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Página | 1 A GUERRA DO PARAGUAI A historiografia oficial usada nas escolas brasileiras até os anos 1970 mostrava a Guerra do Paraguai como empreitada civilizatória contra um líder completamente louco e imprevisível, Solano López, que agredira o Brasil sem motivo. Era difícil de acreditar, mas era assim que caía nas provas. Então... deixa pra lá. Nos anos 1970, aconteceu a uma revisão dessa história. A nova versão dizia que o Paraguai era uma força industrial emergente e republicana e que seu sucesso era considerado mau exemplo para os vizinhos, dirigidos todos por uma gananciosa Inglaterra, que queria manter tudo aqui sob controle. Assim, insuflado pela pérfida Grã- Bretanha, o Brasil destituiu o governo do Uruguai e fez uma Tríplice Aliança com este e a Argentina, cujo governo dos anos 1850, de Rosas, também havia sido deposto por influência brasileira. Essa aliança arrasou o Paraguai, de maneira a não deixar nada para reconstruir o país. Foi um genocídio em Página | 2 que morreram pelo menos 1 milhão de paraguaios, perto de 90% da população. Se não é verdadeiro, parece bem argumentado ou, pelo menos, menos inverossímil do que aquilo ensinado antes. Mas uma biografia recente d. Pedro 2º mostra um imperador estadista e pacífico, mas que insiste na continuidade dessa guerra. Não parece coisa dele um genocídio. Existe uma certa tensão, algo de mal explicado no ar. Daí, chega-se ao livro de Francisco Doratioto, base deste texto. É obra bem documentada, baseada fortemente em fontes primárias vindas de todos os países envolvidos e, também, fluentemente escrita. O que podemos tirar de tudo? Genocídio? Sim, mas não premeditado. Levantamentos demográficos recentes indicam que o Paraguai devia ter no máximo meio milhão de habitantes. Logo, só morreu um milhão se contarmos que mataram os corpos e, para cada um, a alma. De qualquer forma, as estimativas de mortes vão de 10% a 70% da população. O grosso dessas pessoas morreu de fome e de doenças (o que também é verdade para os soldados aliados). López tinha uma tática de terra arrasada e isso incluía evacuar os habitantes, de forma a não deixar população que pudesse simpatizar com o inimigo. Morreram soldados paraguaios e morreu a população que era obrigada a evacuar as posições prestes a cair nas mãos da Aliança. Além disso, Página | 3 muitos paraguaios desapareceram do país por terem migrado para os vizinhos, em busca de paz e de o que comer. Paraguai protoindustrial? Em termos. É verdade que o país começava um processo de industrialização, mas este era principalmente no setor militar. O Paraguai se preparava para tentar fazer valer seu peso no jogo do rio da Prata. Inglaterra na guerra? Essa parece ser a informação mais discrepante com a historiografia dos anos 1970. De fato, aquela versão, ao dar tanto poder de influência à Inglaterra, rebaixava ainda mais as nações sul-americanas, que seriam, consequência direta dessa explicação, completamente incapazes de se articular sozinhas. Ou seja, ao tentar resgatar as nações envolvidas, tudo o que se conseguia fazer era mostrá-las mais débeis ainda. De qualquer forma, toda a documentação encontrada pelo autor, inclusive na Inglaterra, indicava que esse país não queria o conflito e, uma vez começado, queria que ele acabasse o mais cedo possível. Afinal, era ruim para os negócios e, além de tudo, a pouca industrialização do Paraguai estava sendo feita via importação de bens e material humano ingleses. Solano começou a guerra do nada? Sim, para a historiografia oficial. Não, para a revisada nos anos Página | 4 1970, para a qual ele se defendia de agressões. Para Doratioto, ele queria um porto em Montevidéu e, para isso, precisava quebrar a hegemonia brasileiro- argentina no Prata. Calculou que o Uruguai tinha ressentimentos com o Brasil (desde os antigos, do tempo da Banda Cisplatina, até recentes, quando os pecuaristas riograndenses insistiam que o Império interviesse no Uruguai, para evitar que este taxasse o gado e discriminasse as propriedades de estrangeiros) e também calculou que poderia se valer da separação entre as províncias argentinas de Buenos Aires e Entrerríos. Faria uma guerra- relâmpago, usando o Rio Grande do Sul apenas como passagem, e, chegando ao Uruguai, obteria apoio. Também calculou que os entrerrianos, pela coincidência cultural, veriam os paraguaios como uma força libertadora. Errou: o Império brasileiro controlava bem o Uruguai e Mitre, a Argentina. Depois do assalto inicial, suas ações foram sempre de retirada. Paraguai arrasado? Sim, pela guerra e também é verdade que os brasileiros degolaram muita gente, violentaram muita gente e saquearam muita coisa. Mas também é verdade que o Brasil definiu a dívida de guerra apenas com o objetivo de deter pretensões argentinas. Se esta tentasse incorporar o Paraguai, deveria arcar com a dívida deste e essa perspectiva a dissuadiria. Havia o compromisso de a dívida não ser de fato cobrada. E não o foi, embora só tenha sido formalmente cancelada por Getúlio Página | 5 Vargas, em 1940. Competência militar brasileira? Nula. A Marinha era inepta e inerte e o Exército, até a chegada de Caxias, desorganizado. Mas este também pouco fez. Cansou-se da guerra e, mesmo não tendo sido Solano López capturado, como era exigência do Imperador, deu-a por terminada e retirou-se. No Rio, foi duramente criticado. Osório era o mais competente, combativo e popular dos generais brasileiros, a figura de maior destaque na guerra. O Exército era mal aparelhado e, segundo Caxias, sem combatividade. Mas é preciso levar em conta que se tratava de um exército formado às pressas e, portanto, sem reserva. Não havia sistema de licenças e rodízios e, assim, quem foi para o Paraguai em 1866 só saiu de lá ou morto, ou meio vivo, em 1870. E quatro anos no Chaco não é fácil, ainda mais vendo que os companheiros morriam mais de fome e doenças que de ferimentos de guerra. De qualquer forma, os principais comandantes do Exército eram ligados a partidos, o que dificultava indicar líderes. Não bastava competência, era preciso que o indicado fosse do partido no poder. Finda a guerra, o Exército começou a se descolar da política partidária e a se tornar mais independente. Tanto que foi instrumento na proclamação da República. Página | 6 O livro dá menos destaque à progressão das batalhas, e mais à política da Aliança. Brasileiros e argentinos eram aliados, mas um via o outro com desconfiança e os comandos sempre recebiam interpretação dúbia. Por exemplo: era essencial para o progresso da guerra que a fortaleza de Humaitá fosse ultrapassada, o que exporia barcos brasileiros ao fogo desta. Se a passagem fosse feita, com algum custo material e humano inicial, os aliados poderiam abreviar a guerra em muito. Mas Tamandaré, e depois Inhaúma, não queriam acatar as ordens, e só o fizeram por intervenção direta de d. Pedro 20. Alegavam ser muito arriscado. Mas, de fato, o que pensavam é que o plano (cuja autoria contava com Mitre) previa mesmo a destruição dos navios brasileiros e consequente perda da Marinha, o que deixaria a Argentina folgada no Prata do pós- guerra. Enfim, este é apenas um dos casos de atrito que a diplomacia, negociadores oficiais e oficiosos &c. precisaram contornar. Fontes Francisco Doratioto - Maldita Guerra, Companhia das Letras, 2007 (2a edição revisada, sendo a primeira de 2002), 617 p. Lilia Moritz Schwarcz - As Barbas do Imperador, Companhia das Letras, 2006 (2ª edição, 8ª reimpressão), 623 p. fichamento por Vittorio Pastelli
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