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CADERNO DE PROCESSO PENAL LUCAS DE OLIVEIRA 2 Sumário LUCAS DE OLIVEIRA CADERNO DE PROCESSO PENAL Juiz de Fora 2014 SUMÁRIO Sumário INTRODUÇÃO AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO 1 1. A instrumentalidade do processo penal 2 2. Brevíssimas notas sobre o Decreto-lei n. 3.688 de 3 de out. de 1941 6 3. Conceito de Direito Processual Penal 7 3.1. Finalidade do Direito Processual Penal 8 4. Fontes do Direito Processual Penal 8 4.1. Fontes materiais 8 4.2. Fontes formais 9 5. Interpretação e integração do Direito Processual Penal 10 6. Eficácia da lei processual no espaço (art. 1º do CPP) 11 7. Eficácia da lei processual no tempo (art. 2º do CPP) 11 8. Sistemas processuais. Introdução e histórico 12 8.1. Sistema acusatório 13 8.2. Sistema inquisitorial 14 8.3. Sistema misto (ou sistema francês) 16 8.4. Sistema brasileiro 17 9. Garantias e princípios fundamentais ao processo penal 18 9.1. Juiz natural 18 9.1.a. Juiz natural. Criação de justiças especializadas ou de varas especializadas 19 9.2. Imparcialidade do juiz 20 9.2.a. Imparcialidade do juiz. Imparcialidade subjetiva e objetiva 20 9.2.b. Imparcialidade do juiz. Participação do juiz na investigação 22 9.2.c. Contaminação psicológica 23 9.2.d. Iniciativa probatória do juiz 23 9.3. Ampla defesa 23 9.3.a. Ampla defesa. Defesa pessoal, privada, autodefesa, material ou genérica 24 9.3.b. Ampla defesa. Defesa técnica, processual, específica ou pública, exercida pelo defensor 27 ii Sumário 9.4. Contraditório 28 9.5. Igualdade processual 31 9.6. Presunção ou estado de inocência 32 9.7. Direito a não autoincriminação (nemo tenetur se detegere) 36 9.7.a. Direito a não autoincriminação (nemo tenetur se detegere). Bafômetro 37 9.8. Publicidade 38 9.9. Motivação das decisões 39 9.9.a. Motivação das decisões. Breve exposição dos sistemas de valoração da prova 39 9.9.b. Motivação das decisões. O juiz, a prova e a motivação 40 9.10. Duração razoável do processo 40 9.10.a. Duração razoável do processo. Aplicação prática 42 INQUÉRITO POLICIAL – INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR 45 10. Conceito e finalidade 45 11. Características 46 11.1. Características. Inquisitivo 46 11.2. Características. Discricionariedade 47 11.3. Características. Escrito 48 11.4. Características. Sigiloso 48 11.4.a. Características. Sigiloso. Exceções 48 11.5. Características. Dispensável 49 11.6. Características. Indisponível 50 11.7. Características. Observações - Valor probatório 50 12. Notitia criminis 51 13. Formas de instauração do inquérito policial 51 14. Diligências no inquérito policial 53 15. Indiciamento 58 16. Prazos para a conclusão do inquérito policial 58 16.1. Prazos para a conclusão do inquérito policial. Lei dos Crimes Hediondos, prisão temporária e prazo para a conclusão do inquérito policial 59 17. Encerramento do inquérito penal 60 18. Arquivamento do inquérito 61 18.1. Arquivamento do inquérito. Eficácia da decisão de arquivamento 62 LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL iii 18.2. Arquivamento do inquérito. Desarquivamento 62 18.3. Arquivamento do inquérito. Arquivamento implícito e arquivamento indireto 63 18.4. Arquivamento do inquérito. Procedimento 64 AÇÃO PENAL 66 19. Ação penal 66 20. Condições da ação de acordo com a teoria geral do processo 67 21. A nova teoria das condições específicas do processo penal 68 22. Pressupostos processuais 69 23. Ação penal de iniciativa pública 69 23.1. Ação penal de iniciativa pública. Princípios 70 24. Ação penal de iniciativa privada 76 25. Ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública 80 26. Denúncia e queixa 82 26.1. Denúncia e queixa. Queixa-crime e procuração com poderes especiais 86 26.2. Denúncia e queixa. Prazos 86 26.2.a Denúncia e queixa. Prazos. Descumprimento 87 26.3. Denúncia e queixa. Hipóteses de rejeição 87 27. Ação civil ex delicto. Noções introdutórias 88 28. Conceito 88 29. Ação de cobrança de rito ordinário para indenização pelo delito (art. 64 do CPP) e a execução com base no título executivo judicial (art. 475-N, II, do CPC) 90 JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA 93 30. Considerações preliminares 93 31. Jurisdição comum e especial 94 32. Espécies de competência 95 33. Competência absoluta e relativa 97 34.1. Guia de fixação de competência. Case study 102 35. Competência territorial 102 35.1. Competência territorial. Casos Especiais 106 35.2. Competência territorial. Critério supletivo 108 36. Competência militar 108 iv Sumário 36.1. Competência militar. Justiça Militar da União 108 38. Competência federal 115 38.1. Competência federal. Cotejo analítico da competência constitucional federal 116 39. Competência estadual 122 41.1. Conexão Intersubjetiva (art. 76, I, do Código de Processo Penal) 124 41.3. Conexão instrumental ou probatória (art. 76, III do Código de Processo Penal) 125 42. Continência 125 44. Separação dos processos 127 44.1. Separação obrigatória dos processos 128 44.2. Separação facultativa dos processos 128 45. Avocação 129 46. Tribunal do Júri e Desclassificação 129 47. Competência por prerrogativa de função 132 47.1. Regras de prerrogativa de função estabelecidas na Constituição Federal 132 PRIMEIRA UNIDADE INTRODUÇÃO AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO CAPÍTULO I – A PRIMAZIA DA NECESSIDADE DO PROCESSO PENAL EM RELAÇÃO À PENA Sumário ▪ 1. A instrumentalidade do processo penal; 2. Brevíssimas notas sobre o Decreto-lei n. 3.688 de 3 de out. de 1941; 3. Conceito de Direito Processual Penal; 3.1. Finalidade do Direito Processual Penal; 4. Fontes do Direito Processual Penal; 4.1. Fontes materiais; 4.2. Fontes formais; 5. Interpretação e integração do Direito Processual Penal; 6. Eficácia da lei processual no espaço (art. 1º do CPP); 7. Eficácia da lei processual no tempo (art. 2º do CPP) ; 8. Sistemas processuais. Introdução e histórico; 8.1. Sistema acusatório; 8.2. Sistema inquisitorial; 8.3. Sistema misto (ou sistema francês); 8.4. Sistema brasileiro; 9. Garantias e princípios fundamentais ao processo penal; 9.1. Juiz natural; 9.1.a. Juiz natural. Criação de justiças especializadas ou de varas especializadas; 9.2. Imparcialidade do juiz; 9.2.a. Imparcialidade do juiz. Imparcialidade subjetiva e objetiva; 9.2.b. Imparcialidade do juiz. Participação do juiz na investigação; 9.2.c. Contaminação psicológica; 9.2.d. Iniciativa probatória do juiz; 9.3. Ampla defesa; 9.3.a. Ampla defesa. Defesa pessoal, privada, autodefesa, material ou genérica; 9.3.b. Ampla defesa. Defesa técnica, processual, específica ou pública, exercida pelo defensor; 9.4. Contraditório; 9.5. Igualdade processual; 9.6. Presunção ou estado de inocência; 9.7. Direito a não autoincriminação (nemo tenetur se detegere); 9.7.a. Direito a não autoincriminação (nemo tenetur se detegere). Bafômetro; 9.8. Publicidade; 9.9. Motivação das decisões; 9.9.a. Motivação das decisões. Breve exposição dos sistemas de valoração da prova; 9.9.b. Motivação das decisões. O juiz, a prova e a motivação; 9.10. Duração razoável do processo; 9.10.a. Duração razoável do processo. Aplicação prática. 2 Introdução ao Processo Penal brasileiro 1. A instrumentalidadedo processo penal ▪ Todos os indivíduos, já talhava perspicaz estudioso americano1, na qualidade de seres livres que coexistem em uma rede de interdependência e interlocução, possuem uma pessoalidade que não é pressuposta nem imposta, mas sim construída socialmente. A coexistência entre seres livres, iguais e, portanto, dotados pessoalidade, não é – como poderia parecer aos mais ingênuos e bondosos – tarefa das mais simples. Um dos instrumentos alçados a desempenhar tal tarefa é, justamente, o Direito Penal. Nem sempre, contudo, esse instrumento serviu, in substantia, a tal propósito. Como explica ARAGONESES ALONSO,2 pode-se resumir a evolução da pena da seguinte forma: inicialmente a reação era eminentemente coletiva e orientada contra o membro que havia transgredido a convivência social. A reação social é, na sua origem, basicamente religiosa, e só de modo paulatino se transforma em civil. O principal é que nessa época existia uma vingança coletiva privada, que não pode ser considerada como pena, pois vingança e pena são dois fenômenos distintos. A vingança implica liberdade, força e disposições individuais; a pena, a existência de um poder organizado. Com a evolução da estrutura e da organização da coletividade, surge o sistema de composição, sucedâneo à vingança, e consiste no pagamento de um determinado valor à comunidade. No princípio, eram os parentes da vítima que tinham o direito de aplicar essas sanções e aceitar os pagamentos. Depois, o Estado assume essa tarefa. O Estado, com o andar do tempo, enquanto ente jurídico e político, chama para si o direito e também o dever de proteger a comunidade e inclusive o próprio delinquente. À medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a autodefesa, assumirá o monopólio da justiça, produzindo-se não só a revisão da natureza contratual do processo, senão também a proibição expressa para os indivíduos de tomar a justiça por suas próprias mãos. A relação entre o processo e a pena corresponde às categorias de meio e de fim. Assim nasce o processo penal, e na mesma toada, fortalece-se a ideia, bem delineada por JESCHECK e WESSELS,3 de que o Direito Penal tem a missão de proteger a convivência humana em comunidade, assegurando os valores fundamentais para tanto e garantindo a paz jurídica, pois o processo penal edifica-se como instrumento forçoso aos propósitos enunciados pelo Direito Penal. Daí já se firma, pela primeira vez, a instrumentalidade do processo penal. Agora, convém registrar que essa instrumentalidade não é de todo igual à clássica noção estudada em âmbito civil. Ora, basta pensar-se que o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao contrário do Direito Privado, não tem atuação nem realidade 1 TAYLOR, Charles. As fontes do Self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997, cit., p. 42. 2 ARAGONESES ALONSO, Pedro. Instituciones de Derecho Procesal Penal. 5. ed. Madri: Editorial Rubí Artes Gráficas, 1984, no prefácio. 3 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: parte geral. 4. ed. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada, Comares, 1993, cit., p. 2 et seq.; WESSELS, Johannes. Direito Penal: parte geral. Trad. de Juarez Tavares. Porto Alegre, Sérgio Fábris, 1976, cit., p. 3. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 3 concreta fora do processo correspondente. Na seara do Direito Privado, o processo civil não é instrumento imprescindível para a satisfação do direito material, à verdade, caminha-se no sentido oposto (desjudicialização). Assim, nas relações privadas, celebrado um contrato, o eventual adimplemento dos termos avençados de todo prescinde da instauração de um processo civil, que só terá lugar em caso de inadimplemento e negativa de cumprimento voluntário das obrigações pactuadas. Aliter, para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um injusto típico, mas também que exista previamente o devido processo penal. Neste quadrante, a precisão da lição do professor Aury LOPES JÚNIOR, colhendo inspiração em GOMEZ ORBANEJA,1 merece ser parafraseada: “A pena não só é efeito jurídico do delito, senão que é um efeito do processo; mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo”. 2 Existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena. Assim, fica estabelecido o caráter instrumental do processo penal com relação ao Direito Penal e à pena, pois o processo penal é o caminho necessário para a pena. 3 É o que GÓMEZ ORBANEJA4 denomina princípio da necessidade do processo penal (minha versão para vernáculo: principio de la necesidad del proceso penal, amparado no art. 1º da norma processual penal espanhola – Ley de Enjuiciamiento Criminal-LECrim), pois não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e atuar a pena. O princípio apontado pelo autor resulta da efetiva aplicação no campo penal do aforismo latino nulla poena et nulla culpa sine iudicio, expressando o monopólio da jurisdição penal por parte do Estado e também a instrumentalidade do processo penal. 5 Os monopólios estatais, à evidência, são 3 (três): a) Exclusividade do Direito Penal; b) Exclusividade pelos Tribunais; c) Exclusividade Processual. 1 GOMEZ ORBANEJA,Emilio. Comentarios a la Ley de Enjuiciamiento Criminal. Barcelona Bosch, 1951, tomo I. p. 27 et seq. 2 A instrumentalidade garantista do processo penal, disponível em: <http://www.juspodivm.com.br/jp/i/f/%7B34561569-847D-4B51-A3BD-B1379C4CD2C6%7D_022.pdf>, data de acesso: 25 de abril de 2014, p. 1. 3 Idem, p. 2; presente também em: LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 86. 4 Op. cit., tomo I, p. 27. 5 É neste sentido, outrossim, a lições de LOPES JÚNIOR, entabulado, por todas as obras, no ensaio A instrumentalidade garantista do processo penal, p. 4. http://www.juspodivm.com.br/jp/i/f/%7B34561569-847D-4B51-A3BD-B1379C4CD2C6%7D_022.pdf 4 Introdução ao Processo Penal brasileiro Conforme já se analisou, atualmente a pena é estatal (pública), no sentido de que o Estado substituiu a vingança privada e com isso estabeleceu que a pena é uma reação do Estado contra a vontade individual. Estão proibidas a autotutela e a “justiça pelas próprias mãos”. A pena deve estar prevista em um tipo penal e cumpre ao Estado definir os tipos penais e suas consequentes penas, ficando o tema completamente fora da disposição dos particulares (vedada, assim, a “justiça negociada”1). A exclusividade dos tribunais em matéria penal deve ser analisada em conjunto com a exclusividade processual, pois, ao mesmo tempo em que o Estado prevê que só os tribunais podem declarar o delito e impor a pena, também prevê a imprescindibilidade de que essa pena venha por meio do devido processo penal. Melhor: cumpre aos juízes e tribunais declararem o delito e determinar a pena proporcional aplicável, e essa operação deve necessariamente percorrer o leito do processo penal válido com todas as garantias constitucionalmente estabelecidas para o acusado. Nesta senda, LOPES JÚNIOR ao concluir suas explanações acerca do princípio da necessidade do processo penal, alicerce da instrumentalidade garantista, arrazoa, de forma firme e coesa, que: “(...) o processo penal constitui uma instância formal de controle do crime (Conforme explicam FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE na obra Criminologia, p. 365 e ss.) e, para a Criminologia, é uma reação formal ao delito e também pode ser considerado como um instrumento de seleção, principalmentenos sistemas jurídicos que adotam princípios como o da oportunidade, plea bargaining e outros mecanismos de consenso. Ademais, da mesma forma que o Direito Penal é excludente (tanto quanto a sociedade), o processo e seu conteúdo aflitivo só agravam a exclusão, eis que se trata de inegável cerimônia degradante que possui seus ‘clientes preferenciais’.” 2 Já se encontra mais que nítida a instrumentalidade do processo penal. Inclusive, o Direito Penal careceria por completo de eficácia sem a pena, e a pena sem processo é inconcebível, um verdadeiro retrocesso, de modo que a relação e interação entre Direito e Processo é patente. É fundamental compreender que a instrumentalidade do processo não significa que ele seja um instrumento a serviço de uma única finalidade, qual seja, a satisfação de uma pretensão (acusatória). Ao lado dela, está a função constitucional, 1 O tema não escapará de uma análise detida. Porém, adiante-se que o monopólio estatal de perseguir e punir está sendo questionado a cada dia com mais força, com o implemento de princípios, como oportunidade e conveniência da ação penal, aumento do número de delitos de ação penal privada ou pública condicionada, e com as possibilidades de transação penal (plea bargaining). A justiça negociada configura uma perigosa e equivocada alternativa ao processo penal, conforme explicaremos na continuação. É a opinião, por exemplo, de LOPES JÚNIOR, in: Direito processual penal, p. 87, nota de rodapé n. 75. 2 Direito processual penal, p. 88. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 5 onde o processo serve como instrumento a serviço da realização do projeto democrático. 1 Nesse soslaio coloca-se a finalidade constitucional-garantidora da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais, em especial da liberdade individual. Inegável, assim, que a Constituição constitui, logo, necessariamente, orienta a instrumentalidade do processo penal. 2 A instrumentalidade do processo penal, retomando o que foi dito linhas acima, não pode ser confundida com a instrumentalidade elucubrada ao processo civil. São concepções diferentes para instrumentos com funções diferentes. O termo instrumentalidade do processo, em que sempre se remeteu à clássica obra da lavra de Cândido Rangel DINAMARCO,3 merece ser reinvestigado à luz do processo penal garantista. Nesta senda, admirável é a apreciação de Alexandre MORAIS DA ROSA4 quando sublinha o perigo de transmitir-se mecanicamente para o processo penal as lições de DINAMARCO, pois estar-se-ia a pautar a instrumentalidade pela conjuntura social e política, demandando um “aspecto ético do processo, sua conotação deontológica”. Explica MORAIS DA ROSA que “esse chamado exige que o juiz tenha os predicados de um homem do seu tempo, imbuído em reduzir as desigualdades sociais”, baseando-se nas modificações do Estado Liberal rumo ao Estado Social, mas “vinculada a uma posição especial do juiz no contexto democrático, dando-lhe poderes sobre-humanos, na linha de realização dos escopos processuais, com forte influência da superada filosofia da consciência, deslizando no Imaginário e facilitando o surgimento de Juízes Justiceiros da Sociedade”. E conclui o autor afirmando que a “pretensão de Dinamarco de que o juiz deve aspirar aos anseios sociais ou mesmo ao espírito das leis, tendo em vista uma vinculação axiológica, moralizante do jurídico, com o objetivo de realizar o sentimento de justiça do seu tempo, não mais pode ser acolhida democraticamente”. 5 Soçobra qualquer dúvida do acerto e valor dessas preleções, e de que esse perigo denunciado por MORAIS DA ROSA “é concreto e encontra em movimentos repressivos, como lei e ordem, tolerância zero e direito penal do inimigo, um terreno fértil para suas nefastas construções”. 6 Na feliz síntese de LOPES JÚNIOR, a noção de instrumentalidade do processo penal “tem por conteúdo a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Constituição, pautando-se pelo valor dignidade da pessoa humana submetida à violência do ritual judiciário”. 7 Sagrando sua separação institucional e a autonomia de seu tratamento científico, o processo penal está a serviço do Direito 1 É a posição amealhada por LOPES JÚNIOR a partir das lições de GERALDO PRADO. Cf. Direito processual penal, p. 88. 2 Idem, ibidem. 3 A instrumentalidade do processo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. 4 In: Direito Infracional, p. 135 et seq., citado por LOPES JÚNIOR. Direito processual penal, p. 89. 5 Idem, ibidem. 6 Idem, ibidem. 7 Idem, ibidem. 6 Introdução ao Processo Penal brasileiro Penal, ou, para ser mais exato, da aplicação dessa parcela do direito objetivo- substancial. Nesta toada, não pode descurar do fido cumprimento dos objetivos traçados por aquele, entre os quais está o de proteção do indivíduo. 1 Por tudo isso, e portanto, não à toa, a instrumentalidade do processo penal é adjetivada de garantista. 2 2. Brevíssimas notas sobre o Decreto-lei n. 3.688 de 3 de out. de 1941 ▪ James GOLDSCHMIDT já em seu tempo elucubrava vivaz observação: “los principios de la política procesal de una nación no son otra cosa que segmentos de su política estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nación no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autoritarios de su Constitución. Partiendo de esta experiencia, la ciencia procesal ha desarrollado un número de principios opuestos constitutivos del proceso”. 3 Nesta medida, parece-me que estamos mal das pernas. A reforma em pílulas é tradição na historiografia jurídica brasileira, bem assim tampouco é novidade reconhecer a inspiração italiana (Codice Rocco de 1930) do nosso Código de Processo Penal (CPP). A forte carga contragarantista do CPP4 é revelada já em sua própria exposição de motivos. A Itália, bom notar, reformulou sua legislação processual na década de 80 do século passado, chegando, finalmente, à democracia processual. Não por outra razão, como pondera um consolidado setor doutrinário, a mudança legislativa não pode vir desconectada da mudança de mentalidade. Isso parece óbvio, pois alguns costumes, tão caros à mentalidade dos membros da comunidade jurídica, já não estão em sintonia com a Carta constitucional. 5 Conforme assentado, além da origem totalitário-fascista do Código de Processo Penal, as reformas nele promovidas foram realizadas em migalhas, situação que, sem dúvidas, compromete a inteireza sistêmica do diploma. Eis, aí, dois traços marcantes no desenvolvimento do Direito Processual Penal brasileiro. Quanto ao primeiro, não há dúvida de que a inspiração ideológica 1 Idem, p. 90. 2 As observações elucubradas neste tópico são seguidas pela doutrina majoritária: BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de processo penal. 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2014, p. 43; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 13; MESSA, Ana. Curso de direito processual penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 79; PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 33-35. 3 Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Barcelona: Bosch, 1935, cit., 67. 4 O ministro Francisco Campos, que foi seu ideólogo, em sua exposição de motivos, deixa-nos perceber o viés antidemocrático ou contragarantista desta ao dizer que “o conceito político da democracia não era mais adequado aos novos ideais da vida. A liberdade individual e suas garantias não resolviam os problemas do homem. Eram ideais negativos, que não garantiam ao indivíduo nenhum bem concreto, seja no domínio econômico, seja no domínio moral, seja no domínio intelectual e político”. Sob tal ideologia surge o Código de ProcessoPenal que persiste em vigorar. 5 PACELLI OLIVEIRA, Curso, p. 5-6. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 7 fascista da teia normativa processual penal (deveria) soçobrar à forte carga cidadã da Constituição Federal de 1988. Quanto ao segundo, por sua vez, bem destaca LOPES JÚNIOR “ problema das reformas pontuais, sem desmerecer a imensa qualidade do trabalho realizado pela comissão de juristas, é que elas geram inconsist ncia e incoerência sistêmica, transformando o CPP, cada vez mais, numa imensa colcha de retalhos”. Esse último problema, infelizmente, necessitará de uma nova normatização para ser sanado. 1 Em síntese, a atualização do Código de Processo Penal está atrasada há pelo menos 26 anos. Não é mais possível compatibilizar uma Constituição Federal democrática, que se diz cidadã, com um CPP oriundo do Estado Novo de Getúlio Vargas, impregnado de conceitos fascistas. É preciso entender que a lógica mudou, que o acusado não é o inimigo e que no processo penal é fundamental estabelecer que os fins não justificam os meios, mas sim o inverso. 3. Conceito de Direito Processual Penal ▪ A conceituação do direito processual é geralmente direcionada aos dizeres de José FREDERICO MARQUES: “é o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal, bem como as atividades persecutórias da Polícia Judiciária, e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares”. 2 No meu peculiar entender, ainda que veladamente para uns, mas um tanto descaradamente para outros, o processo penal assume o viés de remédio para o passado – assim como o Direito Penal –, pois, já alertava Francesco CARNELUTTI, “um obscuro intuito tem sempre guiado os homens a crer que para o passado se tenha remédio”.3 Assim, para aqueles que assim pensam, o delito é uma desordem e o processo penal serviria para restaurar a ordem. Mas “como se faz ordem em lugar de desordem?” 4 Não há que se crer na pena ou no processo penal como remédio. Aliás, a distância entre as acepções é obeliscal. É preciso manter sempre vividos os relatos do acima citado mestre peninsular, para quem o processo é mais doloroso que a própria 1 Aliás, encontra-se no Congresso Nacional o anteprojeto de novo CPP (2009) de coordenadoria do Ministro HAMILTON CARVALHIDO e relatoria de Eugênio PACELLI DE OLIVEIRA. Hoje, o anteprojeto já é Projeto de Lei do Senado n. 156 de 2009. Para acompanhar a tramitação, basta visitar o sítio eletrônico do Senado: << http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=90645>>. 2 Elementos de direito processual penal. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, v. 1, p. 20, citado, dentre outros, por TOURINHO FILHO, Manual, p. 13 e por CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal.15. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 44. É interessante também, em doutrina, a experiência de definição engendrada por MOUGENOT BONFIM, Edilson. Curso de processo penal. 7. ed. São Paulo Saraiva, 2012, p. 33 “o processo penal é o instrumento do Estado para o exercício da jurisdição em matéria penal. O direito processual penal, portanto, pode ser definido como o ramo do direito público que se ocupa da forma e do modo (i.e.: o processo) pelos quais os órgãos estatais encarregados da administração da justiça concretizam a pretensão punitiva, por meio da persecução penal e consequente punição dos culpados. Tem como conteúdo normas que disciplinam a organização dos órgãos da jurisdição e de seus auxiliares, o desenvolvimento da atividade persecutória e a aplicação da sanção penal”. 3 As misérias do processo penal. 3. ed. São Paulo: EDIJUR, 2013, p. 59. 4 Idem, ibidem. http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=90645 8 Introdução ao Processo Penal brasileiro pena, sendo, destarte, necessária a guarnição de todas as ferramentas possíveis para garantir a humanidade deste certame, tendo em mente que o Direito serve à pessoa, fim-em-si, alvo da tutela máxima do direito, e “o mais pobre de todos os homens é o encarcerado”1, isto é, aquele que mais precisa da proteção e garantia do Direito. Portanto, no meu sentir, o processo penal não pode jamais desgarrar-se da ideia de constituir um instrumento através do qual sejam garantidos os direitos basilares ao acusado, estabelecendo um patamar de dialeticidade e intelegência na apuração e imputação de eventuais infrações, bem como fazendo soçobrar as influências externas ensejadas por clamores positivos e negativos sociais, econômicos, políticos e midiáticos, de modo a aplicar as normas processuais com intuito de conceder ao Direito penal seu soslaio imprescindível e inegável de ultima ratio. 3.1. Finalidade do Direito Processual Penal ▪ Ana MESSA, sintetizando os dizeres da doutrina coloquial, apõe que a finalidade do processo penal divide-se em duas espécies: “a) mediata: é a manutenc ão da paz social confunde-se com a própria nalidade do Direito Penal; b) imediata: é realizac ão da pretensão punitiva derivada de um delito, pela utilizac ão da garantia jurisdicional”. 2 Apesar da esquematização da autora realmente refletir a visão majoritária do processo penal, em meu pesar, o processo serve tão só como instrumento constitucional à garantia da pessoa e dos direitos do acusado. Qualquer outra elucubração adentra na teoria da pena ou escapa ao espírito garantista que se pretende empreender nestes escritos. CAPÍTULO II – FONTES, INTERPRETAÇÃO E EFICÁCIA DA NORMA DE DIREITO PROCESSUAL PENAL 4. Fontes do Direito Processual Penal ▪ O expressão “fonte” tem sua origem etimológica nos vocábulos latinos fontanus, fons, fontis, palavra de origem religiosa significando nascente ou manancial (fonts). A teoria das fontes do Direito Processual Penal, assim, busca responder à questão acerca da origem das normas que integram o ordenamento jurídico processual penal. 4.1. Fontes materiais ▪ A fonte material designa a entidade que cria o direito. No caso do direito processual, a União é a única fonte material, já que é a única entidade dotada de poder para a criação de normas que o disciplinem (art. 22, I, da CF). No entanto, adverte MOUGENOT BONFIM, que a competência da União é privativa – e não exclusiva –, de modo que, excepcionalmente, poderá a lei estadual 1 À verdade, “cada um de nós está fechado em uma jaula que não se v . Não nos parecemos com os animais porque estamos na jaula, mas estamos na jaula porque nos parecemos com os animais”. Idem, p. 19 e 23. 2 Curso, p. 80. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 9 versar, através de lei complementar, sobre questões atinentes à matéria processual penal, de acordo com a permissividade contida no art. 22, parágrafo único, da Constituição Federal. 1 matéria de compete ncia concorrente a criac ão, o funcionamento e o processo dos juizados de pequenas causas (art. 2 , , da ), direito penitenciário (art. 2 , I, da ) e procedimentos em matéria processual (art. 24, XI, da CF). Na compete ncia concorrente, a nião edita as normas gerais; os Estados e o Distrito Federal editam as normas especí cas os Municípios são responsáveis por suplementar a legislac ão federal e estadual naquilo que couber (art. 24, §§ 1º ao 4º, combinado com o art. 30, II, ambos da CF). Há que se atentar, aliás, para o fato de que o art. 1º, I, do CPP, prevê que os tratados internacionais também serão fontes materiais do processo penal. Esses são os acordos entre Estados estrangeiros ou entre Estado estrangeiro e organizac ão internacional. s tratados são celebrados pelo presidente da ep blica e posteriormente ratificados pelo Congresso Nacional, por meio de decreto legislativo. Depois de rati cados, são promulgados e publicados pelo presidente da ep blica. Se forem publicados,valerão como lei ordinária federal porém podem valer como emenda constitucional, desde que o tratado verse sobre direitos humanos e seja aprovado como uma emenda, isto é, em cada Casa do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), em dois turnos e por três quintos do total; ou com hierarquia supralegal, quando versarem sobre direitos humanos, sem passar pelo procedimento da emenda. 4.2. Fontes formais ▪ As fontes formais são os meios de expressão do Direito Processual Penal, as fontes de revelac . São subdividas em duas espécies: (i) imediata ou direta é a fonte que contém a norma processual penal, isto é, a lei em sentido amplo. Há diverge ncia na enumerac ão, mas, numa visão majoritária, pode-se afirmar que são fontes formais imediatas: a Constituic ão ederal o ódigo de Processo Penal; leis esparsas; leis de organizac ão judiciária; e os regimentos internos de tribunais. Impende anotar, ainda, que no rol das fontes imediatas, há quem diferencie a fonte primária, que é o ódigo de Processo Penal, da fonte secundária, que são as leis esparsas de processo penal. Ademais, em relac ão s leis extravagantes, há as complementares e as modificativas; (ii) mediatas ou indiretas ou supletivas: há diverge ncia doutrinária a respeito da enumerac ão das fontes mediatas. A classificac ão mais difundida entre os estudiosos é a seguinte: (i) costumes; (ii) princípios gerais do direito. 2 1 Curso, p. 34. 2 Cf. MESSA. Curso, p. 83. 10 Introdução ao Processo Penal brasileiro 5. Interpretação e integração do Direito Processual Penal ▪ O processo penal possui cânones exegéticos que se diferenciam daqueles aplicados no Direito Penal, deste modo, há que se destacar espaço para análise das ferramentas de interpretação e integração do Direito Processual Penal. Levy MAGNO adverte que a interpretac ão consiste em uma atividade mental realizada com o objetivo de extrair da norma legal o seu conte do, estabelecendo-se sua real finalidade. Interpretar uma norma processual é tirar-lhe a essência. 1 Além desta função clarificadora, aludida pelo esperto jurista, as regras referentes à interpretação prestam-se, ainda, a resolver aquelas situações em que sobre um mesmo fato incidem duas ou mais normas jurídicas de conteúdo conflitante. Trata-se das situações de conflito aparente entre normas jurídicas. A integração, a seu tempo, ocorrerá sempre que inexista uma norma aplicável ao fato concreto, ou seja, existem casos em que o ordenamento não prevê – ou não prevê explicitamente – determinadas situações, colocando o aplicador do direito diante do que se convencionou chamar “lacuna da lei”. Nesses casos, a aplicação da lei deverá ser precedida pela atividade de integração. 2 Nesta toada, o art. 3º do PP pretendeu relacionar os critérios disponibilizados para interpretac ão e integração das normas processuais. Eis a redac ão do dispositivo “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. Interpretaç é aquela que admite uma ampliação no campo de incidência da norma, de forma a possibilitar a regulamentac ão de determinada situação. A analogia consiste no processo de integração da norma jurídica escrita por meio do qual, frente ao silêncio da lei sobre determinada situação, utiliza-se outro preceito legal que rege situação semelhante. Melhor: a aplicação analógica a que se refere o art. 3º do CPP incide, portanto, na aplicação, em face de determinado caso concreto, de uma norma originalmente destinada a casos diversos. 3 A analogia, diferentemente do Direito Penal, frente à necessidade de eficácia da persecução penal, admite-se a analogia in bonam partem e in malam partem, desde que não lese direito processual básico, cerceamento da acusação ou defesa. Com efeito, não há que se confundir a aplicação analógica, prevista no art. 3º do CPP, com a interpretação analógica. A analogia consiste na aplicação de uma norma a um caso nela não previsto. Não é, portanto, método de interpretação, mas sim de integração. No plano lógico, a integração sucede à interpretação. 1 Curso de processo penal didático. São Paulo: Atlas, 2012, p. 99. 2 Cf. MOUGENOT BONFIM. Código de Processo Penal anotado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 44. 3 Idem, p. 45. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 11 A interpretação analógica é método interpretativo, que se aplica àqueles dispositivos legais que trazem um rol de fórmulas casuísticas (rol exemplificativo). Dos casos citados no texto legal, é possível inferir – por meio do raciocínio indutivo – uma regra genérica, que permitirá identificar outros casos aos quais a norma será, também, aplicável. Trata-se, portanto, de método interpretativo destinado a identificar casos implicitamente previstos no preceito normativo. 1 O art. 3º do CPP prevê, por fim, a adoção, em caráter suplementar, a fim de suprir as lacunas da lei, dos princípios gerais de direito. Estes são regras gerais que se podem inferir da apreciação do ordenamento jurídico estatal como um todo. Trata- se, pois, de aplicar à lacuna uma regra que se coaduna com o sistema, resolvendo o caso concreto de forma harmônica com as normas destinadas aos outros casos. 2 6. Eficácia da lei processual no espaço (art. 1º do CPP) ▪ O princípio que rege a relação processual penal no espaço é o da territorialidade. O direito processual liga-se com muito mais intensidade ao território de seu Estado de origem do que o próprio direito material. De fato, o direito processual pode ser encarado como um conjunto de normas destinado a instrumentalizar o exercício do poder soberano do Estado (especificamente, sua parcela consubstanciada na jurisdição). O art. 1º do CPP estabelece, em seus incisos, ressalvas à própria aplicabilidade. Além dos casos estatuídos no artigo em tela, os crimes eleitorais (regidos pelo Cód. Eleitoral), procedimentos previstos em leis especiais (v.g., Lei de Drogas, Lei Maria da Penha, Crimes de menor potencial ofensivo, crime de abuso de autoridade etc.), crimes de competência originária dos tribunais (Lei n. 8.038 de 1990) e no caso do tribunal internacional penal, ressalva-se a aplicabilidade do CPP. 7. Eficácia da lei processual no tempo (art. 2º do CPP) ▪ O entendimento majoritário é no sentido de que não importará, no caso da lei processual penal, que a nova legislação seja mais gravosa ao acusado, em face do princípio tempus regit actum (o tempo rege o ato), do qual deflui o princípio da aplicação imediata. Parte da doutrina, entretanto, estende os princípios informadores da aplicação das normas penais materiais — entre os quais o da aplicação da lei mais benéfica — também às leis processuais que atinjam o status libertatis do réu, em uma concepção garantista do processo penal. Isso ocorre no caso das chamadas normas heterotópicas e de natureza mista. 1 É a lição de MOUGENOT BONFIM, que apresenta, inclusive, generoso exemplo de interpretação analógica “Por exemplo, o art. 2º da Lei n. 12.037/2009 prevê, nos incisos I a V, um rol de documentos que servem para atestar a identificação civil das pessoas, eximindo-as, portanto, da identificação criminal (art. 1º do mesmo Diploma Legal). O inciso VI do art. 2º dispõe, no entanto, que a identificação civil poderá ser atestada por ‘VI – outro documento público que permita a identificação do indiciado’. O referido inciso, a bem da verdade, é claro exemplo da interpretação analógica em normas processuais penais, à medida que disciplina ser possível a identificação civil com quaisquer outros documentos públicos, desde que guardem semelhança com o rol disciplinado nos incisos I a V do mesmodispositivo”. Idem, ibidem. 2 Idem , ibidem. 12 Introdução ao Processo Penal brasileiro O problema prático consiste em identificar corretamente essa zona cinzenta, 1 distinguindo verdadeiramente a natureza jurídica da norma – se processual ou substantiva –, impedindo a indevida caracterização de “norma penal” para aquilo que, de regra, consiste em norma processual. De qualquer modo, entende a doutrina que a regra da incidência imediata da lei processual penal não se aplicaria, uma vez que se refere tão somente às normas que tenham por conteúdo matéria exclusivamente processual. Para estas, aplicar-se-á o princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao acusado, estatuído no art. 2º, parágrafo único, do Código Penal, posição que tem sido sustentada majoritariamente pela jurisprudência, especialmente por aqueles que entendem serem tais normas mistas, indecomponíveis, razão pela qual não poderiam retroagir para prejudicar o réu, tampouco poderiam ter aplicação parcial. As normas de conteúdo misto são aquelas que, embora tenham reflexos no processo penal, dizem respeito, também, a pretensão punitiva do Estado e as garantias individuais. Repise-se: se a lei for somente processual, não cabe analisar o caráter mais benéfico da lei nova, pois essa se aplicará de modo imediato. A lei nova, contudo, não pode violar um direito adquirido. Exemplo: aberto o prazo para recurso, mesmo que a lei nova extinga o recurso, altere-o ou impeça-o, o ato não afeta a parte. CAPÍTULO III – SISTEMAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL 8. Sistemas processuais. Introdução e histórico ▪ Conforme já dito, os princípios de política processual de uma nação não são outra coisa do que segmento da sua política estatal em geral; e o processo penal de uma nação não é senão um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos da sua Constituição. 2 Neste quadrante, a oscilação entre períodos mais e menos democráticos não é absurdo ou catástrofe excepcional na história. Essa movimentação é explicada, inclusive, pela teoria das formas de governos. A alternância, inegavelmente, acaba por repercutir na estruturação sistemática do direito à época produzido. Nesta senda, tenho por curial remontar a Políbio, historiador da antiguidade que teceu algumas considerações sobre as constituições – de sua época – em geral. Nessa teoria expõe-se, sobretudo, três teses que merecem ser enunciadas, ainda que brevemente : 1) existem fundamentalmente seis formas de governo – três boas e três más; 2) essas seis formas se sucedem umas as outras de acordo com determinado ritmo, constituindo um 1 É a missão posta por RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 101 et seq. 2 “los principios de la política procesal de una nación no son otra cosa que segmentos de su política estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nación no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autoritarios de su Constitución. Partiendo de esta experiencia, la ciencia procesal ha desarrollado un número de principios opuestos constitutivos del proceso”. In: GOLDSCHMIDT. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p. 67. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 13 determinado ciclo, repetido no tempo; 3) além dessas seis formas tradicionais, há uma sétima – exemplificada, pelo sábio, pela constituição romana – que é a melhor de todas enquanto síntese das três formas boas. Com a primeira tese, Políbio confirma a teoria tradicional; com a segunda, fixa num esquema completo, embora rígido, a teoria dos ciclos (ou, para empregar a terminologia dos gregos, da “anaciclose”), que Platão já tinha exposto com a terceira, formulada pela primeira vez, de modo completo, a teoria do governo misto. A divergência de inspirações não se altera tão só em virtude do tempo, mas, também, por força do espaço. Engenhos mais e menos democráticos se amotinam ao redor do mundo. Sistemas democráticos também se alteram de país para país. Assim sendo, o Direito Processual Penal não escapa a tais oscilações, de modo se constatar, com facilidade, a vigência de sistemas mais ou menos democráticos em determinados espaços-tempo, confirmando a construção clássica da teoria dos ciclos polibianos. Doravante, analisar-se-á cada um destes sistemas. 8.1. Sistema acusatório ▪ O sistema acusatório caracteriza-se, pois, notadamente, por ser uma disputa entre duas partes em paridade de armas, uma espécie de duelo judiciário entre a acusação e a defesa, disciplinado por um terceiro imparcial, o juiz ou o tribunal, que, ocupando uma situac ão de supremacia e independência relativamente ao acusador e ao acusado (actum trium personarum), não pode promover o processo (ne procedat judex ex officio) nem condenar para além da acusac ão (sententia debet esse conformis libelo). 1 LOPES JÚNIOR,2 em agradável incursão histórica, ensina-nos que a origem do sistema acusatório remonta ao Direito grego, o qual se desenvolve referendado pela participação direta do povo no exercício da acusação e como julgador. Vigorava o sistema de ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada para os delitos menos graves, em harmonia com os princípios do Direito Civil. No sistema acusatório, a acusação era por escrito e indicava as provas, bem como o procedimento era oral, predominando a publicidade. À verdade, os julgamentos eram públicos, com os magistrados votando ao final sem deliberar. Presunção era de inocência, logo, a regra era que o acusado permanecesse solto durante o processo. 1 Cf. SILVA, Germano Marques da. Curso de direito processual penal. Lisboa: Babel, v. I, 2010. 2 Direito processual penal, p. 124. Sobre o tema, adenda o mestre BRASILEIRO DE LIMA “ sistema acusatório vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, bem como na Idade Média, nos domínios do direito germano. A partir do século XIII entre em declínio, passando a ter prevalência o sistema inquisitivo. Atualmente, o processo penal inglês é aquele que mais se aproxima de um sistema acusatório puro”. In Manual, p, 46. 14 Introdução ao Processo Penal brasileiro A atuação dos juízes era passiva, no sentido de que eles se mantinham afastados da iniciativa e gestão da prova, atividades a cargo das partes. 1 No sistema acusatório, tem-se um processo de partes, em que autor e réu são sujeitos de direito e constroem através de um confronto a solução justa do caso penal. Havia, destarte, contraditório e direito de defesa. Assim, a con ssão isolada não é suficiente para a condenac ão e todas as provas possuem valor relativo. uanto s provas, vigora o sistema do “livre convencimento motivado”. Havia a adoção do princípio ne procedat iudex ex officio, ou seja, o juiz não pode iniciar a persecuc ão penal de ofício, deve se ater iniciativa do órgão acusador, que é a parte legítima. Ademais, não se admitia a denúncia anônima nem processo sem acusador legítimo e idôneo, sendo que estava apenado o delito de denunciação caluniosa, como forma de punir acusações falsas e não se podia proceder contra réu ausente. á um procedimento contínuo a ser seguido, com atos previamente determinados. E, que de todas caracteres é a mais fundamental, as atividades de acusar e julgar estão encarregadas a pessoas distintas. 8.2. Sistema inquisitorial ▪ O sistema dito inquisitorial tem origem canônica, remontando ao século XIII, propagando-se por toda a Europa continental, sendo utilizado inclusive pelos tribunais civis até o século XVIII. Tem como principal característica o fato de concentrarem-se no juiz as funções de acusar, defender e julgar, passando a ser alcunhado de juiz inquisitor.2 E se no início predominava a publicidade dos atos processuais, isso foi sendo gradativamente substituído pelos processos à porta fechada. As sentenças, que na época Republicana eram lidas oralmente desde o alto do tribunal, no Império assumem a forma escrita e passam a ser lidas na audiência. O processo inquisitivo passa a ser, em regra, escrito e sigiloso. Com a reunião de funções em uma figura só acaba-se por matar o contraditório. Ora, nem seria concebível falar em contraditório, uma vez que sendo o juiz julgador, defensor e acusador, faltaria a necessária contraposição. A partir daí, os juízes começaram a proceder de ofício, sem acusação formal, realizando eles mesmos a investigação e posteriormente dando a sentença. O juiz inquisidor passa a ser dotado de ampla iniciativa probatória. No sistema inquisitorial, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos. Impende notar, neste quadrante, que se considerava possível a descoberta de uma verdade pura ou absoluta, admitindo-se, assim, uma ampla atividade probatória – que recai nas mãos do juiz –, quer em relação ao objeto do processo, quer em relação aos meios e métodos para descoberta da verdade. Nesta 1 A gestão das provas é função das partes, cabendo ao juiz um papel de “garante das regras do jogo”. Idem, ibidem. 2 Cf. BRASILEIRO DE LIMA. Manual, p. 44. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 15 senda, na busca da verdade pura, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida. A confissão assume caráter de principal prova, sendo conseguida de qualquer forma (v.g., tortura, escravidão etc.). O processo penal canônico (antes marcado pelo acusatório) contribuiu definitivamente para delinear o modelo inquisitório, mostrando na Inquisição Espanhola sua face mais dura e cruel. Com se nota, há nítido entrelaço entre o processo penal e a natureza do Estado que o institui. A característica fundamental do processo inquisitório é a concentração de poderes nas mãos do juiz, então chamado de inquisidor, à semelhança da reunião de poderes de administrar, legislar e julgar nas mãos de uma única pessoa, de acordo com o regime político do absolutismo. 1 É ululante, ex positis, que o processo inquisitório é incompatível com os direitos e garantias fundamentais, violando os mais basilares princípios processuais. Sem a presença de um julgador afastado da investigação e equidistante às partes, não há como falar em imparcialidade, resultando, obviamente, em violação às tábuas axiológicas mínimas da modernidade, como, por exemplo, a Constituição Federal de 1988 e à própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH, art. 8º, 1). 2 1 É cátedra precisa de BRASILEIRO DE LIMA. Manual, p. 45. 2 Idem, ibidem. 16 Introdução ao Processo Penal brasileiro SISTEMA INQUISITORIAL SISTEMA ACUSATÓRIO Posic : não tinha imparcialidade, tinha iniciativa probatória na busca da verdade material dos fatos; investigava, acusava e julgava (dominus do processo); julgava com base no que constava dos autos e nas provas por ele coletadas os juízes eram permanentes e irrecusáveis; Posic : imparcialidade não podia agir de ofício (ne procedat iudex ex officio) não podia condenar além da acusac ão cava afastado da iniciativa e da gestão da prova; tinha a apreciac ão objetiva do caso que lhe era submetido pela acusac ão e decidia de acordo com a livre- apreciac ão das provas, com a devida fundamentac ão. Distribuic : reuniam-se na mesma pessoa as func es de acusar, defender e julgar (juiz inquisitor); Distribuic : havia uma distribuic ão das func es de acusar, defender e julgar para pessoas distintas (observa ncia do actum trium personarum – ato de tre s personagens juiz, autor e réu) Garantias processuais: o processo corria em segredo (sigiloso para o p blico e para o réu), sem contraditório e ampla defesa o réu era mero objeto de persecuc ão não havia igualdade jurídica entre acusador e acusado; Garantias processuais: observa ncia do contraditório, da ampla defesa, acesso justic a, devido processo legal, juiz natural, igualdade de direitos; Iniciativa do processo: era feita de ofício pelo juiz havia possibilidade de den ncias ano nimas e secretas; Iniciativa do processo: a iniciativa do processo cabia parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, ou qualquer do povo, ou órgão do Estado; Formalidades: procedimento escrito, com a documentac ão de todos os atos; Formalidades: a acusac ão era por escrito e indicava as provas; o processo era p blico (era admitido de forma excepcional o sigilo na prática de determinados atos); e havia predomina ncia da forma oral para os atos processuais; Verdade: como se admitia o princípio da verdade real, o acusado não é sujeito de direitos, sendo tratado como mero objeto do processo, daí porque se admitia inclusive a tortura como meio de se obter a verdade absoluta; Verdade: O princípio da verdade real é substituído pelo princípio da busca da verdade, devendo a prova ser produzida com observância ao contraditório e à ampla defesa; Prova: a coleta de provas cabia ao juiz, sendo adotado o sistema tarifado; a con ssão era a “rainha das provas” e o testemunho a “prostituta das provas” a con ssão era elemento su ciente para condenac ão a tortura era válida para obter con ssão as provas eram apreciadas com regras mais aritméticas do que processuais. Prova: con ssão do réu não implicava necessariamente em sua condenac ão; a iniciativa probatória era atribuída s partes; ause ncia de tarifa probatória. 8.3. Sistema misto (ou sistema francês) ▪ Finalmente, no século XVIII e XIX, a Revolução Francesa e suas novas ideologias e postulados de valorização do homem levam a um gradual abandono dos traços mais cruéis do sistema inquisitório. Este novo modelo, ensina a doutrina, ganha rosto com o surgimento do famoso C d d’ ruc cr m ll francês, em 1808. Com efeito, o sistema se diz misto pois não tem um princípio básico identificador. Esse sistema funcionaria como uma fusão dos dois modelos anteriores. A natureza mista deste sistema se explica, no entender de BRASILEIRO DE LIMA e PACELLI DE OLIVEIRA , pois o processo se desdobra em duas fases distintas: (i) a LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 17 primeira é tipicamente inquisitorial, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório, sob a presidência de um magistrado – os Juizados de Instruc ão –, visando apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso (fase de investigação); (ii) a segunda é de viés acusatório, onde o órgão acusador apresenta a acusação – a acusac ão criminal cava a cargo de outro órgão (o Ministério P blico) que não o juiz, característica já essencial do sistema acusatório –, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade. 1 A classificação em sistema misto é alvo de muita crítica em doutrina. 2 8.4. Sistema brasileiro ▪ Quando o CPP entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. Explica BRASILEIRO DE LIMA que isso se dava, pois, a fase inicial da persecução penal, singularizada pelo inquérito policial, era de natureza inquisitorial. Contudo, uma vez iniciado o processo, tinha-se uma fase notadamente acusatória. 3 Bem verdade que, ainda hoje, há de se registrar que uma pequena parcela da doutrina, capitaneada por Guilherme de Souza NUCCI,4 entende que o sistema processual brasileiro é o misto. Concessa maxima venia, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funçõesde acusar, defender e julgar, 5 estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princípio da presunção de não culpabilidade, torna-se inegável a natureza acusatória do sistema pátrio. Esse é o entendimento que prevalece amplamente na doutrina6 e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Contudo, é bem verdade que não se trata de um sistema acusatório puro. 7 Com justeza, a própria inspiração fascista do Código já indica a correção do pensamento anteponto. A cátedra de RANGEL é reveladora: 1 BRASILEIRO DE LIMA. Manual, p. 47 e PACELLI DE OLIVEIRA. Curso, p. 10. 2 Por todos, LOPES JÚNIOR. Direito processual penal, p. 133 et seq. 3 BRASILEIRO DE LIMA. Manual, p. 47. 4 Cf. l r d c c m m d r r c l. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 147. 5 umpre informar que no direito positivo, vários dispositivos denotam que o rasil adotou o sistema processual acusatório, em especial o art. 12 , I, da , que concede ao Ministério P blico a titularidade exclusiva da ac ão penal p blica; e o art. 30, do CPP, que confere a iniciativa da ac ão penal privada ao ofendido ou a quem tenha legitimidade para representá-lo. Percebe-se com facilidade a nítida separac ão das func es de acusar, defender e julgar (o “actum trium personarum”). MAGNO. Curso, p. 33. 6 Neste sentido: LOPES JÚNIOR. Direito processual penal, p. 123 et seq.; BRASILEIRO DE LIMA. Manual, p. 47; Magno. Curso, p. 33; DEMERCIAN, Pedro Henrique; e ASSAF MALULY, Jorge. Curso de Processo Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 28; GOMES, Luiz Flávio. Estudos de Direito Penal e Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 182; RANGEL, Paulo. Direito processual penal, 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 85, entre outros. 7 É a opinião de, entre outro, GOMES. Estudos de Direito Penal e Processo Penal, p. 182; RANGEL. Direito processual penal, p. 85 e BRASILEIRO DE LIMA. Manual, p. 47. 18 Introdução ao Processo Penal brasileiro “O Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de investigação, integra os autos do processo, e o juiz, muitas vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do inquérito policial são verdadeiros. Inclusive, ao tomar depoimento de uma testemunha, primeiro lê seu depoimento prestado, sem o crivo do contraditório, durante a fase do inquérito, para saber se confirma ou não, e, depois, passa a fazer as perguntas que entende necessárias. Neste caso, observe o leitor que o procedimento meramente informativo, inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da verdade processual. Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o sistema acusatório adotado entre nós é puro. Não é. Há resquícios do sistema inquisitivo, porém já avançamos muito”. 1 CAPÍTULO IV – GARANTIAS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL 9. Garantias e princípios fundamentais ao processo penal ▪ O fundamento legitimante da existência do processo penal democrático é sua instrumentalidade constitucional, ou seja, o processo enquanto instrumento a serviço da máxima eficácia de um sistema de garantias mínimas. Nesta toada, as garantias e princípios fundamentais ao processo penal tem importância mater na filtragem constitucional que visa estabelecer uma (inafastável) tábua de valores mínimos àqueles que participam do árduo certame processual penal. 2 O processo é um instrumento de poder. Se de natureza penal, o processo pode ser uma poderosíssima arma à ruína de outrem. Então, se é verdade que todo poder tende a ser autoritário e precisa de limites, as garantias processuais constitucionais são verdadeiros escudos protetores3 contra o (ab)uso do poder estatal. 4 Neste prisma, fundamentais são os Decretos ns. 678 (art. 8º) e 592 (art. 14), ambos de 1992. Trata-se de garantias mínimas, que se somam aquelas encampadas no art. 5º da CF, formando o arcabouço garantístico-axiológico mínimo ao processo. 9.1. Juiz natural ▪ Inicialmente, cumpre recordar a garantia do juiz natural, enquanto portadora de um tríplice significado: a) somente os órgãos instituídos pela Constituição podem exercer jurisdição; 1 Direito processual penal, p. 85. 2 Cf. LOPES JÚNIOR. Direito processual penal, p. 183. 3 A expressão é de BINDER, Alberto. Introdução ao Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 85. 4 Cf. LOPES JÚNIOR. Direito processual penal, p. 183. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 19 b) ninguém poderá ser processado e julgado por órgão instituído após o fato; c) há uma ordem taxativa de competência (art. 5º, LIII, da CF) entre os juízes pré-constituídos, excluindo-se qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja.1 Trata-se de verdadeira exclusividade do juiz legalmente instituído para exercer a jurisdição, naquele determinado processo, sem que seja possível a criação de juízos ou tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII, da CF). É fundamental vedar-se a atribuição de competência post facto, evitando-se que a juízes ou tribunais sejam especialmente atribuídos poderes (após o fato) para julgar um determinado delito. Por fim, a ordem taxativa de competência é indisponível, não havendo possibilidade de escolha. O princípio do juiz natural não é mero atributo do juiz, senão um verdadeiro pressuposto para a sua própria existência. Assim, cumpre analisar, primordialmente, a competência do juiz e a seu estabelecimento prévio e ex lege. Fita- se, mormente, a preservação da imparcialidade e independência do juiz. Nesse tema, indispensável é a leitura da precisa obra Adelino MARCON,2 que considera o princípio do juiz natural como um princípio universal, fundante do Estado Democrático de Direito. Consiste, na síntese do autor, no direito que cada cidadão tem de saber, de antemão, a autoridade que irá processá-lo e qual o juiz ou tribunal que irá julgá-lo, caso pratique uma conduta definida como crime no ordenamento jurídico-penal. Com efeito, ninguém pode ser beneficiado pelo juiz ad hoc, nem perseguido pelos Tribunais de exceção. Apesar do princípio do juiz natural não constar com essas letras no texto da CF, não há como negar sua sede constitucional. O art. 5º, XXXVII, preceitua, e.g., que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”. Em complemento, o inciso LIII, do mesmo artigo, estabelece que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Aliás, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos também prevê que toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos e obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza (art. 8º, 1, do Decreto n. 678/1992). 9.1.a. Juiz natural. Criação de justiças especializadas ou de varas especializadas ▪ Alerta BRASILEIRO DE LIMA que: 1 SCARANCE FERNANDES, Antônio. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 127. 2 O Princípio do Juiz Natural no Processo Penal. Curitiba: Juruá, 2004, p. 47 et seq. 20 Introdução ao Processo Penal brasileiro “Da vedação aos juízos ou tribunais de exceção não se pode concluir que exista qualquer impedimento à criação de justiças especializadas ou de varas especializadas. Em relação a tais justiças, não se dá a criação de órgãos para julgar, de maneira excepcional,determinadas pessoas ou matérias. Ocorre, sim, simples atribuição a órgãos jurisdicionais inseridos na estrutura judiciária fixada na Constituição de competência para o julgamento de matérias específicas, com o objetivo de melhor atuar a norma substancial”. 1 Pacífico, então, que não afeta a garantia do juiz natural a criação de justiças especializadas, desde que a medida esteja prevista em lei e seja abstrata, não visando um caso específico, fitando acelerar a prestação jurisdicional. 9.2. Imparcialidade do juiz ▪ Não basta a garantia do juiz natural, isto é, não é suficiente ter um juiz legal e previamente constituído, é necessário que ele reúna algumas qualidades mínimas, para estar apto a desempenhar seu papel de garantidor. Com efeito, a complexidade da imparcialidade é de relevante monta. Basta pensar: o juiz imparcial pressupõe juiz independente e independência pressupõe garantias constitucionais que visem dar segurança ao juiz de que, no exercício de suas funções, não sofrerá coações políticas ou funcionais, constrangimentos que possam ameaçá-lo da perda do cargo. A imparcialidade do juiz, portanto, tem como escopo afastar qualquer possibilidade de influência sobre a decisão que será prolatada, pois o compromisso com a verdade, dando a cada um o que é seu, é o principal objetivo da prestação jurisdicional. 2 Não se trata de princípio de fácil alcance. Apesar da complexidade, a imparcialidade do órgão jurisdicional é um “princípio supremo do processo” e, como tal, imprescindível para o seu normal desenvolvimento e obtenção do reparto judicial justo. Sobre a base da imparcialidade está estruturado o processo como tipo heterônomo de reparto. 9.2.a. Imparcialidade do juiz. Imparcialidade subjetiva e objetiva ▪ Desde o caso Piersack, de 1982, entende-se que a imparcialidade subjetiva alude à convicção pessoal do juiz do caso concreto, que conhece de um determinado assunto. Desse modo, a imparcialidade subjetiva do juiz caracteriza-se na sua falta de “pré- juízos”. Já a imparcialidade objetiva diz respeito à condição do juiz se encontrar em uma situação dotada de garantias bastantes para dissipar qualquer dúvida razoável acerca de sua imparcialidade. Em suma, é a aparência de imparcialidade. A imparcialidade subjetiva, portanto, é interna, sendo, em consequência, controlada pelo próprio julgador. Aliter, a imparcialidade objetiva é externa, 1 Manual, p. 75. 2 RANGEL. Direito processual civil, p. 51. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 21 configurando a imparcialidade aos olhos dos outros, que devem enxergar no juiz um sujeito imparcial. Em ambos os casos, a parcialidade cria a desconfiança e a incerteza na comunidade e nas suas instituições. Não basta estar subjetivamente protegido; é importante que se encontre em uma situação jurídica objetivamente imparcial (é a visibilidade). I. TEDH - caso Piersack vs Bélgica. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), especialmente nos casos Piersack, de 01/10/82, e de Cubber, de 26/10/1984, consagrou o entendimento de que o juiz com poderes investigatórios é incompatível com a função de julgador. Ou seja, se o juiz lançou mão de seu poder investigatório na fase pré-processual, não poderá, na fase processual, ser o julgador. É uma violação do direito ao juiz imparcial consagrado no art. 6.1 do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950. Segundo o TED , a contaminação resultante dos “pré-juízos” conduzem falta de imparcialidade subjetiva ou objetiva. Destaca o Tribunal uma fundada preocupação com a aparência de imparcialidade que o julgador deve transmitir para os submetidos à Administração da Justiça, pois, ainda que não se produza o “pré-juízo”, é difícil evitar a impressão de que o juiz (instrutor) não julga com pleno alheamento. Isso afeta negativamente a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar nos justiçáveis, especialmente na esfera penal. II. STF - HC 94641/BA, rel. Original Ellen Gracie, rel. para acórdão Joaquim Barbosa. O Supremo Tribunal Federal, no HC 94641/BA, Rel. orig. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgado em 11/11/2008, “a Turma, por maioria, concedeu, de ofício, habeas corpus impetrado em favor de condenado por atentado violento ao pudor contra a própria filha, para anular, em virtude de ofensa à garantia da imparcialidade da jurisdição, o processo desde o recebimento da denúncia. No caso, no curso de procedimento oficioso de investigação de paternidade (Lei n. 8.560/92, art. 2º) promovido pela filha do paciente para averiguar a identidade do pai da criança que essa tivera, surgiram indícios da prática delituosa supra, sendo tais relatos enviados ao Ministério Público. O Parquet, no intuito de ser instaurada a devida ação penal, denunciara o paciente, vindo a inicial acusatória a ser recebida e processada pelo mesmo juiz daquela ação investigatória de paternidade. Entendeu-se que o juiz sentenciante teria atuado como se autoridade policial fosse, em virtude de, no procedimento preliminar de investigação de paternidade, em que apurados os fatos, ter ouvido testemunhas antes de encaminhar os autos ao Ministério Público para a propositura de ação penal". No mesmo processo, o voto-vista do Min. Cezar Peluso, concluiu que, “pelo conte do da decisão do juiz, restara evidenciado que ele teria sido influenciado pelos elementos coligidos na investigação preliminar. Dessa forma, considerou que teria ocorrido hipótese de ruptura da denominada imparcialidade objetiva do 22 Introdução ao Processo Penal brasileiro magistrado, cuja falta, incapacita-o, de todo, para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida.” Verifica-se que o ponto fundamental para a anulação foi: viola a garantia da imparcialidade o fato de o juiz ter realizado atos de natureza instrutória de ofício, apurando fatos e ouvindo testemunhas. Finalmente parece que os julgadores brasileiros, especialmente os tribunais superiores, abriram os olhos para algo que já é falado há mais de duas décadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos: juiz que vai atrás da prova está prevento e não pode julgar. Interessante, ainda, como o voto do Min. Cezar Peluso menciona exatamente os mesmos fundamentos, de imparcialidade objetiva e subjetiva, empregados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos desde o Caso Piersack, de 1982. IMPARCIALIDADE SUBJETIVA IMPARCIALIDADE OBJETIVA - convicção pessoa do magistrado; - condição em que se encontra o magistrado na hora de julgar, i. e., nutrido de garantias suficientes para aniquilar qualquer dúvida alheia acerca de sua imparcialidade; - viés interno; - viés externo; - ausência de pré-juízos. - aparência de imparcialidade. 9.2.b. Imparcialidade do juiz. Participação do juiz na investigação ▪ Ainda que a investigação preliminar suponha uma investigação objetiva sobre o fato (consignar e apreciar as circunstâncias tanto desfavoráveis como favoráveis ao sujeito passivo), o contato direto com o sujeito passivo, com os fatos e com os dados pode provocar no ânimo do juiz instrutor uma série de “pré-juízos” e impress es a favor ou contra o imputado, influenciando no momento de sentenciar. Dessa forma, há uma presunção de parcialidade do juiz-instrutor, que lhe impede julgar o processo que tenha instruído. Em definitivo, pensamos que a prevenção deve ser uma causa de exclusão da competência. O juiz-instrutor é prevento e como tal não pode julgar. Sua imparcialidade está comprometida não só pela atividade de reunir o material ou estar em contato com as fontes de investigação, mas pelos diversos prejulgamentos que realiza no curso da investigação preliminar (como na adoção de medidas cautelares, busca e apreensão, autorização para intervençãotelefônica etc.). 1 O problema, é importante destacar, não está apenas nas decisões que profere, mas sim no fato de ir atrás da prova (e assim permite o art. 156 do CPP, 1 Amealhando a cátedra de LOPES JÚNIOR. Direito processual penal, p. 204. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 23 especialmente problemático é o inciso I, sublinhe-se) e depois decidir sobre o material que ele mesmo colheu. Essa é a duplicidade perigosa e que deve ser analisada no caso concreto. 9.2.c. Contaminação psicológica ▪ Crer na imparcialidade de quem está totalmente absorvido pelo labor investigador é o que GOLDSCHMIDT denomina erro psicológico. 1 Foi essa incompatibilidade psicológica que levou ao descrédito do modelo inquisitório. São esses processos psicológicos interiores que levam a um “pré-juízo” sobre condutas e pessoas. O problema é definir se o juiz tem condições de proceder ao que se chama de uma ideia sobre a pequena história do processo, sem intensidade suficiente para condicionar, ainda que inconscientemente – e ainda que seja certeiramente – a posição de afastamento interior que se exige para que comece e atue no processo. Trata-se de situação clarividente se toma o exemplo da prova ilícita. Desta forma, é inegável que o juiz que tem acesso a uma prova robusta, que não obstante ilícita, que indica a autoria do crime, ficará mentalmente contaminado e influenciado a decidir conforme aquele conteúdo apresentado. Nesta toada, é óbvio que o juiz que conheceu a prova ilícita não pode julgar, pois está contaminado. Nesses casos, conforme alerta LOPES JÚNIOR, “não basta desentranhar a prova; deve-se ‘desentranhar’ o juiz!”. 2 A afirmativa é verídica, refletindo a repostas da indagação de que “Quem nos garante que o juiz não está decidindo a partir da prova ilícita, ainda que inconscientemente (até porque a emoção é mais intensa) e, na fundamentação, apenas cria uma blindagem argumentativa de que a decisão foi tomada com base na prova lícita?”. 3 9.2.d. Iniciativa probatória do juiz ▪ Forte celeuma diz respeito a ponto- fim com que o juiz pode ostentar iniciativa probatória. O ônus da prova recai – a priori – sob a acusação, em virtude da presunção de inocência. Ao atuar de ofício, o juiz estará atuando como se acusação fosse, violando o princípio básico da hermética separação das funções. Não é da nossa cultura, à verdade, venerar juízes totalmente inertes, sendo admissível em linha de doutrina a atividade probatória do juiz, contudo, tão só até certo ponto, sendo sempre subsidiária. Aliás, os arts. 209 e 212, parágrafo único, do CPP, trazem regras expressas no sentido de que é viável, desde que subsidiária, a atividade probatória do juiz. 9.3. Ampla defesa ▪ O estudo não pode escapar de tintar que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art 5º, LIV, da CF). A garantia do due process of law é dúplice. O processo, no primeiro tomo, é imprescindível à aplicação de qualquer pena, conforme a regra nulla poena sine judicio, significando o devido processo como o processo necessário (intrumentalidade 1 Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p. 29. 2 Direito processual penal, p. 622. 3 Idem, p. 624. 24 Introdução ao Processo Penal brasileiro garantista). No tomo segundo, o devido processo legal significa o adequado processo, ou seja, o processo que assegure a igualdade das partes, o contraditório e a ampla defesa. Essa última é nosso objeto de análise agora. O art. 5º, LV, da CF, assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A ideia de ampla defesa se materializa, no processo penal, na garantia ofertada ao réu de oferecer argumentos em seu favor e de demonstrá-los, nos limites em que isso seja possível1. Atrela-se, assim, às garantias de igualdade e do contraditório. 2 Conforme arrazoa MOUGENOT BONFIM, “não supõe o princípio da ampla defesa uma infinitude de produção defensiva a qualquer tempo, mas, ao contrário, que esta se produza pelos meios e elementos totais de alegações e provas no tempo processual oportunizado por lei”. 3 O direito de defesa está, então, estruturado no binômio: 1. defesa privada, autodefesa, material ou genérica; 2. defesa técnica, processual, específica ou pública, exercida pelo defensor. 9.3.a. Ampla defesa. Defesa pessoal, privada, autodefesa, material ou genérica ▪ Junto à defesa técnica (analisada infra), existem também atuações do sujeito passivo no sentido de resistir pessoalmente à pretensão estatal. Através dessas atuações, o sujeito atua pessoalmente, defendendo a si mesmo como indivíduo singular, fazendo valer seu critério individual e seu interesse privado. Em síntese: “Autodefesa é aquela exercida pelo próprio acusado, em momentos cruciais do processo”. 4 A chamada defesa privada ou autodefesa manifesta-se de várias formas, mas encontra no interrogatório policial e judicial seu momento de maior relevância. Classificamos a autodefesa a partir de seu caráter exterior, como uma atividade positiva ou negativa. O interrogatório é o momento em que o sujeito passivo tem a 1 Há que se tomar extremo cuidado com os possibilismos. Com efeito, os limites do possível devem ganhar projeções semi-utópicas, jamais se podendo dispensar chance a defesas ainda que minimamente viáveis. O fio de cabelo representativo da esperança já é de inestimável monta ao acusado. 2 BRASILEIRO DE LIMA, aliás, adianta-se a nós e faz perspicaz comentário acerca da relação entre esses dois princípios “ direito de defesa está ligado diretamente ao princípio do contraditório. A defesa garante o contraditório e por ele se manifesta. Afinal, o exercício da ampla defesa só é possível em virtude de um dos elementos que compõem o contraditório – o direito à informação. Além disso, a ampla defesa se exprime por intermédio de seu segundo elemento: a reação. (...) Apesar da influência recíproca, os dois não se fundem. (...) Como se vê, a defesa e o contraditório são manifestações simultâneas, intimamente ligadas pelo processo, sem que daí se possa concluir que uma derive da outra”. Manual, p. 57. 3 Curso, p. 70. 4 BRASILEIRO DE LIMA. Curso, p. 63. LUCAS DE OLIVEIRA ▪ CADERNO DE PROCESSO PENAL 25 oportunidade de atuar de forma efetiva – comissão –, expressando os motivos e as justificativas ou negativas de autoria ou de materialidade do fato que se lhe imputa. A autodefesa, apesar de indispensavelmente garantida, pode não ser exercida, ostentando, neste viés, caráter disponível, isto é, renunciável. O acusado tem: (1) direito de estar presente em todos os atos da instrução; (2) direito de audiência; (3) direito de ficar em silêncio ou não comparecer (autodefesa negativa). (4) direito de oferecer alegações e provas pessoalmente (vide art. 189 do CPP). (5) direito de recorrer em causas próprias, mesmo quando o seu defensor não tenha recorrido (vide art. 577 e art. 623 do CPP). I. O direito de estar presente em todos os atos da instrução (vide arts. 367, 564, I, e, segunda parte, e 577, todos do CPP). Aliás, entendemos que o interrogatório deve ser encaminhado de modo a permitir a defesa do sujeito passivo e, por isso, submetido a toda uma série de regras de lealdade processual, que pode ser assim resumida: a) deve ser realizado de forma imediata, ou, ao menos, num prazo razoável após a prisão; b) presença de defensor, sendo-lhe permitido entrevistar-se prévia e reservadamente com o sujeito passivo; c) comunicação verbal não só das imputações, mas também dos argumentos e resultados da investigação e que se oponham aos argumentos defensivos; d) proibição de qualquer
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