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1 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Curso de Pós-Graduação em História Produção e uso dos espaços centrais à beira-rio em Porto Alegre (1809-1860) Luiz Felipe Alencastre Escosteguy Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História do Brasil, sob orientação da Prof.ª Dra. Núncia Santoro de Constantino. Porto Alegre 1993 2 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Agradecimentos Este trabalho, realizado com suporte financeiro da CAPES, não teria sido possível sem um somatório de disponibilidades, esforços e afetos. É com prazer que expresso o meu reconhecimento. A Núncia Santoro de Constantino, que se desdobrou em orientação precisa e em amizade que enriquece. A Arno Alvarez Kern, a quem devo minha iniciação científica e muito do entusiasmo com a descoberta de novos velhos mundos. A Maria Lúcia Bastos Kern, pelo estímulo, apoio e exigência de rigor, todos igualmente necessários. A Carla Helena Carvalho Pereira e Rosana dos Santos Sanches que, muito mais que secretárias da Pós, foram companheiras de curso e de trabalho. A Miguel Antônio de Oliveira Duarte, Diretor do AHRGS e Secretário do IHGRGS, que tudo fez para facilitar a pesquisa. A Berenice Ana Toson e, em nome dela, à equipe, sempre disponível, do AHPA. Aos funcionários todos do AHRGS, onde me senti em casa. A Gilberto Flores Cabral e Günter Weimer, da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, pelas informações prestadas. Maria Cristina dos Santos andava longe. Chegou no final. Como uma luz. Várias luzes. Por fim, porque sem eles não haveria um começo, porque foram participação constante, e por tudo de sólido que existe, a Francisco Silva Noelli, Helena Marisa Vianna Paiva, Leo Evandro Figueiredo dos Santos e Lizete Dias de Oliveira. 3 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor [Dedicatórias] Aos trabalhos Porto Alegre, Origem e Crescimento, de Francisco Riopardense de Macedo. Porto Alegre, Guia Histórico, de Sérgio da Costa Franco. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço Platino, de Helen Osório. Inspiradores deste. Abreviaturas AHPA – Arquivo Histórico de Porto Alegre AHRGS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul IHGRGS – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Obs.: Versão com pequenas alterações feitas após a defesa perante a banca examinadora composta pela Prof.ª orientadora e pelos Professores Günter Weimer e Klaus Hilbert. Notas da transcrição: Transcrição realizada em agosto de 2018 por Pedro von Mengden Meirelles, com autorização do Autor. Atualizou-se a grafia, alterou-se a diagramação do texto, procurando manter a paginação original marcada entre colchetes – exemplo: [p. 13]. Algumas notas explicativas foram inseridas pelo transcritor e estão marcadas por N.T. As demais notas, quando não indicado, são do Autor. Índice de ilustrações1 Figura 1: Aquarela de Tito Lívio Zambeccari................................................... 22 Figura 2: Trecho da Planta feita em 1834. ........................................................ 36 Figura 3: Planta elaborada em 1815 ................................................................. 37 Figura 4: Trecho da Planta feita em 1834 para indicar os terrenos de marinha a serem aforados. ........................................................................................................... 41 Figura 5: Planta da cidade de Porto Alegre, 1837 ............................................. 48 1 Nota do Transcritor (doravante N.T.): Não existente no original. file:///C:/Users/Pedro/Documents/UFRGS/Doutorado/Tese/Textos%20a%20ler/Dissertação%20Escosteguy.docx%23_Toc523100968 4 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Figura 6: Planta da Cidade de Porto Alegre, 1839. ........................................... 49 Figura 7: Planta do final da década de 1860 ..................................................... 61 Figura 8: Gravura de meados dos anos 1860. ................................................... 63 Figura 9: Meados da década de 1860. .............................................................. 64 Figura 10: Arsenal de Guerra, Rua da Praia. .................................................... 65 Figura 11: 1º Mercado, Doca e Ponte para Água. ............................................. 69 Figura 12: Quadra da Rua da Alfândega entre a Praça do Paraíso e a Rua Uruguai ................................................................................................................................... 71 Figura 13: Planta de uma parte da cidade de Porto Alegre, 1853 ...................... 73 5 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Introdução As Docas Os focos redondos espreitam de dentro da bruma. Aqui – o silêncio devora o ruído dos passos e, lá atrás, a cidade sombria se esfuma... O rio barrento se move pesado, encrespa os opacos reflexos nas ondas. E o asfalto parece de vidro molhado. Ao longo dos mastros se encolhem as velas. E agora, lá longe, no bairro das fábricas, acendem-se insones clarões nas janelas... Caem sombras compridas na zona das ilhas, adivinham-se, em cima, as estrelas... e o rio embala a amorosa indolência das quilhas... (de Poemas da minha cidade, 1936, Athos Damasceno Ferreira) Cadê o rio que estava aqui? (grafite no Muro da Mauá, 1990) [p.8] Dois que usam a palavra. Separados por poucos anos do mesmo século XX, postados à margem, entre o rio e a cidade. Um registra a paisagem que vê, industrial e eletrificada, em termos líricos e modos reticentes já em desacordo com a estética modernista do período. Mas aponta (ruas, um bairro ao longe, a cidade; e ilhas, mastros, ondas, o rio) para alguma coisa de temário deste trabalho. A zona limite entre terra e água. Entre as luzes, pavimentação e prédios da vida urbana e as velas, barro e sombra do mundo do rio. No poema de 1936, são mundos que se penetram. A bruma do rio rebrilha no asfalto, o ambiente edificado se reflete nas ondas. O outro, indignado e perplexo. Duro e seco como o que vê. Porque o que tem pela frente é um muro. Não [p. 9] vê o rio, e não escreve um poema a respeito. Não fala da cidade nem registra uma paisagem: interfere nelas. Um se demora a contemplar, transfigura a paisagem em palavras. O outro atira palavras no muro. Repõe onde esteve, não está, o rio, agora signo de rio. Faz da palavra a paisagem. E nem é a Avenida Mauá o lugar de contemplar. De perceber que o litoral norte da cidade é uma curva em direção ao bairro de Navegantes e às chaminés. Que já nem existem. E que para além desse bairro a paisagem se estende até o Rio dos Sinos, de onde fluíram muitos dos capitais que criaram as fábricas. Capitais que antes da industrialização 6 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor já haviam estimulado o comércio e o porto. Intensificado um processo de crescimento que exigiu de Porto Alegre, espremida entre um morro e um rio, o avanço sobre este.2 No período posterior ao abordado por este estudo, Porto Alegre industrializou-se, e agora se desindustrializa. Surgiu em função do rio, mas agora está circundada por muro e diques que a protegem de eventuais transbordamentos do mesmo rio. Nos últimos anos, expressões tais como “Porto Alegre deu as costas ao rio” surgem com [p. 10] frequência em declarações, crônicas e reportagens. E, nesse contexto, o chamado “muro da Mauá” foi promovido a ícone máximo da separação. Nos depoimentos de cronistas e viajantes do século XIX, referir-se a Porto Alegre era, em primeiro lugar, referir-se à sua inserção na paisagem circundante, com destaque para o Guaíba. Ao longo do século XX a cidade já se impõe ao ambiente natural, a complexidade da vida urbana vem para o centro das atenções, mas ainda a relação com o rio é presença constante nos depoimentos publicados. A partir da década de 1970, um outro ponto de vista – a percepção da vinculação privilegiada da cidade com o Guaíba – impôs-se a constatação de que se havia alterado a qualidade de tal vínculo. As manifestações mais recentes a respeito da questão expressam um sentimento de perda, que tem sido atribuído à interposição do muro entre o rio e a cidade. À procura de uma conexão especial perdida, assim parece Porto Alegre em relação ao Guaíba. Uma cidade como quem acorda no meio da noite e percebe que lhe escapa alguma referência essencial. Como uma personagem de Proust (1957:13), perdeu a planta do local onde adormecera: “e como ignorasse onde me encontrava, [...] nem mesmo sabia quem eu era”. [p. 11] A relação com o Guaíba, problematizada publicamente há alguns anos, está a exigir um estudo que forneça embasamento mais sólido a uma discussão que vem sendo travada sem conhecimento aprofundado da evolução histórica que conduziu à situação atual, ainda que estejam bem estabelecidas suas linhas gerais. Na década de 1970 completou-se o sistema de proteção contra enchentes, compostos de três trechos: 1. Ao Norte, um dique de terra ao longo do Rio Gravataí e fronteiro ao Delta do Jacuí, até o centro da cidade. 2. Outro dique, ao Sul, acompanha a margem do Guaíba, da Ponta da Cadeia ao bairro do Cristal. 2 O centro da cidade (face norte) faz frente para a massa líquida do Delta do Jacuí. Mas ela será aqui designada como “rio” e como “Guaíba”, de acordo com a tradição e com o uso no período pesquisado. O Guaíba, que é um lago, banha só a face sul do promontório onde está o centro, que não será abordada. 7 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor 3. Ao longo do centro (Av. Mauá), uma cortina de concreto armado faz a ligação dos dois diques. O muro ao longo da Av. Mauá é, pois, parte de um cinturão maior de defesa que inclui ao Norte a Av. Castelo Branco e o trecho inicial da autoestrada Porto Alegre-Osório e, ao Sul, a Av. Edvaldo Pereira Paiva (Beira-Rio), que correm sobre os diques. Mas o sistema de proteção não foi construído sobre as margens originais. O espaço urbano já vinha sendo ampliado mediante avanços sobre a água desde meados do século XIX. Nesta alteração das margens, quatro fases podem ser estabelecidas: [p. 12] 1. Do início do povoamento até meados do século XIX – Embora não haja descrições nem documentação cartográfica específicas da conformação inicial das margens, é plausível admitir que se mantiveram muito próximas à sua forma original. Há registros de pequenas alterações, sendo a mais notável a construção do trapiche da Alfândega, mas a documentação do início do século XIX refere-se ao litoral como constituído principalmente por praias e a escassa cartografia mostra uma linha irregular no limite terra/água. 2. De meados do século XIX a 1912 – Iniciou-se o processo de aterramento de diferentes trechos do litoral, para finalidades tanto públicas como particulares. Na ponta do promontório construiu-se a Casa de Correção, que atribuiu ao local a designação de Ponta da Cadeia. Consolidou-se a Rua Sete de Setembro e foi iniciada a Rua Siqueira Campos. Foram construídos o 1º e o 2º Mercados Públicos e duas docas para seu abastecimento. No final do século XIX, uma das docas foi aterrada para dar lugar ao prédio da Intendência Municipal, hoje Prefeitura. Ao longo da Rua Voluntários da Pátria foi construída a estrada de ferro para Novo Hamburgo. No início do século XX, trapiches, em grande número, ocupavam quase totalmente a margem na área central e estendiam-se pela Rua Voluntários da Pátria. 3. De 1912 a 1941 – Esta fase foi marcada por novos aterros para construção progressiva do cais do porto e seus armazéns. Os trabalhos abrangeram apenas o centro da [p. 13] cidade, definindo-se nesse trecho a conformação atual do litoral. Na área aterrada implantaram-se as avenidas Mauá, Sepúlveda e Júlio de Castilhos. Completou- se a Rua Siqueira Campos e foram prolongadas todas as ruas que se dirigiam ao rio. Datam desse período edifícios significativos, como o da Usina Termoelétrica na Ponta da Cadeia e o conjunto de quatro prédios que ladeiam a Av. Sepúlveda, em frente ao pórtico principal do porto: Delegacia Fiscal (MARGS), Correios, nova Alfândega e Secretaria da Fazenda. Aterrada a outra doca do século XIX, no seu lugar foi construída a Praça Parobé pmeirelles Sublinhar pmeirelles Sublinhar 8 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor e, no novo alinhamento da margem, novas docas foram feitas, as do poema de Athos Damasceno. 4. De 1941 até a década de 1970 – Em decorrência da enchente de 1941 foi projetado o sistema de proteção da cidade. O cais do porto foi prolongado, com um aterro em direção a Navegantes e à foz do Rio Gravataí, ao Norte. O litoral sul recebeu aterro entre a Ponta da Cadeia e o Bairro do Cristal. Completou-se o sistema com a construção de diques sobre os aterros, ao Sul e ao Norte: no Centro, fez-se o muro ao longo dos armazéns do porto, isolando-os da área urbana. Datam desse período os parques Marinha do Brasil, Açorianos e Maurício Sirotsky Sobrinho; o estádio do Esporte Clube Internacional; a nova sede da Escola Técnica Parobé; o novo centro administrativo estadual e edifícios federais; a Estação Rodoviária; e obras viárias: trevo de acesso à travessia do delta do Jacuí; prolongamento da Av. Borges de [p. 14] Medeiros para o Sul, Av. Loureiro da Silva, Av. Castelo Branco e a autoestrada Porto Alegre-Osório. O que vem sendo apontado como separação entre Porto Alegre e o rio resulta, portanto, da expansão da área urbana para construção de equipamentos exigidos pelo seu desenvolvimento até a atual condição metropolitana. A alteração produzida sobre as margens é uma das faces da ampliação e concomitante reestruturação da área urbanizada no seu todo. Quanto ao centro da cidade, está bem estabelecida pela bibliografia a vinculação entre o acréscimo de áreas conquistadas ao rio e o crescimento da atividade comercial/portuária. Mas não há estudo especificamente dedicado ao tema, que dê conta das particularidades e dos diversos momentos desse processo. Os espaços à beira-rio foram tratados em algumas obras de caráter geral sobre a urbanização de Porto Alegre, a partir das quais foi estabelecida a delimitação do problema e a periodização acima apresentada. Edvaldo Pereira Paiva (1951), Abrão Hausman (1961, 1963), Aziz Ab’Saber (1966), Jean Roche (1966) e Francisco Riopardense de Macedo (1968) vinculam a expansão da área central de Porto Alegre à situação geográfica, às condições topográficas do sítio de implantação da cidade e ao crescimento do comércio/navegação, porém de uma maneira abrangente, em obras que tem por objeto a cidade no seu todo. [p.15] O estudo de Paul Singer (1968), tributário da tese de Roche (1969) sobre a concentração em Porto Alegre dos capitais acumulados pelo comércio das colônias alemãs, é referência importante, por explicar mecanismos econômicos relacionados à evolução urbana; Sérgio da Costa Franco (1983) também relaciona a atividade econômica, especialmente a 9 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor comercial, ao crescimento urbano e à ocupação da faixa de beira-rio; mas não são trabalhos dedicados expressamente à problematização das manifestações espaciais. Duas obras tratam com alguma minúcia dos espaços específicos que formaram a área que se pretende estudar. Macedo (1973) estudo a constituição das atuais praças Quinze de Novembro e Montevidéu. Franco (1988), embasado em ampla pesquisa documental apresenta, nos verbetes de seu trabalho, a origem e desenvolvimento de cada um dos espaços que aqui serão tratados. O primeiro conjunto de obras trata do assunto na sua generalidade, enquanto as duas últimas abordam a particularidade de diversos espaços. Mas nenhum dos trabalhos mencionados tem o objetivo de tematizar em conjunto os espaços de beira-rio no centro da cidade e a um só tempo evidenciar os nexos entre esse conjunto e os espaços específicos que o compõe. [p. 16] Embasado em leituras preliminares de fontes bibliográficas, o projeto de pesquisa propunha como marco cronológico inicial o começo da efetiva expansão da cidade sobre o Guaíba. Nessa fase, terminada a Revolução Farroupilha e estimulada pelo ingresso das colônias alemãs em uma etapa de comercialização de seus produtos, Porto Alegre entrou em um período de prosperidade e crescimento demográfico, com a consequente necessidade de maiores e mais diferenciados espaços. O trabalho versaria sobre o período acima mencionado como fase 2 na evolução das interferências sobre as margens – De meados do século XIX a 1912. E, dentro dessa fase, havia sido como estabelecido como limite final o ano de 1889. Visava-se com isso à concentração do estudo em processos anteriores à industrialização que Porto Alegre experimentou após 1890. A dinâmica da pesquisa levou a uma modificação do marco temporal. A coleta de dados, iniciada por documentos do ano de 1844, revelou os registros de uma disputa a respeito de um terreno à beira-rio, em frente à desembocadura da atual Rua General Bento Martins, posto à venda pela Câmara, em 1832. A propriedade sobre ele havia sido concedida ao Município, em 1809, pelo governo da Capitania, em nome da Coroa, e o assunto tivera desdobramentos importantes em 1824, quando uma parte maior do litoral do centro da [p. 17] cidade havia sido também doada à Câmara, pelo governo provincial. O conhecimento de processos anteriores a 1845 revelou-se então fundamental para as finalidades do estudo. Percebeu-se a oposição entre a Câmara, pretendendo alienar um terreno público, e o proprietário de um estaleiro que utilizava esse terreno. Proeminentes negociantes da cidade uniram-se na contestação à legalidade da venda. A câmara 10 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor pretendia vender o terreno a particulares, mas os negociantes, em nome do bem público, opunham-se à alienação, para que um deles continuasse a desfrutar do terreno para sua atividade comercial. Em função disso, a pesquisa retrocedeu a 1809, permitindo perceber que estavam em ação, na primeira metade do século XIX, determinações essenciais para a constituição dos espaços à beira-rio, naquela e em outras áreas da cidade, e não poderiam ser desconsideradas. O primeiro registro oficial do avanço da cidade sobre o rio refere-se à construção de uma doca para o primeiro Mercado Público, na década de 1840. O processo intensificou-se e tomou uma diretriz definida na década seguinte. Portanto, meados do século é uma caracterização aceitável para uma nova fase das relações espaciais estudadas. Mas é propósito do trabalho estudar não só a expansão sobre o Guaíba, como também o processo, mais amplo, de constituição da [p. 18] faixa ribeirinha do atual centro da cidade no seu conjunto. Isso inclui os espaços previamente estabelecidos sobre a margem original do rio, a partir dos quais foram produzidos os outros. Por tal motivo, a periodização adotada incluiu também parte da primeira das fases estabelecidas, anterior ao avanço sobre o Guaíba mediante aterros. O marco final do período também decorre dos próprios processos abordados. No início da década de 1860, além de ter havido a definição do projeto do atual Mercado Público em área conquistada ao Guaíba, completou-se um conjunto de modificações que dotaram a cidade de um primeiro agenciamento unitário do litoral, no trecho entre a Praça da Alfândega e a Praça da Harmonia, com um cais ao longo da Rua Sete de Setembro. O estudo contempla apenas a face norte do promontório que abrigou o núcleo inicial do povoamento. Nela se instalaram as atividades comerciais e portuárias, além da maior parte dos mais significativos prédios e espaços públicos da cidade no período estudado. Tomou-se como limite dessa face norte a extremidade oeste do promontório, desembocadura da Rua Duque de Caxias, ou Ponta da Cadeia. Por limite leste foi adotada a atual Rua Barros Cassal, definida como limite urbano em 1831 e que se manteve até o final do período como extremidade da zona mais densamente edificada. A faixa assim [p. 19] definida é, com pequena diferença, a hoje acompanhada pelo muro ao longo da Av. Mauá. Uma hipótese orientou a investigação: a relação de Porto Alegre com o Guaíba, no trecho estudado do litoral, sempre foi determinada por razões utilitárias. O porto, o comércio, construção naval, abastecimento de água e disposição de lixo e dejetos foram as atividades que a cidade priorizou na sua convivência com o rio. A situação atual seria pmeirelles Sublinhar pmeirelles Sublinhar pmeirelles Sublinhar pmeirelles Sublinhar pmeirelles Sublinhar pmeirelles Sublinhar 11 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor o coroamento de ações motivadas pelas necessidades econômicas de uma cidade comercial. O objetivo central foi investigar a produção dos espaços á beira-rio da atual área central de Porto Alegre. Tomando como base os espaços já estabelecidos na primeira década do século XIX, pretendeu-se identificar: a) As modificações que estes sofreram; b) A produção de novos espaços mediante conquista de áreas ao rio; c) Os agentes sociais envolvidos em tais processos, assim como relações que se estabeleceram entre as instâncias do poder público e interesses privados na definição da propriedade sobre o solo urbano e no uso dos espaços produzidos. [p. 20] A documentação utilizada só dá acesso ao mundo do poder público e ao mundo dos proprietários e a esses mundos se circunscreve basicamente o estudo. Os livres pobres, os libertos e os escravos mal comparecem aqui. Recibos de pagamentos de obras mencionam ou permitem perceber trabalhadores escravos, convivendo nas mesmas empreitadas com trabalhadores livres; uma ou outra viúva pobre é mencionada ou chega a requerer algo; a praia do Arsenal é tida como local de pobreza na cidade; mas são referências por demais externas a esses grupos, e não parte deles a decisão sobre a conformação dos espaços urbanos. Embora identificando agentes e suas relações, elegeu-se como foco central de investigação os espaços, não a sociedade que os produziu e vivenciou, o que exigiria uma pesquisa com outra característica. A produção de espaços, ainda que enfocada ela ótica específica de suas resultantes físicas, é um processo social e quanto mais amplas e pertinentes determinações sociais forem adotadas como fatores explicativos, mais se conseguirá dar conta do conjunto de fenômenos que é a espacialidade de uma sociedade. Mas entende-se que os espaços, em si mesmos, podem ser tomados como objeto de abordagem histórica, em uma pesquisa que pretende realizar o mapeamento de um tema. O estudo atém-se ao campo do que Georges Duby chamou de estruturas materiais, cujo estudo, no entanto, é necessário à construção do todo [p. 21] complexo que é a História Social. O autor recomenda, como indispensável, [...] que previamente sejam reunidas todas as indicações que permitem reconstituir os componentes do espaço que os homens ocuparam, organizaram e exploraram, perceber o sentido aos diversos movimentos que determinaram a evolução do povoamento, definir o nível das técnicas de produção e de comunicação, compreender o modo pelo qual se encontravam 12 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor divididas as tarefas, as riquezas e os lucros e como foram utilizados os excedentes (Duby, 1979:130). O que se propõe é uma parte do estudo possível sobre a evolução histórica da relação espacial entre Porto Alegre e o Guaíba. Isso, por sua vez, enquadra-se na história da evolução urbana de Porto Alegre e pretende contribuir para o campo, ainda limitado, da história da urbanização do Rio Grande do Sul. A natureza desta etapa é predominantemente descritiva: seleção e sistematização da matéria documental, que se entende base necessária a posteriores estudos de caráter explicativo. Pode também ser caracterizada como construção do objeto empírico da investigação: destacar, no processo de urbanização de Porto Alegre, uma determinada unidade espacial e seus segmentos específicos, e acompanhar a sua constituição durante um período selecionado. [p. 22] O primeiro capítulo trata dos antecedentes dos processos estudados. Uma breve revisão da formação espacial do Rio Grande do Sul durante o século XVIII é necessária à compreensão da crescente importância adquirida por Porto Alegre na organização daquele espaço. Destacam-se certas características do regime de apropriação do solo e do sistema de concessão das terras, que terão reflexos posteriores. A configuração espacial da vila na primeira década do século XIX é apresentada sinteticamente, detectando-se segmentos específicos que compõe a área à beira-rio. No segundo capítulo, estuda-se as modificações da área até a interrupção no desenvolvimento urbano causado pela Revolução Farroupilha. Acompanha-se as ações de que foram objeto os segmentos espaciais delimitados no capítulo anterior, buscando definir os agentes envolvidos, seus conflitos de interesses e as determinações legais e administrativas que incidiram sobre tais ações. O terceiro capítulo aborda, no que afeta mais diretamente a Porto Alegre, as alterações do espaço provincial e as modificações que experimentou a economia gaúcha nos meados do século XIX. Após, são retomados os segmentos espaciais estabelecidos e acompanha-se as alterações que sofreram no quadro da nova situação, que passou a exigir [p. 23] uma intervenção mais efetiva sobre a conformação do litoral e o acréscimo de áreas mediante aterros sobre o Guaíba. Foram utilizados como fontes os seguintes conjuntos documentais: a) Grupo Construção e Melhoramentos do Município, do Fundo Câmara Municipal do AHPA. São requerimentos de particulares referentes à ocupação de terrenos, bem como ofícios e pareceres dos Fiscais, Advogados e Procuradores da Câmara. Inclui também cópias de correspondência recebida do governo da pmeirelles Destacar pmeirelles Destacar 13 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Província. No texto, cada documento está referenciado como: (AHPA/CMM, data). b) Correspondência enviada pela Câmara ao governo da Capitania e depois Província, reunida no Fundo Autoridades Municipais do AHRGS. Referência no texto: (AHRGS/AM, data). c) Fundo Obras Públicas do AHRGS, composto de documentação produzida por engenheiros a serviço do governo da Capitania e Província. Referência: (AHRGS/OP, data). d) Documentos da série Marinha, do Fundo Exército, Marinha e Guarda Nacional do AHRGS: ofícios enviados ao governo provincial pelas autoridades da Marinha Nacional sediadas em Porto Alegre. Referência: (AHRGS/Mar, data). e) Relatórios e Falas dirigidos pelos Presidentes da Província e Vice-Presidentes em exercício tanto a seus sucessores como à Assembleia Provincial. Para os anos [p. 24] 1829-1847 foi consultada a publicação feita por Roche (1961). Os relatórios e falas do período 1848-1889 foram consultados nas coleções existentes no AHPA, AHRGS e IHGRGS. f) Cópias de plantas da cidade existentes no AHPA, AHRGS e IHGRGS. g) Depoimentos publicados por cronistas, funcionários e viajantes, relacionados nas Referências Bibliográficas. h) Fotografias existentes no AHRGS. i) Coleção incompleta do jornal CORREIO DO SUL (década de 1850) existente no IHGRGS. Toda essa informação refere-se ao século XIX. Para a relativa ao século XVIII, no Capítulo 1, foi utilizado apenas material bibliográfico, com a exceção do Livro de Registro de Datas de Terras, Porto Alegre, 1772-1789, nº 121, consultado no AHRGS para dirimir uma dúvida sobre as circunstâncias do traçado inicial da vila. Dois importantes fundos documentais, conservados no AHPA, não foram consultados: as Atas da Câmara e a Correspondência Passiva da mesma Câmara (correspondência recebida dos governos da Capitania e Província – e que é a contraparte do Fundo Autoridades Municipais do AHRGS). Informações constantes desses fundos foram utilizados através de citações feitas por Sérgio da Costa Franco. pmeirelles Destacar pmeirelles Destacar pmeirelles Destacar pmeirelles Sublinhar 14 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Capítulo 1: Século XVIII e a 1º década do século XIX [p. 28] Porto Alegre na primeira década do século XIX é o tema deste capítulo. O estudo da ocupação e alterações da faixa de beira-rio a ser desenvolvido ao longo do trabalho exige uma descrição da configuração espacial da vila no início do século. Preliminarmente, porém, é necessário que sejam estabelecidos alguns marcos definidores do papel por ela representado durante o processo de formação do espaço do Rio Grande do Sul. A localização de Porto Alegre e, portanto, a escolha do sítio que serviu de base ao espaço urbano, foi condicionada por razões de ordem política e militar. Exceção feita aos primitivos sesmeiros, que aí se instalaram como em todos os campos disponíveis para a criação de gado, os primeiros ocupantes de que se tem registro, militares e agricultores, foram trazidos por iniciativa governamental, em função de objetivos estratégicos: a demarcação de limites após [p. 29] o Tratado de Madri e a pretendida colonização por Portugal de seus novos territórios nas Missões. O contexto geográfico mais imediato da cidade é o dos baixos cursos dos rios Jacuí, Caí, dos Sinos e Gravataí. Os quatro rios juntam-se em uma desembocadura comum, em frente a uma barreia formada por elevações do Escudo Rio-Grandense. As águas reunidas atravessam essas elevações, em um trecho com pouco mais de 50 km, em direção à laguna dos Patos. Nele se dá a transição entre o sistema fluvial e a laguna, através da qual se dirigem ao mar. A caracterização geográfica desse trecho de transição deu margem a discussões – rio, ria, estuário, lago. O nome dado a ele também teve uma história de hesitações, que os textos setecentistas e do início do século XIX permitem rastrear. Mas acabou por se fixar: Guaíba. E embora seja um lago pela caracterização atualmente aceita, a tradição consagrou chama-lo Rio, bem como chamar Lagoa à laguna dos Patos (Oliveira, 1979:25- 50; Vieira, 1984:115-24). As elevações entre as quais se situa projetam sobre o Guaíba, especialmente na sua margem leste, vários promontórios rochosos. Porto Alegre instalou-se na encosta norte do mais setentrional desses promontórios, em frente à área deltaica da foz dos quatro rios, ou Delta do [p. 28] Jacuí. Aí, as águas, ao encontrarem a base granítica do morro, cavaram o porto (Macedo, 1968:48). O sistema fluvial e o lagunar permitem diferentes calados – diferentes tonelagens de carga e diferentes embarcações. A povoação instalada neste ponto tornou-se escala de transportes, interrupção obrigatória nos fluxos de carga e 15 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor passageiros. Com a densificação do território e ampliação da atividade econômica, o posto militar e base provisória de agricultura transformou-se em local de intermediação e comércio. As atividades de embarque e desembarque, necessárias a um comércio realizado por via quase totalmente marítima e fluvial, situaram-se junto ao local mais favorável ao atracamento. Porém, formado do encontro de rios com um morro, junto a ele havia apenas uma estreitíssima faixa de terreno plano. 1.1 Uma posição de destaque: No início do século XIX Porto Alegre era um núcleo povoado muito pequeno. A população era de 3.927 habitantes em 1803. Como o número refere-se à totalidade da freguesia de N. Sra. Madre de Deus, inclui também a população rural (FEE, 1981:49). Não é possível estimar a população da [p. 29] sede da paróquia, então chamada correntemente de Vila, embora o estatuto oficial só viesse a ser atribuído em 1809. Um documento enviado ao Reino em 1804, pelo Sargento-Mor Domingos Marques Fernandes, permite avaliar as dimensões físicas da vila. Porto Alegre tinha apenas sete ruas com edificações. As três principais eram paralelas à margem e ao espigão do promontório: uma ao longo da margem, outra à meia encosta e a terceira sobre o próprio espigão. Quatro transversais a essas faziam a ligação entre o espigão e a beira do rio (Fernandes, 1961:36-7). De acordo com a informação, apenas o trecho central da encosta norte do promontório tinha uma ocupação caracterizada. Essa área estava exatamente centralizada pelo local do desembarcadouro, onde se instalou a Alfândega e em seguida foi construído o trapiche oficial. Era um pequeno núcleo. Destacava-se, no entanto, em relação aos demais da Capitania, pela situação geográfica, em um ponto chave do sistema de navegação, e pela condição de sede do governo desde 1773. Essas duas peculiaridades estiveram na base do ininterrupto descimento de sua população e área urbanizada. A Alfândega, instalada em 1804, veio juntar-se a outros órgãos do Estado: “corpo da guarda”, “quartéis de soldados”, “casa da fazenda real”, “palácio do governador” e “justiças ordinárias de jurisdição [p. 30] real” (Fernandes, 1961:36-7). Funcionava também em Porto Alegre a Câmara de Rio Grande, a única da Capitania, que fora forçada a mudar-se daquela vila em 1763, e de Viamão em 1773, sempre acompanhando o Governador/Comandante Militar e a Provedoria da Fazenda Real. pmeirelles Sublinhar pmeirelles Sublinhar pmeirelles Sublinhar pmeirelles Máquina de escrever 1804 Poa com apenas sete ruas 16 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor A situação geográfica fazia de seu porto escala entre a navegação da Lagoa dos Patos e a da malha fluvial tributária do Rio Jacuí. A navegação da bacia do Jacuí atendia a povoados ribeirinhos e a uma população rural produtora de gêneros de subsistência, assim como de trigo para exportação. Pela Lagoa dos Patos efetuava-se a ligação com o porto marítimo de Rio Grande e com o exterior. Nessa época Porto Alegre controlava o comércio de importação para os agricultores e núcleos povoados da bacia do Jacuí. Em 1809, logo após a abertura do Brasil ao comércio não-português, aqui esteve o comerciante inglês John Luccock. Relatou que parte das importações da Capitania destinava-se à região em torno de Rio Grande, mas “uma parte maior seguia pela Lagoa dos Patos acima até Porto Alegre e os rios que ali desaguam” (Luccock, [1820] 1975:122). E assim se referiu à vila: “Como capital, sua influência é larga; como centro comercial, é chave de uma grande extensão de território e de muitos rios navegáveis” (Luccock, 1975:152). [p. 31] Além desses fatores, um terceiro deve ser mencionado. A sucessão de conflitos pela definição das fronteiras esteve entre as determinações fundamentais na formação da estrutura social rio-grandense e da sua organização no espaço. Em Porto Alegre, além da própria origem do núcleo urbanizado, que se deveu diretamente a acontecimentos de ordem militar, a contínua presença de tropas e órgãos militares foi um fator de não pequena influência tanto sobre o comércio como sobre a organização e atuação do poder público. Incidia também, por isso, sobre os processos espaciais que serão estudados. Os sucessos militares relacionados à demarcação das fronteiras definidas em 1750 entre Portugal e Espanha estiveram, como se sabe, diretamente ligados à origem do núcleo urbanizado.3 Mas é importante registrar que os episódios relacionados ao Tratado – convocação de colonizadores; Guerra Guaranítica; estacionamento de tropas e estabelecimentos de açorianos no local da futura Porto Alegre e ao longo do Baixo Jacuí – constituíram apenas uma das conjunturas de um longo processo, o de apropriação ibérica da Bacia Platina e áreas a ela relacionadas. Desse processo cabe rever alguns aspectos que encaminhem à apropriação, [p. 32] produção e uso do solo e dos espaços na área central de Porto Alegre.4 3 O artigo Porto Alegre (origem do agrupamento urbano), de Paulo Xavier ([1957] 1975), é a obra que aborda com maior clareza a questão. 4 No que se refere à organização do espaço do Rio Grande do Sul, a síntese a seguir apoia-se basicamente nos seguintes autores: Sebalt Rüdiger (1965); Helen Osório (1990); Vera Lúcia Maciel barroso (1992). 17 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor 1.2 O Continente O promontório em frente ao Delta do Jacuí, em 1752, primeiramente base de apoio da Expedição Demarcadora de Gomes Freire de Andrada em direção às Missões, assim como local de instalação provisória de colonos açorianos. Em seguida, tornou-se ponto intermediário entre o núcleo fortificado de Rio Grande e o que foi criado em Rio Pardo, duas bases fronteiriças do Império Português no Sul. E era a extremidade oeste de uma porção de território conhecida como Campos de Viamão. A conjuntura referida alterou subitamente a sua importância, mas não foi o início do seu povoamento. Desde mais de vinte anos fazendeiros vinham ali se estabelecendo e requerendo sesmarias, bem como nos vizinhos Campos do Tramandaí, no litoral. Os campos entre o Tramandaí e o Guaíba foram os primeiros a terem suas terras apropriadas no Rio Grande de São Pedro. [p. 33] Vera Lúcia Maciel Barroso, acompanhando uma interpretação de Laudelino Medeiros (ver Medeiros, 1959:21 e [1964] 1969:93-4), distingue três fases no processo de ocupação europeia e urbanização do espaço do Rio Grande do Sul.5 A “fase da instalação” estende-se até a conquista das Missões em 1801, que definiu a fronteira oeste do Rio Grande. É caracterizada com base em quatro variáveis: a) A pecuária, origem de um povoamento extensivo e da rede de núcleos urbanos irradiados a partir de Rio Grande; b) A concessão de sesmarias, prática pela qual a Coroa portuguesa, legalizando os latifúndios, avançou na posse do território, disputado à Espanha; c) A militarização “através de fortes, presídios, guardas e acampamentos militares, núcleos iniciais de muitos povoados”; d) A colonização açoriana, com povoamento intensivo, pequenas propriedades e produção agrícola (Barroso, 1992:36-9). No caso de Porto Alegre todas essas variáveis atuaram. Estiveram no início de um processo que, [p. 34] a partir de um território desocupado,6 levaria a uma situação de tal subdivisão do solo em meados do século XIX, que uma faixa de terreno de 6 palmos (1,32 m) de largura chegaria a ser objeto de requerimento à Câmara Municipal e de deliberação por parte desta (AHPA/CMM 2.3.1857). 5 Século XVIII: “fase da instalação”; século XIX: “fase da organização”; século XX: “fase da expansão”. 6 Testemunhos arqueológicos evidenciam ocupação humana há pelo menos 9.000 anos na região próxima a Porto Alegre. Mas os Guarani, últimos ocupantes indígenas, já não habitavam a região no início do século XVIII. pmeirelles Sublinhar 18 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Porém, como foi visto, não só a região povoada a partir de Rio Grande teve sua ocupação determinada pela pecuária. E não foi por ali que o processo teve início. A área onde está hoje a maior parte de Porto Alegre foi uma das primeiras do Rio Grande do Sul a ser objeto de apropriação privada. Ao requerer seu título de sesmaria em 1740, Jerônimo Dornelles Menezes afirmava que já há oito anos aí estava estabelecido com fazenda de gado (Antunes, 1940:1041; Xavier, 1975:108). Foi-lhe concedida a legalização da posse sobre uma área que se estendia do Guaíba ao Morro Santana e Arroio Dorneles/Feijó (na direção Leste/Oeste), e do Rio Gravataí ao Arroio Dilúvio, na direção Norte/Sul. Por volta de 1732 não apenas Jerônimo Dornelles, mas vários vizinhos seus, tropeiros provenientes de São Paulo e Laguna, já ocupavam terras nos Campos de Viamão, até as margens do Guaíba e do Rio dos Sinos (Borges [p. 35] Fortes, 1938:13; Spalding, 1940:86; Tupi Caldas, 1940:1535). Tal ocupação decorria da anterior atividade de simples apropriação de gado muar e vacum das vacarias jesuíticas espanholas para a venda, feita em São Paulo, ao mercado das Minas – e que continuava a existir – mas criava agora uma nova realidade. A apropriação e o transporte do gado haviam incorporado à economia colonial de órbita portuguesa os campos litorâneos entre Laguna e a Colônia do Sacramento. Mas era espaço ainda apenas de passagem e pouso temporário dos tropeiros e de sua mercadoria. Em 1731 foi aberto um caminho para São Paulo, por Curitiba, subindo ao Planalto. Isso valorizou os Campos de Viamão, ao pé da serra e na rota para o Norte. Agora, com a ocupação permanente por vários desses tropeiros, o espaço aos poucos se estruturava: definiam-se possuidores das terras e limites entre as terras possuídas; normas originadas na Europa passavam a incidir sobre ele, regulando sua apropriação e usos. O espaço passava a ser subdividido, mensurado, adquiria valor de troca. A atividade econômica, ainda cumprindo função subsidiária à economia mineira, central da Colônia, passava por uma modificação: começava-se a cuidar da reprodução do gado. Em decorrência da fixação, a paisagem [p. 36] começava a ser alterada – derrubada de árvores, cultivo da terra e plantio de pomares (com a introdução de plantas europeias) e construção de cercas e prédios. O processo não foi tão linear e definido como a rápida síntese acima pode dar a entender. Helen Osório (1990:70-83) enfatiza o desinteresse inicial a respeito da demarcação e cultivo das terras, uma vez que o objeto de valor econômico era então o gado. E apresenta dados que atestam a ainda escassa população dos campos de Tramandaí e Viamão no final da década de 1740. A terra ocupada por Jerônimo Dornelles na década 19 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor de 1730 permitia, no entanto, uma clara delimitação, devido aos marcos geográficos já citados. E também é possível constatar que os vizinhos estão perfeitamente individualizados na carta de concessão. Foi em parte dessa instância que se instalaram os agricultores que deviam seguir para o território das Missões. Em 1772, já vendida a outro proprietário, a estância foi desapropriada pela Fazenda Real para ser dividida entre os açorianos ali precariamente instalados por vinte anos. O Auto da Avaliação possibilita conhecer com bastante minúcia parte das modificações sofridas por aquele espaço desde sua ocupação inicial em 1732: “cento e vinte e sete laranjeiras”; “cinco limoeiros”; “nove pés de marmeleiro”; “duzentos e sessenta pés de pessegueiro”; “cem [p. 37] pés de figueira”; “quatro pés de cidreira”; “uma casa grande nova de telha [...] em que está a atafona”; “um rancho de capim”; “uma senzala de telha”; “uma casinha de telha”; “um rancho de hóspedes”; “uma casa de vivenda do dono da fazenda”; “um curral [...] com chiqueiro coberto e queijeira”; “benfeitorias da horta, que é de cercas”; “um rincão fechado de cerca nova”; “um roçado grande e novo”; “três roçados grandes que levam nove alqueires de trigo”; “um rancho com duas portas e um curral com 60 braças de cerca ao pé do passo”.7 Essas eram as modificações devidas à atividade da estância, cuja sede estava localizada na extremidade leste da terra, junto ao Morro Santana e ao atualmente denominado Passo do Dorneles. Sobre a outra parte das alterações resultantes do estabelecimento dos ilhéus, e que são as diretamente relacionadas à origem do núcleo urbanizado, há muito pouca informação publicada. Os documentos da Expedição Demarcadora dos limites estabelecidos em 1750 permitem saber que, em 1754, já havia na beira do Guaíba um arraial de ranchos de capim (Xavier, 1975:110). Mas a vida desses colonos, o tipo de ocupação que teriam feito nas terras da estância e a evolução física do povoado que constituíram no [p. 38] promontório sobre o Guaíba, entre 1752 e 1772, ainda não foram objeto de estudo específico. A esse respeito, Augusto Porto Alegre (1906) veiculou dados que estão à espera de estudo dedicado especificamente ao período, mas que convém enumerar, pois são repetidos por historiadores e divulgadores, apesar de fornecidas por aquele autor sem nenhuma citação de fonte: 7 Transcrição do Auto de Avaliação emitido pela Provedoria da Fazenda Real em 18/07/1772. Ver Porto Alegre (1906: notas p. XI). 20 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor a) O povoamento teria começado pela extremidade do promontório, local antigamente conhecido por Praia do Arsenal, hoje Rua Gal. Salustiano (p. 22); b) O primeiro palácio do governo teria sido construído junto à mesma Praia do Arsenal, no início da Rua da Praia (Notas, p. VI); c) O segundo palácio, no local do atual, teria sido construído em 1789 (Notas, p. VI); d) Um templo teria sido erigido logo após a chegada, em 1752, de Frei Faustino de Santo Alberto, nomeado capelão dos saldados e dos casais em 1753 (p. 27); e) Teria existido um primitivo cemitério próximo à Praia do Arsenal, depois transferido pelo primeiro capelão para o local da Praça da Matriz (p. 85). O espaço urbano de Porto Alegre no século XVIII é assunto ainda inteiramente aberto à pesquisa. Isso se pode exemplificar com outro momento importante na sua [p. 39] constituição, o da demarcação dos lotes de terra para os ilhéus em 1772. Nessa ocasião teria sido demarcado também o espaço da vila, teria sido determinado o local da praça no ponto mais alto do promontório e teriam sido traçadas as primeiras ruas. E teria sido também elaborada uma planta do novo arruamento, planta que teria sido perdida (Macedo, 1968:52-55; Porto Alegre, 1906:141). Mas os trechos de documentos transcritos tanto por Porto Alegre e Macedo, quanto por Tupi Caldas (1940:1555), em que Macedo se baseia, referem-se a datas rurais e não ao espaço da vila e terrenos urbanos.8 São conhecidos documentos sobre a demarcação das datas agrícolas e do logradouro da vila, atual Parque Farroupilha (Antunes, 1940:1056). Mas nada na documentação até agora publicada autoriza afirmar que o espaço urbano, com seus lotes, ruas e praças tenha sido traçado pelo Capitão Alexandre Montanha, como vem sendo dito e repetido, embora isso seja muito provável, e tenha ocorrido com outros núcleos instalados na época.9 No final do século, o espaço do Rio Grande do Sul estava bastante alterado em relação [p. 40] ao início da década de 1730, quando a porção portuguesa do território se limitava à faixa litorânea e aos Campos de Viamão e só nestes havia uma penetração para o interior com efetiva apropriação das terras, tendo por limite ocidental a foz do Rio Jacuí. 8 Ver no AHRGS o Livro de Registro de Datas de terras, Porto Alegre, 1772-1789, nº 121. 9 Macedo (1968:54) republicou uma planta originalmente publicada por Antunes (1940:1069), em que se lê “Porto Alegre nos fins do século XVIII”. Macedo negou a autoria da planta ao Cap. Montanha e ao ano de 1772, mas foi mal interpretado e a planta hoje passa por ser reprodução do original. pmeirelles Destacar pmeirelles Sublinhar pmeirelles Destacar pmeirelles Destacar pmeirelles Sublinhar 21 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor A partir de 1737 deu-se a ocupação militar e a distribuição de terras na região em torno de Rio Grande. A apropriação privada e estatal (Estância Real do Bojuru) da faixa litorânea, até alcançar os Campos de Viamão, unificou as duas áreas ocupadas. Após 1752, desde a base estabelecida pela ação estatal no promontório sobre o Guaíba, a ocupação avançou para Oeste pelo baixo vale do Jacuí. O processo tomou impulso com a anexação espanhola da Colônia de Sacramento, em 1762, e de Rio Grande e seu entorno em 1763, que provocaram um grande deslocamento de população. O despovoamento do Sul concentrou a população, a atividade econômica e todo o aparelho de Estado na região que tinha como foco de organização Viamão e seu porto, já então chamado de Porto dos Casais. A distribuição de terras, mediante a concessão de sesmarias, intensificou-se depois de 1780, para efetivar a ocupação do novo território definido pelo Tratado de 1777. Assim foi ocupada a região da Serra do [p. 41] Sudeste – entre o Vale do Jacuí e o entorno reconquistado de Rio Grande. Desbordando a fronteira estabelecida, com conivência das autoridades portuguesas, a apropriação das terras avançou também sobre território atribuído à Espanha. Conquistaram-se, a Sudoeste da linha de fronteira, os campos até o Rio Jaguarão e os de além das nascentes do Rio Negro e, a Oeste, os campos em direção ao Ibicuí, pondo em mãos portuguesas a região da chamada Campanha (Osório, 1990:136-202; Rüdiger, 1965:67-95). O século XIX, “fase de organização” (Barroso, 1990; Medeiros, 1959, 1969) quanto à ocupação do espaço e à urbanização, iniciou-se com a anexação do território das Missões, mais um espaço até então espanhol. Ampliou-se ainda mais o território controlado a partir de Porto Alegre. O aumento da população e a complexificação da atividade econômica, com a crescente produção de charque e trigo, levaram o governo colonial a promover o reaparelhamento administrativo e fiscal do Rio Grande do Sul. Foi instalada em Porto Alegre uma Junta da Real Fazenda em 1803. Criou-se uma Alfândega na capital e um consulado dessa Alfândega em Rio Grande. O aumento do número de centros urbanizados e a incorporação das Missões evidenciaram a necessidade de subdivisão administrativa e judiciária. A criação dos quatro primeiros municípios – entre [p. 42] eles o de Porto Alegre – foi proposta em 1803, oficializada em 1809 e 22 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor implantada em 1810/11. Em 1807 a própria administração do território ganhou maior autonomia com a criação de uma Capitania Geral.10 1.3 Na primeira década do século XIX A primeira planta conhecida que representa toda a cidade de Porto Alegre data de 1837 (v. p. 90). Anteriores a essa, existem plantas parciais (v. Cap. 2) e uma outra representação cartográfica, feita por Tito Lívio Zambeccari em 1833 e publicada por Alfredo Varela (1935:32). Embora estejam aí representados alguns elementos reconhecíveis e com localização corroborada pelo restante da documentação, (nota-se, especialmente, que a linha da margem não parecia ter sido ainda objeto de modificação ou regularização), este, no entanto, não pode ser considerado um documento hábil, como se percebe à primeira vista. [p. 43] 10 Para contextualização geográfica, econômica e jurídico-político-administrativa desse conjunto de medidas, especialmente o interesse fiscal da Coroa ver: Barroso (1980). Sobre o crescimento da atividade econômica na passagem do século XVIII para o XIX ver: Singer (1968:147-54) e Osório (1990:203-7). Figura 1: Aquarela de Tito Lívio Zambeccari. Reprodução existente no IHGRGS. 23 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Depende-se de fontes escritas para elaborar uma reconstituição do espaço da vila no início do século. Mas o objetivo aqui será mais restrito: apenas relacionar as ruas já abertas na encosta norte do promontório e, na medida em que as fontes permitem, abordar com maior especificidade os espaços à beira-rio. [p. 44] 1.3.1 A Encosta Norte do Promontório Pelo citado documento de Fernandes (1961:36-7), o primeiro que faz referência à malha viária urbana, sabe-se que, das três ruas principais, a Rua da Praia era “a melhor e mais preciosa, [...] mais próxima ao cais de embarque, e onde gira o melhor comércio”. A rua à meia encosta era a Rua da Ponte [Riachuelo], que tinha um trecho onde se acumulavam águas. Na terceira, Rua Formosa, (“que corre pelo mais alto do mesmo terreno”), localizavam-se “a igreja paroquial, a casa do real erário [Junta da Real Fazenda] e o palácio do governador”. A frente dos três prédios, no local mais alto do promontório, voltada e em leve declive para o Norte, estava a praça da povoação. As quatro transversais a elas eram: 1. Rua de Bragança, atual Mal. Floriano, limite Leste da área urbanizada; 2. Rua do Ouvidor ou da Ladeira, atual Gal. Câmara, que fazia a ligação entre a praça e o local do desembarcadouro; 3. Rua Clara, atual Gal. João Manoel; 4. Como limite Oeste, uma Rua das Virtudes, muito provavelmente a Rua dos Sete Pecados ou dos Pecados Mortais (atual Gal. Bento Martins), denominações que o Sargento-Mor talvez não tenha achado conveniente apresentar ao Regente do Reino.11 [p. 45] Nota-se que o autor omitiu os becos, entre eles o Beco dos Ferreiros (atual Rua Uruguai, já existente à sua época, pois nele havia sido construído o primeiro teatro da vila em 1794, pouco abaixo da Rua da Praia, à beira-rio.12 Mas Fernandes (1961:37) anotava que outras ruas já estavam abertas e ainda não edificada, ou com poucos moradores. Uma delas seria a Rua Bela (atual Gal. Portinho) na qual Antunes (1940:1068) registra a construção de uma casa em 1793, sem citar a fonte de informação. A Rua Bela era conhecida como Beco do Vieira, ou do Bot’à Bica, segundo Antônio Álvares Pereira 11 “Alguém que possuía esse terreno ladeirento, fez edificar sobre ele sete casinhas, que os gaiatos daquele tempo chamaram os Sete Pecados, nome que lhe assentava bem, tanto pelo lado físico dos prédios, como pelo lado moral das moradoras”. (Coruja, 1983:16). 12 A informação é de Augusto Porto Alegre (1906:133-4) que não cita a fonte. 24 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Coruja (1983:20), que nasceu em 1806 e escreveu no final do século sobre a cidade de sua juventude.13 Do testemunho de Coruja, que invoca também as tradições orais que recolheu dos mais velhos, gente do século XVIII, pode-se inferir que já estavam abertas no início do século XIX as vias: a) Travessa, ou Beco, do Poço, “por onde desciam as águas do antigo poço ou fonte mandado construir no tempo do governador José Marcelino”; essa travessa (depois absorvida pela Av. Borges de Medeiros) era transversal à Rua da Ponte; na esquina acumulavam-se as águas formando um [p. 46] charco, e ali foi feita a ponte – “uns paus estendidos ou atravessados” – que deu nome à rua (1983:17). b) Perpendicular à travessa, a Rua do Poço, (depois Rua Jerônimo Coelho); no cruzamento das duas havia sido construída a fonte, ou poço, que deu nome a ambas. Segundo Coruja tinha apenas uma casa (1983:1). c) Rua Nova (atual Gal. Andrade Neves) – de acordo com Coruja sua abertura deve datar do início do século, pois era realmente nova quando a conheceu; para ali davam fundos as propriedades com frentes para as ruas da Praia e da Ponte, e tinha pouquíssimos moradores 91983:99). d) Arco da Velha – “antiquíssimo nome de um beco ou rua que depois se chamou de Prisão Militar” (hoje Gal. Vitorino) (1983:31). e) Os becos do Fanha (atual Rua Caldas Júnior), do Brito (Travessa Acilino Carvalho), dos Guaranis (Rua Gal. Vasco Alves), e do Pedro Mandinga (Rua Gal. Canabarro) (1983:20, 105, 109, 111). f) Os becos do Leite e do Trem, que não mais existem (1983: 20, 30). 1.3.2 O Litoral Norte do promontório A inexistência de documentação cartográfica não permite avaliar com segurança qual seria a ocupação da faixa ribeirinha e nem a configuração da linha [p. 47] d’água. Os depoimentos convergem em indicar a Rua da Praia como a mais próxima ao rio e que concentrava todo o comércio. Iniciava na extremidade oeste do promontório, mas sua porção oeste gozava de menos prestígio que o trecho central, onde estavam o ancoradouro 13 Ver: Introdução, de Sérgio da Costa Franco, a Antigualhas. Reminiscências de Porto Alegre (Coruja, 1983:11-4). 25 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor e o trapiche em que se sentavam a conversar os comerciantes (v. p. 51), único elemento edificado no litoral formado por uma praia e uma extremidade rochosa. Foi na porção oeste da rua, sobre a praia, que se decidiu construir a nova cadeia, para substituir a que estava na extremidade oposta da vila, próxima ao Portão. A atividade de construção naval estava estabelecida também nesse trecho da Rua da Praia, bem como o almoxarifado da Marinha. 1.3.2.1 O lado do Arsenal A extremidade do promontório, voltada para Oeste, era conhecida como Praia do Arsenal (Coruja, 1983:109) e “do lado do rio só havia umas duas ou três casinhas de capim que serviam de moradia à gente pobre”. Como nos demais promontórios formados pelos morros que avançam sobre o Guaíba, também essa extremidade era irregular e rochosa. A Planta de 1837 mostra três pontas que aí ainda havia: a Ponta do Arsenal, projeção extrema do espigão, ou crista do morro; a Ponta da Passagem – que devia ter um relevo mais suave, pois nela desembarcava o gado em pé trazido para o [p. 48] matadouro;14 e a Ponta das Pedras, voltada para o Norte, marcando o limite entre a Praia do Arsenal e o Largo do Arsenal. Por Largo do Arsenal era conhecido o trecho desocupado do litoral norte entre as duas primeiras quadras da Rua da Praia. Na documentação posterior aparecerão ainda as denominações Largo da Forca, Largo da Marinha, Praça da Marinha e Largo do Arsenal da Marinha. O Largo do Arsenal, ainda segundo Coruja (1983:24), Tomou o nome de Largo da Forca porque ali eram executados oficialmente os condenados à forca; a qual se mandou levantar quando começou a trabalhar a Junta da Justiça, que funcionava na Casa da Junta [de Fazenda] onde depois se instalou a assembleia provincial.15 E para englobar a Praia do Arsenal, o Largo do Arsenal e mais um trecho do litoral norte nas suas proximidades, Coruja refere-se a toda aquela parte da vila [p. 49] como “lado do Arsenal” (1983:17), ou “bairro do Arsenal” (1983:53).16 14 Era também um dos passos (oficialmente estabelecidos para a travessia dos rios) para viajantes por terra entre a vila e a região da Campanha (Fernandes, 1961:32). O primitivo matadouro, segundo Coruja (1983:26), ficava no início da várzea que existia abaixo do portão da vila. O gado para ali seguia pelo litoral sul do promontório – Praia do Riacho, hoje Rua Washington Luiz. Continuou fazendo esse trajeto depois que o matadouro foi mudado para outro lugar na mesma várzea, entre as atuais Av. João Pessoa e Praça Garibaldi. 15 A Junta da Justiça foi criada em 1816 e começou a funcionar em 1818; o primeiro condenado à forca foi executado em 1821. Ver Sérgio da Costa Franco (1993:71-87). 16 Não foi possível descobrir a primitiva localização do Arsenal que deu nome àquela parte da vila, e nem se era do Exército ou da Marinha. A planta de 1837 registra os dois, ambos na Rua da Praia. O 26 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Ainda no “lado do Arsenal”, o litoral fronteiro às duas e meia quadras seguintes da Rua da Praia também não estava edificado na primeira metade do século. Em 1809 a Câmara solicitou ao Governador e Capitão General a concessão do trecho da praia diante da Igreja das Dores para levantar a nova cadeia pública. Solicitou também a concessão do trecho seguinte da praia, em direção ao centro da Vila (até a atual Travessa dos Cata- ventos na Casa de Cultura Mário Quintana), para que fosse conservado como logradouro público, e proibição de outros usos e de construções (AHRGS/AM 23.9.1809).17 Ambos terrenos foram concedidos à Câmara pelo Governo da Capitania (Cópia de Portaria do Gov. Paulo José da Silva Gama, 25.9.1809, anexa ao doc. AHRGS/AM 27.7.1844). [p. 50] A obra da nova cadeia teve início em 1809. Os ofícios solicitando e concedendo o terreno esclarecem que a cadeia estava projetada para o terreno ao lado do prédio da Junta da Real Fazenda, na Rua Formosa. Mas aquele tinha o inconveniente de “ficar muito no centro da povoação, e sem comodidades para despejo” (AHRGS/AM 23.9.1809). Por isso foi decidido construir-se em terreno devoluto de beira-rio em frente à recém iniciada Igreja das Dores. A obra da cadeia foi iniciada, mas não teve continuidade. As lacunas na documentação não permitem acompanhar o processo decisório que levou ao abandono da obra, e nem quando isso se deu.18 1.3.2.2 Quitanda Quitanda Velha é a denominação atribuída por Coruja (1983:107) ao “espaço de terreno” correspondente à atual Praça da Alfândega antes do aterro que duplicou sua área. Em 1808, dois anos após a construção do trapiche que deveria servir à Alfândega, Manoel Antônio de Magalhães (1940:70), relacionava o espaço à sua função econômica: [...] um porto no rio que tem meia légua de largura, onde podem ancorar até duzentas embarcações de cem a duzentas [p. 51] toneladas, com uma belíssima ponte d’alfândega, [...] defronte da mesma casa d’alfândega, onde uma boa praça convida a beleza e construção da obra. Arsenal de Guerra na esquina da Rua Gal. Bento Martins, ao lado da Igreja das Dores. Sobre o outro (hoje Capitania do Porto), entre a Rua da Praia e o Guaíba, junto ao Largo do Arsenal, diz Porto Alegre (1906:157), ainda sem mencionar fontes, que teria sido construído em 1797. 17 Estaleiros não implicavam prédios, apenas as carreiras, ou calhas de madeira que sustentavam os barcos em construção ou reparos. Na documentação posterior surgem pedidos de licenças para construção de barracões onde guardar ferramentas e telheiros para abrigar madeiras, sempre concedidas a título provisório. E mesmo os terrenos onde se instalaram os estaleiros apenas foram cedidos, ou arrendados, pela Câmara, com cláusula de retomada quando julgasse conveniente. 18 Recibos de pagamentos de carradas de pedra: AHPA/CMM 10.06.1809, 4.10.1809; pagamento de operários (livres e escravos): AHPA/CMM 27.10.1809. 27 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Cabe transcrever a menção que faz ao trapiche (“ponte d’alfândega”), rara descrição de uma edificação da época com seus detalhes construtivos: [...] com 24 pilares de cantaria pelo rio dentro, onde podem descarregar iates e sumacas, com uma carreira de 325 palmos de comprido e 30 de largo [...] e de madeiras grossas atravessadas de barrotes, que unidos formam o mais valente assoalho, fortificado com pernas francesas dirigidas dos corpos dos pilares aos vãos das madeiras. O termo desta carreira se liga a uma casa quadradas de 60 palmos de cada lado, que serve de lingagem a dois guindastes, com duas escadas laduais, que igualmente dão serventia aos desembarques das lanchas e mais embarcações pequenas. Esta casa fecha de pião, e é sustida sobre 13 pilares, mas da mesma cantaria, fortificada com o mesmo madeiramento [...]; oferece a mesma casa uma agradável vista com assentos à roda, onde o comércio se ajunta. A Leste daquele espaço, a linha d’água afastava-se um pouco da Rua da Praia, em direção ao alinhamento da atual Rua Sete de Setembro. Os terrenos entre a Quitanda Velha e a atual Rua Gal. Câmara, e entre esta e o Beco dos Ferreiros (atual Uruguai), estavam distribuídos e edificados. No Beco dos Ferreiros, próximo à praia, havia sido feito o prédio do primeiro teatro: Casa da Comédia. Em [p. 52] 1804, o beco começou a ser chamado também de Beco da Ópera, e Beco da Casa da Ópera.19 1.3.2.3 Porto dos Ferreiros/Paraíso Do Beco dos Ferreiros para Leste havia o espaço conhecido como Porto dos Ferreiros, correspondente à parte do litoral fronteira à atual Rua José Montaury, incluída a Praça XV de Novembro.20 A porção do Porto dos Ferreiros hoje ocupada por esta praça passou também a ser conhecida como Paraíso (Coruja, 1983:21-2). Os terrenos do Paraíso, embora não edificados, eram de propriedade particular. Um ofício da Câmara informa que o governo da Capitania pretendia mudar para ali o logradouro público destinado às carretas que traziam à vila “gêneros de comestível” (AHRGS/AM 2;12;1809). O ofício é uma consulta ao novo Governador Diogo [p. 53] de Souza sobre um plano, ainda não executado, do seu antecessor, Paulo José da Silva Gama. 19 Segundo Augusto Porto Alegre (1906:134) a Casa da Comédia foi reformada pelo Gov. Paulo Gama e passou a chamar-se Casa da Ópera. 20 A linha d’água passava pela atual Rua Sete de Setembro e Largo Glênio Peres. O Porto dos Ferreiros correspondia então a: 1) quadra entre Uruguai e Borges de Medeiros – hoje ocupada pelos edifícios Porto Alegre City Hotel e União; 2) trecho da Av. Borges entre este último e o Edifício Guaspari; 3) quadra entre Borges de Medeiros e a Praça XV – hoje ocupada pelos edifícios Guaspari e Dellapieve; 4) praça XV de Novembro. Isso encontra correspondência nas fontes consultadas, Sérgio da Costa Franco (1988:173), no entanto, refere-se a documentos que denominavam Porto dos Ferreiros uma extensão maior do litoral, incluindo o trecho da atual Sete de Setembro entre Uruguai e Gal. Câmara. 28 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor O ofício permite saber que o local até então destinado às carretas era a Praça da Alegria, próxima ao local denominado Portão, em que se uniam o caminho de Viamão e o caminho de Gravataí e Santo Antônio da Patrulha.21 Para a implantação do novo logradouro no Paraíso seria necessário desapropriar e indenizar os proprietários, mediante troca pelos terrenos que seriam liberados com a extinção da Praça da Alegria. 1.3.2.4 O lado da Brigadeira/Caminho Novo Ao longo do litoral norte, duas grandes propriedades completavam o espaço até o chamado Beco do Barbosa (atual Rua Barros casal), que uma postura da Câmara iria definir como o limite urbano em 1831. A primeira pertencia a Antônio Pereira do Couto. Incluía parte dos terrenos do Paraíso e a área correspondente aos quarteirões até a atual Rua Senhor dos Passos. Esta era uma “estrada, viela ou atalho, que dava caminho da Caridade [Santa Casa da Misericórdia] para a praia, e que não tinha nome por não ter casas laterais” (Coruja, 1983:118), depois chamado Beco do Cordoeiro. [p. 54] A segunda chácara, entre os becos do Cordoeiro e do Barbosa, havia sido concebida ao Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira em 1786. Herdada por sua viúva, foi, até além da metade do século XIX, conhecida como Chácara da Brigadeira.22 Ambas as chácaras se situavam no início do que Coruja (1983:103) chamou de Costa do Rio: “a praia que seguia da esquina do Paraíso para o lado do nascente e aonde só iam lavadeiras, aguadeiros e alguns que mais ousados queriam embrenhar-se pelo mato”. 1.4 Concessões e propriedade do solo Retomando os processos vistos acima, é possível traçar um esboço das formas de apropriação de terra e conformação do espaço desde fins do século XVIII ao início do século XIX. A princípio o espaço foi utilizado como simples passagem de gado apresado ao sul do território, em terras hoje uruguaias. A ocupação portuguesa evoluiu a seguir para uma [p. 55] apropriação do solo com o objetivo de engorda e pouso do gado que seria transportado para o Norte. Essa segunda forma era, a princípio, instável e pouco definida. Posteriormente, baseado na legislação sobre sesmarias, consolidou-se o regime 21 A localização da Praça da Alegria corresponderia ao atual encontro das ruas Senhor dos Passos e Annes Dias e parte da Praça D. Feliciano. Aí estavam o “corpo da guarda” (v. p. 29), relacionado ao Portão, e o açougue da vila (o matadouro ficava abaixo do Portão, no caminho de Viamão). 22 Sobre a enorme quantidade de terras apropriadas por Pinto Bandeira e seus familiares em diversos pontos do Rio Grande do Sul; sobre os mecanismos dessa apropriação por militares de altas patentes; e sobre a legitimação dessas posses pelo Governo do Continente durante a expansão territorial após 1780, ver: Osório (1990:170-189). 29 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor da propriedade privada sobre grandes extensões de terra para criação do gado. Isso implicou a fixação de uma população, embora muito rarefeita, dando início também a atividades agrícolas de subsistência e a núcleos de incipiente urbanização. Na região do Jacuí e dos Campos de Viamão, a partir de 1764 (Taquari) e especialmente entre 1770-74, a iniciativa estatal fez distribuição de glebas pequenas a colonos açorianos. A finalidade era agrícola quanto à produção, mas associada a objetivos estratégicos de ocupação mais densificada do território. Concomitantemente, em Taquari, Mostardas, Santo Amaro, Rio Pardo e Porto Alegre, deu-se a organização dos núcleos urbanos que centralizavam esses conjuntos de pequenas propriedades agrícolas.23 As terras concedidas a particulares foram alienáveis desde o começo. Transferências de propriedade, tanto das grandes extensões concedidas como sesmarias (pelo Governador e com aprovação do Conselho Ultramarino), quanto das pequenas [p. 56] propriedades agrícolas e dos terrenos urbanos (uma e outros concedidos como datas, pelo Governador apenas), estão registradas na documentação (AHPA/CMM 20.3.1804; Borges Fortes, 1932:198-202; Porto Alegre, 1906: Notas p. VI). Quanto ao sistema de concessão de terrenos urbanos, a documentação do século XIX indica que eram doados mediante a obrigação de receberem edificação, sob pena de reverterem à condição de devolutos. Sebalt Rüdiger (1965:59) fornece algumas indicações sobre a apropriação de terras em Porto Alegre, no final do século XVIII: [...] vamos encontrando concessões de terrenos urbanos, a partir de 185, a pessoas tão importantes como o próprio Rafael Pinto Bandeira, o comandante Carlos José da Costa e Silva, o escrivão da Fazenda Real Bernardino Henriques de Amorim, o cel. Alexandre Elói Portelle, etc., tendência que se acentuou na década de 90. Foram terrenos pequenos, dispostos junto ao arruamento incipiente que consistia nas ruas da Praia, do Arroio, do Arvoredo, do Cotovelo, e obtidos por toda espécie de pessoas, aparentemente sem maiores dificuldades. Nem todos eram pequenos terrenos. Rafael Pinto Bandeira, ao menos, recebeu uma área muito maior do que o comum dos lotes urbanos. Mas essa área estava fora do limite do arruamento da vila. Era uma das chácaras que se estendia a Leste do núcleo urbanizado, setor para onde deu-se a expansão da vila após a primeira década do século XIX. 23 A síntese aqui apresentada é esquemática e com lacunas. Uma das muitas questões que não foram estudadas: nesses núcleos, a cada data agrícola correspondia um lote urbano para o mesmo proprietário? 30 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor Capítulo 2 – Alterações no litoral após a primeira década. [p. 58] Ao quadro apresentado no item 1.3 do capítulo anterior é preciso acrescentar a dimensão temporal. O pequeno núcleo estava em crescimento no início do século. Este capítulo trata do reflexo de tal crescimento sobre a área urbanizada até o início da Revolução Farroupilha. São basicamente focalizados os espaços junto ao Guaíba, antecedidos de rápida visão da direção preferencial para onde se deu a expansão urbana. Procura-se enfatizar a incidência de determinações do governo central e a ingerência dos seus representantes, Governadores da Capitania e depois Presidentes da Província, sobre os espaços da cidade. Paul Singer (1968:148-54) apresenta dados que autorizam, ainda que sem o rigorismo com que o autor os aceita, considerar a correlação entre o crescimento populacional da vila e a exportação do trigo produzido no [p. 59] território a ela ligado pela bacia do Jacuí.24 Mas cabe reafirmar que Porto Alegre sustentava seu crescimento por ser também, como já visto, centro distribuidor dos produtos importados por aquele território. O ambiente construído refletia tal modificação. As décadas de 1810 e 1820 registram grande número de requerimentos de terrenos urbanos. As concessões eram solicitadas ao Governador. Este enviava o requerimento à Câmara para que informasse sobre a situação do terreno. Em casos de dúvida sobre aspectos físicos como medidas ou definição de limites, a Câmara solicitava um parecer do Engenheiro Militar (do Real Corpo de Engenheiros, a serviço do governo da Capitania) “encarregado do Plano da Vila”.25 [p. 60] Nas informações encaminhadas ao Governador a partir de 1810, a Câmara – agora do Município de Porto Alegre (mas a denominação Câmara Municipal só foi utilizada a partir de 1829) – passou a acrescentar que só tinha como rendimentos a 24 Tratar da demografia porto-alegrense no início do século XIX é, no entanto, arriscado. Nenhum dos censos e estimativas explicita a metodologia da pesquisa. Além disso tem havido a utilização conjunta de dados oficiais (e provenientes de publicações posteriores) com estimativas apresentadas por particulares como Magalhães, Saint-Hilaire, Isabelle. Singer serviu-se de um quadro elaborado por Walter Spalding, que é uma compilação desses dados de diferentes origens. 25 Expressão que consta em vários documentos do Fundo Autoridades Municipais e do Grupo Obras Públicas do AHRGS. Nenhum expõem com clareza o que implicava tal função, mas é possível perceber que se tratava, além da confecção da planta da vila, do conjunto das medidas relacionadas ao controle estatal da organização do espaço, algumas hoje exercidas pelo Executivo municipal: demarcar novas ruas, quadras e praças; determinar os alinhamentos a que deveriam obedecer as edificações, públicas como particulares; acompanhar a Câmara nas vistorias em casos de disputas acerca de terrenos (AHRGS/AM 7.12.1813); elaborar projetos para as obras públicas: cais, prédios, pontes, obras de drenagem e pavimentação. O primeiro Plano (planta) da Vila de que se tem notícia foi levantado pelo Cel. Eng. José Pedro César em 1820, entregue à Câmara em 1825 e hoje perdido (AHPA/CMM 8.7.1825). 31 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor aferição dos pesos e medidas do comércio e os contratos de arrematação dos açougues (estando a perde-los pelo desmembramento dos novos municípios em implantação). E tinha que atender às suas despesas correntes, ao cuidado dos expostos e à construção da cadeia. Passou a solicitar que cada terreno fosse concedido não ao particular que o requeria, mas a ela, para ser aforado e dar início assim a um patrimônio público.26 Generalizando a solicitação, em 1813 enviou ao Governador um ofício em que reivindicava todos os terrenos devolutos existentes na Vila (AHRGS/AM 13.1.1813). Após essa data todas as informações passaram a conter referências a esse ofício, reiterando o pedido. Só em 1824, contudo, a pretensão foi atendida, pelo primeiro Presidente da Província. Então, com exceção de trechos da margem do rio, restavam poucos terrenos devolutos no recinto da cidade (v. págs. 75 e 84). [p. 61] 2.1 Ampliação da área urbanizada O arruamento e concessão de lotes para edificações expandiam-se principalmente a Leste da área referida como mais densamente edificada em 1804 (limitada pela Rua de Bragança). Ao longo da Costa do Rio foi aberto pelo governo da Capitania um caminho que iniciava na extremidade leste do sítio do Paraíso, junto à desembocadura da Rua de Bragança no Guaíba. Segundo Coruja (1983:28; 103) sua abertura data de 1811-12. Conhecido por Caminho Novo (e hoje Rua Voluntários da Pátria), de acordo com documento transcrito por Sérgio da Costa Franco (1988:431) já teria sido iniciado em 1806. No início da década de 1810, teria sido estendido em direção à várzea do Gravataí. Nessa segunda década, também a Leste da vila, foram ainda abertas a Rua da Bandeira (depois Rua do Rosário e hoje Vigário José Inácio), a Rua de Santa Catarina (Dr. Flores) e a continuação da Rua da Praia para além da Rua de Bragança (Franco, 1988:176; 423-4). Era, portanto, o desmembramento da chácara de Antônio Pereira do Couto. Talvez um pouco antes (não há registro da data), em terrenos da mesma [p. 62] chácara, havia sido aberto um beco que desembocava no Paraíso. Essa via, hoje absorvida pela Av. Otávio Rocha, passou a ser conhecida como Beco do Rosário depois de iniciada 26 Exemplos: a) terreno solicitado para levantar um moinho de vento; está devoluto, mas “parece justo que V. Exa. se digne antes a concedê-lo para esta Câmara, para o poder emprazar em praça pública a quem der maior foro [...]” (AHRGS/AM 10.10.1810). B) terrenos devolutos na Rua de trás do Arvoredo (hoje Rua Demétrio Ribeiro); neles se pode formar nova rua a que deram já princípio três moradores, mas “parecia-nos justo que V. Exa. se dignasse conceder para o Conselho aqueles terrenos, e todos os mais que se acharem ainda devolutos dentro da Vila para depois de medidos e demarcados se emprazarem por esta Câmara em benefício do Bem Comum a que são aplicados seus rendimentos” (AHRGS/AM 24.10.1810). 32 Transcrição por Pedro von Mengden Meirelles (2018), com autorização do Autor a construção da igreja de mesmo nome, em 1817 (Coruja, 1983:105; Franco, 1988:353). Esse conjunto de alterações, de iniciativa particular, com venda dos terrenos, ampliou a área urbanizada até o Beco do Cordoeiro, no limite da Chácara da Brigadeira. A essas modificações acrescentaram-se as decorrentes do já referido processo de troca do logradouro para pouso das carretas, da Praça da Alegria para a do Paraíso, que teve desdobramentos que serão vistos a seguir (item 2.2). 2.2 Caminho Novo O Caminho Novo manteve-se até meados da década de 1830 apenas como via de acesso às chácaras que se situavam entre o rio e a encosta da mesma elevação em cuja extremidade estava a cidade. São bem conhecidas as referências feitas por Saint-Hilaire, Gonçalves Chaves e Nicolau Dreys a essa área adjacente ao núcleo urbano, onde em [p. 63] 1834 Arsène Isabelle (1983:57) viu “casas de recreio, bordejando em meio círculo
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