentário e o uso do espaço. A aquisição de concordância verbal ou direcionalidade é um marco típico no desenvolvimento morfológico de uma criança que adquire a língua de sinais. Ao contrário das línguas faladas, a concordância verbal na língua de sinais envolve marcações (espaciais) em classes específicas de verbos, modificando onde ou como os sinais são feitos, usando localizações reais ou abstratas no espaço. Sinais ou gestos no espaço real podem ser usados para se referir a pessoas ou objetos fisicamente presentes ou, em um sentido mais abstrato, serem “colocados” ali pelo usuário de língua de sinais. A concordância verbal interage com o sistema pronominal e se desenvolve cedo em crianças surdas nativas na língua de sinais, normalmente em torno de 24 a 30 meses de idade. Inicialmente, é limitada a verbos específicos, generalizando posteriormente para vários verbos e classes verbais. Num primeiro momento, a concordância acontece com as referências presentes. Embora as crianças entendam a referência abstrata (isto é, referência a pessoas ou objetos que não estão fisicamente presentes) aos 3 anos, a incorporação de tal referência na concordância verbal tem que esperar até os 5 anos. Verbos marcadores para dois argumentos parece ser mais difícil para as crianças, e assim, também, é um desenvolvimento posterior, do que marcadores de um argumento. Os classificadores também representam uma aquisição complexa para a criança surda jovem, e o domínio normalmente não ocorre antes dos 8 ou 9 anos de idade. Embora tenhamos feito alusão a isso apenas uma ou duas vezes, parte da morfologia das línguas de sinais é expressa na face. A expressão facial pode incluir marcadores para funções sintáticas, como negações, formas de perguntas diferentes e condicionais. As crianças surdas usam expressões faciais bem cedo, muitas vezes expressando emoções. Expressões faciais também são usadas em combinação com sinais. No início, as funções sintáticas são expressas principalmente através do uso de sinais. Marcadores faciais e outros não-manuais UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 100 (por exemplo, mudanças no corpo) podem acompanhar esses sinais lexicais, mas a integração total de expressões lexicais e não manuais tipicamente é um desenvolvimento posterior na aquisição da língua de sinais. Outro desenvolvimento relativamente tardio é o domínio da sintaxe complexa, que se baseia na interação entre morfologia espacial e sintaxe, no nível da sentença, e no nível superior do discurso. A sintaxe complexa no discurso de sinais exige que as crianças mantenham referências espaciais ao longo do tempo, algo que não apenas explora a proficiência linguística, mas também a memória de trabalho. Nesse contexto, é importante lembrar que, para a maioria das crianças surdas, a maior parte de seu input de língua de sinais vem de famílias que não são proficientes nessa língua. Dada a nossa ênfase na importância de um ambiente rico e fluente na língua, não deveria ser surpreendente que muitas crianças surdas sofram atrasos significativos na proficiência em língua de sinais, atrasos mais visíveis na morfologia, sintaxe e discurso da língua de sinais (SINGLETON; NEWPORT, 2004). Teoricamente, em alguns domínios mais flexíveis, como a aquisição de vocabulário, tais atrasos podem ser superados se o input se tornar ótimo. Na prática, isso é bem difícil. A morfologia e a sintaxe complexa são muito mais vulneráveis a deficiências de input do que o vocabulário, e atrasos nessas áreas, provavelmente, não serão superados completamente após os 3 anos de idade. Atrasos nesses domínios também influenciarão negativamente a aprendizagem de uma segunda língua pela criança surda. Por que o input parental menos otimizado da língua de sinais influencia negativamente a proficiência em língua de sinais em crianças surdas? Muitas crianças ouvintes de imigrantes ouvintes, que não usam sua nova língua nacional em casa, podem se tornar fluentes nessa língua. Então, aprender esta língua nacional é a aprendizagem de uma segunda língua para crianças ouvintes de imigrantes ouvintes, com base na proficiência em primeira língua adquirida em casa, enquanto que para crianças surdas é, pelo menos em parte, aquisição da primeira língua. Além disso, como vimos no Tópico 2 da Unidade 1, muitos pais tentam primeiro que seu filho surdo se torne “oral”, isto é, adquira a língua falada em vez da língua de sinais. Como resultado, muitas vezes, é apenas após as crianças surdas terem sido malsucedidas em adquirir a língua falada que seus pais consideram a alternativa da língua de sinais, e a pesquisa mostrou claramente que as crianças que aprendem a língua de sinais mais tarde, muitas vezes, não conseguem fluência completa em sua língua nacional de sinais (MAYBERRY, 2010). Mesmo supondo que uma criança se torne relativamente fluente na língua de sinais, o número limitado de outros indivíduos no mundo da criança que são fluentes, pode criar desafios para o crescimento social e cognitivo, bem como para funcionar em contextos educacionais. Outro desafio para uma criança surda que aprende uma língua de sinais, embora aparentemente não tenha sido abordada pela pesquisa, reside no fato de que, todas as línguas de sinais que conhecemos têm muito menos sinais do que suas respectivas línguas faladas têm palavras. É verdade que tudo o que pode ser produzido em um idioma pode ser TÓPICO 1 | DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM 101 produzido em outro, e isso vale para idiomas de sinais e falados. No entanto, com um menor vocabulário lexicalizado (aceito), a comunicação será claramente diferente de maneiras que parecem influenciar o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento cognitivo. Quão sérias são essas questões mencionadas na realidade? Atrasos na competência gramatical provavelmente não influenciarão a capacidade de um indivíduo de participar de conversas cotidianas em língua de sinais com pares surdos, embora haja alguns relatos de que, durante essas conversas, mal- entendidos podem ocorrer devido à enorme variação nas habilidades de língua de sinais entre usuários não nativos (EDMONDSON, 1983). De maior importância a longo prazo é a falta de proficiência em gramática complexa, particularmente exigida no uso de linguagem cognitiva e acadêmica. A linguagem acadêmica em si mesma, quanto ao que ela trata, é cognitivamente desafiadora, e é provável que ocorra em sala de aula apenas com suporte contextual limitado. Isso geralmente ocorre no Ensino Médio e Superior. Para entender a língua de sinais de professores ou intérpretes explicando tópicos acadêmicos, os problemas em compreender a gramática complexa inevitavelmente dificultarão a compreensão e, assim, a aprendizagem. Atrasos na aquisição da língua de sinais nem sempre resultam do input limitado ou tardio da língua de sinais. Em alguns casos, a língua de sinais de crianças surdas mostra evidências de DEL (WOLL; MORGAN, 2012). Avaliar DEL em crianças surdas usuárias de língua de sinais é difícil, em parte porque a diferenciação entre atrasos na proficiência em língua de sinais resultante de input ou de problemas de processamento é muito difícil. No entanto, existem algumas iniciativas promissoras, resultando em instrumentos de avaliação que contribuem para a detecção do DEL em crianças surdas usuárias de língua de sinais. O uso de uma tarefa de repetição não linear como marcador é um exemplo (MANN; MARSHALL, 2010), mas são necessárias mais pesquisas, incluindoo uso de técnicas de imageamento cerebral. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma, o processo de aquisição da língua de sinais assemelha-se ao da aquisição da língua falada na importância do input precoce e fluente da língua e do curso principal do desenvolvimento (os marcos linguísticos). Há, no entanto, diferenças sutis no processo e no curso, principalmente devido a diferenças de modalidade, como a extensão em que a iconicidade do sinal é explorada (ORMEL et al., 2009). As diferenças na aquisição da língua de sinais tornam-se evidentes na educação de surdos, tanto em ambientes comuns como em ambientes separados para alunos surdos, onde encontramos dois grupos de estudantes usuários de línguas de sinais. Um grupo parece entrar na escola com proficiência em língua de sinais relativamente apropriada à idade, usuários nativos com pais surdos (WOOLFE et al., 2010). Esse grupo é uma pequena minoria, no entanto. A grande maioria das crianças surdas usuárias de língua de sinais entrará na escola UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 102 com atrasos variados nas habilidades desta língua, comparáveis aos atrasos observados em seu idioma falado. Essas crianças precisam de uma programação intensiva de língua de sinais no início de sua vida acadêmica, não muito diferente da programação intensiva de língua falada, necessária para as crianças surdas que se comunicarão principalmente nessa modalidade. O conhecimento da língua de sinais ajuda os professores a compreender as avaliações da proficiência em língua de sinais, a planejar metas para as lições desta língua que sejam adequadas ao desenvolvimento, a estruturar programas de reabilitação de língua de sinais, se necessário, a encaminhar uma criança para terapia de língua de sinais (tal como a terapia da fala) em casos de DEL. Nesse ponto, deve ficar óbvio que os professores em programas de língua de sinais ou bilíngues precisam ser fluentes na língua de instrução. A história recente, no entanto, indica que isso não é fácil de realizar. Passamos, portanto, a considerar as avaliações de linguagem e sua relevância para o ensino e a aprendizagem. 103 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • A linguagem, em princípio, é um sistema de blocos de construção sem sentido (sons ou movimentos com as mãos) que são reunidos em unidades significativas (morfemas: palavras e partes significativas das palavras), que, através da aplicação de um conjunto finito de regras, podem ser combinados e usados em uma infinita variedade de enunciados. • O mundo tem aproximadamente 6900 línguas faladas e 200 línguas de sinais. • A função mais básica de todas as línguas é a comunicação. • As línguas de sinais não são idiomas universais, nem são inventadas. Elas são, como as línguas faladas, línguas naturais, cultivadas e transmitidas em comunidades de usuários do idioma. • Os níveis distintos de organização, vocabulário, fonologia (embora em forma manual), morfologia, sintaxe e pragmática podem ser identificadas nas línguas de sinais, assim como nas línguas faladas. • Às vezes, o significado é expresso pela combinação de símbolos em duas modalidades diferentes ao mesmo tempo. • Gestos simbólicos adicionam significado às palavras faladas, às vezes criando uma sobreposição de significado e, assim, criando redundância semântica, às vezes elaborando o significado e, às vezes, permanecendo sozinhos. • Palavras e gestos de cospeech podem ser integrados de outras maneiras que não em seu timing. • A combinação de fala e sinais, por um lado, é um fenômeno natural, resultante do fato de que, até certo ponto, é possível combinar sinais e língua falada. • Existem sistemas de comunicação multimodais propositadamente criados por educadores que procuram apoiar formas de linguagem faladas por meios visuais para melhorar o acesso à língua falada, para auxiliar a compreensão, ou mesmo para aumentar a aquisição desta. • Nas últimas décadas, muito conhecimento foi reunido sobre os mecanismos que possibilitam a aquisição relativamente rápida de uma primeira língua pelas crianças. 104 • A aquisição de língua, agora, é cada vez mais vista como um processo cognitivo que não requer um dispositivo ou módulo de aquisição de língua inato específico e não depende apenas do input linguístico. • A aquisição da linguagem é muito mais interconectada com outros tipos de aprendizagem do que se pensava anteriormente. • Algumas regiões cerebrais e algumas conexões entre elas que são importantes para o processamento da língua falada em adultos já são ativadas em bebês com apenas alguns dias de vida. • Gradualmente, a competência para adquirir uma primeira língua diminui, especialmente se uma sintaxe complexa estiver envolvida. • Os fundamentos básicos da língua nativa são normalmente adquiridos predominantemente através da interação pais-filhos em casa, mas o ensino da língua e da alfabetização são necessários para apoiar as habilidades de ordem superior. • Aprender uma segunda língua depois de dominar uma primeira, pode ser mais fácil, mas não em todos os aspectos e não em todas as condições. • Crescer como bilíngue leva a vantagens nos domínios cognitivos, assim como na linguagem, mas o impacto cognitivo não é positivo em todos os aspectos. • As comparações entre as habilidades de leitura dos alunos surdos usuários de língua de sinais e as mesmas habilidades dos alunos ouvintes podem não ser apropriadas. • A identificação e intervenção precoces precisam estar em vigor se uma criança com perda auditiva significativa for adquirir a língua falada. • A probabilidade de proficiência na língua falada é menor do que para crianças que obtiveram implantes ou efetivamente usam aparelhos auditivos digitais desde muito cedo. • Atrasos na proficiência na língua falada são refletidos em todos os domínios da linguagem, mas principalmente na morfologia e sintaxe. • Assim como no desenvolvimento da língua de sinais, o desenvolvimento da língua falada mostra evidências de um período crítico em que o input acessível de linguagem precisa estar disponível para obter proficiência normal em um idioma. • A aquisição nativa da língua de sinais ocorre apenas quando crianças surdas ou ouvintes crescem em famílias usuárias de uma língua de sinais com membros surdos. 105 • Como um precursor do desenvolvimento fonológico, as crianças surdas balbuciam manualmente, assim como as crianças ouvintes balbuciam vocalmente. • Os primeiros léxicos de crianças nativas na língua de sinais assemelham-se aos de falantes nativos em termos de conteúdo. • A aquisição de concordância verbal ou direcionalidade é um marco típico no desenvolvimento morfológico de uma criança que adquire a língua de sinais. • Parte da morfologia das línguas de sinais é expressa na face. • Atrasos na aquisição da língua de sinais nem sempre resultam do input limitado ou tardio da língua de sinais. 106 AUTOATIVIDADE 1 A importância da língua não se restringe à comunicação. Em que outro aspecto ela é importante para o ser humano? 2 Qual é a função primária dos gestos nos estágios iniciais da aquisição da língua? 3 Por que o timing ou sincronia das palavras e gestos é importante? 4 Crescer com mais de um idioma tem claramente algumas vantagens distintas, mas também algumas desvantagens. Quais seriam as desvantagens? 107 TÓPICO 2 ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Quando crianças surdas entram na escola pela primeira vez, aos 3 anos de idade em alguns países, muitas delas, se não a maioria delas, apresentam atrasos no desenvolvimento da linguagem em comparação com pares ouvintes (se usam língua falada) e pares surdos com pais surdos (se eles usam língua de sinais). À primeira vista, as razões para essa situação parecem bastante óbvias. No primeiro caso, as crianças que não podem ouvir claramente, terão dificuldade em aprender uma língua que depende das ondas sonoras produzidaspela fala e “projetadas” para serem recebidas por ouvidos totalmente funcionais. No segundo caso, as crianças normalmente aprendem sua primeira língua através da imersão total em uma comunidade que a utiliza, e elas terão dificuldade em aprender uma língua se ela não for usada regularmente por aqueles ao seu redor. Em consonância com a nossa discussão no tópico anterior, um resultado prático desta situação é que, além de ensinar a linguagem necessária para alcançar a proficiência cognitivo- acadêmica, os professores de crianças surdas, muitas vezes, têm de fornecer apoio para a aquisição de habilidades de comunicação interpessoais básicas, uma tarefa que normalmente não é necessária com crianças ouvintes (exceto talvez no caso de imigrantes recentes). Se as origens da língua difusa atrapalham as crianças surdas, é apenas porque simplificamos a situação para os presentes propósitos. Os tópicos posteriores destacarão os fatores em jogo além dos dois descritos anteriormente. Em particular, os fundamentos cognitivos e sociais do desenvolvimento típico da linguagem podem estar ausentes, ou pelo menos podem ser diferentes, nos primeiros ambientes de crianças com perdas auditivas significativas. A falta de informação disponível para os novos pais de uma criança surda, ou os pais sendo sobrecarregados com informações conflitantes, torna a situação ainda mais difícil. A programação da intervenção precoce (Tópico 2 da Unidade 1), destinada tanto aos pais quanto às crianças surdas, certamente ajuda. Já vimos que, as crianças cujas perdas auditivas são identificadas precocemente e recebem serviços de intervenção nos primeiros 6 meses de vida, são mais propensas a ter níveis de linguagem na faixa “normal”, independentemente de estarem usando comunicação falada ou de sinais (YOSHINAGA-ITANO; SEDEY, 2000). No entanto, a maioria deles se enquadra na faixa “normal baixa” e os atrasos persistem nos anos escolares (YOSHINAGA-ITANO, 2006). Para entender essa situação complexa, e talvez ver algumas maneiras possíveis de sair disso como resultado de um ensino apropriado, consideremos as diversas questões associadas à aprendizagem de línguas e ao ensino de idiomas para crianças surdas. UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 108 2 AQUISIÇÃO DE LÍNGUAS EM CASA E APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS NA ESCOLA Facilmente, o tópico que levou à maior controvérsia na educação de surdos por mais de 200 anos é a maneira como as crianças surdas deveriam aprender a língua. É como se a educação fosse toda sobre a tomada de decisão pelos pais e educadores em relação ao uso da linguagem das crianças surdas em vez de descobrir como as crianças surdas aprendem a língua, a verdadeira questão que deve nos interessar. Desentendimentos incluem se deve ou não utilizar sinais, seja através de uma língua de sinais natural ou fala apoiada por sinais; se deve ou não complementar o input da língua auditiva com a fala visual através da leitura orofacial; e, em menor escala, o equilíbrio entre a aquisição da língua natural e a instrução formal da língua. Como exemplo da última questão, na Holanda, nos anos 50, Van Uden introduziu o método materno-reflexivo de aprendizagem de línguas para crianças surdas. Nessa abordagem didática, o ensino de línguas foi modelado após o processo normal de interação entre pais e filhos, imitando tanto quanto possível as condições "naturais" de aprendizagem da língua. O suporte visual da língua falada através da leitura orofacial e da língua escrita foi promovido, enquanto o uso da língua de sinais foi fortemente desencorajado. Durante os anos 1960 e 1970, vários países escandinavos adotaram o modelo bilíngue muito diferente na educação de surdos. Após o reconhecimento do status linguístico das línguas de sinais (STOKOE, 2005), as abordagens bilíngues à linguagem para crianças surdas enfatizaram o uso precoce da língua de sinais, com a língua falada sendo vista como uma segunda língua introduzida principalmente na forma escrita e através da instrução formal da língua. FIGURA 3 – VAN UDEN (1912-2008) E SUA OBRA FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51hpXsUEniL._SX331_ BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 14 maio 2019. Legenda: Van Uden (1912-2008) e sua obra. TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 109 O advento dos aparelhos auditivos digitais e do implante coclear e a melhora da audição para muitas crianças surdas criaram um interesse renovado em abordagens “orais” para educar crianças surdas, enfatizando novamente a língua falada, mas (frequentemente) com uma maior sensibilidade à ampla variação nos resultados potenciais. Como Marschark e Spencer (2006) descreveram, o ensino ou remediação de habilidades de língua falada pode variar de métodos unisensoriais (por exemplo, acupédico, auditivo-verbal), no qual a ênfase é quase inteiramente no desenvolvimento de audição residual para apoiar habilidades de escuta, para programas bilíngues nos quais a língua falada é frequentemente apoiada em sessões específicas e tipicamente limitadas no tempo (LYNAS, 1999). Dentro desse continuum estão várias abordagens à programação da língua falada, incluindo uma ênfase na leitura orofacial e vários sistemas de sinais nos quais os sinais são modificados ou criados para permitir que eles sejam usados relativamente simultaneamente à língua falada, dentro do padrão temporal mais fechado possível. A introdução e o uso de novas alternativas no continuum da fala ao sinal quase sempre foram acompanhados por debates filosóficos e retórica ferozes, geralmente à custa de pesquisa empírica objetiva. Como resultado, embora recursos e esforços consideráveis tenham sido dedicados a defender e supostamente avaliar a eficácia relativa de métodos individuais, tem havido pouco progresso teórico ou prático para justificar o custo em termos de despesas e impacto na vida das crianças (ERIKS-BROPHY, 2004). Nenhum método “nivelou o campo de jogo” para os alunos surdos, permitindo-lhes alcançar a proficiência em línguas em níveis semelhantes aos dos pares ouvintes (KNOORS; MARSCHARK, 2012). A realidade é que um método para todos os alunos surdos não se encaixa em nenhum deles. É certo que algumas pessoas questionam a viabilidade de crianças surdas e ouvintes demonstrarem níveis comparáveis de habilidade de linguagem, devido ao fato de que as condições prévias para aquisição de língua em crianças surdas muitas vezes são menos que ideais (por exemplo, problemas de aprendizagem relacionados à perda auditiva sindrômica ou não sindrômica, deficiências múltiplas ou oportunidades de aprendizagem de línguas perdidas devido à identificação tardia). Isso não quer dizer que não devamos lutar pela aquisição ideal da língua por crianças surdas, apenas que talvez as expectativas e preferências pela língua falada versus língua de sinais precisem ser expressas em termos práticos. Do ponto de vista das crianças e adolescentes surdos que precisam adquirir uma língua, no entanto, os debates sobre a modalidade da linguagem parecem sem sentido e potencialmente prejudiciais. Como Hauser e Marschark (2008, p. 450) afirmam: nossa conveniente divisão entre indivíduos que usam a língua falada e aqueles que usam a língua de sinais é, em grande parte, uma ficção. Independentemente do estado auditivo de seus pais, seus limiares auditivos e suas colocações educacionais, a maioria dos alunos surdos é exposta a ambas as modalidades de língua. Os alunos com dificuldades de audição estão em situação semelhante. UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 110 Esquecendo os argumentos filosóficos sobre a modalidade da língua no momento, como podemos promover a aprendizagem de línguas na escola, com base na língua que já foi adquirida em casa? Em geral, existem três possibilidades. Primeiro, podemos aumentar a disponibilidade de língua acessível para que ela possa ser adquirida mais ou menos naturalmente,mesmo que tardiamente. Em segundo lugar, podemos incentivar a interação em sala de aula facilitando a língua, levando novamente à aquisição tardia, mas relativamente natural. Terceiro, podemos ensinar diretamente a língua. Qualquer que seja o caminho que escolhamos, sabemos que a janela de oportunidade, para pelo menos alguns aspectos da aprendizagem de línguas (especialmente a gramática), não é indefinida. A remediação é, portanto, consideravelmente limitada, mas a porta é deixada aberta para ensinar habilidades de compensação. Na prática, várias combinações de todas essas três abordagens de sala de aula são usadas na maioria das situações, o equilíbrio entre elas depende das necessidades de língua dos alunos surdos individuais e das habilidades e recursos dos professores. Idealmente, ambos devem ser monitorados e o equilíbrio deve ser reavaliado continuamente com modificações baseadas no progresso das crianças. O ensino de idiomas para alunos surdos é, portanto, em grande medida, um ensino diagnóstico. 3 AVALIAÇÃO DA PROFICIÊNCIA LINGUÍSTICA Ensinar a língua aos alunos surdos é um empreendimento complexo, especialmente para um professor em sala de aula (em oposição a um especialista em línguas). Já vimos que as diferenças individuais entre as crianças surdas são muito grandes, e o desenvolvimento da proficiência em língua é muito menos previsível do que em crianças ouvintes. Para concentrar o ensino nos pontos fortes e fracos dos alunos surdos, precisamos nos envolver no ensino diagnóstico de língua. O ensino diagnóstico é uma forma de ensino em que há constante interação entre avaliação de habilidades e progresso e planejamento de programas, tanto em nível individual quanto em nível de sala de aula. Nessa perspectiva, o objetivo da avaliação é a orientação. A avaliação também pode servir a outras metas. Às vezes, os mesmos instrumentos podem fornecer informações para vários objetivos, mas, dada a diversidade de alunos surdos, isso nem sempre é o caso. Pelo contrário, essa heterogeneidade cria desafios significativos para professores, psicólogos, fonoaudiólogos e audiologistas. Decisões devem ser tomadas em relação a que tipo de avaliação atende melhor às metas de avaliação e que tipo de instrumento deve ser selecionado, indivíduo por indivíduo (JAMIESON; SIMMONS, 2011). Ao selecionar um instrumento de avaliação da língua, existem vários tipos para escolher. Uma primeira distinção útil é entre avaliações formais e informais. Na avaliação formal, o teste, a tarefa e o procedimento são claramente prescritos. Partir de procedimentos de testes padronizados pode dificultar seriamente a interpretação dos dados e a validade e confiabilidade gerais do teste. Ou seja, no caso de testes padronizados, normalmente haverá uma base de pesquisa que demonstrou que o construto mede o que deve medir (validade) e o faz de maneira confiável – que resultados semelhantes são obtidos, não importa quem TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 111 é o avaliador, desde que o procedimento padrão seja seguido com precisão. Para fazer comparações de resultados possíveis, tais testes têm normas baseadas em um grande grupo de referência. As avaliações informais da língua são muito mais orientadas para o processo do que as avaliações formais. Embora possam envolver procedimentos padrão, elas não envolvem testes em si. O uso individual da língua é avaliado no contexto (JAMIESON; SIMMONS, 2011). Exemplos típicos de avaliação informal são o uso de observações, listas de verificação, tarefas de elicitação e “avaliação dinâmica”, uma combinação de avaliação e treinamento individual. Outra distinção útil na avaliação da língua é entre procedimentos de avaliação independentes do currículo e procedimentos vinculados ao currículo. Nesse último, quer-se saber quanto um aluno aprendeu de um currículo ou método específico. Avaliações relevantes geralmente são feitas em dois ou mais pontos no tempo, geralmente, um no início do ensino do currículo, outro, algum tempo depois, e talvez mais em intervalos regulares (por exemplo, mensalmente). Com esse tipo de avaliação, pode-se medir o progresso de um aluno em comparação com o desempenho que outros (na mesma ou em outra subpopulação) tiveram na mesma sala de aula. Instrumentos de avaliação independentes do currículo, em contraste, tornam possível avaliar habilidades gerais ou proficiência em estudantes. No entanto, ao contrário das avaliações dependentes do currículo, a interpretação do progresso não pode estar diretamente ligada ao currículo específico fornecido. Se um professor quiser ter uma visão completa da competência linguística e do desempenho linguístico dos alunos na sala de aula, todos os domínios da língua de instrução devem ser avaliados, não só o vocabulário (avaliado com maior frequência), mas também a fonologia, morfologia, sintaxe, e pragmática bem como compreensão e produção de forma mais ampla. Idealmente, isso inclui testes formais e o que é chamado de amostragem de línguas. Na amostragem de línguas, a comunicação entre os usuários do idioma é gravada, transcrita e analisada para obter uma imagem do idioma usado em conversas reais. Nos testes formais, a avaliação ocorre em condições mais semelhantes a laboratórios, fornecendo, talvez, um espectro mais amplo da língua que um aluno possa compreender ou produzir, mas não dando muita informação sobre a probabilidade ou capacidade de usar essa língua na vida cotidiana. A amostragem de línguas, portanto, pode fornecer uma visão abrangente da produção da língua, mas oferece muito menos informações sobre a compreensão desta. A escolha sobre o tipo de avaliação e a técnica ou instrumento de avaliação específico que um professor ou outro avaliador deseja usar deve depender, principalmente, do objetivo da avaliação. É sobre a quantidade da língua que o indivíduo compreende? Quanto o indivíduo pode produzir? O foco é no vocabulário ou também na sintaxe? Pretende ser uma mensuração do progresso dentro do currículo ou uma visão geral das habilidades? A intenção é comparar o desempenho a um grupo de referência ou a um critério predeterminado? E a UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 112 avaliação pretende avaliar habilidades em condições do mundo real ou examiná- las de maneira mais generalizada, independente de contextos específicos de comunicação? Várias questões práticas também são importantes. Por exemplo, o tempo disponível para avaliação pode determinar o método preferido de avaliação, porque a amostragem de língua leva muito tempo em relação à testagem de idioma. Até o momento, a discussão da avaliação tem sido independente do status da audição. As coisas tornam-se muito mais complicadas quando os alunos surdos estão envolvidos. A primeira questão é a língua que está sendo avaliada. Para um idioma falado como português, inglês ou holandês, vários testes, frequentemente com boas propriedades psicométricas, estão disponíveis. A maioria desses instrumentos, no entanto, foi desenvolvida especificamente para indivíduos ouvintes. Avaliar a proficiência em língua de sinais é mais problemático devido à relativa falta de informação sobre vários aspectos do desenvolvimento da língua de sinais (pelo menos em comparação com pesquisas sobre aquisição de língua falada), a enorme variação na proficiência em língua de sinais entre usuários nativos e não nativos, a relativa falta de instrumentos de avaliação padronizados e a disponibilidade de instrumentos de avaliação com boas características psicométricas que se mostraram válidos e confiáveis (SINGLETON; SUPALLA, 2011). Recentemente, vários testes foram desenvolvidos para a avaliação de habilidades linguísticas de crianças usando várias línguas de sinais, incluindo Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS – (QUADROS; CRUZ, 2011), American Sign Language – ASL – (MALLER et al., 1999), British Sign Language – BSL – (HERMAN;HOLMES; WOLL, 1999), Língua Australiana de Sinais – AUSLAN – (SCHEMBRI et al., 2002), entre outras. Em comparação com os testes desenvolvidos para a avaliação da língua falada, no entanto, as normas para esses testes permanecem relativamente fracas. DICAS Leia o livro Língua de Sinais: instrumentos de avaliação de R. M. de Quadros e C. R. Cruz (2011) para conhecer mais sobre os instrumentos e novas pesquisas nesta área. FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/ I/41D45e3bbsL._SX344_BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 14 maio 2019. Legenda: Capa de um livro TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 113 A avaliação da proficiência em língua falada em crianças surdas é outra questão complexa. Muitos testes foram desenvolvidos para a avaliação da língua usada pelos alunos ouvintes. O fato de que a proficiência em língua falada de crianças surdas difere dos pares ouvintes de maneira importante, levanta a questão de quão apropriado é usar esses instrumentos para avaliar a língua falada de alunos surdos. Eles medem os mesmos constructos? Qual é o valor de usar normas auditivas na interpretação do desempenho de crianças surdas? As respostas a essas perguntas dependem do objetivo real da avaliação. Por exemplo, ao avaliar a língua falada de alunos surdos em salas de aula regulares, o uso de normas auditivas pode ser apropriado, mesmo se a interpretação exigir alguma qualificação ou explicação adicional. Alguns testes de habilidades de língua falada foram desenvolvidos especificamente para avaliação de alunos surdos. O uso de tais testes pode ser útil na comparação de alunos surdos com pares surdos, mas a baixa incidência de perda auditiva em crianças, significa que os grupos de referência de normas tendem a ser comparativamente pequenos. Enquanto um professor estiver interessado nas habilidades de um indivíduo em vez de avaliação em relação a um grupo de comparação, isso não é um problema. No entanto, se o objetivo da avaliação exigir referência a um grupo normativo, é necessário ter cautela. A acessibilidade dos itens dentro de um teste é outra preocupação. Se alguém está testando um aluno surdo na língua falada, é inevitável que o teste não apenas avalie as habilidades de linguagem, mas também a percepção auditiva e visual da fala. Um resultado de teste específico, portanto, não reflete necessariamente a proficiência linguística, mas, geralmente, deve ser entendido como abrangendo habilidades de proficiência da língua e percepção de fala. Infelizmente, não há uma maneira real de contornar esse problema. Alguns professores ou outros avaliadores adaptam procedimentos de teste, por exemplo, realizando testes em língua escrita, língua escrita e falada ou comunicação simultânea. No entanto, tais adaptações ameaçam a validade e a confiabilidade do teste (QI; MITCHELL, 2012). As normas de referência tornam-se inúteis nesses casos, porque foram estabelecidas usando um procedimento de avaliação UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 114 diferente. Além disso, tais adaptações podem não resolver realmente o problema. Se alguém evita o uso da fala ao avaliar a proficiência na língua falada porque também implica testar a percepção da fala e a capacidade de leitura orofacial e, em vez disso, usa a linguagem escrita, o teste também se torna um teste de leitura. Dado o desafio de ler para muitos alunos surdos (veja o Tópico 1 da Unidade 3), a solução de um problema simplesmente cria outro. Da mesma forma, o uso de sinais de apoio e comunicação simultânea ameaça a validade de um teste de língua falada de várias maneiras. Primeiro, o teste então avalia a compreensão dos sinais e da fala. Segundo, devido à iconicidade de alguns sinais (isto é, sinais que se parecem com seus referentes), o teste de língua pode se tornar uma tarefa bastante fácil de resolver problemas, especialmente se envolver a verificação de imagens e pode não avaliar a proficiência na língua falada. Às vezes, os professores adaptam os testes de línguas devido à preocupação com a complexidade dos itens, supondo que os itens de teste individuais sejam muito difíceis para os alunos surdos. Os itens específicos, às vezes, são alterados ou os professores podem exigir que os alunos surdos realizem testes destinados a alunos mais jovens, levando ao que é chamado de teste fora de nível. Por mais bem-intencionada que essa abordagem possa parecer, ela não garante maior precisão ou validade na avaliação das habilidades dos alunos surdos. O suporte empírico para a eficácia das adaptações é, muitas vezes, inexistente, e a eficácia de vários testes e adaptações de testagens tem sido questionada (QI; MITCHELL, 2012). Uma questão adicional em relação às avaliações de língua falada é que os alunos surdos podem ser de famílias que usam uma língua falada em casa diferente da língua nacional usada na escola (JAMIESON; SIMMONS, 2011). Isso pode ser alemão no Brasil, turco na Alemanha ou espanhol nos Estados Unidos. Para ter uma visão completa da proficiência linguística de um aluno individual, a proficiência na língua materna também deve ser avaliada. Para alguns desses idiomas, pode não haver testes de proficiência ou podem ser aplicados em diferentes grupos, e encontrar um indivíduo apropriado que conheça o idioma e possa administrar o teste, pode ser problemático. Frequentemente, todos os três fatores co-ocorrem. Em alguns países, esta situação está melhorando um pouco, devido ao desenvolvimento de instrumentos de avaliação específicos, criação de procedimentos específicos ou diretrizes de melhores práticas, e o uso de intérpretes na avaliação (BLUMENTHAL, 2009). Essas dificuldades não devem ser vistas, significando que a avaliação da língua de alunos surdos é muito difícil para valer a pena o esforço dos profissionais. Em vez disso, a avaliação de línguas é uma parte vital do ensino de idiomas para alunos surdos, mas, na realização de tais avaliações, é importante determinar cuidadosamente os objetivos da avaliação, selecionar os melhores instrumentos de avaliação disponíveis e não ser rápido demais para adaptar o procedimento ou itens. Se os itens ou procedimentos de teste forem modificados, é importante que as modificações sejam descritas da forma mais precisa possível TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 115 para possibilitar a replicação. Dada a complexa situação da língua para muitos alunos surdos, tentar traçar o perfil do desenvolvimento da língua, com base em vários tipos de avaliação dela, levando em conta seus repertórios e recursos mistos (multimodais e multilíngues), pode ser uma maneira particularmente boa de avançar. Finalmente, ao interpretar os resultados das avaliações de línguas para alunos surdos, ainda é preciso ter muito mais cuidado do que com os alunos ouvintes. Reconhecer os desafios potenciais dessa administração e interpretação permite que a avaliação seja feita de uma maneira que preserve a validade e a confiabilidade, tanto quanto possível. 4 AUMENTANDO A ACESSIBILIDADE À LÍNGUA NA EDUCAÇÃO Os professores têm várias opções para aumentar a acessibilidade da língua para alunos surdos na sala de aula. Essas possibilidades variam desde o ajuste das condições acústicas até a percepção aprimorada da língua falada, o fornecimento de suporte visual para a língua falada por meio do uso de pistas ou sinais e o uso de uma língua alternativa, como a língua nacional ou regional de sinais. 4.1 AUMENTANDO A ACESSIBILIDADE À LÍNGUA APRIMORANDO A ACÚSTICA DA SALA DE AULA Uma das medidas que as escolas podem tomar para otimizar o acesso auditivo à língua falada é a criação de uma acústica ideal para a sala de aula. As escolas tendem a ser ambientes barulhentos, escolas convencionais provavelmente mais do que escolas para surdos simplesmente porque há menos consciência da necessidade de atenção à qualidade do som. Ruídos de fundo e ecos criam barreiras acústicas nas salas de aula queafetam negativamente a percepção da fala e podem ser prejudiciais ao aprendizado acadêmico das crianças (DOCKRELL; SHIELD, 2006). As salas de aula para as crianças mais novas tendem a ser as mais barulhentas, muito mais barulhentas do que os ambientes domésticos (JAMIESON, 2010). Nessas circunstâncias, a relação sinal-ruído se torna muito importante, porque as interações eficazes na sala de aula na língua falada, exigem que os alunos possam ouvir as vozes (sinais) do professor e de outros alunos. Pesquisas mostram que nas salas de aula regulares, as crianças com perdas auditivas significativas apresentam pior desempenho em relação à percepção de fala em comparação aos ouvintes sob todas as condições de escuta, mas quanto pior o ambiente de audição, mais a percepção da fala sofre (JAMIESON, 2010). A acústica da sala de aula é uma preocupação crescente, à medida que mais e mais alunos surdos estão sendo educados em ambientes tradicionais, e a questão é particularmente importante para os estudantes profundamente surdos que recebem implantes cocleares em idade precoce. Acústica pobre em sala de UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 116 aula pode impedir seriamente as habilidades comunicativas de crianças surdas com implantes. Ela não apenas limita a comunicação eficaz direta, reduzindo a capacidade de ouvir a fala de professores e colegas na sala de aula, mas a má acústica também pode limitar a aprendizagem incidental de interações informais em sala de aula (JAMIESON, 2010). Melhorar a acústica da sala de aula ou criar uma ecologia sonora acústica (JAMIESON, 2010), primeiro requer a medição da acústica em salas de aula individuais. Isso, geralmente, é feito com equipamentos que modelam os alunos com dispositivos de escuta assistida, por exemplo, com uma cabeça artificial com microfones nos ouvidos. Ao mesmo tempo, as habilidades de percepção de fala de alunos surdos usando próteses auditivas ou implantes cocleares devem ser avaliadas, não apenas sob as condições de laboratório de um centro de audiologia ou clínica de otorrinolaringologia, mas também em ambientes de sala de aula real ou virtual. Este tipo de avaliação faz com que seja possível determinar a relação sinal-ruído para os alunos individuais em relação às condições acústicas específicas em suas salas de aula (NEUMAN et al., 2012). Após essas avaliações, a acústica pode ser melhorada conforme necessário, mas todas as salas de aula devem satisfazer os padrões acústicos regulares de sala de aula. A prática educativa revela que muitas salas de aula não cumprem os requisitos acústicos básicos, mesmo quando os padrões foram estabelecidos. Melhorar a relação sinal-ruído através de dispositivos técnicos de amplificação é, portanto, outra forma de melhorar a percepção da fala por alunos surdos em contextos educacionais (HARKINS; BAKKE, 2010). Sistemas de campos sonoros são, às vezes, sugeridos e podem melhorar a percepção da fala em condições de escuta ruidosa para alunos ouvintes, bem como para alunos surdos (DOCKRELL; SHIELD, 2012). Vários estudos, no entanto, demonstraram que dispositivos como desktop ou Sistemas de Frequência Modulada (FM) pessoais são mais apropriados para alunos surdos (ANDERSON et al., 2005). Muitas vezes esquecido a esse respeito, especialmente nas salas de aula regulares, é a necessidade de garantir que os aparelhos auditivos e os implantes cocleares estejam funcionando corretamente. Disfunções do dispositivo e, com muito mais frequência, baterias inoperantes precisam ser identificadas e resolvidas rapidamente. Caso contrário, os alunos surdos são excluídos da comunicação em sala de aula. As crianças surdas mais jovens nem sempre estão cientes (ou cuidam) de que seus dispositivos não estão funcionando, e os alunos mais velhos podem relutar em solicitar assistência em uma sala de aula regular. Os professores, portanto, precisam assumir alguma responsabilidade para garantir que os aparelhos auditivos e implantes dos alunos estejam funcionando adequadamente e incentivem a autodefesa e a autoconfiança dos alunos. O conhecimento técnico adequado e o apoio ao nível da sala de aula e da escola são requisitos nesta era de tecnologia e inclusão na educação. TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 117 DICAS Assista ao vídeo 3x4: Sistema de frequência modulada como auxílio a deficientes auditivos produzido pela TV USP Bauru, que apresenta o sistema de frequência modulada aplicado ao contexto escolar, o seu uso tornou-se uma política pública e auxilia alunos por todo o país. Esse projeto é resultado de pesquisas desenvolvidas por diversas instituições, incluindo a Universidade de São Paulo (USP). Disponível no link: https://www. youtube.com/watch?v=gJLLeDS3BuY. 4.2 AUMENTANDO A ACESSIBILIDADE À LÍNGUA ADICIONANDO UM CÓDIGO MANUAL À LÍNGUA FALADA Outra maneira de avançar e aumentar o acesso à língua falada para alunos surdos é apoiar visualmente a língua falada por meio de pistas ou sinais, tornando a comunicação multimodal. Cornett (1967) criou um sistema de pistas manuais, chamado de Cued Speech (muitas vezes traduzido como Fala com Indicações, Palavra Complementada ou Linguagem Falada Complementada – LFC), para melhorar a leitura orofacial por surdos. Como descrevemos no Tópico 2 da Unidade 1, a quantidade de fala visível na boca, geralmente, é insuficiente para uma percepção visual precisa da fala ou leitura orofacial. Na LFC, dicas manuais feitas em vários locais permitem uma percepção visual inequívoca da fala. Embora a LFC permita uma comunicação interpessoal eficaz, os esforços para usá-la na sala de aula tiveram apenas um sucesso limitado. Isso pode ocorrer porque a comunicação manual por meio da língua de sinais tem uma comunidade linguística para oferecer, enquanto a LFC não tem. Na verdade, Cornett pretendia que a LFC fosse usada em ambientes de sala de aula, mas esperava que os alunos surdos continuassem a usar a língua de sinais para a comunicação social. O uso da LFC em instrução de leitura é mais comum. Pesquisas têm mostrado que a esse tipo de fala pode aumentar a consciência fonológica e o reconhecimento de palavras, elementos importantes para se tornar um leitor fluente (LEYBAERT; APARICIO; ALEGRIA, 2011). Esses resultados, no entanto, limitaram-se a idiomas com uma ortografia relativamente transparente, como o português, francês e espanhol, enquanto os resultados foram, na melhor das hipóteses, equivocados para idiomas como o inglês, que têm menos ortografias regulares (SPENCER; MARSCHARK, 2010). UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 118 FIGURA 4 – DR. R. ORIN CORNETT FONTE: <https://ww1.prweb.com/prfiles/2006/07/06/408499/tN_NCSA2.jpg>. Acesso em: 14 maio 2019. Legenda: Dr. R. Orin Cornett Nascido em Driftwood, Oklahoma, em 14 de novembro de 1913, o Dr. R. Orin Cornett, inventor do Cued Speech, morreu em 17 de dezembro de 2002, em Laurel, Maryland, aos 89 anos de idade. A invenção do Cued Speech em 1966, abriu um novo campo na educação dos surdos. Seu sistema de Fala com Indicações baseava-se na hipótese de que, se todos os sons na língua falada pudessem claramente parecer diferentes uns dos outros, vindos dos lábios do falante, aqueles que fossem deficientes auditivos aprenderiam uma língua falada da mesma maneira como uma pessoa que ouve, mas visualmente ao invés de acusticamente. A utilização de sinais para apoiar a língua falada, comunicando-se simultaneamente em fala e sinal, tornou-se muito popular nos anos 1970 como parte da filosofia da comunicação total. Diferente da comunicação simultânea, que envolve falar e usar sinais na mesma ordem de palavras, a comunicação total enfatiza o uso de quaisquer métodos de comunicação para cada aluno, juntamente à amplificação e outras formas de apoio. O movimento da comunicação total, fortalecido pela consciência disseminada da língua de sinais como uma língua de fato, desde alinguística à psicologia e à educação, acabou com o tabu de um século sobre o uso de sinais na educação de surdos. Vários sistemas de sinais foram usados, variando de sistemas que estritamente tentaram representar todos os elementos lexicais e gramaticais da língua falada nas mãos, às vezes, até usando sinais lexicais inventados, a sistemas de sinais mais naturais, focando na representação manual do significado usando sinais lexicais e algumas estruturas gramaticais emprestadas das línguas de sinais naturais. Existem vários objetivos inerentes ao uso da comunicação simultânea, incluindo a comunicação interpessoal, com maior destaque quando há usuários de língua de sinais menos fluentes, melhorando o acesso à língua falada e apoiando a aquisição dela por crianças surdas jovens. O advento da educação surda bilíngue e a implementação de línguas naturais de sinais em programas educacionais, levaram a críticas da comunicação simultânea por não ser uma TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 119 língua, mas um sistema inventado que poderia comprometer a aquisição da língua e aprendizagem por crianças surdas (COKELY, 1990; JOHNSON; LIDDELL; ERTING, 1989). Embora tais críticas tenham levado a uma diminuição do uso de comunicação simultânea, ou pelo menos a reivindicações públicas nesse sentido, há poucas evidências que sugerem que a comunicação simultânea é inadequada para fins educacionais. Marschark e Hauser (2012) expressaram preocupação de que os usuários ouvintes de comunicação simultânea frequentemente são incapazes de reconhecer seus erros de sinais devido à predominância de sua língua falada. No contexto dos gestos cospeech, no Tópico 1 desta unidade, no entanto, citamos pesquisas realizadas nos Estados Unidos indicando que nas mãos de professores com boas habilidades de comunicação simultânea, tanto os alunos surdos mais jovens quanto os mais velhos (MARSCHARK et al., 2005) com e sem prótese auditiva aprendem tanto com a instrução via comunicação simultânea quanto com a língua falada e a língua de sinais produzida por um professor ou um intérprete. Há, agora, pesquisas emergentes produzindo descobertas similares da instrução de crianças surdas nas séries iniciais (HERMANS et al., 2014) e, a rejeição da comunicação simultânea parece prematura, sem uma avaliação adequada de seus resultados em relação a objetivos de uso. De fato, a comunicação simultânea parece ser cada vez mais usada na prática, mesmo em ambientes em que seu uso é negado. Knoors e Marschark (2012) sugeriram que poderia ser particularmente eficaz como um “código de apoio” para melhorar a comunicação com crianças surdas jovens que usam implantes cocleares. Quando a língua falada é perdida, as informações estariam simultaneamente disponíveis nas mãos. Esse não é o caso da interpretação da língua de sinais, em que esta é atrasada e o atendimento a ela necessitaria da falta de alguma língua falada. Em contraste com a situação na década de 1970, quando a comunicação simultânea foi fortemente criticada, muitos alunos surdos têm, agora, consideravelmente, mais acesso auditivo à língua falada, e o momento pode ser adequado para reconsideração. Em seu forte apelo por educação surda bilíngue, R. Johnson, Liddell e Erting (1989), afirmaram que a comunicação simultânea, inevitavelmente leva a uma fala e uso de sinais corrompidos, que a parte com sinais da comunicação simultânea não é compreensível para os alunos, que a língua de sinais oferece muito melhor acesso ao conteúdo do currículo e que o uso da comunicação simultânea não facilitaria a aquisição de uma língua falada, mas, ao contrário, levaria as crianças surdas a usar gramáticas idiossincráticas. Essas queixas foram teóricas, no entanto, e praticamente 30 anos depois, não estamos cientes de qualquer evidência empírica para apoiá-las. O uso da comunicação simultânea exige que o falante não apenas pense no conteúdo da mensagem e selecione palavras do léxico mental, mas, também, analise o enunciado linguisticamente para selecionar sinais apropriados para expressar os significados normalmente carregados por palavras de função e morfemas gramaticais. Alguns usuários de comunicação simultânea experientes, parecem fazer isso com precisão e eficiência, mas têm o potencial de levar à UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 120 sobrecarga cognitiva, mesmo quando os usuários são bem treinados (STRONG; CHARLSON, 1987). Como consequência, os sinais podem ser omitidos e/ou enunciados abreviados, levando a um estilo telegráfico “Eu Tarzan, você Jane” (MARMOR; PETITTO, 1979). Além disso, há o problema da sincronicidade (SWISHER, 1985). Leva mais tempo para produzir um sinal do que falar uma palavra, embora os sinais individuais possam conter mais informações do que palavras individuais através de inflexões de sinais. Sinais articulados em sincronia com palavras faladas, portanto, podem exigir que o falante fale mais lentamente, embora estudos relevantes não tenham sido realizados desde que a linguística e a psicolinguística das línguas de sinais se tornaram mais conhecidas. Em uma conversa entre indivíduos surdos e ouvintes, a diminuição na velocidade da fala na comunicação simultânea, na verdade, pode ser benéfica para o parceiro surdo, porque mais tempo é permitido para processar um enunciado. No entanto, a pesquisa mostrou que um uso mais natural dos sistemas de sinais leva a resultados muito melhores na comunicação, desde que os professores sejam adequadamente treinados (MAYER; AKAMATSU, 1999). Isto é, o uso de sinais das línguas de sinais naturais, o foco no uso preciso do conteúdo proposicional e a aplicação de regras gramaticais da língua de sinais para melhorar a sincronicidade levam a altas porcentagens de enunciados apropriadamente comunicados simultaneamente. Ao contrário das expectativas de R. Johnson, Liddell e Erting (1989), parece que a comunicação simultânea proporciona aos alunos surdos acesso ao conteúdo do currículo tão bem quanto uma língua de sinais. Marschark et al. (2008) relataram quatro experimentos de aprendizagem em sala de aula de estudantes universitários surdos, através de instrução direta (professores usando a língua de sinais por si mesmos) e instrução mediada (usando intérpretes de língua de sinais). Ambos instrutores e intérpretes foram reconhecidos como tendo excelentes habilidades. Os resultados indicaram uma aprendizagem comparável do material quando os instrutores usaram a língua de sinais e comunicação simultânea em suas palestras. Convertino et al. (2009) realizaram uma metanálise de 10 experimentos em que estudantes universitários surdos e ouvintes foram instruídos por professores utilizando intérpretes de língua de sinais. A única variável de comunicação que previa o aprendizado era a habilidade receptiva de comunicação simultânea dos alunos surdos, embora a comunicação simultânea não tenha sido usada para instrução em nenhum dos experimentos. Depois de controlar outros fatores, as habilidades receptivas e expressivas dos alunos em língua de sinais e em língua falada não tinham relação com o aprendizado, assim como o status de audição de seus pais. Pesquisas de Hermans et al. (2014) também não mostraram um efeito benéfico da língua de sinais sobre a comunicação simultânea em uma série de experimentos envolvendo alunos surdos no ensino fundamental. De fato, parece que muitos estudantes surdos hoje, tanto com implantes cocleares quanto sem implantes cocleares, sentem-se bastante à vontade usando a língua falada e a língua de sinais juntas. TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 121 Revisando a pesquisa disponível, que é bastante limitada, sobre o impacto da comunicação simultânea e outras formas de línguas codificadas manualmente no desenvolvimento da língua falada, Spencer e Marschark (2010) e Schick (2011) deixaram claro que afirmações sobre os efeitos da comunicação simultânea no desenvolvimentoda língua falada, de uma forma ou de outra, não foram validadas empiricamente. A aquisição de morfemas por jovens surdos, aprendizes de um idioma através de uma língua codificada manualmente, provou ser muito difícil, mesmo quando a contribuição é rica e consistente. Power, Hyde e Leigh (2008), no entanto, obtiveram descobertas mais positivas com alunos surdos um pouco mais velhos. Resultados positivos também foram obtidos com relação ao desenvolvimento lexical e ao desenvolvimento da ordem das palavras, mas infelizmente não de forma consistente. Consistente com a sugestão de R. Johnson, Liddell e Erting (1989), ainda não parece haver qualquer evidência de uma língua codificada manualmente resultando em proficiência em língua falada em estudantes surdos comparável ao de pares ouvintes, embora também não tenhamos conhecimento de nenhum investigador que pudesse prever esse resultado. Além disso, vários estudos apoiaram observações de que os alunos surdos tendem a usar o input de sinais da comunicação simultânea para construir enunciados que aderem muito mais aos requisitos da língua de sinais do que da língua falada, resultando em construções gramaticais semelhantes a língua de sinais (KNOORS, 1994). Os estudantes desses estudos, no entanto, quase não tinham acesso auditivo à comunicação simultânea, o que significa que o processamento da comunicação simultânea era um processo predominantemente visual. Pode ser que mais processamento auditivo, como o disponível para estudantes com implantes cocleares, leve a resultados diferentes. Claramente, mais pesquisas são necessárias para estabelecer quais aspectos, se houver, do desenvolvimento da língua falada podem lucrar com um input de comunicação simultânea e quais condições (incluindo a qualidade do input da comunicação simultânea) são necessárias para estabelecer efeitos positivos. Investigações mais básicas do processamento de sinal-fala, semelhantes aos estudos gestuais em ciência cognitiva e neurociência cognitiva que discutimos anteriormente, também são necessárias. Em resumo, a comunicação simultânea pode ser um poderoso compromisso comunicativo, dando aos alunos surdos tanto acesso ao conteúdo curricular como a língua de sinais ou a língua falada. Pelo menos, para fins de instrução, a comunicação simultânea nos parece uma opção viável para muitos alunos surdos e, talvez, especialmente para aqueles com maior acesso à parte auditiva da comunicação simultânea possibilitada pelos implantes cocleares. No entanto, a má prática leva a resultados ruins. O treinamento intensivo de professores é necessário para garantir que a instrução através do uso combinado de fala e sinal seja completa e de alta qualidade. De qualquer modo, mais pesquisas são necessárias para determinar até que ponto a comunicação simultânea pode promover o desenvolvimento da língua, para quem pode promover e em quais contextos isso ocorre com mais efetividade. UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 122 4.3 AUMENTANDO A ACESSIBILIDADE À LÍNGUA ATRAVÉS DA LÍNGUA DE SINAIS A terceira forma de aumentar a acessibilidade à língua em sala de aula é por meio de uma língua que, por definição, é acessível a alunos surdos, desde que eles não tenham uma deficiência visual: a língua de sinais. O uso da língua de sinais na educação de alunos surdos torna essa educação bilíngue, dado o fato de que essa educação aborda também o domínio do vernáculo escrito/falado. Programas bilíngues em educação de surdos têm em comum que eles incorporam duas línguas, a língua de sinais nacional e a língua falada, embora estas não precisem ser faladas. Eles também prestam atenção às culturas nas quais essas línguas são usadas, ou deveriam, e, portanto, esses programas são muitas vezes referidos como bilíngues-biculturais. Existe uma variação considerável entre os programas bilíngues, no entanto, com relação à ordem e prioridade com que as línguas são apresentadas no currículo (programação simultânea ou sequencial), as metas para as quais os idiomas são usados (linguagem instrucional ou não), o modo em que a língua falada é apresentada (oralmente ou escrita), a extensão em que o caráter bicultural é enfatizado e o ambiente no qual o programa é ministrado (educação regular ou especial). Nesse ponto, não temos conhecimento de nenhuma pesquisa que tenha examinado os efeitos da parte bicultural da educação bilíngue-bicultural sobre os resultados acadêmicos, socioemocionais ou linguísticos. Tanto o reconhecimento das línguas de sinais como ricas e bem estruturadas, como o desapontamento nos resultados da educação surda, enfatizando a língua falada, alimentaram o início da educação surda bilíngue. Mas a educação bilíngue também deve ser vista como uma resposta natural a uma situação em que muitas crianças surdas cresceram para se tornar bilíngues em língua de sinais e falada, mesmo se a educação formal fosse monolíngue, enfatizando a língua falada e escrita (KNOORS, 1994). O uso formal da língua de sinais na educação surda bilíngue parece ter começado na Escandinávia com o reconhecimento formal da Língua de Sinais Sueca e adoção de programação bilíngue para alunos surdos em 1983 (RYDBERG; GELLERSTEDT; DANERMARK, 2009). Outros países seguiram, resultando na educação bilíngue como a principal opção em escolas especiais para surdos em países como Holanda, Dinamarca e Finlândia; como uma alternativa entre as opções educacionais, como no Brasil, nos Estados Unidos e no Reino Unido; ou como projetos especiais para demonstrar sua utilidade em países específicos como Hong Kong e Áustria. Mais recentemente, na ausência de evidências de suas contribuições para os resultados acadêmicos dos alunos surdos quando outros fatores são controlados, a educação bilíngue na Escandinávia e no Reino Unido está em declínio, sendo encontrada principalmente em escolas e programas separados para alunos surdos (SWANWICK et al., 2014). TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 123 Vários objetivos para a educação bilíngue foram expressos, alguns mais amplamente apoiados do que outros. Gregory (1986) articulou quatro objetivos principais: permitir que crianças surdas se tornassem linguisticamente competentes; prover acesso a um amplo currículo; facilitar boas habilidades de alfabetização; proporcionar aos alunos surdos um senso positivo de sua própria identidade. Desses objetivos, fornecer aos alunos surdos acesso ao conteúdo do currículo é um objetivo comum de todos os programas bilíngues. Promover a competência linguística, principalmente através do fornecimento da língua de sinais como a primeira língua de crianças surdas, é, provavelmente, o segundo objetivo mais frequentemente citado. Estimular o desenvolvimento da identidade social e da autoestima é, provavelmente, o terceiro objetivo mais frequentemente declarado. Melhorar a proficiência na língua falada como segunda língua é outro objetivo defendido por alguns programas bilíngues. A extensão em que a programação bilíngue resulta em competência linguística é abordada na próxima seção. 5 PROMOÇÃO DA COMPETÊNCIA EM LÍNGUAS ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE A base teórica da educação surda bilíngue depende fortemente da hipótese de interdependência linguística de Cummins (1981), embora o conhecimento atual sobre aquisição bilíngue da língua e potenciais consequências cognitivas envolva muito mais do que o arcabouço teórico de Cummins (ver Tópico 1 desta unidade). Sua proposta de que a transferência de proficiência linguística (principalmente da variedade acadêmico-cognitiva) de uma primeira língua para uma segunda língua é possível, significa que aprender uma segunda língua é mais fácil quando o usuário da língua já conhece a primeira. Essa suposição, no entanto, negligencia condições específicas descritas por Cummins (1981) para que tal transferência ocorra. Estas condições implicam que a transferência só ocorrerá na medida em que os alunossurdos sejam proficientes na língua de sinais, tenham um input adequado da segunda língua falada e tenham motivação para aprender o idioma que é a segunda língua. Não é de surpreender, portanto, que o uso da estrutura de Cummins como base teórica para a educação de surdos bilíngues tenha sido questionado (KNOORS; MARSCHARK, 2012). Um primeiro e crucial ponto para entender a aplicabilidade da hipótese de Cummins (1981), é a questão das oportunidades dos alunos surdos se tornarem proficientes na língua de sinais como sua primeira língua. Para atingir esse objetivo, o input rico e consistente de língua de sinais deve ser fornecido dentro dos primeiros dois anos de vida (CORMIER et al., 2012). Para alunos surdos com pais surdos, essa é uma opção potencialmente viável, embora os achados de J. Anderson e Reilly (2002) e Woolfe et al., (2010) sugiram que mesmo eles possam sentir atrasos de vocabulário (de sinais) durante os anos pré-escolares. O que dizer, então, sobre os 95% de alunos surdos com pais ouvintes? Knoors (2007) apontou que, após 20 anos de educação surda bilíngue, ainda há uma escassez de UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 124 pesquisas sobre as consequências de input limitado de língua de sinais dos pais na proficiência em língua de sinais de crianças surdas. O que estudos publicados indicam (HERMANS, KNOORS; VERHOEVEN, 2009) não alimenta o otimismo, apontando para atrasos consideráveis na proficiência em língua de sinais em alunos surdos com pais ouvintes. Não está claro até que ponto a educação bilíngue para crianças surdas realmente resulta ou realisticamente pode ser construída em um ambiente linguístico eficaz. Há todos os motivos para acreditar que, em muitos países, as oportunidades para os pais e professores se tornarem proficientes em línguas de sinais estão ausentes ou simplesmente não são boas o suficiente. Mas, mesmo que consigamos intensificar o ensino da língua de sinais para ouvir pais e professores ao nível de, digamos, treinamento de intérprete de língua de sinais, não há garantia de que todos os pais e professores envolvidos tenham proficiência em língua de sinais suficiente para serem modelos bem-sucedidos da língua para alunos surdos. Dado o importante papel que a aptidão da língua desempenha na obtenção de proficiência na segunda língua, parece implausível que todos os pais e professores ouvintes possam aprender com sucesso a língua de sinais, mesmo quando a qualidade instrucional é excelente. Ter modelos de língua de sinais tão fluentes como profissionais surdos usuários desta, seria uma maneira de contornar esse problema, e, é fortemente defendido por acadêmicos surdos (HUMPHRIES et al., 2012). Nem as barreiras para executar esta proposta (por exemplo, encontrar um número suficiente de adultos surdos que são verdadeiramente fluentes em sua língua de sinais e disponíveis para tal atividade) nem suas consequências (por exemplo, intervir em famílias ouvintes e possivelmente mudar a dinâmica familiar, treinar professores surdos suficientes e criar oportunidades de trabalho para eles) deve ser subestimada, mas valeria a pena realizar estudos bem desenhados nesse sentido. Tais investigações seriam particularmente importantes para os alunos surdos, cuja única opção para obter proficiência na língua é através da introdução precoce da língua de sinais. Do outro lado do continuum, para as crianças surdas com relativamente bom acesso à língua falada e condições benéficas de apoio (por exemplo, aqueles com implantes cocleares), podemos incorporar a língua de sinais no currículo escolar como segunda língua, oferecida em algum momento posterior em suas vidas acadêmicas quando já tenham uma base mais forte em sua língua primária (KNOORS; MARSCHARK, 2012). Ao mesmo tempo, deveríamos procurar maneiras de treinar pais e educadores não usuários da língua de sinais com mais sucesso nela, talvez integrando instrução off-line e on-line na língua de sinais. Outro desafio para a educação bilíngue é oferecer aos alunos surdos a oportunidade de experimentar o input adequado de uma língua falada/escrita. Originalmente, muitos defensores da educação surda bilíngue, argumentavam que a única maneira de alcançar o sucesso era fornecer a língua falada em forma escrita. Nas palavras de R. Johnson, Liddell e Erting (1989, p. 17), “a aprendizagem de uma língua falada para uma pessoa surda é um processo de aprender uma TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 125 segunda língua através da alfabetização (leitura e escrita) [...] a fala não deve ser empregada como veículo principal para a aprendizagem de uma língua falada para crianças surdas”. Outros, como Knoors e Fortgens (1995), sugeriram uma visão alternativa, enfatizando o uso de próteses auditivas e implantes suplementados pelo treinamento auditivo para maximizar a possibilidade da língua falada se tornar o veículo de aquisição da língua falada para tantos alunos surdos em programas bilíngues quanto possível. Futuras possibilidades à parte, quase três décadas após a introdução da educação surda bilíngue, temos de concluir que, em comparação com a publicação relativamente frequente de descrições de programas, a pesquisa em resultados tem sido limitada (SPENCER; MARSCHARK, 2010). Estudos recentes que revisam o desempenho acadêmico de alunos surdos educados de modo bilíngue na Suécia apontam apenas ganhos educacionais limitados (RYDBERG; GELLERSTEDT; DANERMARK, 2009). Comparando coortes de estudantes que frequentaram a escola antes e depois do advento da educação bilíngue, por exemplo, Rydberg, Gellerstedt e Danermark (2009), descobriram que os surdos na Suécia ainda se encontravam atrasados em termos de desempenho educacional em comparação com os pares ouvintes. Aparentemente, o único estudo que relatou resultados educacionais promissores de programação bilíngue para a educação de crianças surdas é um relatório não publicado, mas publicamente disponível, de Nover et al. (2002). Ao relatar as pontuações de compreensão de leitura no Stanford Achievement Test de alunos surdos com idade entre 8 e 18 anos, mais de um terço dos quais tinham pais surdos, Nover et al. (2002) verificaram que os alunos entre as idades de 8 e 12 anos tiveram escores significativamente melhores do que as normas nacionais para o teste relatado por Traxler (2000) para crianças surdas e com deficiência auditiva. Em idades diferentes durante esses 5 anos, no entanto, essas pontuações diferiam apenas de 5 a 25 pontos (1%) das normas para alunos surdos, 95% dos quais teriam pais ouvintes. Pontuações no mesmo teste para estudantes da mesma idade e dos mesmos anos de nascimento matriculados em uma escola arbitrariamente selecionada para surdos que aderiram mais a uma filosofia de comunicação total situam-se 5 a 40 pontos acima das mesmas normas, excedendo as pontuações do programa bilíngue em todos, exceto um dos grupos etários (MARSCHARK, 2011). No que diz respeito às fluências linguísticas resultantes da programação bilíngue, um estudo espanhol de pequena escala realizado por Jiménez, Pino e Herruzo (2009), analisou o desenvolvimento da língua falada de surdos de 4 a 8 anos com implantes cocleares que frequentavam um programa apenas oral. Eles encontraram vantagens para os alunos surdos bilíngues em relação à expressão falada e de sinais (ou seja, fluência verbal). Os estudantes com formação oral obtiveram melhores resultados na recepção auditiva e sintaxe produtiva e morfologia. Não foram encontradas diferenças em relação ao vocabulário da língua falada, memória sequencial auditiva ou habilidades de comunicação social. Outros estudos mostraram que a proficiência em língua de sinais em alunos UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 126 matriculados em educação surda bilíngue está associada à proficiência em língua escrita (HOFFMEISTER et al., 1997). No entanto, a proficiência em línguaescrita em alunos surdos bilíngues parece estar relacionada ainda mais fortemente com a proficiência na língua falada (NIEDERBERGER, 2008). Pode ser que a proficiência em língua de sinais esteja correlacionada com proficiência em língua escrita por causa da transferência cultivada, isto é, professores explicitamente ligando sinais a palavras escritas. Pesquisas holandesas indicam que as línguas de sinais e escritas são associadas apenas em alunos surdos que têm cerca de 8 anos de idade ou mais, possivelmente devido à proficiência insuficiente em língua de sinais para se beneficiar com a instrução de promoção de transferência cultural (HERMANS; ORMEL; KNOORS, 2010). Alternativamente, envolver-se espontaneamente no processamento associativo e relacional através das modalidades visuais e verbais pode ser mais difícil para as crianças surdas do que para as crianças ouvintes (MARSCHARK; HAUSER, 2012). Uma aplicação direcionada de sinais em programas de treinamento destinados a melhorar o vocabulário da língua escrita e falada de crianças surdas, tem se mostrado eficaz em dois estudos (MOLLINK; HERMANS; KNOORS, 2008; WAUTERS et al., 2001), mas os fundamentos linguísticos e cognitivos de tal treinamento têm que ser explorados mais a fundo. Como observado anteriormente e contrário a muitas expectativas, a pesquisa até o momento não forneceu evidências de que a língua de sinais geralmente resulta em melhor acesso ao conteúdo curricular em comparação à comunicação simultânea ou texto (BORGNA et al., 2011). O que parece claro é que a educação bilíngue para surdos é um conceito mais complexo do que muitas pessoas esperavam e que não é fácil de implementar totalmente e com sucesso. Spencer e Marschark (2010, p. 79-80) sugeriram, portanto, que “a programação de sinais/bilíngue, em que uma língua de sinais natural serve como primeira língua e meio de comunicação em sala de aula, tem uma forte base teórica, mas até hoje falta evidência suficiente para permitir a avaliação de seus resultados no desenvolvimento da linguagem”. Mayer e Leigh (2010, p. 177) foram mais além, concluindo o seguinte: O ponto-chave a ser feito é que não há dados que sugiram que, como grupo, os alunos em programas bilíngues estão atingindo os níveis de alfabetização e linguagem adequados à idade que foram previstos quando os modelos bilíngues foram implementados pela primeira vez. Dada essa falta de evidências convincentes, pareceria instrutivo revisitar o modelo e considerar algumas das preocupações levantadas sobre sua implementação específica com os alunos surdos, como uma maneira de pensar em por que os resultados foram menos do que o esperado. Apesar da falta de fortes evidências, ainda existem muitas razões para que os alunos surdos possam ser proficientes em língua de sinais. Para alguns alunos surdos, é a única língua acessível a eles. Para outros, é uma excelente maneira de se comunicar sempre que a comunicação na língua falada não for possível, por exemplo, sob condições de escuta adversas. Para todos os alunos surdos, é o caminho para se tornar um membro da comunidade Surda e ser capaz de TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 127 lucrar com a diversidade linguística e cultural (GREGORY, 1986). Dado o enorme desafio de fornecer aos alunos surdos uma língua de sinais no início da vida e as crescentes possibilidades de adquirir a língua falada devido à intervenção precoce e implementação coclear, opções como a alternativa de língua de sinais como segundo idioma que sugerimos anteriormente deve ser explorada (KNOORS; MARSCHARK, 2012). Em conclusão, existem várias abordagens para melhorar a acessibilidade à língua para alunos surdos. Cada abordagem tem seus pontos fortes e fracos, e a adequação de qualquer alternativa em particular dependerá das situações familiares e escolares específicas, bem como das características do aluno. A maioria das abordagens para melhorar a acessibilidade da linguagem, no entanto, tem em comum que mais e melhores pesquisas de resultados são bem-vindas e necessárias. Um planejamento cuidadoso do ensino da língua por parte das escolas e dos professores também é necessário. Easterbrooks (2010) enfatizou a necessidade de se levar em conta que existem pelo menos dois subgrupos na população de alunos surdos com diferentes necessidades, aqueles que podem aprender sua primeira língua com base na audição e aqueles que precisam de informações linguísticas visuais para alcançar esse fim. Revisitar a educação surda bilíngue levou Knoors e Marschark (2012) a concluir que uma diferenciação no input da língua tem que ocorrer para os alunos surdos para que a maioria tenha oportunidades ótimas para o sucesso. Formas de diferenciação nesse input já foram introduzidas em alguns programas de educação para surdos, incluindo diferenciação em salas de aula (por exemplo, salas de aula mistas de língua de sinais e de língua falada nas séries primárias), diferenciação entre grupos de classe (por exemplo, modelos de fluxo) e diferenciação através da criação de provisões educacionais adjacentes (por exemplo, escolas de parceria). Essas iniciativas merecem apoio, desde que sejam acompanhadas de pesquisas sobre sua eficácia e efetividade. Segundo Knoors e Marschark (2012, p. 301): Aplicando uma distinção nuançada no input da linguagem, mantendo a interação entre crianças surdas e com deficiência auditiva, através de ambientes educacionais, estabelecendo um bom programa educacional em SL2 (língua de sinais como segunda língua), medindo e monitorando com precisão os resultados cognitivos e socioemocionais do treino e da educação, podemos fazer ainda melhor, adequando de maneira mais apropriada às necessidades e pontos fortes das crianças surdas. Para atingir essas metas, no entanto, precisamos de um ajuste contínuo do planejamento e das políticas de linguagem para que elas nos sirvam e não nós a elas. 6 FACILITANDO O DESENVOLVIMENTO DA LÍNGUA ATRAVÉS DA INTERAÇÃO EM SALA DE AULA A interação em sala de aula, especificamente a interação professor-aluno, pode melhorar o desenvolvimento da língua se permitir que os alunos surdos participem plenamente das trocas de comunicação em sala de aula, mas isso UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 128 requer um estilo apropriado de interação do professor. A pesquisa relativamente limitada, que está disponível nesta área, indica que estabelecer uma interação em sala de aula que realmente estimule a aprendizagem de línguas em alunos surdos é um desafio considerável para os professores (KNOORS; HERMANS, 2010). Está bem estabelecido que um estilo de comunicação sensível e responsivo facilita a aprendizagem de línguas não apenas em casa, mas também na escola. Na escola tal estilo é caracterizado pelo fato de os professores permitirem que os alunos tomem iniciativas comunicativas e, ao mesmo tempo, expandam e ampliem essas iniciativas, estabelecendo uma atenção conjunta. Usando perguntas abertas, expansões, prompts, modelagem avançada, reformulações e o uso de palavras raras e linguagem complexa, estão todos associados ao crescimento da língua em crianças (DICKINSON; TABORS, 2002). O diálogo professor-criança é um contexto essencial para o ensino e a aprendizagem, particularmente nos primeiros anos de educação. A natureza e a qualidade do estilo interacional de um professor realmente preveem o aprendizado de idiomas das crianças (SHIEL et al., 2012). Tal diálogo deve ser significativo, enfocando a construção de significados entre professores e alunos (VYGOTSKY, 1993). Se as crianças tiverem problemas para adquirir uma língua, resultando em uma fala menos precisa ou menos inteligível, os adultos tendem a assumir o controle da conversação. Essa é uma reação intuitiva e compreensível. Como consequência, no entanto, os adultos dominam as conversas, levantando muitas questões fechadas (por exemplo, sim-não) e deixando pouco espaço paraas crianças praticarem, expandirem e refinarem sua própria língua, impedindo ainda mais o aprendizado da língua. Embora seja bem conhecido que as estratégias de interação dos professores realmente ajudam as crianças na aquisição da língua, pesquisas mostraram que a aplicação desses estilos de interação, baseada em evidências em salas de aula pré-escolares com ouvintes é difícil, resultando em baixa qualidade do ensino da língua (JUSTICE et al., 2008). A oferta de ensino de idiomas de alta qualidade parece depender, em grande parte, das crenças de autoeficácia dos professores e, em menor escala, do treinamento. NOTA As crenças de autoeficácia é um conceito desenvolvido por A. Bandura (1977) que se refere a crenças que os indivíduos têm em sua própria capacidade de organizar e executar determinado curso de ação para alcançar determinado resultado. TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 129 A pesquisa sobre interação em sala de aula na educação de surdos remonta, em grande parte, as décadas de 1980 e 1990. Em uma série de estudos, David e Heather Wood e seus colegas da Universidade de Nottingham, mostraram que muitos professores em educação surda tendiam a usar um estilo de interação diretiva, corrigindo muitas vezes a língua de seus alunos. Esse estilo impediu a aquisição de proficiência linguística entre esses estudantes (WOOD et al., 1992). Ao mesmo tempo, havia alguns indícios de que o comportamento comunicativo dos professores poderia ser influenciado em direções positivas através de análises de interação de vídeo, promovendo aspectos específicos dos estilos de interação do professor. Estudos recentes de larga escala, fornecem evidências mais fortes de que a interação professor-criança eficaz, pode ser treinada, pelo menos em salas de aula com crianças ouvintes. Hamre et al. (2012), por exemplo, demonstraram isso através da realização de um curso intensivo de 14 semanas focado na prática em salas de aula pré-escolares, abordando as crenças, o conhecimento e as práticas observadas dos professores em relação à interação e à comunicação. Consistente com esses achados, Mayer, Akamatsu e Stewart (2002) concluíram que os professores exemplares de surdos são capazes de envolver a si mesmos e seus alunos em um processo de investigação dialógica. Nesse processo, o professor sabe o que um aluno entende ou não como resultado de uma análise implícita dos enunciados dos alunos. A resposta dos professores é assim adaptada às necessidades individuais comunicativas e linguísticas do aluno. Stewart (2006) formulou duas diretrizes para ajudar os professores a lidar com a diversidade linguística e as necessidades comunicativas dos alunos surdos. Primeiro, a comunicação do professor deve ser influenciada pela dinâmica de comunicação em sala de aula e pelas características de aprendizagem dos alunos surdos. Em segundo lugar, é importante reconhecer que não há apenas uma maneira de se comunicar na sala de aula. Em vez disso, os professores precisam usar diferentes meios de comunicação, dependendo da situação. A implicação é que os professores precisam ser proficientes tanto em LIBRAS quanto em português para poder codificar suavemente entre as duas línguas conforme a situação exigir. Outro desafio para a interação bem-sucedida dos professores em uma sala de aula com alunos surdos é estabelecer e manter contato visual entre os alunos e entre professor e alunos. Se o contato visual falhar, os alunos surdos perderão as informações apresentadas em língua de sinais, comunicação simultânea ou texto, bem como o que for apresentado em materiais visuais relacionados ao conteúdo. Esse é um risco sério, dado a descoberta de Matthews e Reich (1993) de restrições à comunicação em salas de aula com alunos surdos. Nas aulas em escolas para surdos, consistindo de apenas quatro a seis alunos e ministradas por professores muito experientes, usando comunicação simultânea, os alunos assistiam visualmente a apenas 44% dos sinais utilizados pelos professores. Os alunos pareciam distrair-se frequentemente uns pelos outros, por outro material, ou por informações no quadro. A perda de informação foi relativamente limitada devido à quantidade de repetições feitas pelos professores. Mas a repetição extensiva diminui a taxa de transmissão de informações, reduzindo o quanto UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 130 pode ser ensinado em uma determinada classe ou semestre. Mathews e Reich recomendaram limitar a comunicação aluno-aluno durante a instrução e não abordar apenas um aluno por vez, mas sim usar técnicas de comunicação que envolvam todos os alunos de uma só vez (MARSCHARK; LANG; ALBERTINI, 2002). Professores surdos de alunos surdos, por exemplo, parecem utilizar técnicas de comunicação visual como o olhar fixo direcionado ao grupo e apontam que ajudam a estabelecer comunicação visual efetiva em salas de aula com alunos surdos (SMITH; RAMSEY, 2004). Se essas técnicas podem ser ensinadas também para professores ouvintes de surdos, ainda precisam ser determinadas. 7 INSTRUÇÃO DIRETA DE LÍNGUA Mesmo ao educar as crianças que entram na escola com proficiência linguística apropriada à idade e que não têm problemas na aprendizagem incidental, o ensino formal ou direto de línguas é bastante comum, não apenas na educação primária, mas também na educação secundária. Como as crianças surdas muitas vezes entram na escola com atrasos consideráveis na língua falada e de sinais e experimentam sérios problemas com a aprendizagem incidental, o ensino direto da língua é, muitas vezes, ainda mais importante para elas do que para as crianças ouvintes. Surpreendentemente, poucos currículos para o ensino direto de línguas foram descritos, sem falar em métodos de linguagem e pesquisas sobre a eficácia de tais métodos raros. O pequeno público-alvo é um dos fatores que contribuem para essa situação, tornando a maioria dos editores educacionais desinteressados em desenvolver currículos e métodos linguísticos, no desenvolvimento de material de teste especializado para alunos surdos, e a prevalência de abordagens que enfatizam a aprendizagem "natural" da língua a despeito da instrução formal (por exemplo, o método materno-reflexivo). Os países diferem no que diz respeito às exigências legais relativas ao conteúdo dos currículos escolares de maneiras que afetam a possibilidade de ensino direto de línguas. Alguns países, incluindo a Noruega e a Suécia, possuem um currículo estadual, exigindo que as escolas dos alunos com e sem deficiência sigam o mesmo currículo. Outros países, como a Holanda, apenas declararam metas curriculares amplas, deixando o caminho exato para atingir essas metas para as próprias escolas. Na situação anterior, algumas vezes ocorrem modificações para tornar o currículo acessível a alunos surdos, por exemplo, oferecendo programação educacional em língua de sinais, simplificando a linguagem escrita e acrescentando imagens, ou usando várias técnicas de scaffolding no ensino real. Na última situação, currículos específicos ou métodos de ensino podem ser desenvolvidos para permitir que os alunos surdos atinjam os objetivos educacionais amplos. TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 131 Nos Estados Unidos, Blackwell et al. (1978) desenvolveram um currículo de aprendizagem de língua baseado nas teorias de aprendizagem de Bruner e Vygotsky. Um esboço de temas foi desenvolvido, incluindo procedimentos para traduzir esses temas em lições específicas. Encenando eventos; simbolizando experiências através de fotos, artes e artesanato; e transformá-los em formas de linguagem foram os pilares do programa. A adaptação às necessidades individuais dos alunos foi feita com base em uma avaliação cuidadosa do potencial de aprendizagem e proficiência linguística dos alunos. Embora o currículo tenha muitas características atraentes, uma grande desvantagem foi seu caráter relativamente aberto e desestruturado,e a pressão resultante sobre os professores para projetarem todos os temas e lições. Após a introdução da educação surda bilíngue na Holanda, as escolas para surdos começaram a colaborar, juntamente às universidades, através da criação de uma equipe de especialistas chamada Sprong Vooruit (Salto para Frente). A equipe foi criada para desenvolver currículos para línguas, leitura e cultura surda. Esses currículos, bem como métodos e lições específicas, estão disponíveis on-line para os professores (https://sprongvooruit.nl/home). Com base nos métodos regulares existentes para o ensino de línguas na educação pré-escolar e primária, foram desenvolvidos métodos para o ensino da Língua Holandesa e Língua de Sinais da Holanda na pré-escola e do 1º ao 6º ano escolar. Esses métodos são utilizados em quase todas as escolas para surdos. Infelizmente, nenhuma pesquisa de eficácia foi realizada ainda. Em vários países foram desenvolvidos programas que enfocam a educação de surdos em um dos domínios da linguagem. Um dos poucos programas que visam à percepção da fala, que foi avaliada empiricamente, foi desenvolvido por Paatsch et al. (2006). Eles desenvolveram um programa de produção de fala e treinamento de vocabulário falado. Durante 15 semanas, 21 alunos surdos com idades entre 5 e 12 anos receberam treinamento, 16 deles apresentaram perdas auditivas superiores a 90 dB; 15 dos 16 eram usuários de implante coclear. Todos os alunos foram integrados em uma escola primária regular, com uma unidade especializada para crianças surdas e com deficiência auditiva, nas quais apenas a língua oral era usada. Os resultados indicaram que os alunos melhoraram significativamente na produção de fala, vocabulário e percepção de fala como resultado do treinamento. Segundo Paatsch et al. (2006), a percepção da fala melhorou como resultado direto da melhora da fala. Um pouco mais de pesquisa está disponível com relação ao treinamento de vocabulário para crianças surdas. Luckner e Cooke (2010) resumiram a pesquisa de vocabulário com alunos surdos, incluindo 41 estudos. Apenas dez desses estudos, no entanto, examinaram o efeito de um programa ou intervenção específica. Dois programas tiveram efeitos positivos apresentados em mais de um estudo e cinco programas demonstraram resultados positivos em um estudo. Os programas que promoveram a aprendizagem de vocabulário variaram de instrução de vocabulário direto apoiada pelo uso de computadores e instrução de UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS 132 vocabulário oral/auditivo em crianças surdas com implantes cocleares até o uso de sinais em treinamento de vocabulário. Luckner e Cooke (2010) enfatizaram a perspectiva promissora da instrução de vocabulário auxiliada por computador. Os efeitos benéficos encontrados em tais estudos envolvendo alunos surdos, estão em consonância com os achados de alunos ouvintes e alunos com outras deficiências, como espectro autista ou dificuldades de aprendizagem. As vantagens do treinamento controlado por computador incluem uma redução do tempo direto do professor, a possibilidade de adaptar a instrução às necessidades individuais dos alunos, fornecimento de feedback imediato, aumento da quantidade de prática, inclusão de scaffolding e revisão sistemática, e uso de várias representações de significado como fotos, texto e som. Luckner e Cooke (2010) defenderam a exposição frequente a novos vocabulários. Todas as lições de idiomas, por exemplo, devem conter uma seção dedicada à instrução direta de vocabulário, novas palavras devem ser usadas repetidamente em múltiplos contextos e o novo vocabulário deve ser integrado não apenas no ensino de línguas, mas também na ciência e estudos sociais. Finalmente, os alunos devem explicitamente ser ensinados como atribuir significado a um novo vocabulário usando o contexto específico. Com base em uma revisão da pesquisa sobre instrução de vocabulário na primeira infância, Williams (2012) recomendou que os professores de surdos se concentrassem na qualidade da interação durante os eventos de leitura de livros de contos e durante as atividades de acompanhamento. Ela sugeriu que a instrução de vocabulário deveria ser incorporada nas atividades habituais de sala de aula na pré-escola, como culinária, artes e artesanato, e brincadeiras, ou seja, em eventos reais reconhecíveis. Os professores também foram incitados a usar ferramentas específicas para promover a aprendizagem de vocabulário, como escrever palavras em cartões, listar e categorizar palavras em gráficos. Diversas abordagens para a instrução da gramática também foram estudadas. Cannon et al. (2011) estudaram o efeito de um programa chamado Language Links: Syntax Assessment and Intervention. Este é um programa direcionado de instrução gramatical (inglesa) em software de computador. Foi usado com 26 alunos surdos em educação especial primária. Todos tinham entre 5 e 12 anos de idade e usavam a Língua de Sinais Americana (ASL) para comunicação diária. A intervenção ocorreu durante nove semanas com uma sessão de dez minutos realizada em cada dia de aula. Os participantes tiveram que ler uma sentença em inglês na tela do computador e selecionar uma imagem que correspondesse à morfossintaxe da sentença. Eles trabalharam individualmente através de todos os seis módulos e todos os seis níveis do programa. Um total de oito professores participaram do estudo. Ao final da intervenção, a compreensão dos alunos surdos da morfossintaxe inglesa na forma escrita foi aumentada significativamente. TÓPICO 2 | ENSINO E AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM 133 Berent et al. (2007) estudaram o efeito da instrução Focus-on-Form, uma abordagem usada no ensino de segunda língua. Nessa abordagem, o texto é visualmente aprimorado para tornar as relações gramaticais entre palavras explícitas e as redações escritas são codificadas para revisão. O objetivo é chamar a atenção dos alunos para formas de linguagem específicas e seus significados. Em comparação com o ensino habitual de gramática, a instrução Focus-on-Form visualmente realizada, obteve uma melhora significativamente no conhecimento gramatical inglês em estudantes universitários surdos. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Dada a complexidade dos alunos surdos como um grupo, não é de surpreender que ensinar a língua a eles também seja uma atividade complexa. Não existe uma maneira de ensinar a língua efetivamente a todos os alunos surdos, porque a variação individual das necessidades é considerável. O ensino diagnóstico de línguas é, portanto, fortemente recomendado, integrando avaliação e ensino real. Mais pesquisas para fortalecer a base de evidências das melhores práticas no ensino de idiomas para alunos surdos de várias idades são necessárias, mas parece seguro sugerir uma combinação de melhoria das condições acústicas da sala de aula para que os alunos possam se beneficiar; planejamento cuidadoso de linguagem, dirigido aos pontos fortes e fracos dos alunos; estabelecer interação em sala de aula que seja sensível e responsiva; fornecer instruções diretas direcionadas à língua usando métodos bem desenhados para os quais há algumas evidências, é a melhor maneira de obter sucesso no ensino da língua para alunos surdos. 134 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • Após o reconhecimento do status linguístico das línguas de sinais, as abordagens bilíngues à linguagem para crianças surdas enfatizaram o uso precoce da língua de sinais, com a língua falada sendo vista como uma segunda língua introduzida principalmente na forma escrita e através da instrução formal da língua. • O advento dos aparelhos auditivos digitais e do implante coclear, e a melhora da audição para muitas crianças surdas, criaram um interesse renovado em abordagens “orais” para educar crianças surdas. • A introdução e o uso de novas alternativas no continuum da fala ao sinal quase sempre foram acompanhados por debatesfilosóficos e retórica ferozes, geralmente à custa de pesquisa empírica objetiva. • Ensinar a língua aos alunos surdos é um empreendimento complexo, especialmente para um professor em sala de aula. • As diferenças individuais entre as crianças surdas são muito grandes, e o desenvolvimento da proficiência em língua é muito menos previsível do que em crianças ouvintes. • O ensino diagnóstico é uma forma de ensino em que há constante interação entre avaliação de habilidades e progresso e planejamento de programas, tanto em nível individual quanto em nível de sala de aula. • As avaliações informais da língua são muito mais orientadas para o processo do que as avaliações formais. • Se um professor quiser ter uma visão completa da competência linguística e do desempenho linguístico dos alunos na sala de aula, todos os domínios da língua de instrução devem ser avaliados. • Avaliar a proficiência em língua de sinais é mais problemático devido à relativa falta de informação sobre vários aspectos do desenvolvimento da língua de sinais, a enorme variação na proficiência em língua de sinais entre usuários nativos e não nativos, a relativa falta de instrumentos de avaliação padronizados e a disponibilidade de instrumentos de avaliação com boas características psicométricas que se mostraram válidas e confiáveis. 135 • Para ter uma visão completa da proficiência linguística de um aluno individual, a proficiência na língua materna também deve ser avaliada. • Tentar traçar o perfil do desenvolvimento da língua com base em vários tipos de avaliação dela, levando em conta seus repertórios e recursos mistos (multimodais e multilíngues), pode ser uma maneira particularmente boa de avançar. • Uma das medidas que as escolas podem tomar para otimizar o acesso auditivo à língua falada, é a criação de uma acústica ideal para a sala de aula. • A acústica da sala de aula é uma preocupação crescente, à medida que mais e mais alunos surdos estão sendo educados em ambientes tradicionais, a questão é particularmente importante para os estudantes profundamente surdos que recebem implantes cocleares em idade precoce. • Outra maneira de avançar e aumentar o acesso à língua falada para alunos surdos, é apoiar visualmente a língua falada por meio de pistas ou sinais, tornando a comunicação multimodal. • O uso da comunicação simultânea exige que o falante não apenas pense no conteúdo da mensagem e selecione palavras do léxico mental, mas também analise o enunciado linguisticamente para selecionar sinais apropriados para expressar os significados normalmente carregados por palavras de função e morfemas gramaticais. • Parece que muitos estudantes surdos, tanto com implantes cocleares quanto sem, sentem-se bastante à vontade usando a língua falada e a língua de sinais juntas. • A comunicação simultânea pode ser um poderoso compromisso comunicativo, dando aos alunos surdos tanto acesso ao conteúdo curricular como à língua de sinais ou à língua falada. • A terceira forma de aumentar a acessibilidade à língua em sala de aula é por meio de uma língua que, por definição, é acessível a alunos surdos, desde que eles não tenham uma deficiência visual: a língua de sinais. • O uso formal da língua de sinais na educação surda bilíngue parece ter começado na Escandinávia com o reconhecimento formal da Língua de Sinais Sueca e adoção de programação bilíngue para alunos surdos em 1983. • A base teórica da educação surda bilíngue depende fortemente da hipótese de interdependência linguística de Cummins. • Um desafio para a educação bilíngue é oferecer aos alunos surdos a oportunidade de experimentar o input adequado de uma língua falada/ escrita. 136 • A proficiência em língua escrita em alunos surdos bilíngues parece estar relacionada ainda mais fortemente com a proficiência na língua falada. • Pode ser que a proficiência em língua de sinais esteja correlacionada com proficiência em língua escrita por causa da transferência cultivada, isto é, professores explicitamente ligando sinais a palavras escritas. • A educação bilíngue para surdos é um conceito mais complexo do que muitas pessoas esperavam e que não é fácil de implementar totalmente e com sucesso. • A interação em sala de aula, especificamente a interação professor-aluno, pode melhorar o desenvolvimento da língua se permitir que os alunos surdos participem plenamente das trocas de comunicação em sala de aula, mas isso requer um estilo apropriado de interação do professor. • Está bem estabelecido que um estilo de comunicação sensível e responsivo facilita a aprendizagem de línguas não apenas em casa, mas também na escola. • Estudos recentes de larga escala fornecem evidências mais fortes de que a interação professor-criança eficaz pode ser treinada, pelo menos em salas de aula com crianças ouvintes. • A comunicação do professor deve ser influenciada pela dinâmica de comunicação em sala de aula e pelas características de aprendizagem dos alunos surdos. • É importante reconhecer que não há apenas uma maneira de se comunicar na sala de aula. Em vez disso, os professores precisam usar diferentes meios de comunicação, dependendo da situação. • O ensino formal ou direto de línguas é bastante comum, não apenas na educação primária, mas também na educação secundária. 137 AUTOATIVIDADE 1 O que é o Ensino Diagnóstico? 2 Ao selecionar um instrumento de avaliação da língua, existem vários tipos para escolher. Uma primeira distinção útil é entre avaliações formais e informais. O que seria uma avaliação formal? Quais seriam suas desvantagens? 3 O que é o sistema de pistas manuais chamado de Cued Speech (Palavra Complementada)? 4 A interação em sala de aula, e especificamente a interação professor-aluno, pode melhorar o desenvolvimento da língua se permitir que os alunos surdos participem plenamente das trocas de comunicação em sala de aula, mas isso requer um estilo apropriado de interação do professor. Quais interações do professor com o aluno permitem esta melhora do desenvolvimento da língua? 138 139 TÓPICO 3 PERFIS COGNITIVOS DE ALUNOS SURDOS UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Nos tópicos anteriores, descrevemos os fundamentos da aprendizagem entre os alunos surdos. Essas descrições centram-se em questões associadas à linguagem de modo geral e a língua em particular, o principal meio pelo qual a maioria de nós adquire a maior parte do nosso conhecimento. No Tópico 3 da Unidade 1, descrevemos como as interações entre as crianças surdas e seus pais estabelecem fundamentos para aprender de algumas maneiras semelhantes e, em alguns aspectos, diferentes daquelas de crianças ouvintes. Com o papel crescente da língua nas interações interpessoais e na aprendizagem em geral, pode-se esperar observar diferenças crescentes entre crianças com fluência maior e menor na língua. Essa expectativa é apoiada pela evidência disponível. Vimos no Tópico 1, desta unidade, que aos três anos, muitas crianças, se não a maioria das crianças surdas, ficam um pouco atrasadas no desenvolvimento da língua se comparadas aos seus colegas ouvintes. Embora estudos sobre desenvolvimento cognitivo em pré-escolares surdos sejam relativamente raros, é nesse ponto que também esperamos começar a ver divergências cognitivas entre aprendizes surdos e ouvintes. A extensão em que essas diferenças observadas são uma função da língua, das circunstâncias ambientais ou de outras diferenças cognitivas entre crianças surdas e ouvintes ainda é uma questão de investigação (bem como de algum debate filosófico). Embora seja conveniente dizer “isso não importa realmente; nós simplesmente temos que lidar com essas diferenças”, a vida não é tão simples assim. Os professores podem abordar algumas das diferenças observadas entre surdos e ouvintes em sala de aula. O objetivo, no entanto, deve ser o de fornecer às crianças surdas os fundamentos cognitivos de que precisam para aprender, não apenas remediações de diferençasde comportamento/conhecimento, talvez, superficiais. Neste tópico vamos nos basear em tópicos anteriores, descrevendo aspectos do funcionamento cognitivo das crianças surdas que influenciarão sua aprendizagem formal e informal. Ao longo desta discussão é essencial ter em mente que, embora as crianças surdas e ouvintes possam ser cognitivamente semelhantes em mais maneiras do que diferentes, as crianças surdas são muito mais variáveis do que seus pares ouvintes. Já vimos que, além das diferenças individuais observadas entre as crianças ouvintes, as crianças surdas também serão afetadas por fatores diretamente relacionados as suas perdas auditivas (por exemplo, etiologias dessas perdas, menor acesso a informações auditivas no ambiente) e fatores indiretamente relacionados a suas perdas auditivas (por exemplo, uma maior probabilidade de ambientes de linguagem empobrecidos, 140 UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS diferentes padrões de interação entre pais e filhos, histórias educacionais em contextos abaixo do ideal). Esta variabilidade é refletida nas pontuações nos testes de inteligência (MALLER; BRADEN, 2011), bem como nos resultados acadêmicos observados (MARSCHARK; LANG; ALBERTINI, 2002). É importante notar que, além da variabilidade “background” entre as crianças surdas, elas também têm mais probabilidade do que as crianças ouvintes de ter múltiplos desafios de aprendizagem de fonte médica. Esses geralmente são uma consequência das etiologias de sua surdez, seja sindrômica ou não sindrômica (Tópico 2 da Unidade 1). Estas crianças podem exigir acomodações de educação especial que vão além da consideração das questões cognitivas discutidas aqui e os problemas de linguagem descritos nos dois capítulos anteriores. Infelizmente, as necessidades das crianças surdas com múltiplos desafios são tão individuais e variam tão amplamente que há pouca pesquisa que nos permite tirar quaisquer conclusões gerais (KNOORS; VERVLOED, 2011). Essa situação é lamentável, porque essas crianças normalmente serão as que precisam do maior apoio. 2 INTELIGÊNCIA VERSUS COGNIÇÃO Quando os psicólogos falam sobre inteligência, eles estão se referindo ao potencial cognitivo de um indivíduo, incluindo a capacidade de adquirir conhecimento, tanto intencional quanto incidentalmente, usando esse conhecimento intencionalmente em alguns casos e automaticamente em outros. A cognição refere-se aos processos envolvidos na aquisição de conhecimento, retê- lo e recuperá-lo sob várias condições. A quantidade e a qualidade da informação que foi adquirida não é uma parte da inteligência em si, mas reflete a sua realização e desempenho. Os alunos com o mesmo potencial intelectual podem ter uma ampla gama de conhecimentos ou realizações acadêmicas, dependendo de seus ambientes e oportunidades. Os desafios acadêmicos enfrentados pelos alunos surdos não são um reflexo de qualquer inferioridade intelectual associada à perda auditiva, mas podem resultar, em parte, de diferenças cognitivas entre alunos surdos e ouvintes que exigiria ou se beneficiaria de uma acomodação especial. Nós abordaremos esses problemas mais tarde. Enquanto isso, pais e professores sempre perguntam se as crianças surdas são tão inteligentes quanto as crianças que ouvem. Essa pergunta não é tão simples quanto parece. A maioria dos testes desenvolvidos para medir a inteligência destina-se a pessoas que dependem de audição durante a maior parte da aprendizagem, assim como vimos que a maioria das avaliações da língua é desenvolvida para indivíduos que usam a língua falada. Quando avaliados com testes de inteligência que são justos para crianças surdas e ouvintes, os dois grupos geralmente têm um desempenho igualmente bom. No entanto, na medida em que pode haver diferenças verdadeiras na inteligência entre as duas populações, devemos ter cuidado para não definir "justo" como "produzindo os mesmos resultados para crianças surdas e ouvintes" (MARSCHARK, 1993). Diferenças reais em inteligência, seja quantitativa ou qualitativa, precisam ser TÓPICO 3 | PERFIS COGNITIVOS DE ALUNOS SURDOS 141 reconhecidas se quisermos acomodar as necessidades das crianças surdas e desenvolver suas forças. O reconhecimento de que crianças surdas e ouvintes podem ter o mesmo potencial intelectual, mesmo quando diferem em algumas dimensões relevantes para a aprendizagem, é um componente essencial para a educação de alunos surdos. A suposição de igual potencial intelectual para surdos e ouvintes vem da constatação de que os escores médios de inteligência não-verbal de crianças surdas não diferem significativamente dos escores de crianças ouvintes, pelo menos quando aqueles com múltiplas deficiências são excluídos (BRADEN, 1984, 1985). Esta conclusão, no entanto, não deve ser tomada para indicar que as duas populações pensam, aprendem ou se comportam da mesma forma. De fato, a substância deste tópico diz respeito às diferenças e às semelhanças na cognição, que provavelmente afetam a aprendizagem, o segundo tópico da primeira unidade e o primeiro tópico desta segunda, oferecem várias razões pelas quais as duas populações podem diferir. Além disso, a inteligência não verbal não cobre totalmente a gama de habilidades necessárias para a aprendizagem em sala de aula, muito menos, outras atividades do mundo real que afetam a aprendizagem formal. Nossa ênfase na língua aqui e nos proponentes da língua falada e da língua de sinais para crianças surdas fala da centralidade da linguagem (comportamento verbal) em todas as facetas do esforço humano. Em testes de inteligência verbal, os alunos surdos, geralmente, caem significativamente abaixo da média dos alunos ouvintes (MALLER; BRADEN, 1993). Avaliar a inteligência verbal entre os alunos surdos pode ser problemático, particularmente à luz de seus frequentes atrasos no desenvolvimento da língua. Então, por que nos incomodamos? A administração de testes de inteligência verbal a crianças surdas pode ser útil de várias maneiras. A variabilidade observada entre crianças surdas em tais testes, por exemplo, pode revelar relativa força ou fraqueza ao lidar com materiais verbais. Talvez, como resultado, os escores de inteligência verbal sejam um melhor preditor de desempenho acadêmico do que os escores não verbais, portanto, podem fornecer informações úteis para tomar decisões quanto à programação (AKAMATSU; MAYER; HARDY-BRAZ, 2008). Todavia, estas pontuações não devem ser tomadas como medidas válidas de capacidades cognitivas ou de outros alunos sem a evidência de sua validade nesse domínio. As diferenças nos ambientes e nas experiências de crianças surdas e de crianças com deficiência podem levar a diferentes abordagens de aprendizagem, pelo fato de o conhecimento ser organizado de diferentes maneiras e em diferentes níveis de habilidade em domínios explorados por qualquer teste em particular. A identificação de tais diferenças é fundamental se o apoio ideal para a aprendizagem for fornecido. Apesar das dificuldades associadas ao uso de testes de inteligência existentes com alunos surdos, esses testes continuam a servir como um elemento primário em avaliações destinadas à inclusão escolar de crianças com necessidades especiais em muitos países. Os profissionais da educação têm, portanto, que enfrentar o dilema de usar testes padronizados que podem não ter sido validados 142 UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS para alunos surdos ou selecionar testes projetados especificamente para alunos surdos, e talvez projetados no pressuposto da equivalência intelectual entre os domínios. Na maioria das vezes as avaliações de alunos surdos tipicamente utilizam testes não verbais. Como já observamos, esses testes geralmente são considerados como resultados comparáveis para pessoas surdas e ouvintes, mas os resultados têm sido bastante variáveis. Ulissi, Brice e Gibbins (1989), por exemplo, relataramque crianças surdas pontuaram na faixa normal na Escala Não Verbal da Bateria de Avaliação Kaufman para Crianças (KAUFMAN; KAUFMAN, 1983), um teste popular usado com crianças surdas. No entanto, outros estudos relataram escores mais baixos de surdos do que de ouvintes na Escala de Desempenho Internacional de Leiter Revisada (ROID; MILLER, 1997), no Teste Abrangente de Inteligência Não Verbal (HAMMILL; PEARSON; WIEDERHOLT, 1997) e no Teste de Inteligência Não Verbal Universal (MALLER; BRADEN, 2011). Infelizmente, o lócus de tal variabilidade permanece incerto. Conforme Maller e Braden (2011, p. 474): a amostra é representativa de surdos? A amostra inclui pessoas surdas que têm deficiências não identificadas? [...] os surdos examinandos entendem as instruções? Os itens têm um significado diferente para crianças surdas, devido a diferentes oportunidades de aprendizagem ou exposição diferente ao material? Alternativamente, pode haver diferenças reais na inteligência entre indivíduos surdos e ouvintes em alguns domínios, se não em geral. Por exemplo, como veremos mais adiante, neste tópico, indivíduos surdos pontuam mais do que indivíduos ouvintes em algumas tarefas visuoespaciais, consequentemente, podem pontuar mais em alguns elementos de testes de inteligência que requerem memória ou manipulação visuoespacial (BRADEN; KOSTRUBALA; REED, 1994). Eles tendem a ter um desempenho pior do que os indivíduos ouvintes em tarefas que requerem memória sequencial, desta maneira, frequentemente têm pontuação mais baixa em testes da extensão de memória (FAGAN et al., 2007). Essa discussão deve deixar claro que as suposições históricas deixadas de lado, as diferenças cognitivas entre crianças surdas e ouvintes não precisam indicar deficiências. Há evidências que sugerem que alguns subgrupos da população surda podem ter maior inteligência do que os ouvintes. Kusché, Greenberg e Garfield (1983), por exemplo, examinaram a inteligência não verbal e o aproveitamento da língua em quatro grupos de alunos surdos do ensino médio: um grupo os alunos tinham pelo menos um pai surdo e evidência de surdez hereditária, os alunos tinham pais ouvintes, mas também irmãos ou primos surdos e outras indicações de surdez genética; dois grupos com pais ouvintes e nenhuma evidência de surdez genética, cada um desses grupos foi combinado com um dos grupos com surdez genética quanto à idade, perda auditiva e escores de desempenho. Kusché, Greenberg e Garfield (1983) descobriram que os dois grupos com surdez genética tinham escores de inteligência significativamente maiores do que os grupos pareados com surdez não genérica; como apenas um dos TÓPICO 3 | PERFIS COGNITIVOS DE ALUNOS SURDOS 143 grupos geneticamente surdos teve pais ouvintes, Kusché, Greenberg e Garfield (1983) descartaram os efeitos da exposição anterior à língua como fonte dessas diferenças. Em vez disso, eles sugeriram que “é possível que a seleção natural, cultural e/ou histórica tenha resultado em inteligência não verbal superior para surdos quando etiologias genéticas estão envolvidas” (KUSCHÉ; GREENBERG; GARFIELD, 1983, p. 464). Em apoio às conclusões de Kusché, Greenberg e Garfield (1983), Maller e Braden (2011) apontaram para pesquisas inéditas indicando que crianças surdas que testaram positivo para mutações no gene Conexina-26 tiveram escores mais altos de inteligência do que crianças surdas que não tinham tais mutações. O gene Conexina-26 é reconhecido como relacionado a perdas auditivas hereditárias (ARNOS; PANDYA, 2011) e o tamanho do efeito foi consistente com as descobertas de Kusché, Greenberg e Garfield (1983). Embora esses resultados sugiram uma vantagem intelectual genética para alguns surdos, Zweibel (1987) argumentou que fatores ambientais explicam os achados relacionados. Ele administrou testes de inteligência para 243 crianças entre as idades de 6 e 14 anos, 94% apresentavam perdas auditivas congênitas. Zweibel (1987) descobriu que crianças surdas com pais ou irmãos surdos (sugerindo surdez genética) tiveram uma pontuação significativamente maior em dois testes de inteligência não verbal do que crianças surdas com pais ouvintes e irmãos ouvintes. Um subgrupo de crianças com pais surdos e irmãos surdos não diferiu de um grupo auditivo de comparação em um teste. Para Zweibel (1987), crianças surdas com pais surdos obtiveram escores mais altos de inteligência do que crianças geneticamente surdas com pais ouvintes, mas com irmãos surdos. Ele concluiu que o background genético não faz diferença na inteligência, mas que o uso da língua de sinais no lar facilita a aprendizagem, levando a ganhos subsequentes no desenvolvimento cognitivo. As conclusões de Zweibel (1987) foram consistentes com os achados anteriores de Sisco e Anderson (1980), indicando maior inteligência não verbal em crianças surdas com pais surdos em comparação com os pais ouvintes. Eles também haviam interpretado suas descobertas em termos de fatores ambientais, sugerindo que os pais surdos têm expectativas mais altas para seus filhos em relação ao potencial de sucesso educacional. Como vimos nos tópicos anteriores, no entanto, há uma série de diferenças entre crianças surdas com pais surdos e aquelas com pais ouvintes. Muitas dessas diferenças provavelmente giram em torno do acesso a modelos de línguas fluentes, mas também parece haver algumas interações da língua e a cognição que influenciarão tanto o desenvolvimento quanto a aprendizagem. Vamos, portanto, voltar-nos para as interações da cognição, da aprendizagem e da língua, com vistas a entender como podemos precisar modificar nossos métodos e materiais na sala de aula para melhor apoiar o desempenho acadêmico das crianças surdas. 144 UNIDADE 2 | LINGUAGEM, COGNIÇÃO E EMOÇÃO NOS APRENDIZES SURDOS DICAS Leia o Capítulo 9, Desenvolvimento e educação das crianças surdas, do livro Desenvolvimento psicológico e educação 3: transtornos do desenvolvimento e necessidades educativas especiais de César Coll, Álvaro Marchesi e Jesús Palacios (2007), para aprofundar a discussão sobre a inteligência, educação e as crianças surdas. 3 ATENÇÃO VISUAL E COGNIÇÃO VISUAL As pessoas, às vezes, presumem que os deficientes visuais ouvem melhor do que os que enxergam, e que, pessoas com deficiência auditiva enxergam melhor do que os ouvintes. Essa noção de compensação sensorial parece basear- se no pressuposto de que temos uma quantidade limitada de capacidade de percepção e que, se não estiver sendo usada para uma coisa, ela pode ser usada para outra. Se um sentido está parcial ou completamente ausente, existem três possibilidades: 1) os sentidos remanescentes assumem parte dessa capacidade e, assim, melhoram; 2) sem a contribuição de um dos sentidos, os outros não se desenvolvem ou funcionam tão bem quanto podiam; 3) não faz diferença para os outros sentidos. Estudos envolvendo indivíduos surdos sugeriram que talvez todas essas alternativas sejam verdadeiras em algumas áreas e até certo ponto. Não há um aumento geral da visão, percepção visual ou habilidades de processamento visuoespacial em indivíduos surdos, no entanto; na verdade, eles são mais propensos a ter problemas de visão do que indivíduos ouvintes (GUY et al., 2003). Se os alunos surdos não tiverem uma vantagem visual generalizada sobre os aprendizes ouvintes, a modalidade visual é certamente importante para eles. Dependendo da tarefa visuoespacial específica envolvida, eles demonstram ter um desempenho melhor, pior ou o mesmo que os indivíduos ouvintes. Por exemplo, adultos surdos que usam a língua de sinais apresentam desempenho relativamente melhor em relação aos indivíduos ouvintes, e surdos que usam a língua falada em suas habilidades para mudar rapidamente a atenção visual e escanear estímulos visuais (RETTENBACK; DILLER; SIRETEANU, 1999) e detectar movimento na periferia visual (CORINA; KRITCHEVSKY; BELLUGI; 1992). Dye, Hauser e Bavelier (2008) argumentam