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Disciplina: Bioética e suas implicações para a Neurociência Autores: M.e Willyans Maciel Revisão de Conteúdos: Esp. Marcelo Alvino da Silva Revisão Ortográfica: Jacqueline Morissugui Cardoso Ano: 2017 Copyright © - É expressamente proibida a reprodução do conteúdo deste material integral ou de suas páginas em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita da equipe da Assessoria de Marketing da Faculdade São Braz (FSB). O não cumprimento destas solicitações poderá acarretar em cobrança de direitos autorais. FICHA CATALOGRÁFICA MACIEL, Willyans. Bioética e suas implicações para a Neurociência / Willyans Maciel. – Curitiba, 2017. 51 p. Revisão de Conteúdos: Marcelo Alvino da Silva. Revisão Ortográfica: Jacqueline Morissugui Cardoso. Material didático da disciplina de Bioética e suas implicações para a Neurociência – Faculdade São Braz (FSB), 2017. Bioética e suas implicações para a Neurociência ANO 2017 PALAVRA DA INSTITUIÇÃO Caro(a) aluno(a), Seja bem-vindo(a) à Faculdade São Braz! Nossa faculdade está localizada em Curitiba, na Rua Cláudio Chatagnier, nº 112, no Bairro Bacacheri, criada e credenciada pela Portaria nº 299 de 27 de dezembro 2012, oferece cursos de Graduação, Pós-Graduação e Extensão Universitária. A Faculdade assume o compromisso com seus alunos, professores e comunidade de estar sempre sintonizada no objetivo de participar do desenvolvimento do País e de formar não somente bons profissionais, mas também brasileiros conscientes de sua cidadania. Nossos cursos são desenvolvidos por uma equipe multidisciplinar comprometida com a qualidade do conteúdo oferecido, assim como com as ferramentas de aprendizagem: interatividades pedagógicas, avaliações, plantão de dúvidas via telefone, atendimento via internet, emprego de redes sociais e grupos de estudos o que proporciona excelente integração entre professores e estudantes. Bons estudos e conte sempre conosco! Faculdade São Braz Apresentação da disciplina A bioética é um dos mais importantes e amplos campos da ética. Nela estudamos as questões relativas à vida, ao meio ambiente e a saúde, não apenas humanas, mas de todos os seres vivos. Esta é uma disciplina com uma grande gama de conteúdos teóricos e diversas associações conceituais serão necessárias. Por essa razão é importante que você estudante esteja atento às mídias que serão apresentadas ao longo da disciplina, bem como se mantenha ativo em sua interação no ambiente virtual de aprendizagem. Será uma disciplina empolgante e com muitas possibilidades. Nesta disciplina abordaremos os principais tópicos da bioética e seu campo específico, a neuroética, com a finalidade de desenvolver o aparato conceitual necessário para a aplicação responsável dos conceitos, métodos e resultados da bioética. Para tanto, faremos uma abordagem detalhada dos fundamentos conceituais da bioética, sua história e como ela foi influenciada pelos resultados da neurociência para desenvolver-se na forma como se apresenta hoje. Abordaremos diversas discussões que aparecem ao longo da história da bioética, muitas delas ainda ativas em pesquisa e debate. Nesse processo procuraremos explorar a forma como pesquisadores e clínicos devem utilizar os conceitos e métodos da neurociência de modo responsável e favorecendo o desenvolvimento humano, mantendo o respeito pela dignidade da vida, a individualidade da pessoa humana e a autonomia dos sujeitos. Copyright © - É expressamente proibida a reprodução do conteúdo deste material integral ou de suas páginas em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita da equipe da Assessoria de Marketing da Faculdade São Braz (FSB). O não cumprimento destas solicitações poderá acarretar em cobrança de direitos autorais. Aula 1 – Bioética e neurociência Apresentação da aula Nesta aula abordaremos as origens conceitual e histórica da bioética, sua evolução no Século XX, bem como os pontos relevantes que influenciaram seu desenvolvimento. Trataremos também da neuroética, a intersecção entre a bioética e a neurociência, apresentando algumas relações entre o cérebro e o processamento moral dos seres humanos. Nosso principal ponto, no entanto, é a apresentação do processo de criação da bioética e de seu funcionamento. Estudaremos juntos a moral, a ética, o direito e como esses três elementos, em conjunto com as transformações na sociedade, levam ao surgimento da bioética. 1. Bioética e neurociência Não se pode falar em bioética, ou em seu campo específico na neurociência, a neuroética, sem explorar as suas origens como um ramo da ética e com forte relação com o funcionamento da moral e o impacto na sociedade. O fluxo do processamento das informações relativas ao que é bom, correto, legal e benéfico, inicia-se na moral, como a mais individual expressão desse processamento, passa pelo diálogo em sociedade promovido pela ética, desenvolve-se nas leis e normas do direito e finalmente coaduna-se com as descobertas mais recentes da ciência cognitiva, neurociência e filosofia da mente, formando a neuroética. 1.1 Moral, a base da ação e julgamento humanos A expressão Moral tem sua origem em duas expressões do latim "mos” e "mores”, desenvolvendo-se para uma terceira, a "moralis" que significa "caráter" ou "comportamento próprio". Indica o conjunto de normas e princípios mais básicos do ser humano, que regem o julgamento e ação de um indivíduo. Através da moral julgamos as ações humanas como boas ou más, tanto as ações que cometemos ou pretendemos cometer, quanto as ações de outros seres humanos. Da mesma forma, os outros seres humanos são dotados de moral e fazem o mesmo em relação às nossas ações. Embora a moral, por ser individual, possa variar de pessoa para pessoa, em geral, há um padrão aproximado em comunidades. A ciência ainda investiga a extensão do impacto da cultura na formação da moral, mas atualmente se aceita que os aspectos mais fundamentais e comuns a todos sejam evolutivos e baseados na estrutura neural humana. 1.2 Comparando com a psicopatologia Uma boa forma de compreender o funcionamento da moral é compará-la com um tipo de indivíduo moralmente patológico. Psicopatas são uma pequena porcentagem da população humana considerada amoral. Não são dotados de empatia, a capacidade de identificar-se com os outros seres humanos, e por isso sua capacidade de sentir e compreender os sentimentos humanos, compaixão, é comprometida. Nem todos os psicopatas causam danos à sociedade, existem diversos níveis de psicopatia e a maioria passa despercebida. Alguns autores estimam que cerca de 5% da população humana possa ser incluída nessa categoria. As causas ainda são investigadas, entre elas as principais suposições são razões evolutivas e de estrutura da mente. A empatia e compaixão são benéficas para a sobrevivência humana, mas uma vez bem estruturada uma comunidade humana, psicopatas podem aproveitar-se da compaixão dos outros indivíduos e sobreviver mesmo sem essas habilidades. Em alguns casos, questões ambientais, culturais e traumas são levantados como possíveis gatilhos para a psicopatologia. O fato é que psicopatas possuem uma estrutura de processamento moral diferente das pessoas consideradas moralmente saudáveis e assim seus julgamentos morais seguem padrões igualmente diferentes. Sem considerar atitudes como boas ou más, eles reagem apenas pela busca do próprio prazer e aversão ao medo. Pessoas moralmente saudáveis, por outro lado, reagem ao prazer e medo, mas são igualmente levadas a agir pelo sentimento de que o bom, para si e paraos outros, deve ser realizado e o mal deve ser evitado. Nesse contexto pode-se apresentar uma explicação adequada para a diferença entre psicopatas e pessoas normalmente saudáveis, sendo que os psicopatas possuem sua capacidade de compaixão prejudicada, importando-se apenas com o medo e o prazer, não considerando o potencial para realizar o bem e o mal. 1.3 Ética, o diálogo sobre a moral A palavra ética tem origem no idioma grego, através das palavras “ethos” e “éthike”. Tais palavras indicam o significado de “costume” no sentido benéfico, sendo, portanto, geralmente dito ser aquilo que vem do bom costume. A ética é normalmente descrita como o ramo da filosofia responsável pela sistematização, recomendação e defesa das regras de conduta e valores, que se aplicam a toda uma sociedade. Classifica as ações humanas como certas ou erradas de acordo com as regras de conduta estabelecidas. Diferente da moral, que parte do julgamento individual e pode variar entre indivíduos de uma mesma comunidade, a ética é estabelecida para comunidades inteiras. Temos assim a ética médica, a ética política, a ética desta ou daquela sociedade. Quando alguém infringe a ética dizemos que uma pessoa agiu de modo incorreto, pois a ética estabelece critérios para apontar uma ação como correta, ou seja, identifica que a moral do agente está de acordo com o que a comunidade espera de seus membros. Por se tratar de um processo em sociedade, a ética toma forma necessariamente de um diálogo. Um diálogo que acontece ao longo do tempo e desenvolvimento de uma sociedade. Agir de modo antiético é recursar-se a participar desse dialogo contínuo entre as morais dos indivíduos. Entre as diversas questões da ética encontram-se as duas principais, as quais auxiliam no entendimento de seu valor para a ciência: ➢ Qual o melhor modo de vida? ➢ Quais ações são corretas em cada situação particular? Para Refletir Em termos de neurociência, perguntamo-nos, qual o papel do neurocientista nessas duas questões? Como podemos ajudar as pessoas a viverem da melhor forma possível? E, principalmente, temos direito de decidir por outras pessoas? 1.4 Ética, o diálogo sobre a moral A bioética é um dos campos mais recentes, porém mais proeminentes, da ética. A palavra vem de uma composição do grego, entre "bios" e "éthike”, indicando que a bioética é a ética aplicada às questões da vida. De acordo com a definição de bioética da OMS (2001), a "bioética é o uso criativo do diálogo para formular, articular e, na medida do possível, resolver os dilemas propostos pela investigação e pela intervenção sobre a vida, a saúde e o meio ambiente”. Dessa forma, a bioética amplia-se, entendendo a simbiose do ser humano com a natureza e, portanto que a vida humana, a saúde e o ambiente não podem existir separadamente. Isso permite que a bioética trabalhe as questões relativas também a vida de outros animais, questões ambientais e mesmo sociais, quando estas impactam na vida e saúde humana. Entre os exemplos temos as questões de saúde pública e educação. Tais questões impactam na vida humana no presente e no futuro, colocando em risco ou protegendo a saúde física e mental das pessoas. No caso da educação a relação com a neurociência é mais evidente, mas mesmo na saúde pública temos muitos casos de inter-relação entre políticas públicas e neurociência, como foi a proliferação dos casos de microcefalia em 2016, que levantou grupos de pesquisadores em diversas áreas na busca da compreensão do fenômeno. 1.5 O direito A bioética aparece em um contexto que envolve moral, ética e direito, constituindo-se em um diálogo que provoca o que Hossne, chamou de "angustia da opção". Nesse contexto direito é o resultado consolidado e imposto (institucionalmente) do diálogo promovido pela ética, que por sua vez é baseado nos julgamentos morais, é o cume do processo que se inicia pelos julgamentos morais e passa pelo diálogo da ética. É o sistema de estabelecimento das normas impostas institucionalmente para toda uma sociedade ou comunidade. Essas normas não se referem apenas às leis que regem uma nação, mas também às regras para pesquisa científica, conselhos de ética, códigos de ética, associações e conselhos profissionais. Da moral, passando pela ética e chegando ao direito, notamos que o processo se torna cada vez mais fixo e amplo em sociedade. As normas do direito não são facilmente questionáveis no cotidiano e devem ser cumpridas, em geral, com imposição de penas a quem as descumprir. O direito regula a sociedade, permitindo o bom funcionamento da mesma, em um ambiente o mais próximo possível do ideal estabelecido pela ética da comunidade humana. 1.6 Neuroética Em seu ponto de vista específico, a neuroética trata de todos os aspectos éticos da prática científica, incluindo, mas não se restringindo, a forma como a comunidade científica se relaciona com a sociedade. Nesse contexto o avanço da neuroética em relação ao campo mais amplo da bioética constitui-se em um campo que estuda o papel do cérebro e da cognição nos julgamentos morais individuais e consequentemente o diálogo da ética. A neuroética é a intersecção entre a ética, neurociência e a sociedade. Trata da relação entre o cérebro e os conceitos da ética, compreendendo o papel do cérebro nas interpretações morais humanas, mas também como os conceitos da ética se aplicam na sociedade e nas questões específicas da bioética, ou seja, as questões envolvendo a saúde, a vida e o ambiente. A neuroética trata ainda dos casos em que uma área afetada por lesão ou trauma no cérebro ou sob efeito de toxinas, pode gerar alterações nos padrões morais do indivíduo. O que leva a ações e julgamentos diferentes do que faria sem a lesão, trauma ou toxina. Junior (2010) explica que: Dentre essas, os lobos frontais, o sistema límbico, o giro cíngulo, a amígdala temporal e o hipocampo, cuja análise neurofisiológica demonstra que regulam o controle da normalidade psíquica, o autocontrole e, também, o controle da agressividade, violência, livre- arbítrio, responsabilidade e doença mental. (JUNIOR, 2010, p.1). O mesmo acontece com o uso de drogas que alteram o funcionamento de determinadas áreas, tornando o indivíduo mais ou menos agressivo e mais propenso a comportamentos atípicos, reprováveis ou simplesmente diferentes daqueles comuns àquela pessoa. Para além do comportamento do cérebro em relação ao uso da moral especificamente, a neuroética trata de todos os aspectos éticos da prática científica, incluindo a forma como a comunidade científica se relaciona com o público e o comportamento dos cientistas em relação à sociedade. Tem implicações para o uso dos resultados de pesquisas em tribunais, para influenciar o resultado de julgamentos, na educação, para aprimorar ou estimular o desenvolvimento cognitivo dos jovens, e nas questões de uso de resultados clínicos pela sociedade e profissionais. Também, há uma grande responsabilidade quanto a não permitir que resultados clínicos inconclusivos sejam utilizados pelo público, seja para justificação de ações ou realização de procedimentos. 1.7 Bioética, ética e moral Para melhor entendimento do conceito e aplicação da neuroética, faz-se necessário um retorno conceitual para a bioética, para compreender mais especificamente seus objetivos e como as questões que hoje influenciam a neuroética vieram a se formar ao longo da trajetória de construção da bioética, nos séculos XX e XI. De acordo com o professor William Saad Hossne, em entrevista para Marques (2013) a bioética “é um juízo e reflexão crítica sobre conflito de valores, o que cria a angústia da opção”, pois é o resultado da reflexão interna sobre os próprios valores de cada indivíduo, o que pode levar a conflitos que precisarão ser resolvidospela ética. A angustia da opção a que Hossne se refere é tem por base a forma como processamos as informações. Essa base tem relação com a estrutura do cérebro e conceitualmente aparece na moral. A moral é a responsável pelo julgamento das ações que realizamos, quando as opções aparecem no ambiente da ética, somos levados ao nosso íntimo para refletir sobre elas. Ao fazê-lo, muitas vezes conflitos aparecerem e precisamos solucioná-los. Saiba Mais William Saad Hossne (1927-2016), nasceu na cidade de Botucatu/SP, foi fundador da Sociedade Brasileira de Bioética, ficou reconhecido também por seu trabalho e militância na bioética, campo transdisciplinar, reunindo a biologia, as ciências da saúde, a filosofia e o direito; estudando a dimensão ética dos modos de tratar a vida humana e animal no contexto da pesquisa científica e suas aplicações. Saad Hossne também ajudou a criar a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), coordenada por ele entre 1996 e 2007. Alguns desses conflitos envolvem outros seres humanos e a resolução pode ser ainda mais complexa. Pensando esse tipo de conflito, começaram a surgir as primeiras estruturas fixas e regulamentações da bioética. Cada nação possui suas próprias leis no que concerne a bioética, como em quase qualquer outra área. Atualmente, temos comitês de ética em todo o Brasil e cada faculdade ou universidade possui o seu, o mesmo acontece com empresas e laboratórios que desenvolvem pesquisa. No entanto, alguns pontos são estabelecidos mundialmente, por necessidades que envolvem todos os seres humanos. 1.8 A dignidade da vida como ponto crucial A bioética é pautada, em grande medida, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 10 de dezembro de 1948, durante reunião das potencias que emergiram vitoriosas da Segunda Guerra Mundial. Tal reunião também marca a fundação da Organização das Nações Unidas e o objetivo da declaração era evitar que as atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial jamais voltassem a ocorrer. Fonte: http://eptic.com.br/wp-content/uploads/2016/03/direitos-humanos1.jpg A forma que se encontrou para fazer isso foi estabelecer-se um código de normas relativas a forma como os humanos deveriam ver e tratar uns aos outros. Embora outros documentos tenham sido criados, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é ainda hoje o mais relevante documento sobre a vida e as atividades humanas da nossa civilização. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em seu artigo 1°, afirma que: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948). As primeiras discussões, que culminaram na declaração e no que hoje é a bioética, começaram logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo antes da criação da ONU, e ao longo do processo para tal, com a divulgação dos experimentos de médicos membros do partido Nacional Socialista Alemão, que vieram à tona no tribunal de Nuremberg. Em meio a todo o tumulto do Pós-Guerra, havia muitas preocupações, particularmente com relação à própria guerra e como tratar seres humanos em tais condições. Os juízes do tribunal de Nuremberg sentiram-se na obrigação de fazer algo em relação àquelas atrocidades e assim surgiu o Documento de Nuremberg, que foi o primeiro documento acerca dos temas que hoje chamamos de bioética. Assim começam as primeiras discussões sobre os limites do interesse da sociedade e ciência em relação aos direitos dos indivíduos. Os esforços se concentravam no que hoje chamamos de ética médica. Ainda restritos à questão básica da vida humana e seu uso em experimentações clínicas ou aplicação de tratamentos sem consentimento. 1.9 O pai da bioética O bioquímico V.R.Potter é considerado o pai da bioética, conduziu seus estudos para oncologia, publicando em 1971 a obra chamada Bioética: Ponte para o Futuro (Bioethics: bridge to the future) deixando as religiões à parte, com uma visão laica e puramente científica. Até aquele momento, ainda havia muita influência da religião nas ciências da saúde, particularmente quando se tratava das questões éticas. Utilizava-se a ideia de culpa e punição das religiões ocidentais, bem como a ideia de origem divina comum, para justificar a aplicação de princípios morais a todos os seres humanos. Embora úteis, estas justificações perdem efeito quando o agente não compartilha das mesmas crenças. Potter foi capaz de formular sua teoria apresentando uma visão exclusivamente científica, sem qualquer influência religiosa, e assim tornando as discussões na área mais rigorosas, pavimentando o caminho para o desenvolvimento dos princípios fundamentais da bioética. Saiba Mais Van Rensselaer Potter (1911-2001), nasceu em Dakota do Sul, foi um bioquímico americano, e pesquisador na área de oncologia. Sua experiência com pacientes oncológicos o fez propor o surgimento de um novo conceito interdisciplinar, o qual correlaciona ética e ciência, o qual denominou de bioética. Potter buscava estabelecer um diálogo entre a ciência da vida e a sabedoria prática (entre o Bios e o Ethos), criando desta forma a bioética. Autor do livro Bioética: Ponte para o Futuro, obra a qual foi a pioneira a abordar esse diálogo, sendo um marco inicial para a bioética. 1.10 Princípios fundamentais Em 1979, foi publicado no Belmont Report o anúncio do que seriam até então os princípios fundamentais da bioética: Autonomia, beneficência e justiça. Saiba Mais Belmont Report é um relatório criado pela Comissão Nacional para a Proteção dos Sujeitos de Pesquisas Biomédicas e Comportamentais dos Estados Unidos da América. A pesquisa e a prática em bioética evoluíram nos últimos 45 anos, em Outubro de 2005 foi aprovada a “Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos" com 28 artigos. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005, não se confunde com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como em diversas constituições ao redor do mundo, a dignidade humana é um dos grandes pilares da bioética, pois força os cientistas a pensarem em todos os humanos como dignos de respeito e cuidados, pelo simples fato de serem humanos, sendo a dignidade da vida humana um ponto crucial da bioética. Objetivo da Declaração sobre Bioética: Estabelecer a individualidade como primitiva e fundamental, garantindo a autonomia dos indivíduos acima do interesse da ciência ou da sociedade. A bioética trata os humanos como indivíduos, nunca por seu coletivo, e garante-lhes autonomia. Essa é a expressão do direito à liberdade, um dos direitos naturais. Assim, estabelecem-se os três pilares da bioética, a autonomia, dignidade e individualidade. Com a evolução e discussão promovida ao longo do Século XX, começamos o Século XXI com o campo da bioética muito melhor desenvolvido e estruturado, objetivando a proteção da vida, da saúde e do meio ambiente. No caso da neuroética, o campo começa a se delinear através da bioética e dos desenvolvimentos da neurociência. Resumo da Aula 1 Nesta aula foram exploradas as origens histórica e conceitual da bioética, trazendo o entendimento de como a moral e a ética sustentam o conceito de bioética, bem como a forma pela qual os eventos do Século XX influenciaram no desenvolvimento desse campo. Evidenciou-se ainda o desenvolvimento da neuroética, que trabalha especialmente com os aspectos da moral e da ética em sua relação com o cérebro humano. Atividade de Aprendizagem A bioética coloca a autonomia, dignidade e individualidade acima dos interesses da ciênciae mesmo da sociedade. Com base nessa ideia produza um texto explicando como esse funcionamento impede atrocidades como as cometidas pela autoridade nazista e outros abusos. Aula 2 - Bioética: Corpo, mente e consciência Apresentação da aula 2 Nesta aula iremos expandir nosso conhecimento sobre a estrutura da bioética, os conceitos e subáreas que a compõem, bem como as principais questões investigadas na bioética. Algumas dessas questões serão apresentadas de modo geral para em seguida serem conectadas com a neuroética, expandindo a compreensão da questão ao entender como os conhecimentos da neurociência podem nos ajudar a compreender melhor esses tópicos. 2. Bioética: Corpo, mente e consciência A bioética, incluindo a neuroética, desenvolveu um amplo corpo doutrinal, tornando-se o mais robusto dos ramos da ética. Por isto, a bioética conta com um grande conjunto de conceitos e questões próprias. 2.1 Deontologia A bioética não trabalha apenas com direitos (individualidade, autonomia, dignidade), como todos os ramos da ética ela possui uma deontologia. A ciência do dever. A palavra deontologia tem sua origem no idioma grego, com a palavra deon, significando “dever” e “logos”, uma expressão ampla em sentido e significado, geralmente entendida como “ciência”, formando assim a “ciência do dever”. De modo mais preciso, é o ramo da ética que trata dos deveres. Nesse modelo a ação consciente, pautada pelo dever moral, é mais importante do que as consequências. O filósofo alemão Immanuel Kant, importante ícone para o desenvolvimento da ética e filosofia da educação, explica que quando agimos por dever conferimos à nossa ação valor moral; a perfeição moral, por seu turno, é atingida pela vontade livre. A ação aleatória não tem valor, assim como a ação que se apega à finalidade e ignora o certo não tem valor moral. Saiba Mais Immanuel Kant (1724-1804), nasceu em Königsberg, na Prússia Oriental, (Alemanha), foi um filósofo alemão, o fundador da Filosofia Crítica. Foi considerado um dos maiores da história da filosofia e um dos mais influentes no ocidente. Kant negava que existia uma verdade última ou a natureza íntima das coisas, propondo uma espécie de código de conduta humano, publicando em 1788 o livro Crítica da Razão Prática, no qual aborda de maneira clara a naneira que funcionaria como leis éticas que regeriam os seres humanos, lei essas intituladas como Imperativo Categórico. O grande opositor de Kant foi o utilitarismo, a doutrina de que a utilidade é o aspecto mais importante de uma ação e não o dever ou o direito natural. Os aspectos subjetivos do utilitarismo estão entre os maiores riscos para a humanidade quando se trata de estudos e aplicação de pesquisas científicas. A ideia de que a utilidade de um proceder pode justificar abusos foi o motivador de relevantes encaminhamentos na história da ciência. É esse aspecto subjetivo que Kant procurava frear com uma doutrina moral objetiva, com o dever como base. O mais relevante desses encaminhamentos no Século XX foi a experiência relatada durante os julgamentos de Nuremberg pelos médicos dos campos de concentração na Alemanha nazista. Não porque experimentos de tal natureza e crueldade não tenham sido realizados antes, mas pelo impacto que esses apresentaram ao chocar a civilização ocidental como um todo. O documento de Nuremberg foi o primeiro a tratar do que hoje chamamos de bioética. Como uma resposta às atrocidades de que tiveram notícia, durante os julgamentos, os juízes decidiram, por conta própria criar um documento para ajudar a impedir que aquilo acontecer, limitando assim o interesse da sociedade e ciência em relação a individualidade, considerando o emprego de humanos em pesquisas e tratamentos. Os experimentos de Josef Mengele, o mais famoso dos médicos nazistas, e seus colegas eram baseados em duas ideias principais. Primeiro que os sujeitos de seus experimentos não possuíam os mesmos direitos que os outros membros da sociedade alemã da época. Os experimentos cruéis de Josef Mengele e seus colegas durante a Segunda Guerra Mundial chocaram o mundo ocidental, motivando a criação de recursos que viram a gerar a fundação da bioética. Tais experimentos eram baseados em duas ideias, primeiro que os sujeitos de tais experimentos não possuíam os mesmos direitos que os outros membros da sociedade. Segundo, a ideia de que a finalidade de tais experimentos poderia justificar tais abusos, as quais eram oriundas da doutrina (ou ramo), que melhor descreviam o Utilitarismo. Em termos de tradição ética ocidental, essa ideia é negada por John Locke ao afirmar os direitos naturais (liberdade, vida e propriedade), o que veio a compor parte da base das revoluções americana e francesa, influenciando toda a civilização ocidental. A recusa à primeira ideia desse posicionamento aparece na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Esse posicionamento também aparece na constituição de muitos países e em documentos de orientação quanto à bioética, reforçando e protegendo os direitos naturais com direitos legais. Saiba Mais John Locke (1632-1704), nasceu em Wrington, (Inglaterra), foi filósofo e ideólogo do liberalismo, sendo considerado o principal representante do empirismo britânico (conhecido como fundador do empirismo e defensor da liberdade e a tolerância religiosa) e um dos principais teóricos do contrato social. Como filósofo, pregou a teoria da tábua rasa (a qual a mente humana era como uma folha em branco, que se preenchia apenas com a experiência). Segundo, e mais relevante para este tópico em particular, a ideia de que a finalidade, ou utilidade, de tais experimentos poderia justificar a infração aos direitos naturais, sendo tais direitos o direito à liberdade, o direito à vida e o direito à propriedade, incluindo especialmente a propriedade sobre o próprio corpo. Em termos de neuroética, o direito sobre o próprio corpo se manifesta como a capacidade de consentimento, ou seja, a capacidade de optar por participar ou não participar de um tratamento ou experimento por vontade própria. Esta capacidade, entende-se, pode ser alterada de acordo com situações que influenciam a estrutura do cérebro e seus efeitos na cognição. Amplie Seus Estudos SUGESTÃO DE LEITURA Leia a obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de autoria de Immanuel Kant. O pensamento de Kant sobre a ética e seu conceito de imperativo categórico, em oposição aos imperativos hipotéticos, foram fundamentais para a refutação do utilitarismo em ciência, permitindo a criação de uma base ética rigorosa. Quando lemos Locke e Kant juntos, à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, entendemos que a justificativa dos fins de uma pesquisa podemos muitas vezes impactar e infringir os direitos naturais que todos os humanos possuem. A autonomia e individualidade são automaticamente ignoradas em experimentos que não consideram a capacidade de consentimento dos indivíduos, que os consideram menos relevantes frente a outros indivíduos ou ainda que consideram que o sacrifício de vidas humanas é aceitável em busca de um resultados para a ciência ou sociedade. Immanuel Kant formulou uma teoria do dever dedicada a combater o aspecto subjetivo do utilitarismo, que segundo ele levava ao desrespeito e degradação da humanidade. Para Kant, apenas uma doutrina objetiva, que pudesse ser aplicada a todos poderia ser considerada boa. A ideia de que a utilidade de um proceder pode justificar abusos é a ideia que melhor descreve esse aspecto subjetivo, criticado por Kant. Em resumo, esse posicionamento foi importante para afastar as posições de que a finalidade da ciência, ou seus resultados, poderiam justificar abusoscontra a individualidade ou autonomia de seres humanos. No limite, trata-se da distinção entre o que podemos fazer como cientistas e o que devemos fazer como seres humanos. O dever do cientista é respeitar os direitos naturais e legais, em particular a individualidade e a autonomia de cada ser humano. 2.1.1 Código de ética Quando os deveres assumem uma forma mais concreta, através do diálogo da sociedade por meio da ética, são formalizados como normas de conduta aplicáveis por meio de instituições e impostas aos indivíduos que compõem uma sociedade, independente de seu posicionamento moral particular. Da definição dos deveres vem a formalização. Ao se entender as necessidades de uma área e os deveres que levam às ações corretas, o que é trabalho do diálogo promovido pela ética, esses deveres passam a assumir a forma de normas de conduta. Essas normas, por sua vez e diferente das normas autoimpostas da moral, são regidas pelo direito e impostas por força institucional de autoridade legitima, na maioria dos casos um estado, republicano ou não, ou uma organização específica. Temos o caso, por exemplo, já citado da Declaração Universal dos Direitos Humanos e das constituições de diversos países, mas no caso da deontologia e especialmente da bioética, esta formalização acontece principalmente como um código de ética profissional. Aplicado e fiscalizado por conselhos profissionais e comitês de ética, e especialmente relevante para as profissões que atuam em questões da vida humana, os códigos de ética não apenas compilam os deveres dos profissionais que atuam sob ele, mas os direitos, procedimentos e ferramentas que esses profissionais têm a sua disposição. É também uma forma de uma determinada classe de profissionais expressar o seu compromisso para com a ética perante o público e a sociedade em geral. Conhecer o código de ética da sua profissão é um dos deveres mais importantes, pois permite conhecer todos os outros deveres. 2.2 Consciência e cognição Ao trabalharmos com a bioética no contexto da neurociência, ou neuroética, precisamos entender a discussão acerca da consciência e cognição, dois elementos que sempre povoaram as pesquisas em filosofia da mente e, mais recentemente, ciência cognitiva e neurociência. Para a finalidade dessa aula, podemos apenas lembrar que esta questão é antiga, começa com Aristóteles, passa por Descartes e chega aos dias de hoje. A neurociência surgiu como uma opção para a superação do behaviorismo, particularmente útil, pois a comunidade científica e filosófica é, em grande medida, fisicalista, ou seja, adere a ideia de que o corpo e a mente são uma mesma entidade física. Nesse contexto, apresentou-se o que a neurociência poderia oferecer (a possibilidade de compreensão da mente humana por meio da análise do cérebro), o que permitiu que ela ajudasse a superar o behaviorismo no início da década de 50, época do declínio do behaviorismo (e desenvolvimento acelerado da neurociência), quando os desenvolvimentos tornam-se mais relevantes para a neuroética. Segundo Teixeira (2005), no início da década de 50, a comunidade científica buscava uma forma de ir além do behaviorismo. A questão nunca foi a capacidade funcional do behaviorismo, mas o que esse método era incapaz de realizar, a compreensão dos processos da mente humana. Para dar o passo seguinte, a comunidade científica recrutou um ramo da ciência que começava a dar os primeiros passos em seu desenvolvimento, a neurociência. A neurociência era adequada, pois em grande parte a comunidade científica é fisicalista. O fisicalismo é uma forma de monismo material, ou seja, a suposição de que mente e corpo são a mesma entidade material. Em termos de neurociência essa relação é mais bem expressa como a relação mente- cérebro. É particularmente justificada pela ideia de que em se danificando o cérebro observando efeitos na mente humana, de forma que, mesmo se supormos que não sejam a mesma entidade, temos de supor uma relação muito forte e real entre a mente e o cérebro. Junior (2010), reforça que uma vez que o processamento moral ocorre na mente, também devemos aceitar uma relação entre o cérebro e o processamento moral. Pesquise Aprofunde seus conhecimentos pesquisando sobre behaviorismo, ciência cognitiva, filosofia da mente e fisicalismo. 2.3 Questões gerais da bioética A bioética possui muitas questões próprias, desde questões quanto ao uso de recursos naturais e testes com animais até o uso de sujeitos humanos em pesquisas quando esses sujeitos tem suas capacidades de consentimento reduzida, passando também pelos casos de abuso, conflito de interesses e manipulação de dados em pesquisa científica. Entre essas questões encontram-se quatro exemplos clássicos, que podem ser relacionados com a neurociência e nos permitem compreender o funcionamento da bioética. São eles: ➢ pena de morte; ➢ aborto; ➢ eutanásia; ➢ eugenia. Tais questões tratam da vida humana em situações em que a autonomia ou a individualidade não parecem se manifestar claramente. Levantam também questões acerca do desenvolvimento cognitivo, do início e fim da vida, da capacidade de decisão e de como algumas situações podem afetar negativamente o cérebro, de modo a levar o indivíduo a tomar decisões que não tomariam em condições outras. Para Refletir Em termos de neuroética, a grande questão que subjaz todas as outras é: Com o conhecimento que possuímos atualmente sobre o funcionamento do cérebro e da cognição, sabendo como alterações nesta estrutura podem influenciar as decisões, ações e julgamentos morais do indivíduo e sabendo que estamos sujeitos a tais condições com grande facilidade (acidente, doenças, etc), qual é a abordagem correta da vida humana e como devemos proceder em relação a ela? Essa não é uma questão com resposta fácil ou simples. O melhor modo de entender tal questão é utilizando os exemplos mais radicais, aqueles que tratam do encerramento de uma vida humana. A bioética, como o mais amplo campo da ética, possui muitas questões próprias, que ganharam novos contornos sobre a luz da individualidade, dignidade e autonomia, entendidos como direitos de todos. Entre essas questões quatro se destacam como os exemplo mais radicais. Para facilitar o entendimento deve-se dividir essas questões em duas categorias, por proximidade da situação, o que não impede que construamos relações para além desta categorização básica: ➢ Aborto e eugenia. ➢ Pena de morte e eutanásia. 2.3.1 Aborto e eugenia O aborto e a eugenia, caracterizam-se pela impossibilidade de manifestação do sujeito. Quando tais procedimentos são realizados, a decisão é tomada exclusivamente por agentes externos ao indivíduo e sua autonomia normalmente não entra em questão. 2.3.1.1 Aborto O aborto induzido, que é tema das discussões em bioética, é a interrupção de uma gravidez por vontade própria da mãe ou por decisão médica. Encontramos aqui um conflito entre a autonomia da decisão e a individualidade dos sujeitos. Se por um lado o feto é um indivíduo, que tem direitos naturais, a mãe também possui autonomia sobre seu próprio corpo e processos. Desta forma, a maioria das discussões irá focar nesse conflito em particular, levantando pontos como, a partir de qual momento o feto pode ser considerado humano, qual o limite da autonomia, se há algum, como fica nossa adesão ao princípio de não agressão nesse caso. Em termos mais teóricos, “se” por exemplo, utilizarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem-se outro problema. Na Declaração consta "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos", nada é dito sobre o que vale para antes do nascimento. Isso não aponta nem para a posição favorável, nem para a posição desfavorável aoaborto, mas mantém o dilema, por falta de informações relevantes. Em termos neuroéticos, devemos ainda levar em consideração que as alterações hormonais na mãe podem afetar seu julgamento, como vemos em casos de síndrome pós-parto em que mães cometem atos que jamais cometeriam em outras situações. 2.3.1.2 Eugenia Termo cunhado em 1883 por Francis Galton, pesquisador que lançou as bases da genética, trata dos “agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente” (GOLDIM, 1998). Embora o termo seja recente, a discussão data da Grécia antiga. Os espartanos promoviam a eugenia por meio do infanticídio, eliminando as crianças que apresentavam qualquer deficiência visível que pudesse atrapalhar seu papel como cidadão espartano. Platão, em sua obra República, discute e descreve métodos de aprimoramento da sociedade humana pela seleção daqueles considerados como os melhores exemplares e eliminação daqueles considerados os piores. Em grande medida, essa distinção se dava pela utilidade. A versão moderna da eugenia, promovida por Galton, é baseada na obra de Charles Darwin, primo de Galton, A Origem das Espécies. Trata-se do que Galton chamou de seleção artificial, baseada no conceito de seleção natural promovido por Darwin. Galton pesquisou, sistematizou e compilou a inteligência em membros de diversas famílias inglesas, sua conclusão foi a de que a inteligência seria transmitida hereditariamente e, portanto, sua transmissão poderia ser controlada. Dessa forma, a sugestão de Galton foi a de casamentos seletivos baseados na inteligência. Importa notar, como evidencia Bulmer (2003), Galton não levou em consideração qualquer aspecto social, cultural ou educacional, especialmente em termos de acesso à educação, o que poderia ter levantado dúvidas quanto a validade de suas conclusões. Ainda assim o modelo de Galton não foi considerado excessivamente problemático, uma vez que era um modelo de eugenia positiva, que atuava na seleção das próximas gerações e não na eliminação de indivíduos. Por outro lado, seu relativo mais recente, a eugenia nazista, é um modelo negativo (implicando na eliminação de indivíduos), mais próximo do modelo espartano, e foi um dos principais motivadores da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da criação da bioética. O conflito presente na eugenia, especialmente nos modelos negativos, é entre os anseios de uma sociedade e a individualidade do sujeito. Assim, com as possibilidades de aperfeiçoamento humano desenvolvidas nas décadas recentes por meio da engenharia genética e o aprimoramento cognitivo, esta questão volta à discussão. De um ponto de vista bioético, devemos proceder com cautela, evitando qualquer aplicação antecipada ou precipitada de estudos ainda em desenvolvimento ou cuja base ética ainda não tenha sido bem definida. 2.3.2 Pena de morte e eutanásia Nesses casos, o indivíduo está consciente do que acontece e a decisão passa por agentes externos e pelo indivíduo. Naturalmente, no caso da pena de morte não cabe ao indivíduo decidir, mas a sociedade ou autoridade, o que agrava a questão do respeito à autonomia e individualidade. 2.3.2.1 Pena de morte A pena de morte é a mais alta punição possível a um humano. É a tomada da vida por uma autoridade como resposta a um crime. O conflito é entre a individualidade e o coletivo. Semelhante aos casos de aborto e eugenia trata-se de uma imposição externa ao indivíduo, eliminando a sua autonomia. Nesse caso, no entanto, o indivíduo está consciente do fato. Deve-se levar em conta ainda os estudos que apontam impactos negativos do cárcere no cérebro. Certamente os estudos não são conclusivos, mas devemos refletir sobre o que se passa na mente do detento ao ser condenado à morte. 2.3.2.2 Eutanásia A eutanásia é um dos mais complexos casos da bioética. A palavra vem do grego, significando “boa morte” e trata-se do abreviamento da vida de um indivíduo enfermo, assistido por especialistas. A diferença da eutanásia em relação à maioria das outras questões é que a decisão pode vir do próprio indivíduo. Divide-se em duas categorias, a eutanásia ativa e a eutanásia passiva. A primeira é o efetivo término da vida do paciente, enquanto a segunda é a cessão dos tratamentos, o que eventualmente levará a morte do paciente em um período menor do que caso estivesse em tratamento. Desta forma, enquanto a eutanásia ativa se caracteriza pelo ato em si que provoca a morte, a eutanásia ativa é caracterizada pela inexistência de atos que a impeçam. A eutanásia se contrapõe a distanásia, a posição de que a vida humana deve ser prolongada ao máximo, mesmo que o sofrimento e a morte, por impossibilidade de cura, sejam inevitáveis. No caso dos médicos, esse posicionamento está de acordo com o juramento de Hipócrates e, portanto a eutanásia é considerada, conceitualmente, como homicídio, embora não exista legislação especifica para eutanásia no Brasil. Ao comparar-se a ideia de eutanásia com a ideia de distanásia pode-se obter grandes progressos no sentido de melhor definir o que é a dignidade humana. Essa ainda é uma discussão em progresso, uma vez que traz à tona os três aspectos principais da bioética, a dignidade, autonomia e individualidade. Outro aspecto a se refletir é a consciência dos profissionais envolvidos, ao conhecer a inexistência de cura, observar o sofrimento do paciente e saber de seu desejo de abreviar a vida. Aqui pode manifestar-se um conflito moral, em que não apenas os códigos de ética, legislações e orientações bioéticas entrarão em pauta, mas principalmente a moral do indivíduo que assiste o paciente. Para Refletir Nenhuma das questões abordadas nesta aula são questões com simples solução. Refletir a respeito dos efeitos e consequências de cada uma delas, do ponto de vista da neurociência, compreendendo os conceitos nelas apresentados e suas aplicações no âmbito educacional. Nunca deve-se esquecer que o agente da ciência é também um ser humano, com autonomia, individualidade e dignidade, em todas as questões os conflitos próprios da pessoa são relevantes. Resumo da aula 2 Nesta aula abordaram-se os aspectos específicos da bioética, e consequentemente da neuroética, que são mais relevantes na sua aplicação, especialmente como a deontologia. Expandimos a compreensão acerca do papel da autonomia, dignidade e individualidade, além de explorar as questões mais polêmicas e radicais da história da bioética, procurando entender como essas questões e elementos podem nos ajudar a compreender como aplicar a bioética em nossa prática cotidiana. Atividade de Aprendizagem Discorra a respeito do conceito de deontologia, à luz das ideias de Immanuel Kant e John Locke, apresentadas nesta disciplina, levando em consideração ainda seu papel para afastar o aspecto subjetivo do utilitarismo. Aula 3 – Impactos que as descobertas sobre o cérebro acarretam à sociedade Apresentação da aula Nesta aula serão exploradas outras implicações da bioética para a neurociência, a qual divide-se em dois tópicos e tem grande impacto na sociedade (a relação entre a neurociência e o sistema jurídico, bem como com a legislação). Nesse processo será possível o entendimento de como as descobertas sobre o funcionamento do cérebro e da cognição afetam essa relação. 3. Impactos que as descobertas sobre o cérebro acarretam à sociedade Nas décadas mais recentes, a neurociência tem sido usada frequentemente nos sistemas jurídico e legal, especialmente nos Estados Unidos da América, onde a neurociência, e sua influência na sociedade, crescem mais aceleradamente. Atualmente a neurociência e os resultados dos testes por ela promovidos são utilizados não apenas para julgar crimese assessorar em casos de alegação de insanidade, mas para determinar outros elementos relevantes para o sistema judiciário e a legislação influencia este sistema, como: porque algumas pessoas cometem crimes, como determinadas patologias influenciam o julgamento e como a prisão altera o cérebro. 3.1 O problema da implicação Não é claro se os testes científicos conduzidos em casos específicos estão prontos para servir como evidência nos tribunais. Mesmo para os testes realizados no próprio sujeito envolvido no julgamento, muitas vezes esses testes não são conclusivos ou não se direcionam exatamente à busca de evidências. O propósito básico da neurociência é a investigação científica e não a investigação criminal, dessa forma, embora seja possível, não é claro que esses testes possam de fato confirmar informações úteis ao processo de julgamento, ao menos não em todos os casos. 3.2 Neurociência e os tribunais De acordo com dados levantados pela Presidential Comission for the Study of Bioethical Issues (Comissão Presidencial para Estudos de Assuntos Bioéticos) organizada a pedido do presidente americano Barack Obama, apenas no ano de 2012, nos Estados Unidos da América, 250 sentenças citam o uso da neurociência pelos defensores dos réus, argumentando que seus clientes seriam inocentes, uma vez que seu cérebro, por diversas razões, os teria “forçado” a cometer o crime. Isso levanta a questão: “é correto utilizar uma ciência ainda em desenvolvimento para, possivelmente, condenar uma pessoa?” Embora tenha se desenvolvido muito nas recentes décadas, a neurociência ainda é muito jovem se comparada a campos mais tradicionais como a física e a química. A matemática, por exemplo, existe desde a antiguidade e ainda há elementos a seres descobertos e investigados. Além de ser uma ciência jovem, a neurociência trabalha com a parte mais complexa do corpo humano, o cérebro. Por essas razões, podemos afirmar sem medo que a neurociência é ainda uma ciência em desenvolvimento, cujas conclusões não têm impacto tão conclusivo quanto o de outras ciências mais tradicionais. Isso não significa demérito para a neurociência como uma ciência em si, apenas significa que a relação com a sociedade e o uso prático de muitos dos seus resultados clínicos ainda não estão bem estabelecidos o bastante para serem utilizados sem restrição. De acordo com Hauser (2015), diversos estudos têm mostrado que juízes e membros do júri são influenciados por imagens do cérebro, uso de jargão científico e descobertas genéticas imprecisas. A despeito de seu interesse, a maioria dos juízes e advogados não compreende a extensão da neurociência. Em muitos casos pode-se observar juízes e membros do júri serem mais influenciados por imagens do cérebro, uso de jargão científico e descobertas genéticas imprecisas do que por compreensão real dos resultados apresentados, falhando em compreender a extensão da neurociência e suas aplicações. O que vemos em muitos casos são apelos à autoridade científica. Dessa forma, de acordo com Morse (2016) ações falam mais alto que imagens do cérebro e são as ações que devem ser julgadas por tribunais. O potencial da neurociência para ampliar a aplicação da justiça deve ser contrabalançado com o potencial para exageros e antecipação de aplicação de evidências científicas e conceitos que podem ainda não estar validados, interpretados de modo preciso ou bem compreendidos. Vocabula rio Apelo à autoridade - é uma falácia lógica clássica. É a tentativa de convencer pela autoridade de quem fala e não pelo conteúdo. Hauser (2015) analisa ainda que, de um ponto de vista bioético, sabendo que a influência não é do conteúdo, mas do vislumbre da ciência, devemos redobrar os cuidados quanto a forma como esses dados e resultados clínicos são utilizados. Não obstante, a neurociência tem grande potencial para tornar as decisões mais precisas e influenciar legislações, é apenas o caso de que devemos ser cuidadosos com suas aplicações e a extensão dessas aplicações, o que, em sua análise, não tem acontecido. 3.3 Descobertas e culpabilidade Técnicas de neurociência como imagens e análises do cérebro, podem ajudar a detectar a confiabilidade de uma testemunha visual por exemplo. A justiça exige o uso de evidência empírica e os resultados da neurociência são, em sua maioria, empíricos, podendo assim contribuir para julgamentos mais precisos e resultados mais justos (sendo esse tipo de resultado que a justiça valoriza nos seus julgamentos). As sérias consequências de um julgamento devem ser levadas em consideração ao decidir pelo uso de qualquer método que possa torná-lo mais preciso. No entanto, uma descoberta sobre o cérebro ou genética pode, em muitos casos, nos dar dicas para entender o comportamento, impulsividade e mesmo culpabilidade, mas pode não ser aplicável para determinar a culpa de um indivíduo, especialmente nos casos mais graves, como assassinatos. A neurociência tem potencial para explicar como um tumor pode tornar uma pessoa mais impulsiva, devido a pressão em uma região do cérebro, mas na prática, especialmente na prática da justiça, o que significa “mais impulsivo”? A neurociência ainda não tem uma resposta precisa para essa questão, nem tão pouco uma escala de medida. Ainda, impulsividade não significa crime e muitos crimes são cometidos com premeditação, sem qualquer influência da impulsividade. A agressividade, outro elemento por vezes levantado em julgamentos, possui diferentes formas. Para Refletir A agressividade nos negócios é o mesmo tipo de agressividade utilizada por um bandido ao cometer um crime? Será que a agressividade nos esportes é transferida para o convívio familiar e a relação com as pessoas queridas? Esses são exemplos de casos em que os resultados da neurociência são insuficientes para uma aplicação prática. O mesmo pode acontecer em diversas áreas em que se procure aplicar as descobertas da neurociência, sem uma análise detida da sua extensão e verdadeiro potencial. Por outro lado, nas cortes civis o uso da neurociência pode ser mais eficiente, especialmente em casos de processos que envolvem dor e intenção. Esse tipo de caso apresenta aplicações muito mais amplas, pois pode ser utilizado também em outras formas de avaliação, como questões de aprendizagem e sistemas educacionais. 3.3.1 Neurociências aplicados à Educação Antes do desenvolvimento da neurociência, a intencionalidade de um crime só poderia ser verificada por observação, o que sempre dificultou a distinção entre crimes intencionais, acidentes e negligência. Antes da neurociência começar a ser utilizada nos tribunais, a intencionalidade só poderia ser verificada observando o comportamento ou indícios do acusado. Embora ainda com aplicação limitada, a neurociência revolucionou esse campo. Com os desenvolvimentos atuais é possível verificar e mapear as áreas do cérebro para identificar alguns elementos, como a culpabilidade e a intencionalidade do réu. Esses desenvolvimentos que se aplicam aos casos em que o sujeito pode não desejar falar, também se aplicam àqueles casos em que o sujeito pode não ser capaz de expressar. E essa possibilidade é útil para a educação. Além da tentativa de compreender melhor os processos de ensino e aprendizagem, de um ponto de vista cognitivo, aplicável aos estudantes em geral, a neurociência também é aplicada na educação para trabalhar com alunos com diversas condições, entre elas, atrasos no desenvolvimento e patologias. Casos em que o aluno pode não ser capaz de oferecer uma resposta imediata da aplicação dos processos de ensino e aprendizagem, o que não significa que os métodos não estejam funcionando. Ao utilizar-se a neurociência, seja através de imagens do cérebro do próprio aluno seja através de dados coletadosem casos semelhantes, podemos montar um padrão do tipo de resposta esperada em cada caso. Isso nos permite aplicar métodos com mais confiança e aguardar pelas respostas que podem demorar mais, por sabermos a porcentagem de efetividade de tais métodos em casos semelhantes. 3.4 Legislação e bioética No que tange as legislações, os estudos de bioética tem ajudado a fundar importantes elementos para garantir o respeito à autonomia e individualidade dos pacientes e sujeitos de pesquisas. Ainda assim, é preciso administrar a tensão entre o uso prematuro de resultados da neurociência para produção de legislação e sua capacidade de efetivamente produzir resultados úteis à produção de tais legislações, especialmente quando trabalhamos com sujeitos vulneráveis. Entre os sujeitos vulneráveis incluímos crianças e pessoas com limitação na capacidade de consentimento. Quanto a estes, a neuroética tem ajudado a fundar importantes legislações para proteção de tais sujeitos. No entanto, há preocupações que devemos levar em conta, evitando o uso prematuro de resultados da neurociência e entender os resultados efetivamente úteis dos exames clínicos Entre os considerados sujeitos vulneráveis incluímos principalmente as crianças e os casos de limitação na capacidade de consentimento. A melhor compreensão desses aspectos e como aplicar as pesquisas nesses casos baseou-se nas discussões entre pesquisadores de neurociência, legislação e agentes do estado. O processo levou diversas nações a criar legislações específicas para proteger esses sujeitos e permitir o seu emprego em pesquisas. Os resultados podem beneficiar milhares de pessoas com condições semelhantes, mas a individualidade, dignidade e autonomia dos sujeitos da pesquisa devem ser respeitadas e protegidas tanto quanto possível, nunca permitindo que os interesses da sociedade ou da comunidade científica bloqueiem nossa visão quanto ao caráter humano dos sujeitos de pesquisa. Em sua entrevista para Marques (2013) o professor Hossne comenta o caso, ainda sob sigilo, de um médico que pretendia proceder um determinado teste clínico e submeteu-o a aprovação do comitê de ética presidido pelo professor Hossne. O teste tratava de desencadear crises de uma determinada patologia em crianças, dividi-las em dois grupos, oferecer medicação a um dos grupos e placebo ao outro grupo, observando passivamente os resultados. O comitê de ética considerou esse teste um abuso, pois colocava crianças em risco e observava passivamente o seu sofrimento. Por esta razão o estudo foi recusado e, apresentando-se a justificativa, o médico foi orientado a não proceder o estudo. Contrariando o parecer do comitê de ética, o médico tentou proceder o estudo e acabou por ter seu registro junto ao conselho de classe cassado. Este exemplo evidencia dois aspectos dessa discussão. Primeiro fica claro que, não importando os benefícios que se espera adquirir, os direitos de cada ser humano devem ser respeitados e colocados acima dos interesses da comunidade científica. Não se pode causar sofrimento intencional a um ser humano para obter-se qualquer resultado na ciência, especialmente quando esse ser humano é incapaz de, por si mesmo, exercer sua autonomia e candidatar-se ao testes pela própria vontade, ou de compreender as implicações de tais testes, como é o caso de crianças, o que evidencia um dos principais papéis do comitê de ética que é fiscalizar e prevenir esses tipos de abusos. Em segundo lugar, o impacto bilateral da bioética na legislação e vice- versa. A bioética estabelece critérios para a atuação do cientista, esses critérios se convertem em legislação, a legislação por seu turno passa a regular a atuação do cientista e conforme são aplicadas as legislações observamos resultados dos próprios critérios e como a população e a comunidade científica reagem a esses resultados. Dessa forma, somos capazes de produzir novas e melhores legislações a cada aplicação. Organizações dedicadas ao estudo da bioética têm publicado informações que levaram a mudanças nas regras internas de profissões e mesmo nas leis que regem tratamentos em neurociência. Os testes promovidos e utilizados pela neurociência podem nos ajudar nesse processo aos oferecer os dados relativos a como as pessoas reagem a determinados procedimentos. Porém, ainda existem preocupações, em termos de respeito à privacidade e a liberdade. Alguns autores começam a se preocupar com o desenvolvimento da neurociência em uma forma de “interrogar o cérebro” adquirindo informações contra a vontade do sujeito. Esse tipo de preocupação nos leva de volta às origens da bioética, no fim da Segunda Guerra Mundial, em que a grande preocupação era com o respeito ao indivíduo e sua autonomia. Mesmo que os equipamentos atuais ainda não sejam capazes de “ler mentes”, é preciso começar desde já a levantar as questões acerca da privacidade dos estados mentais de uma pessoa, para que, quando e se chegarmos à capacidade de interpretá-los em termos do seu conteúdo, possamos ter uma estrutura ética e legislativa para garantir os direitos naturais dos sujeitos de tais exames clínicos. 3.5 O dever Em termos de uso para criação de legislações, a bioética, particularmente na neurociência, precisa avançar para questões cada vez mais complexas, mantendo-se ativa na defesa da autonomia e individualidade. No que tange o uso em tribunais e na produção de legislações penais, pesquisadores envolvidos com a neurociência tem o dever ético de educar aqueles que podem utilizar erroneamente ou irresponsavelmente as informações derivadas de suas pesquisas. A educação levanta também a questão da compreensão da ciência desde os primeiros anos. Vivemos em uma sociedade baseada em ciência e tecnologia, a compreensão dessas duas áreas certamente pode ajudar a evitar a precipitação e mal-uso dos resultados clínicos. Por esse ponto de vista, é dever dos pesquisadores e profissionais que utilizam métodos e testes da neurociência, educar a sociedade e especialmente a próxima geração, para compreender o papel da ciência na nossa sociedade, reduzindo o impacto e surpresa do uso de termos científicos e resultados de pesquisas, pela compreensão do que essas informações realmente significam. Ao compreendermos a verdadeira extensão dos dados e testes da neurociência, seremos capazes de aplicá-los de modo sensato, sem exageros ou antecipações em todos os ramos da nossa sociedade, nessa sessão trabalhamos com casos mais radicais de julgamento e produção de legislações, mas com a melhor compreensão da ciência pelo público em geral seremos capazes de aplicar a neurociência em diversos outros setores da sociedade. Resumo da aula 3 Nesta aula abordamos as implicações da neurociência na nossa sociedade e como podemos, de modo seguro, expandir essa aplicação. Exploramos implicações exemplo de uso da neurociência na produção de legislação e de evidências em julgamentos, bem como da aplicação desses mesmos processos na educação. Procuramos aprofundar nosso conhecimento sobre a extensão dos testes e dados da neurociência a fim de compreender como aplicamos de modo a respeitar a dignidade, autonomia e individualidade de cada ser humano. Atividade de Aprendizagem A extensão real dos dados e resultados de testes da neurociência, somos capazes de aplicá-los dentro dos limites sensatos da possibilidade de aplicação da ciência, sem cometer exageros ou precipitações. Considerando essa forma de proceder, discorra a respeito das contribuições para a elaboração de legislações, aplicabilidades, influências e benefícios da aplicabilidade da neurociência nos outros setores da sociedade. Aula 4 - Questionamentos de cientistas sobre a Neurociência Apresentação da aula Nesta aula serão exploradas algumas das principais implicaçõesdos avanços da neurociência na sociedade e como devemos lidar com tais avanços do ponto de vista ético. Utilizando-se das implicações da bioética na investigação clínica da neurociência e seu impacto na sociedade: Capacidade de consentimento e aprimoramento cognitivo. 4. Questionamentos de cientistas sobre a Neurociência Considerando, existem métodos neurobiológicos, os quais podem influenciar os processos de ensino e aprendizagem e mesmo as capacidades e potencialidades individuais, fazendo-se importante o conhecimento dos limites e dos critérios para a identificação e direcionamento para utilização de tais métodos. Tem-se por um lado a questão da capacidade de consentimento e por outro a questão do aprimoramento cognitivo. A primeira vista elas não parecem conectadas, mas basta olharmos para as questões da autonomia e individualidade para vermos a ligação. Utilizemos um exemplo para melhor compreensão, quando aplicamos resultados de estudos e pesquisa da neurociência às crianças, para aprimorar sua capacidade de aprendizagem, devemos nos perguntar as consequências de tal atividade e qual a extensão da capacidade de consentimento dessa criança. Da mesma forma, quando aplicamos estudos sobre o potencial de aprimoramento cognitivo em sujeitos adultos com limitações em sua capacidade de consentimento, deve-se perguntar, “qual o limite desta aplicação?” “E como podemos estabelecer padrões seguros e que respeitem a individualidade e autonomia de uma pessoa com limitação em sua capacidade de consentimento?” 4.1 Capacidade de consentimento A neurociência atual promete oferecer importantes conhecimentos quanto a natureza de patologias e condições diversas, bem como métodos de proteção e tratamento para pessoas com capacidade de decisão comprometida. No entanto, para que tal progresso seja alcançado, a pesquisa científica exige testes com seres humanos. Tais pesquisas envolvem, em muitos casos, o próprio órgão envolvido na capacidade de decidir participar desses testes por vontade própria. Desde sua origem, a neurociência trabalha para oferecer importantes conhecimentos quanto a natureza de patologias e condições diversas envolvendo o cérebro, consciência e cognição, bem como métodos de proteção e tratamento para pessoas com capacidade de decisão comprometida. No entanto, para que tal progresso seja alcançado, a pesquisa científica exige testes com seres humanos. O principal dilema que surge nessas pesquisas com seres humanos, em relação às pessoas com capacidade de decisão comprometida é que elas devem consentir em participar das pesquisas, mas a sua incapacidade refere-se justamente a ato de consentir. A questão da capacidade de consentimento trata do exercício da autonomia dos indivíduos ao participar de testes clínicos, como parte de pesquisas científicas, ou submeter-se a tratamentos. Porém, a partir dos resultados da própria neurociência, sabemos que muito do processamento moral que leva à tomada de decisão sobre participar desses testes acontece no cérebro, ao mesmo tempo em que os casos mais devastadores e relevantes para a pesquisa científica em neurociência envolvem justamente o cérebro. Nesse ponto deve-se recorrer à ética, para estabelecer critérios para esses casos e proteger os direitos dos sujeitos envolvidos em tais pesquisas. A capacidade de consentimento é um requisito ético, já previsto em algumas legislações e parte integral de regulamentações profissionais e de comitês de ética, sendo assim amplamente aceito para a maioria das pesquisas científicas, testes clínicas e tratamentos. O consentimento informado, baseado no respeito à autonomia, dignidade e individualidade dos sujeitos, converte-se assim em um elemento fundamental da bioética. Para ser capaz de consentir o indivíduo, sujeito de uma pesquisa, teste ou tratamento, deve ter a capacidade comprovada de fornecer tal consentimento. Essa verificação é procedida por meio de exames e com base nas capacidades subjacentes que constituem a capacidade de consentimento. Considera-se capaz de consentir o indivíduo, sujeito de uma pesquisa, teste ou tratamento, que tenha a capacidade comprovada de fornecer o consentimento. As capacidades subjacentes que permitem identificar tal conhecimento, no entanto, ainda são debatidas, o que constitui-se em mais um motivo para sermos cautelosos. Nesse contexto, devem ser consideradas as seguintes capacidades: ➢ capacidade de compreender a informação apresentada; ➢ apreciar a importância de tal informação; ➢ expressar de modo claro e direto a escolha. Essas capacidades subjacentes, no entanto, ainda são debatidas, o que constitui-se em mais um motivo para sermos cautelosos. Na maioria das vezes se considera que as capacidades subjacentes incluem a capacidade de compreender a informação apresentada pelo pesquisador e sua equipe, apreciar a importância de tal informação e utilizar estas informações para raciocinar acerca de sua aceitação, fazendo a escola e expressando-a de modo claro e direto. 4.1.1 A relevância e as causas da implicação É possível que muitos de nós sejamos afetados ou conheçamos alguém afetado por alguma condição neurológica que reduz a capacidade de consentimento. Desordens neurológicas crescem em populações idosas. Acidentes de carro e lesões nos deixam vulneráveis a traumas cerebrais. Temos ainda nesta lista os distúrbios neurológicos, como o traumatismo craniano, alguns casos de acidente vascular cerebral, demência e até mesmo distúrbios metabólicos. Essas diversas situações podem comprometer a capacidade dos indivíduos de analisar informações e compreender a relevância ou os riscos de sua participação em um estudo ou tratamento. Por essas razões, comumente os pesquisadores de neurociência que realizam pesquisas envolvendo humanos, trabalham com indivíduos ou mesmo populações que apresentam comprometimento de sua capacidade de consentimento. Por outro lado, muitas dessas pesquisas tratam justamente de investigar soluções para patologias e transtornos que ocasionam o comprometimento da capacidade de consentimento. Também, os profissionais que fazem uso dos resultados da neurociência encontram, em diversas situações, indivíduos (pacientes, alunos, etc.) que apresentam comprometimento de sua capacidade de consentimento. Sendo necessário considerar ainda a possibilidade dos testes ou tratamentos apresentarem alterações na capacidade de consentimento do indivíduo. A lista de condições neurológicas que podem levar um indivíduo a ter sua capacidade de consentimento reduzida é longa e inclui, desordens neurológicas que crescem exponencialmente em populações idosas, acidentes de transito, uso de substâncias tóxicas e lesões que nos deixam vulneráveis a traumas cerebrais. Nesse contexto o possível efeito dessas condições nos pacientes podem comprometer a capacidade dos indivíduos de analisar informações e compreender a relevância ou os riscos de sua participação em um tratamento, teste ou estudo clínico. Um caso em que não há lesão ou trauma, mas se considera a possibilidade de limitação da capacidade de consentimento é o caso das crianças. Por ainda estarem em desenvolvimento, os pesquisadores e comitês de ética tendem a tratar pesquisas com crianças de maneira ainda mais rigorosa. Mesmo que nesta situação em particular sempre haja um responsável, devemos nos perguntar sempre pela autonomia, individualidade e dignidade do sujeito. E no caso de crianças, devemos nos perguntar ainda se não estamos afetando esses direitos no futuro ao expô-las aos testes, tratamentos e métodos. Isto inclui desde testes clínicos até aplicações da neurociência na educação. 4.2 Autonomia e dimensão ética Sabendo da necessidade dessas pesquisas, mas também conscientes de que a autonomia é um dos pilares fundamentais dabioética. Deparamo-nos com o desafio de estabelecer critérios para utilização desses indivíduos garantindo a segurança dos mesmos e o respeito aos seus direitos. As regras estabelecidas com base na neuroética não pretendem estereotipar os indivíduos com base em diagnósticos. É possível que alguns indivíduos com as condições neurológicas descritas acima possuam perfeitas condições de compreender os riscos, realizar uma escolha autônoma e oferecer em retorno informações úteis à pesquisa. Isso faz parte do respeito à autonomia, compreender que algumas dessas pessoas estão em condições de realizar suas próprias escolhas. Alguns indivíduos, mesmo com as condições neurológicas graves, possuem condições de compreender os riscos, realizar uma escolha autônoma e oferecer em retorno informações úteis à pesquisa. As regras para pesquisa científica não tem objetivo de estereotipar e restringir as possibilidades desses pacientes. Essas pessoas estão em condições de realizar suas escolhas e as regras para a pesquisa devem respeitar sua autonomia. O interesse das regras é mais voltado aos indivíduos vulneráveis, que podem ser incapazes de compreender a escolha que fazem ao submeter-se à pesquisa e tratamento, o que identifica o objetivo de respeitar essas regras, evitando que alegado bem maior, o interesse da sociedade ou da comunidade científica seja colocado acima do indivíduo e sua autonomia. O interesse dessas regras é na proteção daqueles indivíduos que podem estar vulneráveis, sem a capacidade de compreender a escolha que é colocada a sua frente, quando lhes é apresentado um tratamento ou a possibilidade de participar em um teste clínico. Seguir adiante com uma pesquisa, teste ou tratamento nessas condições seria colocar o alegado bem maior, o interesse da sociedade ou da comunidade científica, acima do indivíduo. Evitar que isto aconteça é exatamente o motivo pelo qual a bioética foi criada. 4.3 Aprimoramento cognitivo Alguns pesquisadores envolvidos no debate acerca do aprimoramento cognitivo acolhem as novas ideias como um meio viável de aperfeiçoar a espécie humana. Por outro lado, outros pesquisadores rejeitam tal tentativa de aprimoramento e o uso de inovações neurocientíficas que se destinem a forçar a cognição humana para além do funcionamento típico, tido como estatisticamente normal. Nesse contexto faz-se importante o conhecimento de alguns riscos que motivam os pesquisadores contrários ao aprimoramento cognitivo. ➢ risco de ameaças à dignidade humana; ➢ risco à liberdade; ➢ retorno das discussões sobre eugenia. Tem-se o caso do aprimoramento cognitivo, o qual desafia a bioética em outro sentido. O aprimoramento cognitivo trata de tentativas de aplicar conceitos e métodos da neurociência para ampliar a capacidade humana em áreas relativas à cognição, entre elas, raciocínio lógico, tempo de reação e memória. Aplica-se ainda a ideia de que seja possível avançar nessas áreas além do nível de funcionamento que é estatisticamente considerado normal para a espécie humana. As investigações da neurociência apontam caminhos para técnicas, métodos e tecnologias que podem modificar o funcionamento neural humano. Entre esses encontramos medicamentos, estimuladores da atividade cerebral e ferramentas de treinamento das habilidades cognitivas. Essas são apenas alguns dos tipos de modificação neural já conhecidos e que estão em uso. Importante notar, para a finalidade da nossa discussão, que esses mesmos tipos de modificação neural ainda estão em estudo ou são meras antecipações do que seriam resultados possíveis dos estudos em andamento. 4.3.1 A ilusão de aprimoramento Recentemente, ondas de estudantes tem se baseado em pesquisas vagas e medicação prescritiva na busca de aprimorar o seu potencial. No entanto, não há evidência de fato que tais usos de medicações prescritivas, sem orientação profissional, tenham qualquer efeito benéfico em indivíduos que não possuem a condição que tais medicações tratam. A utilização dos métodos e técnicas de qualquer ciência deve ser cautelosa. 4.3.2 O aprimoramento possível Alguns dos resultados da neurociência têm o potencial de, não apenas manter e recuperar a saúde do cérebro, mas de ampliar seu potencial. Existem diferentes casos. Tem-se, por exemplo, o caso da educação, em que crianças com deficiências em suas capacidades cognitivas podem ser estimuladas e auxiliadas por métodos baseados na neurociência. Nesse caso existe potencial real para melhoria e, do ponto de vista científico, justificativa para o uso de medicações e métodos de aprimoramento. Tem-se, por outro lado, o caso de pessoas com distúrbios, atrasos e desordem cognitiva, independente da idade dessas pessoas. Aqui retorna a questão da capacidade de consentimento. “Essas pessoas possuem capacidade cognitiva para aceitar o tratamento ou participar em estudos que podem vir a gerar tratamento e métodos de aperfeiçoamento que as beneficie?” A questão que se coloca é se temos como estabelecer uma norma para o aprimoramento em geral ou se devemos trabalhar cada caso individualmente. 4.4 O debate e o ato em si Alguns pesquisadores envolvidos no debate acerca do aprimoramento cognitivo acolhem a ideia de novos aprimoramentos cognitivos como um meio viável de melhorar a espécie humana. Por outro lado, outros pesquisadores rejeitam tal tentativa de aprimoramento e o uso de inovações neurocientíficas que se destinem a forçar a cognição humana para além do funcionamento típico, tido como estatisticamente normal. Os pesquisadores que se posicionam dessa maneira normalmente apontam o risco de ameaças à dignidade humana e o risco de retorno das discussões acerca da eugenia, especialmente em seu sentido negativo. Não apenas a dignidade, mas alguns pesquisadores vão além e apontam para os direitos naturais, questionando-se sobre os efeitos de tais aprimoramentos sobre a liberdade em uma situação na qual a ciência promove avanços que nos permitem controlar a mente por meio de tecnologias de modo eficiente. Para Refletir Ainda, sabendo que alterações no cérebro podem modificar a capacidade de consentimento e as decisões morais dos indivíduos, como ficaria a questão da responsabilidade e os juízos morais se passássemos a alterar a mente das pessoas com regularidade? Lesões no cérebro podem alterar a capacidade de consentimento e as decisões morais dos indivíduos. Considerando que para essas questões ainda não temos respostas claras. Nesses casos, o papel da bioética é levantar as questões e garantir que elas sejam analisadas de modo isento, sem conflito de interesses e respeitando os direitos humanos. Pode-se concluir é que, em si, não há violação ética quanto à ideia da possibilidade de aprimoramento, mas as possibilidades são tamanhas e o cérebro é tão complexo que a ética de uma intervenção específica só pode ser verificada analisando caso a caso. Para isso, as organizações dedicadas ao estudo da bioética procuram envolver o público nas muitas discussões. Mas não se trata apenas do caso do aprimoramento cognitivo, as discussões derivadas desse debate se movem muito além dele, para uma gama maior de intervenções, comportamentos, tecnologias e condições ambientais que afetam, ou podem afetar, o funcionamento do cérebro humano. A esse conjunto mais amplo de mudanças e possibilidades os neurocientistas normalmente referem-se como "modificadores neurais". Um dos pontos mais importantes da neuroética é a ideia de que, uma vez que o processamento moral ocorre na mente, também devemos aceitar uma relação entre o cérebro e o processamento moral. Dessa forma, a influência de lesões ou limitações no cérebro deve ser considerada ao pensarmos a moral e, consequentemente, a ética. Nesse contexto ao papel da neuroética nos experimentos