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O Show de Truman Os 20 anos de um filme que estava apenas começando - Canaltech

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Há 24 anos, Jim Carrey não havia alcançado grande destaque nos cinemas. Sua carreira
se resumia a alguns papéis coadjuvantes (como em Meu Amante é de Outro Mundo, de
1988) e a �lmes realizados para TV. Foi justamente em 1994 que a carreira desse que é
um dos comediantes mais queridos da história do cinema foi catapultada. Nada menos
do que três �lmes de grande bilheteria tiveram o protagonismo de Carrey: Ace Ventura:
Um Detetive Diferente, O Máskara e Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros. O primeiro
custou 11 milhões de dólares e arrecadou 107 milhões (quase 10 vezes mais); o
segundo teve o orçamento em 18 milhões e a bilheteria em 351 (quase 20 vezes mais); e
aquele Debi & Lóide custou 16 e arrecadou 247. E isso em se falando somente de
bilheteria de cinema.
Mas o ator não era exatamente querido pelos colegas de elenco. No ano seguinte
(1995), quando interpretou o Charada no espalhafatoso Batman Eternamente, muitas
críticas em todo o mundo citavam a di�culdade que era controlar os trejeitos e
maneirismo de Carrey. De fato, ele surgira ao estrelato após um ano incomum para
alguém ainda sem grande expressão, o que aparentemente internalizou a máxima do
Stanley Ipkiss ao utilizar a máscara: “Que demais!” (na versão brasileira).
O Máskara (Imagem: Playarte Pictures)
Mais dois �lmes vieram antes de Jim Carrey dar sinais de que poderia ser um ator
versátil: Ace Ventura 2 — Um Maluco na África (1995) e O Pentelho (1996). Assim, foi em
1997, com O Mentiroso, que o ator nascido no Canadá conquistou algumas das suas
principais críticas positivas. O saudoso Roger Ebert, um dos maiores críticos norte-
americanos, escreveu em seu texto sobre O Mentiroso: “I am gradually developing a
suspicion, or perhaps it is a fear, that Jim Carrey is growing on me. Am I becoming a
fan?” — Em tradução livre: “Eu estou gradualmente desenvolvendo uma suspeita, ou
talvez seja um medo, de que Jim Carrey está crescendo em mim. Eu estou me tornando
um fã?”
O Mentiroso (Imagem: Universal Pictures)
Em 1998, chegou a vez dele (Carrey) interpretar Truman Burbank. Para alguns, era uma
escolha muito arriscada do diretor Peter Weir. Para outros, como Ebert, o ator era “uma
escolha surpreendentemente boa” porque ele tinha o poder de deixar o público
confortável apenas com a sua presença.
Na verdade, era uma escolha bem premeditada pelo diretor, visto que ele havia
escolhido outro comediante para o papel principal em seu �lme mais famoso até então:
o excepcional Sociedade dos Poetas Mortos (de 1989), construindo uma das mais
bonitas atuações de Robin Williams.
Sociedade dos Poetas Mortos (Imagem: Disney / Buena Vista)
Enquanto a escolha de Peter Weir acabaria cedendo ao seu ator protagonista a chance
de trabalhar com grandes diretores de forte veia dramática nos anos que viriam —
como Milos Forman (no excelente O Mundo de Andy), Frank Darabont (em Cine
Majestic) e, mais tarde, na obra-prima escrita por Charlie Kaufman, Brilho Eterno de
uma Mente sem Lembranças —, também ajudou a transformar o seu �lme em um
marco. O Show de Truman passou a ser citado como um �lme revolucionário e a ser
constantemente lembrando como uma das melhores �cções cientí�cas já realizadas. A
conceituada revista Popular Mechanics, dedicada à ciência e à tecnologia e publicada
nos EUA desde 1902, classi�cou a obra de Weir como uma das 10 mais proféticas da
história.
O Show de Truman (Imagem: Paramount Pictures)
Não é de se espantar. Enquanto O Show de Truman era lançado, surgiam os primeiros
reality shows de con�namento pelo mundo. Aqui no Brasil, por exemplo, No Limite (o
primeiro do país) estreou em 2000, com o Big Brother em sua versão nacional
estreando no ano seguinte. Esse tipo de programa tornou-se uma febre, espalhando-se
ao redor do mundo como uma pandemia.
Após 20 anos da sua estreia, TTruman continua sendo uma das melhores e mais
signi�cativas personagens de Jim Carrey. Isso se deve, especialmente, à atemporalidade
do que é visto. A sátira a�ada sobre a espetacularização do ser humano, sobre o capital
acima da humanidade, sobre o comércio ser o real consumidor de tudo.
Essas de�nições rimam diretamente com o próprio nome do personagem. É como se o
roteirista Andrew Niccol estivesse revelando todo o essencial de sua história apenas
com o batizado. Truman, no caso, é a aglutinação das palavras “true” e “man”, que
signi�cam “homem verdadeiro” e Burbank, o sobrenome, é uma citação direta à cidade
Burbank, capital da mídia no mundo, que �ca em Los Angeles.
Niccol, ainda, é um especialista em sci-�, tendo lançado um ano antes o ótimo Gattaca
— Experiência Genética (�lme que dirigiu além de escrever). Portanto, unindo Niccol,
Peter Weir e sua veia para o drama e Jim Carrey em sua melhor forma cômica, O Show
de Truman é uma inusitada comédia dramática de �cção cientí�ca que, muito jovem,
alcançaria o status de clássico.
Gattaca — Experiência Genética (Imagem: Columbia Pictures)
As mensagens do �lme vão desde as mais simples às mais possivelmente ocultas: da
crítica a um capitalismo desenfreado que lida com uma única vida e se põe acima desta
— vide as marcas que alguns personagens fazem questão de ressaltar — ao fato de que
é comum aceitar tudo ao redor sem ao menos checar. Faz parte da rotina? Então é
normal e está certo. Esse erro, que qualquer um pode cometer diariamente, tem mais
outra face: a libertação dos hábitos. Assim, mostra-se com naturalidade o dia-a-dia de
Truman, com seus cumprimentos aos vizinhos pela manhã, sua ida diária ao jornaleiro,
seu encontro com uma dupla que, jogando conversa rápida fora, apenas o posiciona em
frente a uma grande propaganda colada na parede e seu trabalho.
Aliás, em meio a tudo isso, estão os espectadores daquele reality show, que
acompanham o moço há mais de 30 anos e, há muito tempo, apenas observam a sua
rotina. A repetição da vida de Truman apenas re�ete a repetição a qual aqueles que o
assistem se submetem. E é esse poder de hipnotizar de grudar o espectador frente à TV,
que muitos realities shows reais viriam a ter.
O Show de Truman (Imagem: Paramount Pictures)
Por mais que o roteiro tenha uma progressão previsível — é óbvio desde o início que
Truman descobrirá que seu mundo é uma grande farsa —, o caminho percorrido pelo
texto de Niccol e a maneira através da qual Weir vai soltando as descobertas é de muita
inteligência. Junta-se a isso o ar de humana vilania que Ed Harris cede ao seu Christof —
cheio de uma afeição paterna que, até poucos minutos do �nal, não se sabe se é pelo
Truman (que ele viu crescer) ou pelo show em si —, e a crueldade da construção de um
psicológico afetado por traumas — especialmente aquele que implanta a morte do pai
por afogamento e o faz ter pavor de água.
É assim que O Show de Truman não somente conta uma história, mas consegue causar
re�exão até mesmo em quem esteja assistindo despretensiosamente. Talvez essa
abrangência e signi�cação da obra se deva à união entre três pro�ssionais tão
diferentes, o que possibilita uma abertura muito maior de ideias e termina em um
resultado leve e ao mesmo tempo denso; pesado e que consegue fazer rir; faz re�etir ao
mesmo tempo em que entretém e descansa. Um universo na cabeça de um al�nete.
Ainda, a implicação com o futuro foi quase imediata. Se antes eram vistos atrizes e
atores, esportistas do primeiro escalão ou até mesmo políticos mais comentados (pelos
mais variados motivos — e o mais comum todos conhecem) nas TVs, pessoas comuns
(eu, talvez você e tantas outras pessoas) poderiam alcançar a fama em um passe
mágico: a participação em um reality show.
E isso, como em O Show de Truman, é extremamente rentável. É sabido que a televisão
e o cinema há tempos sofrem com uma grande crise criativa. Os postos de criação estão
sendo abandonados e os postos técnicos preenchidos. Hoje, a técnica no cinema salta
aos olhos muito antes da história e da sua substância. Mas isso é requerido pela
indústria. O mundo vive hoje um boom de velocidade. Tudo precisa ser dinâmico. As
séries passam de 50 minutos para 20; programas na internet que antestinham 20 agora
precisam ter cinco.
Nesse sentido, a TV tem uma fome quase que insaciável por material. Então, nada mais
barato do que, por exemplo, tranca�ar gente como a gente dentro de uma casa, levar
até lá, de vez em quando, um artista (geralmente em decadência — porque são os
menos caros) para fazer um pocket show e, ao mesmo tempo, abrir vídeo e áudio para
que todos assistam.
Dentro disso, há o processo de identi�cação também: não são atrizes, não são atores
que estão ali, são pessoas comuns com as quais é socialmente admissível criar laços
mais palpáveis. Guardadas as proporções, é o sentimento da representação negra (que
tão bem fez o blockbuster Pantera Negra), da representação feminina (como em Oito
Mulheres e Um Segredo), só que é, no �nal das contas, a representação da
personalidade, uma possível resposta espelhada sobre quem se é lá no fundo.
Isso é genial. O problema é que essa mesma televisão é justamente como o Christof de
Ed Harris: implacável e estrategicamente �nanceira. As subcelebridades de um reality
show nada mais são do que conteúdo para a sua grade (da emissora), mas um conteúdo
barato em horário nobre e com a certeza de milhões de telespectadores vidrados. Nos
comerciais desses programas, vê-se somente as marcas que podem pagar melhor. O
horário é caro. Muita gente assistindo e assistir a algo antes de dormir é um passo para
�xar o que se viu. Devora-se, dessa maneira, vidas e segredos.
O Show de Truman (Imagem: Paramount Pictures)
Saindo dali, é mais renda: a ida a outros programas da emissora causa furor. E, logo
depois, aquelas pessoas, gente como eu e talvez você, são esquecidas. No �nal, paga-se
um milhão para o vencedor (um valor irrisório para o lucro obtido depois de tudo — e
antes de mais algum) e voilà, tem-se uma das rendas mais cruelmente legais do show
biz. Citando Christof: “Você é real, por isso gostam de assisti-lo.”
É para lá — para a realidade — que Truman vai, para a saída, para o �m. O Show de
Truman não se limita a responder sobre o futuro do seu protagonista. Ele (o �lme) está
disposto mesmo a perguntar, a construir dúvidas, a causar re�exão. Não é à toa que,
após décadas dentro da cidade �ctícia de Seahaven (outra aglutinação: “sea” é mar e
“haven” é abrigo), o provável verdadeiro abrigo de Truman esteja ali, numa porta aberta
no �ctício céu, no paraíso (“heaven”).
O Show de Truman (Imagem: Paramount Pictures)
Ou, de repente, para aquele homem que jamais foi amado de verdade — recém-nascido
abandonado de uma gestação indesejada, criado por pais de mentira, casado com
alguém que apenas �nge ter alguma consideração e con�ando em um melhor amigo
que nada mais é do que a personagem de um ator —, o fruto da saída é justamente o
amor: um amor que ele pensa estar distante, em Fiji, lá na Oceania, mas está bem ali,
correndo para, en�m, ceder-lhe muito mais do que um milhão, muito mais do que o
dinheiro pode pagar.
O Show de Truman (Imagem: Paramount Pictures)
“E, para o caso de não nos vermos mais: Bom dia, boa tarde e boa noite!”
O Show de Truman (Imagem: Paramount Pictures)
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O Show de Truman — Os 20 anos de um �lme que estava
apenas começando
Por Sihan Felix | 04 de Julho de 2018 às 12h05
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