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Luiz R de Assis - Os desafios da moeda digital soberana

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17/11/2020 Os desafios da moeda digital soberana
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Novo ‘dinheiro’ vem sendo tratado como
questão estratégica por governos de vários
países
1 de 1 — Foto: MasterTux/Pixabay
— Foto: MasterTux/Pixabay
Com o lançamento do sistema de pagamentos instantâneos PIX, o Banco Central
deu passo decisivo na direção da prestação de serviços de varejo. Etapa seguinte
poderá ser a criação da moeda digital soberana.
Conhecidas pelo acrônimo inglês CBDC (central bank digital currency), as
moedas digitais soberanas vêm sendo tratadas como questão estratégica por
governos de vários países. Estudos se encontram em diferentes estágios de
evolução ao redor do mundo e também no Brasil, onde o Banco Central constituiu
grupo de trabalho sobre o assunto em agosto deste ano.
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Intermediária deverá assumir o papel de gestora de recursos de terceiros,
e não de depositária
Moeda digital soberana nada mais é que moeda corrente em formato digital. Mas
qual a diferença entre ela e outras velhas conhecidas formas desmaterializadas de
dinheiro, como a moeda escritural e a moeda eletrônica? Afinal, estas também são
expressões virtuais da moeda nacional e são transacionadas por meio de
dispositivos eletrônicos.
Em termos legais, a diferença é que a moeda digital soberana confere a seu titular
direito de crédito diretamente contra a autoridade monetária emissora (Banco
Central), ao passo que moedas escriturais e eletrônicas são obrigações da
instituição financeira ou de pagamento depositária.
Os desafios da moeda digital
soberana
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17/11/2020 Os desafios da moeda digital soberana
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Isso não é novidade. Desde sempre os bancos centrais emitem moeda soberana
desmaterializada, na forma de depósitos (voluntários ou compulsórios) mantidos
neles pelas instituições bancárias. A novidade seria a emissão diretamente para
pessoas físicas e jurídicas não bancárias.
Disso decorrem consequências importantes. Por exemplo: o Banco Central
substituiria o sistema financeiro e de pagamentos na condição de depositário das
disponibilidades da população? Todos teríamos contas de moeda digital
diretamente no Banco Central, sem intermediação de instituições financeiras ou
de pagamento?
Essa é uma possibilidade, mas com óbvios inconvenientes econômicos e práticos
sobre os quais não nos alongaremos. O caminho mais provável seria o de modelo
descentralizado, em que instituições autorizadas pelo Banco Central atuariam
como intermediárias. Essas instituições administrariam o relacionamento com os
titulares da moeda digital e prestariam serviços como identificação e
cadastramento de clientes, prevenção à lavagem de dinheiro e iniciação de
transações de pagamento. A abrangência das funções do intermediário dependeria
do grau de descentralização previsto no modelo a ser adotado.
Porém, para que a moeda digital soberana preserve sua característica de obrigação
da autoridade emissora, a instituição intermediária deverá assumir o papel de
gestora de recursos de terceiros, e não de depositária. Sua função equivaleria à das
corretoras de valores na custódia de títulos e valores mobiliários de propriedade
de seus clientes. Contas individualizadas em nome dos usuários finais seriam
mantidas no BC. Isso também afastaria o risco de insolvência do intermediário,
pois no caso de intervenção, liquidação ou falência, basta que a gestão seja
transferida para outra instituição.
A emissão de moeda digital soberana impactaria as políticas monetária e
creditícia. Como é sabido, depósitos bancários têm efeito multiplicador de moeda.
O dinheiro depositado por um cliente é (em parte) emprestado pelo banco a outro
cliente, que por sua vez também o deposita, possibilitando novo empréstimo - e
assim sucessivamente. Com a migração de depósitos para moeda digital soberana
isso não seria possível, pois a instituição intermediária perderia a propriedade dos
recursos e portanto não poderia dispor deles para novos empréstimos. Sob esse
aspecto, a moeda digital soberana se equipara a depósito bancário com 100% de
recolhimento compulsório.
Além disso, como o risco de crédito da autoridade monetária por definição é zero,
muitos poderiam se sentir incentivados a migrar seus recursos de contas-correntes
e de pagamento para moeda digital soberana. O risco é idêntico ao da corrida
bancária clássica, mas sem o inconveniente da manutenção de grande quantidade
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de dinheiro em espécie e com a possibilidade de realizar a transferência
comodamente de casa, a qualquer hora, por meio do computador ou do celular.
Para contrastar esses inconvenientes, alternativa seria limitar a quantidade de
moeda digital soberana que pode ser mantida por cada pessoa ou convertida em
determinado período. Porém soluções como essa afastam a moeda digital
soberana de sua proposta inicial, que é a de ser substituta perfeita do dinheiro em
espécie.
Aliás, como substituta do dinheiro físico, a moeda digital soberana deveria ser
dotada de curso legal. No Brasil, apenas cédulas e moedas de real gozam de tal
característica (art. 1º da Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, que dispõe sobre o
Plano Real). Moeda escritural e eletrônica não, pois embora elas correspondam a
depósitos em real, elas são na verdade - como visto acima - créditos contra a
instituição depositária. Ninguém é obrigado a aceitar créditos em pagamento de
dívidas.
Não seriam poucas as dificuldades na implementação do curso legal da moeda
digital. Como impor a todos os que se encontrem no território nacional - pessoas
físicas de todas as classes sociais, pessoas jurídicas de qualquer porte - a
obrigação de aceitar pagamento em moeda digital? Aqui também uma possível
solução seria limitar a abrangência do curso forçado, por exemplo a operações
comerciais de varejo com estabelecimentos a partir de determinado porte. Mais
uma vez, são limitações que afastam a moeda digital soberana de seu propósito
original.
Outra característica do dinheiro em espécie é a anonimidade. Em teoria nada
impede que a moeda digital soberana também seja anônima - bastaria que as
contas de depósito fossem identificadas por números conhecidos apenas por seus
titulares. Mas é pouquíssimo provável a adoção de modelo anônimo, inclusive em
função de compromissos de combate à lavagem de dinheiro e de financiamento ao
terrorismo assumidos pelo Brasil perante órgãos internacionais. E por questão de
coerência com as obrigações de identificação impostas pela lei aos intermediários
financeiros.
Note-se que a moeda digital soberana não seria um serviço de pagamento ou
arranjo de pagamento, como definido na Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013,
mas sim um meio de pagamento. O Banco Central poderia, contudo, valer-se de
arranjos de pagamento existentes para processar pagamentos feitos na moeda por
ele emitida, além de eventualmente criar seu próprio arranjo. Arranjos existentes
deveriam ser adaptados para admitirem pagamentos em moeda escritural ou
eletrônica e em moeda digital soberana. O processamento de transações em
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moeda digital soberana não deveria ser limitado a um único arranjo, seja ele
mantido por ente público ou privado.
Apesar desses e de muitos outros desafios, a moeda digital soberana poderá se
tornar realidade em breve. Faz bem, portanto, o Banco Central de participarativamente dos debates sobre o tema.
Luiz Roberto de Assis é sócio da área de Direito Bancário de Levy &
Salomão Advogados

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