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Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 1 ETNICIDADE E IDENTIDADE DO ANTIGO ISRAEL* Júlio Paulo Tavares Zabatiero Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia – Escola Superior de Teologia, São Leopoldo/RS Resumo: O presente artigo se ocupa da questão da formação da identidade “nacional” do antigo Israel, em seu contexto no antigo Oriente Médio. O referencial teórico utilizado, multidisciplinar, equaciona os termos etnicidade e identidade, e propõe uma nova abordagem para o estudo histórico do antigo Israel, tendo como eixo a construção da identidade desse povo ao longo de sua história. À luz de uma revisão do estado da pesquisa sobre a história do antigo Israel e do referencial teórico proposto, postula uma nova periodização e uma nova chave de leitura da identidade vétero-israelita, a partir da oposição entre os vetores da identidade plural aberta e da identidade centralizadora. Palavras-chave: Etnicidade – Identidade – Israel Antigo. Abstract: The theme of this essay is the formation of the national identity of the early Israel, in its Near Eastern context. The theoretical basis is multidisciplinary, and the work conflates the ideas of ethnicity and identity in order to propose a new approach to the historical research on Ancient Israel. Taking into consideration the history of the research, the article postulate a new table of historical periods of Israel, revolving around the axis of open versus closed identities. Key-words: Ethnicity – Identity – Ancient Israel. *Artigo originalmente apresentado como parte das atividades do Núcleo de Pesquisa em História Cultural de Israel. Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 2 Em escritos mais recentes de história do antigo Israel, o tema da etnicidade, à luz da repercussão da obra de F. Barth, tem ocupado espaço significativo, especialmente no tocante às origens de Israel enquanto povo.1 Na linha barthiana, “a etnicidade é vista como um elemento de definição de situação manipulado pelos atores no decorrer de suas interações. Longe de se impor aos atores como um dado do mundo social a ser aceito sem questionamento, a etnicidade oferece-se a eles como um meio de construção, de manipulação e de modificação da realidade. Ela é um elemento das negociações explícitas ou implícitas de identidade sempre implicadas nas relações sociais. A hipótese é que, no curso dessas negociações, os atores procurem impor uma definição da situação que lhes permita assumir a identidade mais vantajosa” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998: 116). A partir dessa compreensão de etnicidade, pode-se afirmar que “um ethnos é um grupo de pessoas maior do que um clã ou linhagem, que reivindica uma ancestralidade comum. Conquanto o parentesco cultural ou biológico possa reforçar o vínculo, uma ‘memória coletiva de uma unidade anterior’, ou ‘um mito putativo de descendência e parentesco comum’ fabricados, em última análise vinculam as várias linhagens. Traços primordiais e circunstanciais, tanto auto-atribuídos como promulgados por outros, definem o grupo. Aspectos primordiais são percebidos pelo grupo como tendo existido desde o princípio: em outras palavras, eles são a ‘memória coletiva de uma unidade anterior’, ou uma herança comum. Parentesco, território, ou tradições seletas, incluindo religião, freqüentemente definem as origens do grupo. Em contraste aos aspectos primordiais, fatores circunstanciais são 1 Tradicionalmente, a etnicidade não era um tema da historiografia do antigo Israel, pois concebida como uma propriedade física, natural. Questionava-se, sim, se as representações genealógicas do povo de Israel corresponderiam a um processo histórico plausível. Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 3 diversamente ativados em resposta a situações mutáveis. Cultura material ou relações com outros grupos exemplificam fatores” circunstanciais. Embora os fatores identificadores auto-atribuídos possam mudar, construtos sociais mutáveis, distinguindo ‘nós’ ‘deles’ moldam continuamente a afiliação étnica” (BLOCH-SMITH, 2003: 402s). O fator relevante da compreensão de Bloch-Smith é a distinção entre fatores primordiais e circunstanciais. A partir desta linha de compreensão, etnicidade e identidade tornam-se sinônimos, ambos os conceitos apontando para o processo de auto-representação de um dado grupo social, processo este de caráter histórico e conflitivo. Este ensaio, assim, traz à discussão uma reconstrução histórico-cultural da construção da identidade-etnicidade do antigo Israel a partir de alguns dos seus textos fundantes. 1. A construção da identidade étnica A construção da identidade étnica é um processo sócio-lingüístico mediante o qual se firmam as diferenças em relação às quais nossa identidade se delineia, bem como as identificações necessárias para que tal identidade seja efetivamente nossa. Como processo social, a construção da identidade também se configura como uma prática de poder2, o poder de classificar, de diferenciar, de identificar, de dizer 2 “Todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído. [...] Somos constrangidos, entretanto, não apenas pela gama de possibilidades que a cultura oferece, isto é, pela variedade de representações simbólicas, mas também pelas relações sociais. [...] ‘A identidade marca o encontro de nosso passado com as relações sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos agora [...] a identidade é a intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas de subordinação e dominação.’ (RUTHERFORD, 1990, p. 19-20)” (WOODWARD, 2000:18s). Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 4 quem pertence a nós e quem pertence aos outros.3 Manuel Castells, levando em consideração as relações de poder envolvidas na construção da identidade, propôs três formas da mesma: * Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais, tema este que está no cerne da teoria de autoridade e dominação de Sennett, e se aplica a diversas teorias do nacionalismo. * Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos, conforme propõe Calhoun ao explicar o surgimento da política de identidade. * Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social” (CASTELLS, 2000: 23s.). A estas três categorias da tipologia de Castells acrescento uma quarta, a identidade emancipatória, a saber, aquela forma de identidade que é fruto bem sucedido de um projeto de transformação social – de uma identidade de projeto – e, conquanto possa passar a ser a 3 “A identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato [...] a identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental[...] podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder” (SILVA, 2000: 96s). Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 5 identidade predominante de um povo, ou nação, não se configura como uma forma de garantir e racionalizar a dominação social.4 Destaco ainda que não se deve incorrer no erro de reificar esta tipologia, mas entendê- la sempre como se referindo a processos históricos que, em dados momentos, se sedimentam, mas não se estagnam de forma alguma. Acrescento duas categorias explicativas da construção identitária, com base nas suas fontes de elaboração e legitimação: (a) identidade policêntrica, em que diversos centros legítimos de construção de identidade são admitidos e convivem de forma relativamente harmoniosa, o seja, coexistem em relações e estruturas simétricas de poder – cruzando com a tipologia de Castells, diria que a identidade policêntrica se coaduna com a identidade de projeto e com a emancipatória; (b) identidade monocêntrica, em que apenas um centro legítimo de construção identitária é reconhecido na estrutura social, e mantém relações de dominação com outros centros de construção identitária, obviamente considerados ilegítimos – neste caso, fica evidente que estamos lidando com relações e estruturas assimétricas de poder. No cruzamento com a tipologia de Castells, a identidade monocêntrica se aproxima mais da legitimadora. No processo de construção da identidade étnica, a diferenciação é o mecanismo mediante o qual um grupo social constrói discursivamente os seus outros, a identificação é o mecanismo mediante o qual um 4 Castells opera com um conceito totalmente negativo de poder, enquanto prefiro uma conceituação mais abrangente do poder, que inclua formas emancipatórias do mesmo, como na teoria de Hannah Arendt, por exemplo: “O poder serve para preservar a práxis, da qual se originou. Consolida-se em poder político, através de instituições que asseguram formas de vida baseadas na fala recíproca. O poder manifesta-se em: a) ordenamentos que garantem a liberdade política; b) na resistência contra as forças que ameaçam a liberdade política, tanto exterior como interiormente; c) naqueles atos revolucionários que fundam as novas instituições da liberdade: 'o que investe de poder as instituições e as leis de um país, é o apoio do povo, que por sua vez é a continuação daquele consenso original que produziu as instituições e as leis [...] Todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; elas se petrificam e desagregam no momento em que a força viva do povo deixa de apoiá-las” (HABERMAS, 1980: 103). Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 6 grupo social constrói a sua auto-imagem, associa-se a um conjunto de representações, a um discurso a respeito de si mesmo. Neste sentido, identificação e diferenciação são mecanismos comunicativos, discursivos, que operam simultaneamente. Mitos de origem, genealogias e etiologias, por exemplo, são mecanismos de construção do outro e do si mesmo.5 Sistemas classificatórios são outro mecanismo de diferenciação e identificação: “Um sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos - nós/eles... eu/outro... dão ordem à vida social, sendo afirmados nas falas e nos rituais.” (Woodward, 2000: 40). Os sistemas classificatórios são, normalmente, binários: sagrado/profano; puro/impuro; amigos/inimigos; nós/eles. Nas formas de identidade legitimadora, a diferença se constrói negativamente, geralmente por meio de oposições binárias, dualismos éticos, étnicos, religiosos, ou sociais, que são percebidas como permanentes, pelo que as identidades legitimadoras tendem a ser essencialistas. Nas formas de identidade de resistência e de projeto, é comum um estágio de construção negativa da diferença, que pode anteceder uma visão positiva da mesma, ou se cristalizar negativamente, reproduzindo, dessa maneira, mecanismos da identidade legitimadora. A identidade emancipatória, em tese, afirma e celebra a diferença, reconhecendo o seu valor, sem desconsiderar, entretanto, que nem todo diferente é parceiro na construção de uma sociedade emancipada – não deixa de estabelecer um outro como 5 “Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. [...] As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a “nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas” (HALL, 1998: 50s.). Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 7 inimigo, mas não, normalmente, de forma tão permanente como na identidade legitimadora. 2. Aspectos primordiais na construção da identidade étnica do antigo Israel É bastante conhecido o fato de que as origens de povos tendem a ser contadas de forma mítica ou épica – e com Israel não há diferença. As fontes escritas de que dispomos para reconstruir a história do antigo Israel estão quase que exclusivamente nas Escrituras judaicas que, para as igrejas cristãs, são conhecidas como o Antigo Testamento. Textos escriturísticos judaicos relativos às origens de Israel são de difícil datação. Provêm de diferentes tradições e regiões de Israel e Judá e, estão incorporados em duas longas obras narrativas – a primeira que no cânon judaico é conhecido como a Torá (Pentateuco, para os cristãos, que abrange os livros do Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), outra nos livros que o cânon hebraico denomina de Profetas Anteriores e a pesquisa histórica costumeiramente denomina de Obra Histórica Deuteronomista (que abrange os livros de Josué, Juízes, I e II Samuel, I e II Reis). Segundo as hipóteses mais aceitas na pesquisa bíblica, essas duas longas obras são fruto de um demorado e intrincado processo de redação, a contar das origens orais de seus conteúdos, passando pelas tradições ainda oralmente transmitidas, suas redações parciais em diversas regiões ou por diferentes grupos de redatores, até chegar à redação final, conforme a temos na Escritura. Ainda de acordo com a tendência mais comum da pesquisa, as tradições formativas do Pentateuco e da Obra Histórica Deuteronomista devem ser datadas a Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 8 partir do séc. IV ou VIII a.C., e a redação final dessas obras não deve ter ocorrido antes do século VI a.C. A fim de analisar processos de configuração identitária, em um primeiro momento, apresento a descrição das origens de Israel conforme a redação final dessas obras; posteriormente, discuto uma questão específica a partir de um texto pertencente a um corpus literário distinto do usado para a descrição da memória israelita de suas origens. O quadro registrado pela memória israelita nas suas Escrituras apresenta, de forma bastante resumida, os seguintes traços primordiais da identidade étnica de Israel: • As origens de Israel remontam à própria criação do mundo porJavé, o deus dos hebreus. O primeiro patriarca de Israel, Abrão, tem suas origens mais remotas vinculadas aos grandes heróis dos períodos da criação e do dilúvio. Abrão é escolhido por Javé para ser o ancestral de Israel e recebe a promessa de ser pai de uma nação numerosa e poderosa que habitaria na terra de Canaã. Através de várias vicissitudes, a escolha e a promessa de Deus a Abrão se cumprem e Israel vem a ocupar a terra prometida como um conjunto de doze tribos, descendentes dos doze filhos de Jacó, neto de Abrão (Abraão é o nome que ele recebe após o nascimento de seu filho Isaque, com a esposa Sara). Abrão vem de família originária da Mesopotâmia, mas é levado por seu deus a habitar nas terras de Canaã, assim como seus filhos e netos, os quais, atravessando várias dificuldades e conflitos tomam posse de pequenos trechos da terra, definindo assim, de forma proléptica, o direito de Israel à terra que não lhe pertencia (conforme o livro de Gênesis); Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 9 • Jacó (que recebe o nome de Israel, após lutar com um anjo) e seus descendentes, por causa de uma grande fome, foram morar no Egito e lá, após a subida ao trono de um Faraó que desconhecia a importância de José (um dos membros da família de Jacó), os israelitas são oprimidos e colocados para trabalhar como escravos nas cidades-armazém do Faraó. Um israelita, Moisés, providencialmente salvo da ira do Faraó, é criado na corte egípcia [por volta de 1.300 a 1.250 a.C.] e, após várias provações, será o libertador dos israelitas, após uma série de milagres que provam que o deus de Israel é mais poderoso que os deuses egípcios – culminando na famosa passagem pelo Mar Vermelho (conforme os livros de Gênesis e Êxodo); • Após uma peregrinação de quarenta anos no deserto, por falta de fé (conforme os livros de Êxodo, Números, Levítico e Deuteronômio), finalmente Israel se aproxima da terra de Canaã, já como um povo organizado em doze tribos e, através de uma série de combates conquista a maior parte das cidades-estado de Canaã e toma, assim, a terra que lhe fora prometida por seu deus [por volta de 1.200 a.C.] (este é o quadro presente no livro de Josué). Uma descrição mais matizada, no livro de Juízes, relata que Israel ainda teve de lutar contra várias cidades-estado após assentar-se na terra de Canaã, realizando plenamente a conquista de sua terra somente após a sua constituição como monarquia, cerca de cem anos depois; • No período pré-monárquico, de organização tribal, Israel ainda sofre a oposição de cidades-estado cananitas, e, especialmente, das cidades-estado filistéias. Somente com a atuação decisiva de Davi, um jovem que se tornou herói militar e mercenário, os inimigos são derrotados e Israel se torna um estado monárquico chegando a ser, na época do rei Salomão, filho de Davi, um Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 10 pequeno império (c. 1000-950 a.C., conforme os livros de I e II Samuel e I Reis). As promessas de Javé se cumprem efetivamente, então, apenas na monarquia sob a dinastia davídica, embora já no governo do neto de Davi os reinos de Israel e Judá6 se separem politicamente. A divisão dos reinos de Judá e Israel é interpretada de duas maneiras: (1) é fruto da idolatria da população e dos governantes das tribos do norte (reino de Israel), que se rebelaram contra a dinastia de Davi; e (2) é fruto do excesso de tributação imposto pela corte davídica sobre as tribos do norte, as quais não reconhecem a legitimidade de Roboão, neto de Davi, para exercer o poder (I e II Reis). Esta é, em traços sucintos, a memória “oficial”, canônica, da identidade étnica israelita, conforme descrita nas Escrituras judaicas. Naturalmente, essa memória não corresponde exatamente aos processos históricos das origens de Israel, mas apresenta uma interpretação das mesmas que privilegia a construção da identidade étnica do povo e nação israelitas. Que informações possuímos sobre as origens de Israel fora dos textos da Escritura judaica? A mais antiga evidência documental da existência de Israel em Canaã se encontra na estela de Merneptah, que relata campanhas militares egípcias em Canaã por volta de 1.200 a.C. Nela, o nome Israel é precedido de um hieróglifo que indica povo e não país, cidade ou região. Isto nos indica que já naquele tempo um povo era conhecido com o nome Israel e habitava em Canaã – o que confere com a memória israelita, presente na 6 O reino de Israel é destruído pelos assírios por volta de 722 a.C. e a nação que conhecemos como Israel, após essa data, é composta do reino do sul – Judá – e de fugitivos israelitas da destruição assíria. O reino de Judá adota o nome Israel e preserva, assim, a memória identitária antiga dos dois reinos, outrora reconhecidos pela tradição como as doze tribos dos filhos de Jacó-Israel. Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 11 Escritura judaica, de um período tribal, pré-estatal, e nos oferece uma data-limite aproximada para a formação de Israel (HASEL, 1994). Como fruto de diversas pesquisas arqueológicas, o quadro mais consensual, atualmente, das origens de Israel pode ser descrito da seguinte maneira: na transição da Idade do Bronze para a do Ferro, agricultores e pastores habitantes de cidades-estado cananitas fogem do domínio das mesmas e passam a habitar nas regiões montanhosas do centro de Canaã e se constituem como grupos de resistência a esse domínio. Devido à desorganização político-econômica da região na época, graças ao declínio do poderio egípcio, esses e outros grupos populacionais conseguem progressivamente ocupar maiores espaços e vão se transformando no chamado Israel “bíblico”. Não há grandes transformações na cultura material da região, além das marcas do empobrecimento e mudanças populacionais, o que aponta para um processo gradual de mudança social interna. Deve-se destacar, entretanto, que as informações são mais fundamentadas no tocante à região central de Canaã, havendo ainda várias lacunas a serem preenchidas. O quadro traçado pelos achados arqueológicos, no que tange ao período em que Israel já está na terra de Canaã, se aproxima mais da descrição do livro de Juízes do que da do livro de Josué (com seu relato de uma conquista quase que imediata de toda a região pelos israelitas). Dadas as significativas diferenças entre as descrições, não se trata de tentar harmonizar os relatos traditivos de Israel sobre suas origens e as hipóteses formuladas mediante a pesquisa histórica. Não se trata, igualmente, de tentar defender apologeticamente, a partir da fé religiosa, a validade do relato escriturístico, nem de negá-lo como fonte Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 12 para a historiografia, com base em ultrapassados preconceitos positivistas. Conforme descreve Rüsen, “a história emerge de tradições, nas quais os limites da relação do passado com o presente são ultrapassados: o passado torna-se consciente enquanto tal, adquire uma qualidade temporal em seu conteúdo experiencial, fornecendo, assim, com essa nova qualidade temporal, novos elementos de compreensão da dimensão temporal da vida humana prática” (RÜSEN, 2001: 83, grifo meu). Inevitavelmente, o relato israelita de suas origens, tradicional e não histórico (no sentido de história cientificamente reconstruída), nos conta muito mais a respeito de como os israelitas, posteriormente (no tempo dos relatos), construíram sua própria identidade do que, propriamente, como se deu exatamente a origem de Israel.Ao invés, então, de tentar harmonizar as diferentes descrições, ou negar uma a partir da escolha da outra como verdadeira, uma opção historiográfica mais eficiente é a de, levando em consideração as diferenças, tentar traçar um retrato do processo de formação da identidade étnica de Israel, e verificar os pontos de contato possíveis com as hipóteses historiograficamente formuladas das origens. A tradição israelita difere significativamente da descrição com base na arqueologia no tocante à origem não-cananita de Israel. Entretanto, este dado traditivo pode ser interpretado como um mecanismo de diferenciação, de construção de outros significantes, contra os quais o novo povo afirma a sua identidade. Canaã, Egito e filisteus são, conforme a tradição, o outro de Israel. Os mecanismos de demarcação de fronteiras entre Israel das origens e seu outro são: (a) enquanto o outro é opressor, Israel, mesmo fraco, consegue a sua libertação, graças à intervenção poderosa de seu deus, que derrota os deuses dos Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 13 inimigos de seu povo (tanto no êxodo, quanto na conquista da terra); (b) enquanto o seu outro adora vários deuses e é identificado como “idólatra”, Israel adora apenas a Javé, que é um deus guerreiro e ético, diferente dos deuses cananeus de fertilidade – somente quando Israel cede às tentações de se tornar semelhante ao seu outro é que Javé, o deus israelita, deixa de abençoar o seu povo e este sofre às mãos de seus opressores; e (c) embora originário de fora de Canaã, as semelhanças culturais e religiosas entre Israel e seu outro podem ser explicadas mediante o recurso às tradições patriarcais, as quais também legitimam o direito de Israel possuir a terra que vem a ocupar, outrora pertencente a cidades-estado cananitas e filistéias. Ao fazer uso da tipologia de Castells, os relatos das origens de Israel apontam para um processo de construção identitária iniciado com a resistência contra a dominação de cidades-estado cananitas e da potência imperial egípcia. A definição do êxodo egípcio como evento fundante de Israel constrói significativamente esta característica de resistência: se venceu o maior de todos os opressores, Israel também será capaz de derrotar as cidades-estado que controlam a sua terra prometida. Note-se, aqui, a convergência entre a tradição israelita e a reconstrução histórica mediante a pesquisa arqueológica. Levando-se em consideração a data das origens de Israel, derivada da interpretação da Estela de Merneptah, e as lacunas arqueológicas relativas às regiões não-centrais de Canaã, é plausível se postular o encontro entre grupos de resistentes vindos de fora de Canaã e os grupos cananeus, no processo de constituição desse novo povo, Israel. Nas tradições israelitas, essa identidade de resistência se transforma em uma identidade de projeto – o período tribal, pré- Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 14 monárquico de Israel. Tal período pode ser interpretado como o de um projeto de construção identitária, na medida em que, apesar das vitórias significativas contra o seu outro, Israel, antes da monarquia, ainda não tem a sua identidade plenamente formada – recaindo na idolatria e na dominação das cidades-estado. Literariamente isto pode ser constatado nos refrões avaliativos que perpassam o livro dos Juízes, quando interpreta os momentos de queda israelita: “os filhos de Israel fizeram o que é mau aos olhos de Javé, e serviram aos Baalim” (Jz 2,11 cf. 3,7.12; 4,1; 6,1; 10,6; 13,1); “naquele tempo não havia rei em Israel; cada um fazia o que era certo a seus olhos” (Jz 17,1 cf. 18,1; 19,1; 21,25). Tais refrões apontam para a origem cortesã destes relatos traditivos, e apontam para a autocompreensão da monarquia israelita como o verdadeiro Israel, fiel a Javé, configurando-se, assim, o estado monárquico israelita – sob a dinastia davídica – como a forma de construção identitária classificada por Castells como identidade legitimadora. Nos livros de Samuel e Reis esta forma legitimadora de construção da identidade é reforçada pelas narrativas da subida de Davi ao trono, da conquista de Jerusalém para ser a capital do reino e da eleição da dinastia davídica, por Javé, para governar perpetuamente sobre Israel. Uma dinastia (a davídica), uma capital (Jerusalém, a cidade de Davi) e um único templo legítimo de Javé (em Jerusalém, construído por Salomão), são as principais marcas da identidade legitimadora e monocêntrica do estado monárquico israelita, em distinção à identidade policêntrica de Israel no período tribal. Que esta identidade legitimadora teve de enfrentar importantes resistências internas se pode depreender de conflitos na própria tradição: (a) os refrões avaliativos do livro de Juízes se destacam Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 15 claramente como glosas interpretativas, em contraste com a maioria das narrativas que valorizam positivamente o período tribal de Israel. Em vários relatos do livro de Juízes se pode constatar a presença de elementos classificáveis como pertencentes a uma forma emancipatória de construção da identidade étnica, especialmente os relatos que diluem as diferenças entre Israel e seu outro cananeu; (b) os reinados de Salomão e Roboão, seu filho, são descritos em termos muito semelhantes aos da descrição da opressão dos israelitas sob os egípcios e, embora a revolta das tribos do norte seja julgada como ilegítima na forma final do livro de Reis, claramente se pode perceber o tom positivo da mesma como uma renovação das lutas originadoras de Israel em resistência à opressão monárquica; e (c) nem todo os reis da dinastia davídica foram fiéis a Javé e, eventualmente, a própria dinastia davídica chegou ao seu fim sob a dominação neobabilônica. Conquanto o livro de II Reis conclua com uma nota de esperança na restauração da dinastia davídica, os relatos da destruição de Jerusalém e seu Templo e da deportação da elite governante são sinais da resistência contra a identidade legitimadora davídica. A resistência à organização nacional de Israel como um estado monárquico, similar às cidades-estado cananitas deve ter se originado entre os agricultores que foram prejudicados pela cobrança de tributos e pela exigência de corvéia, os quais, com a ajuda dos novos profissionais religiosos, retomaram as tradições da origem de Israel para se opor à dominação de seus próprios reis. Concluo esta breve descrição com o exame sucinto de um texto do livro do profeta Isaías, que exemplifica não só a existência de formas de resistência contra a identidade legitimadora (e legitimada) da monarquia davídica, mas também alterações significativas em um dos traços Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 16 primordiais da identidade israelita diante de circunstâncias novas. Diz assim o texto: “Naquele dia, haverá um altar a Javé no meio da terra do Egito e uma estela de Javé perto da sua fronteira. Será um sinal, uma testemunha para o Senhor de todo poder, na terra do Egito: quando gritarem para Javé por causa dos que os oprimem, ele lhes mandará um salvador que os defenderá e os libertará. Javé se dará a conhecer aos egípcios, e os egípcios, naquele dia, conhecerão a Javé. Eles o servirão através de sacrifícios e oferendas, farão votos a Javé e os cumprirão. Então, se Javé golpeou vigorosamente os egípcios, cura-los-á; eles voltarão a Javé que os ouvirá e os curará. Naquele dia, uma estrada irá do Egito à Assíria. Os assírios virão ao Egito e os egípcios à Assíria. Os egípcios adorarão junto com osassírios. Naquele dia, Israel será o terceiro ao lado do Egito e da Assíria. Esta será a bênção que, na terra, o Senhor de todo poder pronunciará: Benditos sejam o Egito, meu povo; a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança” (Isaías 19,19-25). Por que Egito e Assíria? Ambos foram as potências que marcaram a tradição e a vida israelita como grandes dominadores, erigindo-se, ao longo da história de Israel, como o outro mais negativo para a dinastia davídica, especialmente a Assíria, responsável por um trágico período de sofrimento em Israel no século VIII a.C. Incidentalmente, a ausência dos babilônios neste oráculo profético auxilia a sua datação, podendo ser colocado na segunda metade do séc. VIII a.C., ou logo depois, no início do século seguinte. A terminologia lembra a das tradições do êxodo: clamor (grito), meu povo e minha herança possuíam forte significado identitário para os camponeses israelitas – no Egito, Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 17 clamaram a Javé, que os livrou da mão do Faraó, comprovando, assim, que os filhos de Israel eram o “meu povo” e a “minha herança” de Javé, em cumprimento às promessas feitas a Abrão e seus descendentes imediatos. Ao atribuir ao Egito e à Assíria termos identitários próprios dos israelitas, o profeta autor deste oráculo, como porta voz de parcela da população que resistia à dominação da dinastia davídica, desloca um traço primordial da identidade israelita, e a reinterpreta de forma invertida, a fim de constituir a própria corte davídica como o outro a ser enfrentado. Ser povo, ou herança, de Javé não é uma condição derivada da adequação religiosa, da eleição da dinastia, da força militar, ou da habitação de Javé em um templo. Deriva, sim, do clamor, do grito a Javé quando da opressão. O outro primevo – o Egito – será vítima de golpes do próprio Javé, mas, desta vez, não para libertar os filhos de Israel, e sim para libertar o próprio Egito, que se tornará ele também “meu povo”, e o será juntamente com a Assíria, “obra das minhas mãos”. Sob as novas circunstâncias da dominação tributária proveniente da própria corte israelita, a memória da identidade emancipatória de Israel é remobilizada criativamente, e novos processos de demarcação do outro e de si-mesmo são formulados. A etnicidade de Israel, então, não é uma questão definida primordialmente pela descendência abraâmico- davídica ou pela posse da terra prometida. Primordial para a construção de si-mesmo é o clamor, que simboliza a pertença a um deus libertador, e que é o espelho para a identidade do seu povo. O outro é todo governo que oprime, mesmo que seja da mesma família ou creia no mesmo deus. Javé é o deus de Israel povo, e não um deus nacional, Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 18 conforme a teologia da corte davidida. O deus que andava com os patriarcas de Israel é agora mobilizado para deslegitimar o deus que mora no templo de Jerusalém. O êxodo, que marcou a fundação de Israel, é agora mobilizado para negar à corte davidida a legitimidade teológica para governar. Antes deste profeta, voz similar já se fizera ouvir, a do profeta Amós, possivelmente o primeiro dos profetas clássicos do reino de Israel: “Para mim não sois vós como os filhos dos cuxitas, ó filhos de Israel? – oráculo do Senhor. Acaso não tirei eu Israel da terra do Egito, os filisteus de Kaftor e Aram de Quir? Estão os olhos do Senhor meu Deus sobre o reino pecador. Vou suprimi-lo da face da terra; todavia não suprimirei totalmente a casa de Jacó – oráculo de Javé” (Amós 9,7- 8). No livro de Amós, “casa de Jacó” é um termo técnico para o campesinato do reino do norte, anterior à sua destruição pelos assírios. A corte israelita, como a corte davidida no reino do sul, também oprimia o campesinato e este, por sua vez, também evocava a memória libertária do êxodo contra o governo opressor. Nestes oráculos de Isaías e Amós encontramos a voz da resistência à dominação de seus próprios governantes. Contra a legitimação teológica do governo opressor, o campesinato judeu, representado pelos seus porta-vozes proféticos, fazia brandir a resistência teológica emancipadora: Javé, o deus de Israel, é o deus de todos os povos que clamam sob a opressão. Javé não é o deus da nação, mas o deus do povo. Não eram somente as cortes monárquicas as produtoras de teologia e saber. Também o povo desenvolvia as suas formas de teologia e saber, e sempre que necessário, usava-as para resistir à dominação. As Escrituras canônicas dos judeus dão testemunho dos processos de circularidade cultural entre as elites governantes e o povo Dossiê Identidades Nacionais N. 2 – outubro/novembro 2006 Organização: Glaydson José da Silva www.unicamp.br/~aulas 19 judeu, bem como entre os judeus e seus vizinhos vétero-orientais. Independentemente de seu valor religioso para as grandes religiões monoteístas, as Escrituras judaicas são importante fonte documental para a pesquisa histórica. Colocá-las contra a “cultura material” e a pesquisa “científica” somente empobrecerá a reconstrução histórica do antigo Israel e do Antigo Oriente Médio. Referências Bibliográficas: AHLSTRÖM, G. W. The history of ancient Palestine. 1993. Minneapolis, Fortress Press. BLOCH-SMITH, E. 2003. 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Júlio Paulo Tavares ZABATIERO Etnicidade e Identidade do Antigo Israel www.unicamp.br/~aulas 20 Disponível na World Wide Web: <http://www.asor.org/pubs/basor/296.html#Hasel>. LEMCHE, N. P. Ancient Israel: a new history of Israelite society. 1995. Sheffield, Sheffield Acad. Press. LONG, V. P. (ed.). Israel’s past in present research. 1999. Winona Lake, Eisenbrauns. POUTIGNAT, P. & STREIFF-FENART. J. Teorias da etnicidade: seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. 1998. São Paulo, Editora Unesp. RÜSEN, J. Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. 2001. Brasília, Editora UnB. SILVA, T. T. da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T. da (org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. 2000. Petrópolis, Vozes, p. 73-102. WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. da (org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. 2000. 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