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O objetivo desta aula é discutir a morte e o morrer no contexto da formação no 
curso de Medicina. Para isso, serão desenvolvidos os temas a morte no aparelho 
psíquico, a morte em nossa cultura, os conceitos sobre o morrer na perspectiva da 
bioética e uma introdução aos cuidados paliativos. 
Nas últimas décadas, as ciências modernas avançaram numa celeridade antes 
inimaginável, de forma que o envelhecimento da população, associado ao controle 
das patologias crônico-degenerativas e ao aperfeiçoamento tecnológico, têm, 
cada vez mais, permitido o prolongamento da vida e, muitas vezes, do morrer. Lidar 
com a morte, em geral, é bastante difícil. O estudante de Medicina, ao ingressar no 
curso, não leva em consideração que isso fará parte do seu ofício.
De fato, de acordo com a teoria freudiana, não há registro da morte em nosso 
inconsciente. Em “Reflexões para tempos de guerra e de morte” (Freud, 1915), 
encontramos a afirmação da inexistência de tal registro no inconsciente; devemos, 
entretanto, considerar que, apesar disso, o homem pensa em sua morte e na 
daqueles que ama. Ficamos muito tocados em nossas expectativas quando morre 
alguém, e principalmente se esse alguém for um dos que amamos. De acordo com 
Freud, “Nossas esperanças, nossos desejos e nossos prazeres jazem no túmulo com 
essa pessoa, nada nos consola, nada preenche o vazio deixado pelo ente perdido” 
([1915] 1996, p.300). Quando morre um dos que amamos, morre, também, parte de 
nosso próprio eu. 
Freud (1917) define o luto como reação à perda de um ente querido, ou de alguma 
abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou 
o ideal de alguém, e assim por diante. A realidade consiste no reconhecimento 
de que o objeto amado não está mais no mundo, pode ter morrido ou ter sido 
perdido, exigindo que a libido se retraia, retirando todas as suas ligações com 
aquele objeto. Para tal, há um hiperinvestimento que prolonga a existência do 
mesmo no psiquismo, para pouco a pouco haver o desinvestimento. Sem dúvida, 
isto é desprazeroso e provoca sofrimento ao sujeito, mas este vai, com o tempo, se 
desprendendo do objeto perdido, até o ego ficar novamente livre para um novo 
amor.
No texto “O mal-estar na civilização” (1930), o psicanalista afirma que a objetivo dos 
homens é obter sentimento intenso de prazer, e aí se incluem a busca da felicidade 
e a evitação do desprazer, o sofrimento. As possibilidades de felicidade e sofrimento 
são reguladas pela nossa própria constituição psíquica. O sofrimento, que é mais 
comum de se experimentar, provém de três fontes: a força superior da natureza, a 
fragilidade de nossos próprios corpos e a facticidade das normas ajustadoras dos 
relacionamentos entre os seres humanos. Em relação às duas primeiras fontes de 
sofrimento, nos diz Freud:
“Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, 
ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura 
passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização”. (FREUD, 1996 
[1930], p.93).
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Em relação à terceira fonte de sofrimento, sobre a qual Freud afirma ser a mais 
penosa, discorre-se sobre as leis que o homem cria na sociedade para sua própria 
proteção, mas causam sofrimento na medida em que recalca nossas pulsões, ou 
seja, não podemos agir ao nosso bel prazer, e temos que adequá-las às regras 
sociais.
Freud se refere às medidas paliativas para suportar o sofrimento, e cita, entre 
três, que o cultivo do jardim e a dedicação às atividades científicas são poderosos 
derivativos na tentativa de minimizá-lo. O que é isso, se não o desejo pela 
imortalidade? Mais adiante no texto, diz Freud que, em um tempo remoto, o que 
parecia inatingível era atribuído a Deus. Só que, cada vez mais, o homem tenta se 
assemelhar a Ele. Com os recursos da tecnociência, o homem recria seus próprios 
órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia seu funcionamento. 
Os últimos 50 anos foram caracterizados pela rapidez dos avanços tecnológicos que 
marcaram de forma histórica a humanidade. Culturalmente os homens procuram 
lidar com o que é “inaceitável” de acordo com os recursos da época em que estão 
vivendo. Freud escreveu: “(...) constitui fato incontroverso que todas as coisas que 
buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de 
sofrimento fazem parte dessa mesma civilização.” (FREUD, 1996 [1930], p.93).
 Pode-se dizer que, hoje, o que temos de recurso são os avanços tecnológicos. Estes, 
como tem se visto, têm como objetivo “vencer” a morte, tida como inaceitável nos 
tempos atuais. Contudo, nem sempre foi assim.
Phillipe Aries, em seu livro “A história da morte no ocidente” (2003) escreve sobre 
como a representação da morte foi mudando de acordo com a civilização. 
Primeiro tem-se a “morte domada”, na época da Idade Média, a morte dos cavaleiros 
medievais. A pessoa era advertida por sinais naturais, ou até mesmo por convicção 
íntima, e, a partir daí, tomava suas providências e se preparava pra morte: lamentava 
a vida e evocava as pessoas para perdoá-lo à beira do leito. Um padre o absolvia 
pelos pecados cometidos. Havia uma cerimônia pública e organizada pela própria 
pessoa. O seu quarto tornava-se um lugar público: amigos, parentes, vizinhos e 
crianças ficavam presentes. A morte era esperada no leito. Assim, durante séculos, 
a morte era ao mesmo tempo familiar e próxima por um lado, e atenuada e 
indiferente por outro. Era vista como o descanso do guerreiro.
Ao fim da Idade Média, tinha consciência de que a vida era curta e de que a morte, 
sempre presente em seu âmago, despedaçava suas ambições e envenenava seus 
prazeres.
A partir dos séculos XI e XII, o lugar da perda começa a se modificar devido a uma 
série de fenômenos novos que vão se apresentando. Um deles é a representação 
do juízo final, quando cada homem será julgado de acordo com o “balanço de sua 
vida”. Este julgamento começa ainda em vida, quando o doente está em seu quarto 
aguardando a morte. 
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No espelho de cada morte, cada homem redescobria o segredo de sua 
individualidade, tomando consciência de si mesmo. As sepulturas individuais ficam 
em evidência, revelando que cada pessoa é identificada por uma inscrição. 
Admitindo que os túmulos signifiquem o desejo de conservar a identidade e a 
memória do morto, percebe-se que a concepção da morte começa a ser mudada. 
Por volta do século XVIII o homem exalta, dramatiza, deseja, romantiza a “morte 
do outro”, cuja saudade e lembrança inspiram nos séculos XIX e XX o novo culto 
dos túmulos e dos cemitérios. A assistência prestada ao moribundo é agora cheia 
de emoção, choro, suplício, gesticulação. A simples ideia de morte causa uma 
intolerância à separação. 
Se antes a morte era focalizada no indivíduo, agora passa a ser sobre seus próximos. 
Há uma dificuldade em aceitar a morte, e a mais temida não é a sua própria, mas 
sim a do outro. Percebe-se uma mudança em relação aos que vão morrer e suas 
famílias. Assim, aos moribundos cabe expressar suas ideias, sentimentos, vontades, 
e, para isso, dispunha-se de testamentos. Este instrumento acabava por reservar 
o lugar do morto após a morte, seja o lugar na vida após a morte, seja o lugar de 
onde ele seria lembrado. 
O luto excessivo ritualizou-se. A família manifestava uma dor que nem sempre 
experimentava. Ariès afirma que “esse exagero do luto no século XIX tem um 
significado: os sobreviventes aceitam com mais dificuldade a morte do outro do 
que faziam anteriormente”. Há uma associação entre morte e amor, Tanatos e Eros, 
ou seja, assim como o ato sexual, a morte é considerada como uma ruptura do 
homem de sua vida cotidiana, de sua sociedade racional. 
Entre 1930 e 1950 percebe-se o deslocamentodo lugar da morte, que antes era 
em casa, em meio a familiares. Com os avanços no campo médico, as pessoas vão 
para o hospital quando adoecem para receber cuidados impossíveis de serem 
prestados em casa. Então, o hospital continua tendo essa função curativa, mas 
começa também a ser considerado como “o lugar privilegiado da morte”, já que 
nem sempre a cura é possível. 
A morte, então, não é mais uma cerimônia ritualística, mas, cada vez mais, é um 
fenômeno técnico. Percebemos que antes a iniciativa era do moribundo, depois 
passou-se às famílias, e, agora, esta alienou-se tanto quanto o doente, e passou ao 
médico e à equipe hospitalar a responsabilidade de cuidar até a morte. 
Atualmente, observamos a necessidade de felicidade como um dever moral e 
obrigação social. As grandes manifestações de luto e dor são condenadas, deixando 
de inspirar pena, mas sim repugnância. No lugar dos grandes ritos fúnebres, dá-se 
preferência à cremação. 
A Medicina no século XIX adquiriu novas conquistas: vacinas, instrumentos 
médicos, desenvolvimentos de métodos propedêuticos, anatomia patológica, 
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microbiologia. A partir da teoria dos germes é possível explicar uma doença sem 
falar no corpo inteiro. Pensa-se nas doenças e não nos doentes. 
Conforme esta nova intenção, surgem as unidades de tratamento intensivo, na qual 
a equipe médica está a serviço de prolongamento da vida. Todo tratamento médico 
mede sua efetividade na escala epidemiológica, por um incremento na expectativa 
de vida. Os reais poderes dos avanços científicos e tecnológicos subverteram 
profundamente a posição do médico, que trocou seu lugar de “a serviço da vida” 
para “a serviço da tecnologia”. 
O que se discute é até que ponto e qual seria a terapia útil. Diga-se de passagem, útil 
no sentido próprio de ser vantajoso para o paciente. Questionamos se são válidas 
medidas heroicas para o prolongamento da vida, em detrimento da qualidade da 
mesma. Ainda que tais medidas possam tornar-se ações iatrogênicas, trazendo 
conforto ao médico, já que se está fazendo tudo para o paciente, por outro lado, 
este é submetido a procedimentos invasivos e dolorosos, sem possibilidade de 
escolha, na maioria das vezes.
Ao lidar com a morte, a espécie humana apreende que ela não é apenas uma 
realidade biológica, é antes um fator cultural que foi modificando-se com a 
civilização.
Muito se tem falado do limite do esforço terapêutico, da terapêutica útil e da 
terapêutica fútil. Assim como o médico, a quem pesa a decisão solitária sobre a 
vida e a morte, o paciente tem limite. A recente demanda de discussão sobre ética 
e sobre os dilemas da morte trazem à tona importantes conceitos da bioética. A 
eutanásia, proibida pela Constituição de 1988, define-se como ação que tem por 
finalidade levar a retirada da vida do ser humano por considerações tidas como 
humanísticas, à pessoa ou à sociedade. Já distanásia é definida como morte difícil 
ou penosa, usada para indicar o prolongamento do processo da morte, por meio 
de tratamento que apenas prolonga a vida biológica do paciente, sem qualidade 
de vida e sem dignidade. Também denominada obstinação terapêutica. E, por fim, 
a ortotanásia, que é morte desejável, na qual não ocorre o prolongamento da vida 
artificialmente, através de procedimentos que acarretam aumento do sofrimento, 
o que altera o processo natural do morrer. Contudo, é importante ressaltar que não 
existe consenso na literatura em relação aos critérios para a retirada e a manutenção 
do suporte terapêutico frente ao paciente no processo de morrer. (FELIX et al, 2013). 
Na tentativa de amenizar o sofrimento de quem cuida e de quem é cuidado e de 
direcionar a conduta médica nestes casos, o Código de Ética Médica, em sua última 
atualização, em 2009, prevê a ortotanásia. Ou seja, nos casos de doença incurável, 
o médico deve oferecer os cuidados paliativos disponíveis, promovendo conforto, 
sem empreender ações diagnósticas e terapêuticas inúteis ou obstinadas. Em 
setembro de 2012, uma resolução do Conselho Federal de Medicina estabeleceu a 
validade do Testamento Vital, legitimando a escolha do paciente de como deseja 
ser tratado no limite da vida.
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Os cuidados paliativos estão se consolidando como o tratamento possível nestas 
situações e consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, 
que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante 
de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, 
da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais 
sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais (ANCP, 2009).
Desta maneira, o paradigma da morte vai, aos poucos, se deslocando e 
estabelecendo-se uma nova concepção: da cura ao cuidado e da morte inimiga à 
morte inerente à vida.
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Referência Bibliográfica:
• ACADEMIA NACIONAL DE CUIDADOS PALIATIVOS. Manual de cuidados 
paliativos. Rio de Janeiro: Diagraphic, 2009. 320p.
• ARIÈS, Philippe. História da morte do ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, 
312p.
• FELIX, Zirleide Carlos et al . Eutanásia, distanásia e ortotanásia: revisão integrativa 
da literatura. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 18, n. 9, set.  2013
• FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917[1915]). v. XIV. In.: Edição Standard 
Brasileira das Obras de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
• ______. Reflexões para os temos de guerra d morte (1915). v. XIV. In.: ESB. Rio de 
Janeiro: Imago, 1996.
• ______. O mal-estar na civilização (1930[1929]). v. XXI. In.: ESB. Rio de Janeiro: 
Imago, 1996.
• CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1.805, sobre a legitimidade 
da ortotanásia. Brasilia, 2006. Acesso em: 22 nov. 2020.
• CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1.931, sobre o novo Código 
de Ética Médica. Brasilia, 2009. Acesso em: 22 nov. 2020.
• CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1.973, que define a Medicina 
Paliativa como área de atuação. Brasilia, 2011. Acesso em: 22 nov. 2020.
• CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1.995, sobre as Diretivas 
Antecipadas de Vontade. Brasilia, 2012. Acesso em: 22 nov. 2020.
• ZAIDHAF, Sérgio. Morte e formação médica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 
1990.
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