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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE HISTÓRIA - IH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO CARLA ALBALA HABIF Judeus do Egito: Uma comparação da vida judaica no Egito antes e depois de 1948. Rio de Janeiro 2015 CARLA ALBALA HABIF Judeus do Egito: Uma comparação da vida judaica no Egito antes e depois de 1948. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em História. Linha de Pesquisa: Poder e Instituições. Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard. Rio de Janeiro 2015 CIP - Catalogação na Publicação Albala Habif, Carla A325j Judeus do Egito: uma comparação da vida judaica no Egito antes e depois de 1948 / Carla Albala Habif. -- Rio de Janeiro, 2015. 94 f. Orientador: Dilton Cândido Santos Maynard. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, 2015. 1. Judeus. 2. Egito. 3. Gamal Abdel Nasser. 4. Nacionalisno Árabe. 5. Identidade Nacional. I. Cândido Santos Maynard, Dilton , orient. II. Título. CARLA ALBALA HABIF Judeus do Egito: Uma comparação da vida judaica no Egito antes e depois de 1948. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em História. Linha de Pesquisa: Poder e Instituições. Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard. Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard (PPGHC – UFRJ) Prof. Dra. Cristina Buarque de Hollanda. (PPGHC – UFRJ) Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva. (UCAM/ECEME) Rio de Janeiro 2015 Aos queridos avós e tia Isaac, Rebeka e Esther Habif e Vittorio e Fortunata Albala. Que sua história seja lembrada por gerações e sempre com muita alegria. Agradecimentos O trabalho aqui presente não teria sido sequer iniciado sem o encorajamento e direcionamento de dois grandes Professores. Primeiramente o Professor Doutor Francisco Carlos Teixeira da Silva, que acreditou no meu projeto e me deu a oportunidade, iniciando a orientação. E o desenvolvimento e conclusão são créditos do meu caro orientador, Professor Doutor Dilton Cândido Santos Maynard, paciente, persistente e muito claro em suas orientações. Obrigada. Resultado de bastante esforço e pesquisa, esta dissertação é fruto, principalmente, de muito amor e apoio. Agradeço profundamente aos meus pais, Ester e Yasef Habif, por tudo. Além da vida e da educação, por me contarem sua história e sempre me incentivarem a ir além. Agradeço à minha querida irmã, Daniela, por seu amor, sua amizade, por estar do meu lado em toda ocasião e pensar que todas as minhas realizações são algo extraordinário. Sou muito agradecida à minha querida tia Miriam Maryse, que também foi parte dessa história, e coloca nossa educação e bem estar à frente de tudo. Eu agradeço à toda minha família por colocar nas minhas mãos sua trajetória, aos Habif, aos Albala, aos Jeusalmi e aos Cantoni. Vocês são tudo para mim. Agradeço também a Alberto Moghrabi, imigrante judeu egípcio, pelo fornecimento de documentos pessoais seus e de seus pais para o trabalho. A Aly Maher e a Ida Mortera por seus depoimentos à autora. Por último, se hoje este trabalho está concluído e impresso, agradeço profundamente e infinitamente ao meu parceiro de dez anos e meu melhor amigo, meu querido marido Daniel Kauffmann. Ele lidou com noites sem dormir, dias sem sair, leituras e releituras do trabalho e pilhas de livros e documentos em casa. Ao lado de tudo isso, ele me apoiou e me incentivou em cada segundo do caminho. Obrigada a todos. “Todo ser humano tem várias identidades. Eu sou um ser humano. Eu sou egípcio quando os egípcios estão sofrendo, eu sou negro quando os negros estão sofrendo, eu sou judeu quando os judeus estão sofrendo e eu sou palestino quando os palestinos estão sofrendo” – Shehata Haroun. Lista de abreviaturas e siglas utilizadas: EUA – Estados Unidos da América. HADETO – al-Haraka al-Dimuqratiyya lil Taharrur al-Watani. HIAS – Hebrew Immigrant Aid Society. WAFD – Hizb al-Wafd. Lista de documentos e imagens: Foto de Isaac Habif com seus pais, Ester e Joseph Habif. Izmir, Turquia, 1924 – página 33 Foto de Yasef Habif com seus colegas de classe do Liceu Francês de Heliópolis, 1953 – página 39 Certidão de casamento de Aslan Ibrahim Moghrabi e Sarah Levy, Alexandria, 1950 - Laissez-Passer de Aslan Ibrahim Moghrabi – página 42 Carta de demissão de Aslan Ibrahim Moghrabi pela Companhia Shell do Egito – página 77 Carta de recomendação explicitando a expulsão de Aslan Ibrahim Moghrabi do Egito – página 78 RESUMO: HABIF, Carla Albala. Judeus do Egito: Uma comparação da vida judaica no Egito antes e depois de 1948. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação de Mestrado, Instituto de História da UFRJ, Programa de Pós Graduação em História Comparada. Judeus viveram no Egito desde a Antiguidade e sua presença no local nunca se fez nula. Ao longo dos séculos, novas ondas de imigração dos mais diversos lugares para o território egípcio continuaram a ocorrer, tornando as comunidades judaicas ali bastante diversificadas. Ao final do século XIX e ao longo da primeira metade do século XX, podemos perceber que os judeus do Egito estavam altamente inseridos na sociedade, nos mais diversos aspectos – políticos, econômicos e culturais. Porém, a partir de 1948 o cenário passou a se alterar e começou a ocorrer uma imigração crescente de judeus do país. Entre 1956 e 1957, o número de imigrantes cresceu em milhares. Após a Crise de Suez entre Egito, França, Inglaterra e Israel, muitos judeus foram expatriados de sua nacionalidade egípcia e tiveram seus bens sequestrados pelo governo. Atualmente, de uma comunidade originalmente composta por cerca de 80 mil pessoas, restam aproximadamente uma dezena de judeus em todo o Egito. Esta pesquisa busca entender quais fatores para além da independência do Estado de Israel que impulsionaram o grande êxodo dos judeus do Egito no século XX. Em sua maioria não ligados ao movimento sionista, eles se encontraram de toda forma excluídos da proposta de identidade nacional emergente ao longo das décadas de 1930 e 1940 e consolidada durante o governo de Gamal Abdel Nasser, entre 1954 e 1970. Palavras-chave: Egito, judeus, nacionalismo, Gamal Abdel Nasser, pan-arabismo, sionismo, identidade nacional. ABSTRACT: HABIF, Carla Albala. Judeus do Egito: Uma comparação da vida judaica no Egito antes e depois de 1948. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação de Mestrado, Instituto de História da UFRJ, Programa de Pós Graduação em História Comparada. Jews have lived in Egypt since antiquity and their presence in the country was never null. Throughout the centuries, new waves of immigrationfrom the most diverse places to the Egyptian territory kept occurring, making the local Jewish communities a lot diverse. By the end of the XIX century and over the first half of the XX century, we can realize that the Jews from Egypt were highly integrated into society, in all aspects – political, economic and cultural. However, from 1948 forward the situation began to change and an increasing immigration of Jews from Egypt started to happen. From 1956 to 1957, the number of immigrants grew into thousands. After the Suez Crises between Egypt, France, England and Israel, many Jews were expatriated from their Egyptian nationality and had their assets seized by the government. Nowadays, from a community originally of 80 thousand people, there are only around a dozen Jews in all Egypt. This research intends to understand what happened besides the independence of the State of Israel that boosted the great exodus from Jews of Egypt in the XX century. In their majority disconnected from the Zionist movement, they found themselves excluded from the idea of national identity in emergence during the decades of 1930 and 1940 and consolidated throughout the government of Gamal Abdel Nasser, between 1954 and 1970. Keywords: Egypt, Jews, nationalism, Gamal Abdel Nasser, Pan-Arabism, Zionism, national identity. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11 NOS DIAS EM QUE CANTAVA LEILA MURAD – UM BREVE HISTÓRICO DA VIDA JUDAICA NO EGITO 27 DOIS FILHOS FO MESMO PAI CRUEL: JUDEUS DO EGITO SOB O GOVERNO DE GAMAL ABDEL NASSER 51 CONSIDERAÇÕES FINAIS 84 REFERÊNCIAS 91 11 Introdução Eu cresci escutando a afirmação “que sobrenome interessante você tem. É árabe?”. Sim, eu respondia que sim. E explicava que meus pais eram judeus que vieram do Egito. Dois pontos na minha resposta quase sempre despertaram uma curiosidade meio incrédula de quem me escutava. Um era que meus pais eram egípcios. “Mas eles nasceram no Egito? Lá, onde tinha os faraós?”, me perguntavam com uma interrogação ainda mais enfatizada. O segundo é o fato de existirem judeus no Egito. “Judeus no Oriente Médio?”. Sim, judeus que vieram do Oriente Médio. Que falam o árabe, que cozinham tamiya e hummus1, que têm mil e uma simpatias contra o olho grande. Desde cedo eu me interessei pela história dos meus pais. Gostava de ouvir como era lindo o Cairo, sobre a brisa quente que trazia o cheiro de jasmim para dentro das casas, as árvores que davam tâmaras à vontade, os cinemas. Sonhei inúmeras vezes com o Mediterrâneo – tão diferente do Atlântico em temperatura, formas e cores, segundo os relatos – e com as praias de Alexandria. Escutei muito cedo a voz de Umm Kulthum e Leila Murad, famosas cantoras egípcias, e aprendi expressões como “sofra daiman” – que sua mesa esteja sempre cheia – e “mashallah” – uma palavra de apreciação, satisfação e gratidão! Me maravilhei a vida inteira pela torre de Babel que era minha casa no que se deve à língua falada, onde um perguntava em português e o outro respondia em francês, com algumas palavras de ladino no meio da frase, o que gerava uma reação em italiano ou uma expressão em grego. Isso sem contar com as inúmeras palavras faladas ao vento, das quais nem se sabia a origem. Adorava escutar meu pai contar da sua infância no Liceu Francês, ou no Lycée Franco-Égyptien, com seus professores disciplinadores e seus colegas das mais variadas origens culturais e religiosas. Ele falava naturalmente de judeus, coptas, muçulmanos, católicos ortodoxos e ateus, na mesma sala de aula, na mesma escola. Suas narrativas sempre foram cheias de muito carinho e saudosismo. E então eu me perguntava: o que aconteceu? O Egito parece ser um lugar maravilhoso, porque minha família saiu de lá? Crescendo, fui entendendo as guerras no Oriente Médio e pensei que de repente esse fosse o motivo. Quando comecei a estudar 1 Tamiya é a forma como os egípcios chamam o falafel, e hummus é uma famosa pasta que se serve como acompanhamento nas refeições. Ambos são feitos com grão de bico e são muito típicos da culinária árabe no geral e da egípcia em específico. 12 História, por curiosidade, entendi que o número de judeus no Egito já foi grande e que atualmente pode-se contá-lo nos dedos das mãos. Depois, ainda, percebi que a queda da vida judaica em cidades como o Cairo e Alexandria se deu em um espaço de tempo muito curto, tendo a grande maioria deixado o país entre 1956 e 1957. O Egito sempre foi minha paixão. Mas a realidade nesta história toda foi que eu me encantei pela figura de Gamal Abdel Nasser como assunto de estudo. Os judeus que saíram do Egito e vieram ao Brasil usualmente mencionavam o nome de Nasser, e explicavam que “Nasser expulsou os judeus do Egito”. Depois de escrever uma monografia sobre a Guerra de 1967 entre Israel e Egito ao final da graduação, me chamou a atenção o poder pessoal que uma figura carismática pode exercer em um grupo social. O homem que liderou grandes mudanças no Egito, que conquistou o coração dos egípcios e lançou o país em seus maiores enfrentamentos bélicos da segunda metade do século XX. Como poderia o Egito ter mudado tanto após sua subida ao poder? Nasser acabou com o sistema multipartidário, nacionalizou diversos setores da economia, liderou o bloco terceiro-mundista dos países não alinhados na Guerra Fria e se posicionou à frente da Liga Árabe. Manteve forte postura anti-imperialista, rompendo com a Inglaterra e a França e criticando em diversas ocasiões a política norte-americana. Ainda que declaradamente não alinhado, contou com grande apoio da União Soviética. Nasser também foi líder na luta dos países árabes contra Israel, estando à frente do país na Crise de Suez e na Guerra dos Seis Dias. No entanto, o Egito foi o primeiro país árabe a assinar um acordo de paz com o Estado de Israel, uma década depois da Guerra de 1967 que custara a perda do Sinai. Da sucessão de Gamal Abdel Nasser, nasceu, então, minha curiosidade por Anwar al-Sadat e a forma tão diferenciada pela qual o novo presidente conduziu seu país. Sadat adotou uma postura econômica bem mais liberal, aproximou-se dos EUA e buscou a paz com Israel. Foi o primeiro governante árabe a visitar Jerusalém como capital israelense. A proposta inicial deste trabalho era, então, realizar uma comparação da atuação do Egito frente à guerra Árabe-Israelense, apontando e analisando a mudança de postura quase que radical de política externa, de acordo com os dois presidentes citados acima. O contexto internacional da Guerra Fria e do Oriente Médio seriam cuidadosamente estudados no caso em questão para justificar a postura do país. 13 O primeiro capítulo desta proposta inicial foi escrito. Enquanto pesquisava sobre a vida, a política e os discursos de Gamal Abdel Nasser, cada vez mais interessada em sua figura, aproveitava para sanar minha curiosidade em relação a sua postura com os judeus de acordo com cada período, com cada acontecimento marcante. Enfim, percebi que era este outro caminho que queria seguir. Minha curiosidade pelos judeus do Egito, o que mudou em relação à sua aceitação social e governamental, foi mais forte do que o estudo político das negociações internacionais. Assim, minha pesquisa mudou de focodepois de já iniciada. A presença judaica no Egito data da Antiguidade e, desde então, nunca se fez extinta. Ao longo dos séculos, grupos de judeus continuaram a imigrar para o país, aumentando o número de comunidades ali existentes. No início do século XX, eram parte integrada da sociedade, participando de diversos setores econômicos e esferas sociais. Os judeus do Egito contribuíram muito, também, para a cultura do país. Em 1948, com a criação do Estado de Israel, a situação destas comunidades judaicas começou a se alterar, apesar de a maioria destes judeus não participarem de qualquer movimento de apoio ao sionismo ou terem relação alguma com Israel. Ao longo da década de 1950, sua condição foi se deteriorando, até que em 1956, com a Crise do Canal de Suez, milhares de judeus foram forçados a deixar o país e abrir mão de suas nacionalidades egípcias. Desta forma, coloca-se na pesquisa aqui presente a questão sobre identidade nacional e religião. O questionamento que funcionou como força motriz do trabalho foi o porquê de a identidade judaica e a identidade egípcia tornarem-se mutuamente excludentes. Pensando ainda de forma mais provocadora, por que fala-se tão pouco de judeus árabes hoje em dia? A confusão entre sionismo e judaísmo não é algo novo e nem tampouco raro. Este fato pode ser compreendido, dentre tantos motivos, pela própria complexidade da definição de sionismo. Zeev Sternhell explica que o pensamento sionista acerca da ideia de nacionalismo se baseia em termos culturais, históricos, linguísticos e religiosos, e não em aspectos políticos ou judiciais2. Seria compreensível, então, que a independência de Israel como um Estado Judeu gerasse certa animosidade em relação às comunidades judaicas nos países árabes, que imediatamente se lançaram em guerra contra o novo vizinho. No entanto, 2 STERNHELL, Zeev. “The Founding Myths of Israel: Nationalism, Socialism, and the Making of the Jewish State”. Princeton: Princeton University Press, 1999. p. 55. 14 não parece cabível que simplesmente este tenha sido o motivo do fim de um grupo de quase oitenta mil pessoas – a quantidade de judeus no Egito em 1948. Além de não terem, em sua maioria, envolvimento com o movimento sionista, o cenário que se apresentava era o de uma sociedade na qual os judeus estavam perfeitamente integrados, muitos deles há séculos. Na década de 1950, a situação era outra. O sentimento anti-judaico causara comoção social, muitos egípcios já defendiam e apoiavam a saída de judeus do país, sendo ativos em denúncias contra supostos suspeitos de espionagem sionista. Algo mudou, não só no governo, como na sociedade. O trabalho aqui presente buscou encontrar esta mudança e comparar a situação social dos judeus no Egito no século XX, antes da Revolução dos Oficiais Livres de 1952 e depois da subida de Gamal Abdel Nasser ao poder até sua morte, em 1970. Encontrou-se, como foco do estudo, o nacionalismo egípcio emergente e ainda em definição nos anos que precederam o golpe militar. Antes da Primeira Guerra Mundial, o Egito estava sob dominação política do Império Turco-Otomano. Os movimentos nacionais faziam parte da história do país pelo menos desde o século XIX, com a forte figura de Mohamed Ali (1769 – 1849), por exemplo, e da Revolta de Urabi em 18793. Após a Primeira Guerra Mundial e com o esfacelamento do Império Turco-Otomano, o Egito passou a ser protetorado inglês. Ficou, oficialmente, então, sob forte influência britânica nas esferas econômica, cultural, política e social. A Grã-Bretanha já se fazia presente no país, na realidade, desde o final do século anterior, muito interessada no Canal de Suez. Insatisfeitos com a presença de estrangeiros e seu forte controle da política, o partido egípcio Hizb al-Wafd comandou mais uma revolta de cunho nacionalista em 1919, que conquistou para o Egito o fim do protetorado e uma constituição independente em 1923. De forma adversa, a influência inglesa permaneceu quase que intacta nos assuntos do país, bem como muitos ingleses e outros estrangeiros em seu território. Estando o Egito inserido em um contexto externo bastante complexo – algo que Eric Hobsbawm veio a chamar de “Era dos Extremos” – diversas ideias foram incorporadas aos ideais que fizeram parte de seus movimentos nacionais. Dois deles, por exemplo, foram 3 COOK, Steven A. The Struggle for Egypt: From Nasser to Tahrir Square. Oxford: University Press, 2012. p. 25. 15 o pensamento comunista e o islamismo moderno. Muitos judeus, que se sentiam altamente pertencentes à nação egípcia, foram fortemente ativos em partidos políticos e grupos nacionalistas. Frente à presença estrangeira e considerada imperialista, os movimentos nacionais egípcios se fundamentaram. No país, o debate acerca da natureza e do significado da nação durou da segunda metade do século XIX até o final da década de 1930 e início de 19404. A Revolução dos Oficiais Livres de 1952 foi resultado de grande insatisfação com o governo de então, considerado como colaboracionista das potências estrangeiras, e enxergava como necessidade homogeneizar os objetivos da população e a identidade nacional do cidadão egípcio. O governo de Gamal Abdel Nasser, que se iniciou em 1954, deu forte ênfase ao pan-arabismo e à consequente colaboração mútua entre os povos árabes. Nasser objetivava unir seu povo – e de fato conseguiu chegar aos corações dos egípcios e de outros árabes no Oriente Médio inteiro – tendo, assim, que definir quem eram os cidadãos pertencentes a tal povo. A definição daquilo que pertence, do que faz parte, constrói não só a si próprio mas também, simultaneamente, a imagem do outro. A identificação se baseia, muitas vezes, na clara distinção daquilo que é e daquilo que se difere. O Ocidente, por exemplo, segundo Edward Said, inventou o Oriente por diversas causas, e uma delas foi para criar sua própria identidade, sua própria narrativa histórica e imaginário social. O autor escreve que: Devemos levar a sério a grande observação de Vico de que os homens fazem a sua história, de que só podem conhecer o que eles mesmos fizeram, e estendê-la à geografia: como entidades geográficas e culturais – para não falar de entidades históricas -, tais lugares, regiões, setores geográficos, como o “Oriente” e o “Ocidente”, são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra5. 4 MOADDEL, Mansoor. “Islamic Modernism, Nationalism, and Fundamentalism: Episode and Discourse”. Chicago: University of Chicago Press, 2005. p. 122. 5 SAID, Edward. “Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente”. São Paulo: Companhia de Bolso, 2003, p. 31. 16 Fredrik Barth também contribui para esta linha de pensamento, deixando clara a necessidade da exclusão no processo da definição das fronteiras de identidade: As fronteiras às quais devemos consagrar nossa atenção são, é claro, as fronteiras sociais, se bem que elas possam ter contrapartidas territoriais. Se um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios para tornar manifestas a pertença e a exclusão”6. O caminho escolhido por Nasser para estabelecer a identidade nacional excluiu os judeus do direito ao pertencimento à nação egípcia. Na luta contra o imperialismo, identificou-se o inimigo da nação no estrangeiro não muçulmano. Tendo seu exército e seus discursosà frente do conflito Árabe-Israelense, para o novo presidente egípcio os judeus foram considerados suspeitos de possível espionagem sionista. Dentre os anos de 1948 e 1956, metade dos judeus que vivia no Egito já tinha deixado o país e, em sua considerável maioria, impulsionados por receios políticos. Entre 1956 e 1957, após a Crise de Suez, cerca de 25 mil judeus foram forçados a imigrar7. Aqueles que tinham nacionalidade egípcia foram obrigados a abrir mão dela e a todos foi imposta uma delimitação de bens que poderiam ser levados. A expulsão dos judeus do Egito foi em conformidade com as políticas de nacionalização do governo Nasser e da rejeição da presença estrangeira. A questão levantada nesta pesquisa é a seguinte: por que foram os judeus considerados estrangeiros? Se foi mencionado que a definição de sionismo é bastante complexa, a de judaísmo é ainda mais extensa. O judaísmo pode ser considerado como uma religião, cultura, tradição, inclusive povo, outro ponto que implica uma complexidade imensa. No entanto, é certo que o judaísmo não é uma forma de nacionalismo nem movimento político, diferente do sionismo e suas muitas correntes ideológicas. Como mencionado, a pesquisa a seguir parte de uma breve análise do histórico da vida judaica no Egito desde a Antiguidade até as primeiras décadas do século XX e, através do método comparativo, busca entender como e o por que se alterou sua situação de maneira tão abrupta ao longo das décadas de 1950 e 1960, especificamente durante o 6 BARTH, Fredrik. “Grupos Étnicos e suas Fronteiras”. IN: Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998. p. 195. 7 FISCHBACH, Michael R. “Records of Dispossession: Palestinian Refugee Property and the Arab-Israeli Conflict. Nova Iorque: Columbia University Press, 2003. p. 58. 17 governo de Nasser. Percebe-se que uma rica vida cultural, social e econômica foi perdida e que, atualmente, sequer é lembrada ou conhecida na história do país. Aly Maher foi colega de meu pai e quando ficou sabendo de meu trabalho quis mandar um depoimento. Egípcio, de família muçulmana, ele intitulou seu breve texto de “Reminiscências de um Mundo Perdido”. Maher tem 76 anos, vive em Alexandria e atualmente trabalha para a Biblioteca da cidade. Ele atuou na política por muitos anos, sendo embaixador do Egito na França. Essas são suas palavras: Como um jovem menino, eu não percebia o que era um Judeu, um Cristão ou um Muçulmano. Nós vivíamos uma vida feliz, pacífica e sem complicações... A questão da religião nunca surgiu... Todos nós vivíamos no mesmo bairro, frequentávamos o mesmo clube de esportes, nos encontrávamos nos mesmos cinemas, e celebrávamos juntos os aniversários. Estes eram tempos felizes! Então, um novo ano escolar começou e um número de meus amigos não reapareceu... Eu finalmente descobri que eles tinham deixado o Egito... E foi então que eu fiquei sabendo que eles eram Judeus, que havia um problema chamado Israel e que o ataque Franco-Britânico-Israelense de 1956 tinha acabado com o mundo como eu o conhecia até então. Elie, Joseph, Mario, Jacques, David, Maurice, Roger... etc... tinham ido para outro mundo... Eu fiquei triste e intrigado, imaginando se um dia eu os veria novamente...”8 1.1 – Objetivos. Em consonância com a complexa problematização histórica acima descrita, este trabalho visa realizar uma comparação da presença judaica no Egito do final do século XIX até 1948 e após este ano até o final do governo de Gamal Abdel Nasser, que se estendeu de 1954 a 1970. Buscar-se-á compreender quais aspectos da mentalidade nacional e da sociedade egípcia se alteraram e permitiram a exclusão de uma comunidade histórica composta por 80 mil pessoas, até então bem inseridas. Outros objetivos, de cunho mais específico, são almejados ao longo da dissertação. São eles a realização de uma análise da presença judaica no Egito, da Antiguidade até a primeira metade do século XX; a contextualização do pensamento nacional egípcio do final do século XIX e primeira metade do século XX, compreendendo a presença internacional que se iniciou com o Império Turco-Otomano e teve continuidade com a dominação da 8 Carta encaminhada diretamente à autora em 19 de Janeiro de 2015, traduzida do inglês pela autora. 18 Grã-Bretanha; a compreensão da forma que o pensamento nacional egípcio evoluiu ao longo da década de 1930 e 1940, abrangendo com mais intensidade aspectos como religião e pan-arabismo e a percepção – através do estudo de casos particulares e de dados mais abrangentes – da relação entre os judeus do Egito com o nacionalismo egípcio e seu sentimento de exclusão ao serem expulsos ou compelidos a sair do país de nascença. 1.2 – Revisão bibliográfica. Para estudar o tema a respeito dos judeus no Egito e sua saída, torna-se necessário compreender o contexto mais geral, abrangendo a situação político social do país, sua atuação regional no Oriente Médio e a influência externa, principalmente realizada pelas potências ocidentais neocolonialistas. No que se deve à relação Oriente – Ocidente, ao final dos anos 1970 e início da década de 1980 começou a se difundir uma história mais crítica e revisionista a respeito do Oriente Médio e sua relação com os países ocidentais. Uma das obras mais famosas e de importância teórica a respeito é “Orientalismo – O Oriente como uma invenção do Ocidente”, de Edward Said. Através dela, o autor busca demonstrar uma relação de dominação entre o Leste e o Oeste, que criou um imaginário oriental e interferiu constantemente nas relações sociais, econômicas e estruturais do Oriente. O Orientalismo de Said busca demonstrar como o Oriente foi construído pelo Ocidente e como contraste para defini-lo. O autor escreve: Tomando o final do século XVIII como ponto de partida aproximado, o Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição autorizada a lidar com o Oriente – fazendo e corroborando afirmações a seu respeito, descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente9. Sobre o desenvolvimento político e econômico do país em si e de produção norte- americana, é essencial a obra de Steven A. Cook intitulada “The Struggle for Egypt – From Nasser to Tahrir Square”10. O livro de Cook foi escrito recentemente e por um autor que já viveu no Egito muitos anos, falando a língua local. O objetivo deste trabalho foi relacionar 9 SAID, Edward. “Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente”. São Paulo: Companhia de Bolso, 2003, p. 29. 10 COOK, Steven A. The Struggle for Egypt: From Nasser to Tahrir Square. Oxford: University Press, 2012. 19 as manifestações na praça Tahrir, ocorridas em Janeiro de 2011, com as raízes históricas da Revolução de 1952. Cook se atém mais aos acontecimentos internos do Egito em seu recorte temporal do que ao contexto externo. O conflito árabe-israelense e as relações com Israel como um todo são pontos importante para seu livro, não ocupando um lugar central. Cook se propõe, ainda, a realizar possíveis previsões do futuro político a se desenrolar no Egito nestes anos que sucedem à denominada Primavera Árabe. No Brasil, o Oriente Médio é um tema que está ganhando mais interesse e atenção. Apesar do grande número de obras atualmente desenvolvido a respeito da região para um público mais abrangente, o número de pesquisas bem desenvolvidas na academia por autores brasileiros sobre o assunto ainda está em fase de incrementação, fator que torna este trabalho essencial na compreensão do tema. Das pesquisas existentes, pode-se destacar a obra do historiador Márcio Scalercio:“Oriente Médio: Uma análise reveladora sobre dois povos condenados a conviver”11. No livro, Scalercio traça um histórico a partir do início do conflito entre Israel e os países árabes, fornecendo capítulos e espaços de análise amplos para a questão do Egito, bem como do confronto Israel/Palestina, diferenciando estas questões e fornecendo uma importante contextualização histórica, crítica e factual. Uma grande parte da produção brasileira de qualidade acadêmica está voltada para o assunto Israel-Palestina, como é o caso do artigo “Palestina, 1948-2008. 60 Anos de Desenraizamento e Desapropriação”12, de Arlene Clemesha, pela USP. Neste trabalho, a autora analisa a questão dos refugiados palestinos de acordo com as revelações documentais mais recentes no ano de escrita, embasadas em história oral e na abertura de arquivos israelenses. A dificuldade sobre o tema tratado na pesquisa aqui presente está na pouca produção existente nas universidades brasileiras sobre o Egito em particular, fator que confere singular importância a esta dissertação. Ainda no que já foi escrito, não é fácil encontrar obras que tratem do pluralismo social no país antes da Revolução de 1952 ou do desenvolvimento do nacionalismo egípcio contemporâneo, assunto altamente significante na compreensão dos atuais acontecimentos, como as manifestações de Janeiro de 2011, as eleições democráticas que elegeram o candidato à frente da Irmandade Muçulmana em 11 SCALERCIO, Márcio. “Oriente Médio: Uma análise reveladora sobre dois povos condenados a conviver”. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2003. 12 CLEMESHA, Arlene. “Palestina, 1948-2008. 60 Anos de Desenraizamento e Desapropriação”. São Paulo: Tiraz (USP), v. 5, p. 167-189, 2008. 20 2012 e sua posterior retirada do poder por golpe militar em 2013. Fatores como a distância territorial, a instabilidade governamental e o autoritarismo que gera dificuldades na pesquisa em documentação e a falta de conhecimento do árabe e do francês dificultam a pesquisa diretamente brasileira sobre o assunto. Ainda mais especificamente, sobre o tema da vida dos judeus no Egito e sua saída, muito pouco foi produzido. A realidade é que se tratando de um país que permaneceu quase seis décadas sob governo militar, o acesso a uma série de documentos e a possibilidade de se realizar pesquisas de campo foi muito limitada. Alguns autores trabalharam a partir de seus países e da França, particularmente, para estudar a imigração destes judeus, porém não foi dado muito enfoque em sua vida no Egito antes da década de 1950, nem aos aspectos político sociais que teriam alterado tanto sua relação com o restante da população árabe local. Dos trabalhos produzidos e de imensa importância, cabe ressaltar a pesquisa realizada pela jornalista e Doutora em Comunicação e Cultura, Joëlle Rouchou, “Noites de Verão com Cheiro de Jasmim – memórias de judeus do Egito no Rio de Janeiro”13. Através de entrevistas gravadas sob estudo metodológico, Rouchou se propôs a compreender a saída de famílias judias do Egito e sua imigração ao Rio de Janeiro a partir da memória dos entrevistados, como sugere o título de sua tese. Trabalhando a fundo com a história oral, a autora traz em sua obra a questão do trauma da expulsão e da memória afetiva dos imigrantes que vieram para o Rio de Janeiro, na qual muitos relatam o saudosismo das noites de verão com cheiro de jasmim. Antes da tese de Rouchou, foram desenvolvidas outras pesquisas que tratam da imigração. Dentre elas, pode-se apontar “A comunidade sefaradita egípcia de São Paulo”14 de Ruth Leftel e “Imigrantes Judeus do Oriente Médio – São Paulo e Rio de Janeiro”15, de Rachel Mizrahi. 1.3 – Quadro teórico-metodológico. O tema aqui proposto levanta a reflexão sobre a formulação da identidade nacional, em seus princípios inclusivos e exclusivos. Muitas questões no trabalho giram em torno 13 ROUCHOU, Joelle. “Noites de Verão com Cheiro de Jasmin”. Rio de Janeiro: FGV, 2008 14 LEFTEL, Ruth, “A comunidade sefaradita egípcia de São Paulo”, Tese de Doutorado, História/USP, 1997 15 MIZRAHI, Rachel. “Imigrantes Judeus do Oriente Médio – São Paulo e Rio de Janeiro”. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. 21 deste tema, tais quais o nacionalismo egípcio, quem se torna o estrangeiro, pan-arabismo, Nasserismo e sionismo. Neste âmbito, três obras são de auxílio teórico para a compreensão da proposta. São elas: “Nações e Nacionalismos desde 1780”16, de Eric Hobsbawn, “Comunidades Imaginadas”17, de Benedict Anderson e “Grupos Étnicos e suas Fronteiras”, de Fredrik Barth18. A obra de Hobsbawm – ele mesmo um judeu egípcio - trata o assunto de forma ampla e o autor revela, logo no início, que não possui uma definição exata do que significa nacionalismo. Após discutir uma série de teorias já formuladas antes da sua, Hobsbawm aponta considerar como nação, a princípio, qualquer grupo de pessoas suficientemente grande que se entendam como membros de uma. Da mesma forma, ainda seguindo a linha de pensamento deste autor, entende-se o nacionalismo como um princípio que compreende a necessidade de que a unidade política e nacional deve ser congruente. A nação, por sua vez, não é analisada como uma entidade social primária ou imutável. Ela pertence a um período histórico bastante recente e particular, transformando-se em entidade social na medida que está, de alguma maneira, conectada com um estado territorial – o Estado-nação. Hobsbawm aponta, ainda, para a questão do artefato, da formulação e da invenção social em que consiste a nação. Neste ponto, a linha de pensamento de Anderson também é adotada, na medida em que o autor relata as muitas formas de propagação do sentimento nacional dentro da sociedade que virá a constituir tal nação. O próprio título de sua obra já abriga boa parte de sua teoria: comunidades imaginadas. Segundo Anderson, a comunidade a ser entendida como nacional é imaginada porque mesmo em uma pequena nação, jamais um cidadão conhecerá ou ouvirá falar da maioria de seus companheiros. Prosseguindo, o autor afirma que as nações são também limitadas, já que de alguma forma, mesmo a maior delas, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas. E, em último lugar, as nações seriam de natureza soberana. Este ponto é particularmente importante, já que Anderson está tratando de uma ideologia surgida na época em que o Iluminismo e a Revolução deslegitimaram a ideia de reino dinástico hierárquico de ordem divina. Um 16 HOBSBAWN, Eric J. “Nações e Nacionalismos desde 1780”. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1991. 17 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 18 BARTH, Fredrik. “Grupos Étnicos e suas Fronteiras”. São Paulo: Unesp, 1998. 22 período em que as ideias de pluralismo e liberdade se difundiram dentre as sociedades, o Estado-nação passou a representar a resposta para tais necessidades. Deve-se compreender que o Egito aqui tratado, e o Oriente Médio quase no geral, havia passado recentemente por um longo período de dominação europeia. Anteriormente, até meados do século XIX, o país foi por muitos séculos parte do Império Turco-Otomano, onde a principal forma de divisão das terras e das comunidades era o sistema de millet. Este sistema permitia que as minorias pudessem se organizar por sua própria conta, com pouca intervenção do poder central. As pessoas se sujeitavam aos seu millet de acordo com a sua religião, tendo um líder para reportar-se ao Império. Os millets possuíam, logo, muita autonomia, exigindo lealdade ao poder otomano e o pagamento de impostos. É essencial a percepção, portanto, de que a noção de nação e Estado-nação eram recentes naquela regiãodo globo, importadas quase que forçosamente pela Europa. Durante e após os anos das descolonizações, como ocorreu com o Egito verdadeiramente em 1952, coube à população local e aos grupos políticos que a compunham, pensar e definir o que seriam enquanto nação, do que constituiria seu nacionalismo e de que forma ele poderia ser difundido dentre as pessoas compondo tal grupo político e social. Neste ponto a teoria de Fredrik Barth torna-se de fundamental utilidade, já que trata sobre o estabelecimento de fronteiras culturais na formação de grupos étnicos. O autor é contra a teoria de que estes agrupamentos se constituem simplesmente a partir do isolamento geográfico e cultural. Do contrário, Barth afirma que o que define um grupo – o que mantém a força de sua identidade – são as fronteiras estabelecidas por seus próprios atores. Tal fundamento acarreta, consequentemente, em um processo de exclusão e inclusão. Uma vez achados os pontos de definição do que deve ser compreendido como a identidade de um grupo étnico ou cultural, a manutenção de suas relações sociais estáveis, persistentes e de importância social vital são mantidas exatamente por estas fronteiras daquilo que pertence e daquilo que não pertence. Ou seja, para Barth, o entendimento do outro, daquele que não pertence, é essencial no processo de estabelecimento de uma forte identidade. Dentro da História Comparada, optou-se por seguir a linha de Marc Bloch, que apontou sua preferência por “estudar paralelamente sociedades vizinhas e contemporâneas, constantemente influenciadas umas pelas outras, sujeitas em seu desenvolvimento, devido a 23 sua proximidade e sua sincronização, à ação das mesmas grandes causas, e remontando, ao menos parcialmente, a uma origem comum”19. Tendo em vista que o objeto de estudo é, na realidade, uma mesma sociedade em tempos muito próximos, a proposta de Bloch não poderia ser mais bem apropriada. Logo, pretende-se partir de pontos comuns para a comparação e em vista deles encontrar as semelhanças e as diferenças. Podemos apontar aqui, como exemplo, a independência do Estado de Israel em 1948. Anteriormente, havia animosidade por parte da sociedade egípcia em relação ao movimento sionista, mas este sentimento se alterou uma vez que a fundação do Estado judeu tornou-se fato concretizado, o que envolveu, ainda, uma grande guerra com o Egito. Da mesma forma, busca-se compreender um contexto específico a partir da análise do período que o precedeu. Como exemplo, pode-se destacar o estudo sobre a política externa do rei Farouk (1920 – 1965), que atuou de forma mais colaboracionista com os ingleses, seguida do golpe militar em 1952 e da política revolucionária, porém cautelosa, de Muhammad Naguib (1901 – 1984) e, depois dele e buscando apoio interno, a presidência de Gamal Abdel Nasser, que se voltou para o pan-arabismo e a luta acirrada contra o imperialismo representado na presença estrangeira ocidental. 1.4 – Sobre a documentação da pesquisa. O trabalho se iniciou como uma pesquisa teórica a respeito do nacionalismo egípcio. A ideia, como já mencionado anteriormente, não saiu do nada. Ela é produto da história dos meus pais, que escuto desde que me entendo por gente. Durante a escrita, me encontrei diversas vezes pegando o telefone e perguntando para eles ou para minha tia paterna Miriam Maryse sobre este ou aquele acontecimento sobre o qual eu acabara de escrever ou pretendia iniciar a pesquisa. O depoimento deles, a história que vinha repleta de emoções e memórias, tornava o assunto de estudo mais real e interessante. Desta forma, decidi utilizar como fio condutor do trabalho depoimentos de judeus que viveram no Egito. Alguns deles foram forçados a sair, alguns não. Em sua maioria, os depoimentos utilizados foram de pessoas que imigraram do país, mesmo que não compelidos por ordem governamental, mas movidos por receios políticos e sociais. Outros, ainda, permaneceram no país de nascença. Foram entrevistadas por mim as seguintes 19 BLOCH, Marc. Para uma História Comparada das Sociedades Européias. In: História e Historiadores. Textos reunidos por Etienne Bloch. Lisboa: Teorema, 1998. p.19 24 pessoas: Yasef Habif, 76 anos, nascido no Cairo em 1938; Ester Michelina Albala Habif, 59 anos, nascida em Alexandria em 1955; Ida Mortera, nascida no Cairo em 1949. De grande auxílio em matéria de depoimentos foi o documentário intitulado “Sobre os Judeus do Egito” (“Jews of Egypt”, em inglês. Em árabe, “An Yahud Masr”). Pensado e dirigido pelo egípcio Amir Ramses, o filme foi lançado em 2012 e traz entrevistas de judeus egípcios que foram expulsos, imigraram por medo ou ainda permaneceram no Egito. Além dos judeus entrevistados – que vivem no Cairo ou na França, o documentário conta com a colaboração de especialistas no assunto, como sociólogos e historiadores egípcios, que explicam a história e o contexto dos assuntos tratados. “An Yahud Masr” é falado em árabe e francês e não foi trazido ao Brasil ou legendado em português, por enquanto. O direito de assistir e utilizar o conteúdo do filme foi concedido pessoalmente por Amir Ramses à autora deste trabalho. A pesquisa conta, também, com a documentação de imigrantes que vieram ao Brasil, como certidões de nascimento, fotos e lasseiz passer20. Alguns destes documentos foram concedidos pessoalmente por imigrantes egípcios ou seus descendentes. Quando retirados de outras pesquisas, sua fonte encontra-se devidamente citada. Foi de grande auxílio, ainda, uma série de reportagens publicadas em inglês no jornal Al-Ahram. Fundado em 1875, a publicação é provavelmente o jornal com maior alcance de leitores no Egito e o segundo mais antigo do país. Há muitos anos, o Al-Ahram disponibiliza uma série de seus artigos na internet e em inglês. Muitos de seus artigos auxiliam no acompanhamento da vida atual dos judeus que ainda vivem no Egito e suas instituições. 1.5 – Justificativa. A história dos judeus do Egito é vasta e muito rica. Apesar disso, ainda é muito pouco estudada. A falta de pesquisa na área se deve a alguns fatores, dentre eles a impossibilidade de se conseguir documentação para pesquisa nos anos seguintes à grande imigração de 1956 – 1957. O Egito permaneceu sob governo autoritário de Gamal Abdel Nasser, que impôs a restrição da produção acadêmica, do acesso a material governamental 20 O laissez-passer é um documento de viagem expedido por um Estado, que substitui o passaporte, tendo o viajante sido impossibilitado de adquiri-lo por alguma situação. Aos judeus que saíram do Egito com sua nacionalidade caçada, o governo lhes forneceu este documento, contendo a permissão de realizar apenas um trecho, sem retorno. 25 e da liberdade de expressão e comunicação. Nasser foi sucedido por Anwar al-Sadat e Hosni Mubarak, que abdicou em Janeiro de 2011, somando quase seis décadas de ditadura militar. A realidade é que o autoritarismo e a falta de liberdade de pesquisa e expressão prosseguiram sob o governo provisório e a breve presidência do primeiro governante eleito à frente da Irmandade Muçulmana, Mohamed Morsi (1951). Atualmente, após a derrubada de Morsi pelo exército, o Egito se encontra novamente regido por uma ditadura militar, sob a presidência de Abdel Fatah al-Sisi (1954). A pesquisa aqui apresentada, contribui para a compreensão da formação da mentalidade nacional na sociedade egípcia, o que auxilia no entendimento de sua dinâmica atual e inclusive em compreensões da realidade do país, tais como a maioria dos votos em uma primeira eleição democrática para a presidência terem se dirigido para o candidato da Irmandade Muçulmana. Não lembrar da história judaica no Egito é deixar passar um período anterior ao golpe dos OficiaisLivres de 1952, de grande tolerância entre os cidadãos e de um país no qual as minorias religiosas, culturais e nacionais eram bem integradas à sociedade. Nomes judeus estiveram presentes na cultura, na música, no cinema, na medicina, na política e na economia egípcia. O estudo deste tempo e destas interações faz parte intrínseca da história do país como um todo. O Brasil, dentre tantos outros países, foi um dos locais que recebeu grande levas de judeus provindos dos países árabes nas décadas de 1940, 1950 e 1960. A partir de 1952, aproximadamente 1500 famílias judias imigraram do Egito para o Brasil21. A Sociedade de Ajuda ao Imigrante Judeu (Hebrew Immigrant Aid Society – HIAS), considerava o país ideal como destino para os imigrantes, já que possuía território vasto e necessidade de mão de obra, um clima que não é abruptamente diferente, e uma sociedade amplamente diversificada em origens, cores e culturas. Ou seja, compreender a saída dos judeus do Egito – bem como suas motivações e as influências que trouxeram para o Brasil – faz parte da história deste país também. Boa parte da influência cultural árabe em território brasileiro deu-se, também, pela imigração judaica e não somente cristã ou muçulmana. Palavras, comidas, rituais e costumes foram trazidos por estes imigrantes e sua atuação na sociedade brasileira, que encontraram espaço de atuação na sociedade. 21 MIZRAHI, Rachel. “Imigrantes Judeus do Oriente Médio – São Paulo e Rio de Janeiro”. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. p. 189. 26 A história da saída dos judeus do Egito tem cerca de 60 anos, dependendo do ponto de partida. Uma pessoa que deixou o país na adolescência e consegue lembrar de sua vida lá, seus relacionamentos, suas atividades e o motivo da imigração, atualmente está na casa dos setenta anos para cima. Os pais destes indivíduos, no caso, em sua maioria já faleceram, não podendo deixar seu depoimento para tão importante assunto. É de fundamental atenção que se desenvolva um estudo apropriado sobre o tema agora, em nosso presente, quando podemos escutar esta história diretamente das pessoas que a viveram. No mais, é preciso ressaltar este ponto da História Judaica. Por muito tempo e em muitos locais de estudos, sejam universidades ou escolas, de caráter judaico ou não, a História Judaica foi delimitada pela compreensão da vida e saída dos judeus na Europa. Estuda-se e fala-se muito sobre a Inquisição, sobre os guetos da modernidade, o Iluminismo Judaico, o iídiche, os pogroms na Rússia e o Holocausto na Alemanha. Nenhum destes pontos deve ser desmerecido. No entanto, é muito relevante a noção de que a história dos judeus é muito mais ampla e envolve muitas outras culturas, tais como a árabe e uma vida de milhares de anos no Oriente Médio. 27 1. Nos Dias em que Cantava Leila Murad - Um breve histórico da vida judaica no Egito. “É difícil para um árabe educado ser antissemita. Sempre existiram fortes laços entre o povo Árabe e o Judeu; Moisés mesmo era egípcio”. – Gamal Abdel Nasser. 22 Este capítulo tem como objetivo demonstrar a presença judaica no Egito, iniciando seu relato na Antiguidade. Além de esclarecer que os judeus sempre foram altamente atuantes na sociedade, na economia e na cultura do país, o capítulo pretende levantar o questionamento a respeito do que aconteceu para que tanta prosperidade acabasse por completo. Qual aspecto das reformas políticas e das mudanças conjunturais da metade do século XX permitiram que um grupo de milhares chegasse a um número quase nulo? No capítulo seguinte, este questionamento será explorado através da análise da Revolução de 1952, o novo nacionalismo egípcio emergente na época e o que sucedeu aos judeus que ali viviam e foram forçados a sair. 1.1 – A presença judaica no Egito pré-Gamal Abdel Nasser. Na primeira metade do século XX, o Egito era um polo cultural e artístico muito conhecido e almejado. O cinema egípcio, então, passou por sua época de ouro, colocando sob o holofote talentosos artistas, roteiristas e diretores. Um deles foi Leila Mourad (1918 – 1995), cujo nome evoca a figura da mulher fatal23. Simpatizantes do cinema da década de 1940 provavelmente se recordam da atriz e cantora de olhos e cabelos castanhos que fascinou o Egito em seus mais de vinte filmes. Atuando em obras como “Viva o Amor!” e “O flerte das Meninas”, Mourad encantou o coração dos egípcios desde seus 15 anos e até chegou a ser escolhida como cantora oficial da Revolução Egípcia de 1952. Assim como Leila, também teve grande destaque nesta época um grande renome da direção do cinema egípcio, Togo Mizrahi (1901 – 1986). Atuando como um dos pais do cinema egípcio na década de 1930, Mizrahi contribuiu para a indústria cinematográfica do país como um todo. Produziu obras vencedoras de bilheteria e ficou conhecido por suas 22 “Sunday Times Reporter Interview with President Gamal Abdel Nasser”. Em: <http://nasser.bibalex.org/Common/pictures01-%20sira3_en.htm>. Último acesso em 29/01/2015 22 FISCHBACH, Michael R. “Records of Dispossession: Palestinian Refugee Property and the Arab-Israeli Conflict. Nova Iorque: Columbia University Press, 2003. p. 58. 23 MERINISSI, Fatima. “Nasci num Harém. As Mil Noites de Xerazade”. Córdoba: Edições ASA II, 2001. p. 30. http://nasser.bibalex.org/Common/pictures01-%20sira3_en.htm 28 inovações tecnológicas, como a fotomontagem. Ganhou grande respeito por parte de seus colegas e descobriu importantes talentos, como a própria Leila Mourad24. O cinema é mera ilustração para demonstrar a participação ativa e altamente importante dos judeus no Egito ao longo da primeira metade do século XX. Eric Hobsbawm (1917 – 2012), um dos mais aclamados historiadores da atualidade, também era judeu de origem egípcia, nascido em Alexandria. A presença judaica no Egito consta desde a Antiguidade e permaneceu crescente até a década de 1940, na qual houve a partilha da Palestina. Este acontecimento, seguido da Crise de Suez, em 1956, gerou uma diminuição constante de judeus em terras egípcias. Atualmente seu número é quase nulo, tendo sido reportado em 2013 como onze pessoas25. Segundo o depoimento de Mohamed Abdul-Ghar, médico e ativista político que publicou o livro “Judeus do Egito – Prosperidade para a Diáspora” (disponível somente em árabe), até o ano de 1947 os judeus estavam em todas as classes sociais do Egito. Uma parte deles, descendentes dos judeus caraítas – uma ramificação minoritária do judaísmo que se distinguiu no passado por não aceitar a Torah Oral -, presentes no país de longa data, deu origem a grandes influências da cultura egípcia do século XX, como à própria Leila Mourad. Os judeus caraítas foram diminuindo seu tamanho ao longo do tempo, e estavam tão integrados na sociedade egípcia que ninguém poderia distingui-los de qualquer outro egípcio por aspecto algum, fosse tradicional, linguístico, familiar ou pelo tipo físico. Também havia no Egito do século XX os judeus que fizeram parte da classe média. Dentre eles estavam aqueles que viviam no Egito há muitos séculos, provindos do próprio Oriente Médio ou da Península Ibérica. Com o passar dos anos, muitos destes judeus fundaram negócios bem sucedidos, ligados à importância que suas comunidades davam para a educação, fossem de pessoas ricas ou pobres. Ainda na classe média estavam os ashkenazitas, provenientes principalmente da Europa Oriental e foragidos do antissemitismo que ascendeu no final do século XIX. A maioria com formação acadêmica, rapidamente aprenderam o árabe e ocuparam cargos como professores e médicos, passando a fazer importante parte da sociedade egípcia. Ainda segundo Abdul-Ghar, havia uma pequena aristocracia ricade judeus, composta principalmente por sefaraditas originários de 24 STARR, Deborah. “Remembering Cosmopolitan Egypt: Literature, Culture, and Empire”. Nova Iorque: Routledge, 2009. p. 110. 25 “Egypt's Jewish community buries deputy leader”. Em <http://www.aljazeera.com/indepth/features/2014/03/egypt-jewish-community-buries-deputy-leader- 201431295947206212.html>. Último acesso em 02/02/14. http://www.aljazeera.com/indepth/features/2014/03/egypt-jewish-community-buries-deputy-leader-201431295947206212.html http://www.aljazeera.com/indepth/features/2014/03/egypt-jewish-community-buries-deputy-leader-201431295947206212.html 29 Espanha e Portugal que imigraram para o Egito ao longo de todo o governo Turco- Otomano, como Jacob Kattawi Pasha, que viveu na época de Mohammed Ali e atuou como uma espécie de ministro das finanças26. A grande variedade de origens, costumes, culturas e tradições dos grupos judaicos que vieram a se fixar no Egito impediu que houvesse algo como uma única comunidade judaica unificada lá. Quando utilizamos o termo “judeus do Egito”, devemos compreender uma gama cultural, econômica e social muito vasta, divergindo também em sua atuação política. Os primeiros relatos de vida judaica no Egito referem-se aos tempos bíblicos, com a história de José, filho de Jacob: “E José tinha 30 anos de idade ao estar diante do Faraó, o rei do Egito; e José saiu de diante do Faraó e passou por toda a terra do Egito... E José morreu, assim como todos os seus irmãos e toda aquela geração. E os filhos de Israel frutificaram, aumentaram, multiplicara-se e fizeram-se fortes, muitíssimo, e a terra encheu- se deles”27. Mesmo sem considerar este período, de qualquer forma a presença judaica no Egito continua remontado à Antiguidade, quando uma comunidade de judeus se estabeleceu na Ilha de Elefantina, no século VI a.C., ainda antes do conhecido Primeiro Exílio na Babilônia28. A imigração judaica para a região – conhecida como Egito desde sempre – prosseguiu com o passar dos séculos, tendo havido um aumento das comunidades judaicas, especialmente em Alexandria, durante a dominação grega. Lá, o rei Ptolomeu I libertou os judeus da escravidão e lhes forneceu liberdade de culto. Estes judeus optaram por manter sua fé monoteísta, mas adotaram de bom grado a cultura helenista. É deste contexto que saiu Philo de Alexandria (25 a.C – 50 d.C), também conhecido como Philo Judaeus, um filósofo judeu helenista. Philo ficou conhecido por utilizar a alegoria filosófica para harmonizar o estudo da filosofia grega com a filosofia judaica. Philo atuou na embaixada para Roma no ano 40 a.C., representando os judeus de Alexandria, um dos muitos fatores que demonstram a continuidade da comunidade judaica no Egito durante o Império Romano29. 26 JEWS of Egypt. Direção: Amir Ramses. Session Film Production, 2012. 1 DVD (95 minutos). 27 FRIDLIN, Jairo e GORODOVITS, David. “Bíblia Hebraica – Edição Educativa”. São Paulo: Sefer, 2006. p. 49 e 61. 28 BERKEY, Jonathan Porter. “The Formation of Islam – Religion and Society in the Near East, 600 – 1800”. Cambridge: University Press, 2003. p. 11. 29 NIEHOFF, Maren. “Philo on Jewish Identity and Culture”. Berlin: Mohr Siebeck, 2001. p. 111. 30 Anos à frente, nos tempos de Saladino (1138 – 1193), destacou-se no Egito o famoso Moshé ben Maimon (1135 – 1204), ou Maimônides. Um dos maiores nomes da filosofia judaica, Maimônides escreveu importantes obras, como o “Mishnê Torah”30 e o “Guia dos Perplexos”31. Nascido em Córdoba, Maimônides passou um período de sua vida em Fez, de onde imigrou para Fostat, no Egito. Lá, passou a exercer a medicina para sustentar sua família. Em pouco tempo tornou-se referência para a comunidade judaica e não judaica, agregando também os cargos de juiz e administrador. Em 1117, tornou-se médico real e conselheiro do vizir al-Fadil. Além das obras de teor filosófico e religioso, Maimônides escreveu dez obras de medicina em árabe. Os treze princípios fundamentais do judaísmo32 também foram de sua autoria. A história da participação judaica em assuntos diretos egípcios se intensificou com o tempo, como podemos aprender da história de Abraham Castro, que atuou como chefe da casa da moeda egípcia no início do governo otomano. Castro também foi o presidente da comunidade judaica do Egito ao longo da transição da política dos Mamelucos para os Otomanos. Apesar da enormidade de sua responsabilidade para com a economia, alguns autores chegam a afirmar que Abraham Castro não foi o primeiro a lidar com tal tipo de posição social e econômica. Para estes estudiosos, os judeus foram corriqueiros funcionários oficiais do governo egípcio33. Com a passagem dos séculos, as imigrações de judeus para o Egito prosseguiram e nem tudo foi florido. Vivendo sob a condição de dhimmis em governos islâmicos, por vezes os judeus – assim como os cristãos - sofreram preconceitos e atos violentos. Dhimmi, ou “protegido” é uma proteção aos “povos do livro”, judeus e cristãos, que reconhecem o mesmo deus dos muçulmanos e, por isso, podem praticar sua religião em governos islâmicos. Os dhimmis, no entanto, são cidadãos de segunda classe, sob a obrigação de pagamento de um imposto especial e uma série de restrições sociais34. Esta condição foi tomada pelas sociedades de forma muito diferente ao longo dos séculos, divergindo entre as 30 Compilação de todas as leis judaicas, presentes na Torah Escrita e na Torah Oral. Foi escrita em 14 livros subdivididos em seções, capítulos e parágrafos. É considerada a obra magna de Maimônides. 31 Obra filosófica que discute, principalmente três assuntos: os atributos divinos, a astronomia e a criação do universo e o misticismo. 32 Princípios de fé básicos que uma pessoa que segue a fé judaica deve acreditar. 33 ARBEL, Benjamin. “Trading Nations: Jews and Venetians in the Early Modern Eastern Mediterranean”. Leiden: Die Deutsche Bibliothek, 1995. p. 30. 34 MEYHI, Murilo. “As Origens do Califado e o Império Árabe-Islâmico: um Harém de Soberanos”. IN: Impérios na História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 74. 31 localidades e os tempos históricos. No geral, até o século XX não houve grandes casos de restrições ou discriminações aos judeus do Egito. Como já mencionado, foi um grupo que seguiu crescendo ao longo dos séculos e desenvolvendo suas comunidades e instituições. Uma exceção a este entendimento geral foi o que ficou conhecido como o Caso Damasco, em 1840. A Síria estava, então, sob as ordens de Mohammad Ali (1805 – 1848), governador do Egito. Alguns judeus foram acusados de libelo de sangue, algo não raro na história judaica. Oito judeus de Damasco foram apontados por assassinar um monge cristão em ritual religioso. Uma vez presos, foram torturados, alguns mortos e um deles, inclusive, forçado a se converter ao islamismo. Além da prisão sem julgamento, muitos cidadãos sírios atacaram uma sinagoga no subúrbio de Jobar, destruindo-a, realizando pilhagem e queimando os rolos da Torah. O caso deu início a uma série de ataques a povoados judaicos em território Turco-Otomano, como no Cairo, em 1844. Para tentar amenizar a situação, Moises Montefiore (1784 – 1885) foi ao encontro de Mohammad Ali em Alexandria. Judeu italiano naturalizado britânico, Montefiore ficou conhecido por suas obras de filantropia e por seu empreendedorismo, especialmente no mundo judaico. Suas boas relações com o governador do Egito proporcionou uma nova era de prosperidade e imigrações de judeus para lá. Além de estabelecer o primeiro censo dos judeus que viviam em Alexandria, tendo ideia do tamanho e da estrutura da comunidade judaica, o relacionamento de Montefiore com Mohammad Ali permitiua instauração das Alliance Israelite Universelle. Fundada como uma organização para colaboração judaica internacional, frente a uma série de dificuldades sociais enfrentadas por judeus em diferentes localidades – tais como o Caso Damasco – a Aliança também difundiu escolas com padrão de educação europeu. O Egito, por já ser foco de interesse do governo francês na segunda metade do século XIX, foi importante ponto de investimento, e a prosperidade atraiu mais judeus, principalmente para as cidades do Cairo e de Alexandria. Este grupo de imigrantes foi formado, em grande parte, por judeus ashkenazitas. No mesmo período, a construção do Canal de Suez, em 1869, proporcionou ao Egito grande crescimento econômico. O Canal pertencia, a princípio, ao Egito e à França. A dívida externa contraída pelo Egito tornou-se muito pesada, o que resultou na venda de sua parte para os britânicos, em 1875. Em 1882, o Reino Unido instaurou tropas em Suez para a proteção do Canal, após a Revolta de Urabi. 32 A Revolta de Urabi marcou uma das primeiras atuações das forças armadas em manifesto ao governo na história do Egito, quando soldados liderados pelo coronel Ahmed al Urabi se rebelaram contra a monarquia. O ato foi resultado de desgosto no tocante à enorme dívida externa contraída, especialmente em relação à França e à Inglaterra. Com grande ajuda das tropas inglesas, o movimento foi reprimido e a presença europeia aumentou significativamente no país, não somente através das armas e da economia, mas em diversos campos sociais e culturais. O Egito, uma vez mais na História, passou a se tornar um centro regional econômico muito importante, concentrando e difundido cultura para outras localidades da África e da Ásia. Uma cultura, essa, que cada vez mais tornava-se anglo-afrancesada. Mais do que nunca, milhares de imigrantes se assentaram no Egito, de todas as partes. Em 1897, havia lá 25.200 judeus, concentrados principalmente em Alexandria e no Cairo. Também nas regiões de Port-Said, Mansura e Tanta viviam centenas de judeus. Dentre eles, 12.507 possuíam cidadania estrangeira35. Ironicamente, foi exatamente o Canal de Suez que se tornou o grande problema da vida dos judeus no Egito em 1956. Em 1948, os judeus do Egito somavam um total de 75 a 80 mil pessoas. Atualmente, há cerca de dez egípcios de origem judaica no país. 35 LEFTEL, Ruth, “A comunidade sefaradita egípcia de São Paulo”, Tese de Doutorado, História/USP, 1997, e MIZRAHI, Rachel, “Imigração e Identidade: As Primeiras Comunidades Judaicas do Oriente Médio em São Paulo e no Rio de Janeiro”, Tese de Doutorado, História/USP, 2000. 33 Isaac Habif com seus pais, Ester e Joseph Habif, logo antes de imigrar para o Egito. Izmir, Turquia, 1922. 34 1.2. – Judeus no Egito: Século XX. 1.2.1 – O Egito. O contexto egípcio da primeira metade do século XX foi muito complexo. Embora exista uma nostalgia dentre a população egípcia em relação ao período pré-revolucionário36 da década de 1950, especialmente em meio às pessoas que compunham as classes médias e altas, o fato é que o país estava sob ocupação estrangeira desde o final do século XIX. O antagonismo entre modernidade e ocupação, entre ser cosmopolita e colonizado, de certa forma gerou uma receita bastante única para o Egito. Embora o país só tenha se tornado protetorado inglês de fato em 1914, após o início da Primeira Guerra Mundial, desde a década de 1880 a Inglaterra estava presente no Egito. O sucesso de toda sua intervenção deu-se, em grande parte, porque Londres encontrou bastante apoio dentre setores de classe alta e de políticos egípcios para levar a cabo seus projetos. Além da situação econômica desastrosa, o próprio Quediva Tewfiq (1852 – 1892) viu-se pressionado a colaborar com os ingleses como meio de manter seu trono frente à pressão otomana após a Revolta de Urabi. Fazendo isso, no entanto, despertou o que seria uma longa história de antipatia entre a população e a monarquia. Assim como em diversas partes do mundo, especialmente na tão presente Europa, ideias nacionalistas ganhavam cada vez mais espaço em meio à sociedade egípcia do final do século XIX e início do século XX. A própria Revolta de Urabi foi uma manifestação da força que o tema ganhava nos corações e mentes dos egípcios, que passavam a desejar o que Gamal Abdel Nasser (1918 – 1970) veio a chamar de um “Egito livre e forte”37. Conforme mais e mais estrangeiros se estabeleciam no país, mais o Egito tornava-se um polo econômico e cultural para a África e a Ásia. E mais ideias nacionais ali aportavam. Foi Nasser também que disse, em sua obra intitulada “O Povo no Poder”, que “no entanto, a campanha francesa levou, naquele tempo, um novo suprimento de energia revolucionária ao povo egípcio. Levou a percepção da ciência moderna, que a Europa desenvolvera de experiências transmitidas por outras civilizações – entre elas, primeiramente, a civilização faraônica árabe. Além disso, levou professores notáveis que estudaram os assuntos do Egito e revelaram os segredos de sua antiguidade”38. 36 BRADLEY, John R. “Inside Egypt – The Land of the Pharaos on the Brink os a Revolution”. Nova Iorque: Palgrave, 2008. p. 21. 37 NASSER, Gamal Abdel. “A Revolução no Mundo Árabe”. São Paulo: Arte Limitada, 1963. p. 80. 38 Ibidem. p. 144. 35 A nostalgia que muitos depoentes que viviam no Cairo e Alexandria ao longo período aqui tratado se reporta a um país marcado pelo avanço da tecnologia e das artes, de convivência quase utópica entre diferentes povos. Podemos encontrar tais relatos em obras como “Noites de Verão com Cheiro de Jasmim”39, de Joëlle Rouchou, “Homem do Terno de Panamá Branco”40, no documentário “Jews of Egypt”41 de Amir Ramses, dentre muitos outros. Em 2002, foi publicado no Egito um romance intitulado “O Edifício Yacoubian”. Ele se passa no centro do Cairo e demonstra a dinâmica social, um tanto quanto pobre, complicada e pessimista, após a Revolução de 1952. Seu autor, Alla-al-Aswany, egípcio de origem islâmica, afirmou em um depoimento – “Eu fui criado aqui no centro do Cairo. Eu acredito que não é tanto uma parte da cidade, como uma era que existiu por mais de cento e cinquenta anos antes da Revolução, quando o Egito era tolerante... O colonialismo é sempre ruim. Quaisquer consequências positivas que traz não são criadas para o benefício do povo local. Mas é um fato que antes da Revolução nós tínhamos nossa interpretação tolerante da religião no Egito, e é por isso que éramos tão cosmopolitas – tínhamos pessoas de todos os cantos do mundo”42. Este Egito, mencionado por tantos que lá viveram, idílico e avançado, ao mesmo tempo colonizado e explorado, existiu em uma época bastante turbulenta internacionalmente. Logo veio a Primeira Guerra Mundial, a queda do Império Turco- Otomano, a criação da Liga das Nações, a Crise da Bolsa de 1929, a ascensão do fascismo na Europa. A época que o famoso historiador, também de origem egípcia, Eric Hobsbawm chamou de “Era dos Extremos”, não poderia prevenir mudanças nem no Egito nem em nenhum grande centro econômico do mundo. Os cidadãos do país, em grande parte aqueles não beneficiados pela presença estrangeira, passaram cada vez mais a querer e agir para obter um Egito para os egípcios. A questão era perguntar-se quem eram, então, os egípcios. Como diferenciar, entre segundas e terceiras gerações de famílias que se estabeleceram ali, quem possuía a identidade egípcia? Estaria ela ligada a alguma religião? A algum tipo de documento específico ou período mínimo de permanência da família no local? Segundo o mesmo Hobsbawm citado acima:39 ROUCHOU, Joelle. “Noites de Verão com Cheiro de Jasmin”. Rio de Janeiro: FGV, 2008. 40 LAGNADO, Lucette. “O Homem do Terno de Panamá Branco”. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. 41 JEWS of Egypt. Direção: Amir Ramses. Session Film Production, 2012. 1 DVD (95 minutos). 42 BRADLEY, John R. “Inside Egypt”. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2008. p. (Tradução livre da autora). 36 “insistir na consciência ou na escolha como critério de existência das nações é subordinar sem discernimento os muitos modos pelos quais os seres humanos se definem e se redefinem como membros de grupos a uma opção única: a escolha de pertencer a uma “nação” ou a uma “nacionalidade”43. A vida dos judeus no Egito da primeira metade do século XX demonstra que em grande parte, eles eram bastante egípcios. Assim como citei Leila Mourad e Togo Mizrahi, muitos outros participaram do cinema, da música, do rádio e da literatura do Egito. Muitos estiveram, inclusive, altamente ligados à atuação política naquele momento, fosse em partidos comunistas ou capitalistas, em apoio ou contra a monarquia. O ser judeu era parte de sua identidade, somada a muitas outras, como o ser egípcio que, de acordo com diversos depoimentos, era o centro de sua identificação. 1.2.2 – A vida judaica no Egito. No início do século XX, viviam cerca de 25 mil judeus no Egito, a maioria no Cairo e em Alexandria. Eles faziam parte de alguns grupos diferentes, dentre eles os caraítas, sefaraditas e ashkenazitas. Estavam divididos, também, em diferentes áreas econômicas e sociais. Não havia barreiras geográficas, embora alguns judeus vivessem em bairros estritamente judaicos por escolha, como era o caso do “Haret al Yahoud”, no Cairo. Mas a maioria estava entre o restante da população, sem que houvesse, no geral, qualquer distinção entre as famílias por questão religiosa ou de nacionalidade. A quantidade de judeus que não possuía nacionalidade egípcia se devia, em grande parte, ao sistema de capitulação, criado ainda sob autoridade turco-otomana. De acordo com este regimento, uma pessoa nascida no Egito recebia a nacionalidade dos pais. Foi o caso do meu próprio pai, Joseph Habif, que era turco, embora nunca tenha colocado um pé na Turquia. Quando tinha 18 anos, meu pai recebeu uma carta sendo convocado para o exército, mesmo sem conhecer ou falar a língua de lá. Ele não se apresentou e, depois de um tempo, quando já estava no Brasil, teve sua nacionalidade caçada, a tempo de se naturalizar brasileiro. Assim, também, aconteceu com a minha mãe, que chegou ao Brasil com nacionalidade italiana, embora tenha nascido em Alexandria. O “ser estrangeiro”, logo, podia facilmente estar conectado com uma certidão de nascimento que, ainda que não fosse egípcia, era escrita em árabe. Assim também se fazia 43 HOBSBAWM, Eric. “Nações e Nacionalismos desde 1780”. São Paulo: Paz e Terra, 1990. p. 17. 37 importante a língua falada por muitos egípcios, não somente judeus. Sendo protetorado inglês sob influências econômicas e culturais francesas, era absolutamente comum que se estudasse em escolas estrangeiras e que a educação fosse primeiramente em inglês ou francês, tendo árabe como segunda língua. Desta forma, dependendo do meio que a pessoa frequentava – seus amigos de colégio, sua família e seus vizinhos – o árabe ficava restrito ao uso corriqueiro de rua, como para ir em lojas ou mercados. Segundo Victor Sanua, judeu egípcio crescido no Cairo e pesquisador da St. John University, a maioria dos judeus estudava principalmente em escolas francesas – como o Liceu Francês (Lycée Francais), de pedagogia secular, e o Colégio dos Padres (College Des Freres), de ordem católica. Ele próprio estudou no Colégio dos Padres, no qual afirma que quase metade dos estudantes eram judeus, mas também bastante frequentado por muçulmanos devido à qualidade da educação. Havia uma forte presença judaica também no Liceu Inglês e em escolas judaicas comunitárias, mas somente crianças de famílias menos abastadas eram matriculadas nelas. Também nas escolas judaicas o francês era priorizado, tendo o Hebraico como língua secundária. Exemplos destas escolas eram as da Aliança Israelita Universal e a Escola Talmud Torah. Para os judeus que estudavam em escolas laicas ou católicas, havia a possibilidade de atender cursos de Torah e Hebraico à tarde na Talmud Torah, algo que não era tão comum. Sanua afirma, ainda, que não havia no Cairo academias de estudo Talmúdico, conhecidas como Yeshivá, e caso se quisesse uma educação religiosa mais profunda a opção era a Ilha de Rhodes, que fazia parte da Itália até a Segunda Guerra44. No filme “Judeus do Egito”, Albert Arri – que ainda vive no Egito – declara: “Eu fui criado em uma escola ‘Lycée’ que era um bom modelo de educação secular, ninguém perguntava sua religião. Eu tinha amigos de classe que eu nunca soube se eram cristãos ou judeus, até mesmo na inscrição da escola não era permitido escrever sua religião”45. Robert Grunspan, que teve que imigrar do país embora fosse egípcio de nacionalidade, assim como seu pai e avô, declara que “Eu nasci egípcio e falava francês assim como minha família até o Ensino Médio. Eu estava no ‘Lycée’ e meu pai me disse que já que nós iríamos ficar no Egito e que este era nosso país, eu tinha que ir pra uma escola de árabe. Todos os meus amigos eram egípcios e eu comecei a falar em árabe, eles 44 SANUA, Victor. “The vanished world of Egyptian Jewry”. IN: Judaism, a quarterly journal, n° 170, vol 43, NY, 1994, pp 213 a 219. 45 JEWS of Egypt. Direção: Amir Ramses. Session Film Production, 2012. 1 DVD (95 minutos). 38 não falavam inicialmente em casa, mas depois nós aprendemos. Eu estava vivendo lá, entre amigos egípcios. Eu me tornei comunista como um egípcio buscando fazer a diferença”46. Meu pai, que teve seu nome alterado ao tirar o passaporte na embaixada da Turquia, tornando-se Yasef Habif, estudou no Liceu Francês de Heliópolis. Ele me conta que uma das coisas mais difíceis ao sair do Egito escondido, antes da Crise de Suez, foi deixar seus amigos de escola para trás. Eles eram judeus, muçulmanos, coptas, cristãos ortodoxos e até mesmo ateus. Não ligavam muito pra isso. Todos tinham o francês como primeira língua, mas falavam o árabe na rua. Meu pai nunca soube falar hebraico direito, somente as rezas do sidur (livro de rezas), sem entender o que estava lendo. Com as mudanças que vieram a acontecer no Egito, os colegas se espalharam por diversos países, dentre Brasil, Estados Unidos, Canadá, Bélgica, França, Israel e outros. Com o advento da internet, conseguiram se reencontrar nos últimos dez anos, após mais de 60 anos sem contato. Agora, uma vez por ano eles se reúnem na Europa. A religião de cada um ainda não faz diferença para eles. No século XX, chegaram a existir 15 sinagogas em Alexandria e 30 no Cairo, além de muitas outras em cidades menores47. A mais grandiosa sinagoga de Alexandria – talvez a maior do Oriente Médio – tem o nome de Eliahu Hanavi e foi construída em seu formato atual em meados do século XIX, tendo sido destruída duas vezes em sua história. A segunda delas, durante a expedição de Napoleão Bonaparte no Egito. Sua reconstrução foi feita por um arquiteto italiano e financiada pela comunidade judaica local, bem como por Moisés Montefiore. Nos tempos antigos, a Sinagoga Eliahu Hanavi serviu de centro para a próspera comunidade judaica que havia em Alexandria, tendo sido palco da famosa Septuaginta (ou Versão dos Setenta), a tradução do texto bíblico por setenta sábios judeus antes do nascimento de Cristo. Também o filósofo Philo, que viveu em Alexandria, teve grande participação na sinagoga. Em 2012, pela primeira vez, a Sinagoga Eliahu Hanavi foi fechada para os serviços
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